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Condição Tecnológica Homo sapiens, homo faber

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Academic year: 2022

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Condição Tecnológica

Homo sapiens, homo faber

Quando nos referimos ao homo sapiens, enfatizamos a característica humana de conhecer a realidade, de ter consciência do mundo e de si mesmo. A denominação homo faber é usada quando nos referimos à capacidade de fabricar utensílios, com os quais o homem se torna capaz de transformar a natureza.

Homo sapiens e homo faber são dois aspectos da mesma realidade humana. Pensar e agir são inseparáveis, isto é, o homem é um ser técnico porque tem consciência, e tem consciência porque é capaz de agir e transformar a realidade.

Em decorrência, a maneira como os homens agem para adequar a natureza aos seus interesses de sobrevivência influi de modo decisivo na construção das representações mentais por meio das quais explicam esta realidade. Da mesma forma, tais construções mentais tornam possíveis as alterações necessárias para adaptar as técnicas à solução dos problemas que desafiam a inteligência humana.

Por exemplo, Gutenberg inventa os tipos móveis no século XVI, a imprensa passa a desempenhar papel decisivo na difusão das idéias e na ampliação da consciência crítica, o que altera o conhecimento que o homem tem do mundo e de si mesmo. No século XX, o aperfeiçoamento técnico do telefone, telégrafo, fotografia, cinema, rádio, televisão, computador, comunicação via satélite, web, certamente vem mudando a estrutura do pensamento, agora marcada pela cultura da imagem, do som, da rede digital, pela

“planetarização” da consciência.

As transformações da técnica

Utensílio, máquina e autômato. Grosso modo, eis as três etapas fundamentais do desenvolvimento da técnica.

No estágio inicial, o utensílio é um prolongamento do corpo humano: o martelo aumenta a potência do braço e o arado funciona como a mão escavando o solo.

Quando deixa de usar apenas a energia humana, a técnica passa ao estágio das máquinas pela utilização da energia mecânica, hidráulica, elétrica ou atômica. Por exemplo, o carvão queimando faz mover o tear, o vapor de água faz funcionar a locomotiva, a explosão da gasolina viabiliza o automóvel e a eletricidade põe em movimento a batedeira de bolo.

“A máquina é o instrumento que atua por si mesmo e por si mesmo produz o objeto(...) No artesanato o utensílio ou ferramenta é somente do homem. Neste, portanto, o homem com seus atos “naturais” continua sendo o ator principal. Na máquina, ao contrário, passa o instrumento para o primeiro plano e não é ele quem ajuda o homem, mas ao contrário: o homem é quem simplesmente ajuda e suplementa a máquina(...) O que um homem com suas atividades fixas de animal pode fazer, sabemo-lo de antemão: seu horizonte é limitado.

Mas o que podem fazer as máquinas que o homem é capaz de inventar é, em princípio, ilimitado. (Ortega y Gasset.)

Em estágio mais avançado, o autômato imita a iniciativa humana, porque não repete

“mecanicamente” as funções preestabelecidas, uma vez que é capaz de auto-regulação. A

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partir de certos programas, é possível grande flexibilidade nas “tomadas de decisões”, o que aproxima as “máquinas pensantes” do trabalho intelectual humano, já que são capazes de provocar, regular e controlar os próprios movimentos. O radar corrige a rota do avião de acordo com as alterações do percurso, a célula fotoelétrica instalada na porta do elevador impede que ela se feche sobre o usuário: em ambos os casos os comandos são alterados automaticamente conforme “informações” externas. (Cibernética – do grego kybernetiké, isto é, “a arte do piloto” – ciência que estuda as comunicações e o sistema de controle não só nos organismos vivos, mas também nas máquinas – Aurelião).

Técnica e Ciência

Um esforço imenso é despendido pelo homem no domínio da natureza. Na medida do possível, alguns reservam para si as funções leves e encarregam outros do trabalho mais penoso. A predominância de escravos e servos no exercício das atividades manuais sempre levou à desvalorização desse tipo de trabalho, enquanto apenas as atividades intelectuais eram consideradas verdadeiramente dignas do homem.

Os romanos, retomando a tradição da Grécia, chamavam de ócio (otium) não propriamente a ausência de ação, mas o ocupar-se com as ciências, as artes, o trato social, o governo, o lazer produtivo. Ao ócio opunham o negócio (o nec-otium, ou seja, a negação do otium), enquanto atividade que tem por função satisfazer as atividades elementares.

Evidentemente é o ócio que constitui para eles o ser próprio do homem, e alcançá-lo era privilégio reservado a poucos.

Tal maneira de pensar supõe a existência da divisão social com a manutenção do sistema escravista ou da servidão. Mesmo Aristóteles sabia disso, e diz, em sua Política, que haveria escravidão enquanto as lançadeiras não trabalhassem sozinhas.

A partir da Idade Média surge uma nova concepção a respeito da importância da técnica.

Antes desvalorizada, ela torna-se o instrumento adequado para transformar o homem em

“mestre e senhor da natureza”.

Averiguando as circunstâncias sociais e econômicas que possibilitaram uma mudança tão decisiva para a história da humanidade, encontramos no surgimento da burguesia os elementos que tornaram necessária a nova maneira de pensar e agir. Os burgueses, ligados ao artesanato e ao comércio, valorizavam o trabalho e tinham espírito empreendedor. Ora, o sucesso e enriquecimento desse novo segmento social passam a exigir cada vez mais o concurso da técnica para a ampliação dos negócios: construção de navios mais ágeis, utilização da bússola para a orientação nos mares em busca de novos portos, aperfeiçoamento dos relógios (tempo é dinheiro). Um bom exemplo do efeito transformador da técnica é a pólvora. Conhecida há muito nas civilizações orientais, como a China, onde era utilizada na confecção de fogos de artifício, ao ser levada para a Europa, irá redimensionar as artes bélicas, ao ser usada em canhões para o ataque aos até então quase inacessíveis castelos da nobreza.

A valorização da técnica altera a concepção da ciência. Se antes o saber era contemplativo, ou seja, voltado para a compreensão desinteressada da realidade, o novo homem busca o saber ativo, o conhecimento capaz de atuar sobre o mundo, transformando.

Essa nova mentalidade permite o advento da ciência moderna. Galileu, ao tornar possível a Revolução Científica no século XVII, estabelece a fecunda aliança entre o labor da mente e o trabalho das mãos, o que irá marcar a relação entre ciência e técnica:

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• A técnica torna a ciência cada vez mais precisa e objetiva. Por exemplo, o termômetro mede a temperatura melhor do que o faz a nossa pele.

• A ciência é um conhecimento rigoroso capaz de provocar a evolução das técnicas;

a tecnologia moderna nada mais é do que ciência aplicada. Por exemplo, os estudos de termologia dão condições para a construção de termômetros mais precisos.

São profundas as alterações provocadas pelo advento da tecnologia em todos os setores da vida humana. Podemos dizer que, em nenhum lugar e em tempo algum da história da humanidade , ocorreram transformações tão rápidas e tão fundamentais. Por maiores que sejam as diferenças entre as culturas do Antigo Oriente do terceiro milênio aC e a Europa do século XV, nada se compara à transformação radical no modo de vida que se opera do século XVIII ao início do século XXI: em apenas trezentos anos, a ciência e a tecnologia alteraram fundamentalmente a maneira de viver e de pensar do homem contemporâneo.

Técnica e Sociedade

As transformações das técnicas alteram as relações sociais. Enquanto o mundo agrícola e artesanal é marcado pela tradição, e fixa o homem ao campo, o advento das fábricas no século XVII estimula o aperfeiçoamento das máquinas e acelera o crescimento das cidades.

Estabelecem-se novas relações de produção com o aparecimento da classe proletária assalariada e dos capitalistas detentores dos meios de produção.

O auge do desenvolvimento do sistema fabril se dá no século XIX, sobretudo na Inglaterra. O setor secundário se sobrepõe em importância ao setor primário, definindo mas características dos países industriais e, portanto, modernos: urbanização, utilização de várias formas de energia, organização hierarquizada da empresa, técnico especializado versus operário semiqualificado.

A partir de meados do século XX constata-se uma transformação talvez tão radical como aquela ocorrida no início da era moderna. Na atual sociedade pós-industrial, a produção de bens materiais passa a exigir a ampliação dos serviços (setor terciário).

Nessas circunstâncias, a tecnologia que conta é em última análise a informação; basta observar como o cotidiano de todos se acha marcado pelo consumo de serviços de saúde, educação, recreação, comunicação, publicidade, empresas de comércio e finanças. Isso significa que o setor secundário perdeu importância, mas que também ele sofre alterações decorrentes da informatização.

Técnica e Alienação

A técnica é um poder cujas conseqüências nem sempre aparecem muito claramente no início do processo, por isso convém não desprezar a sabedoria daqueles que desejam discutir sobre os fins a que ela se destina. Isso significa que o técnico não pode ser apenas técnico, mas deve ser capaz de refletir a respeito dos valores que envolvem a aplicação da técnica. Por exemplo, a industrialização não planejada transforma o mito do progresso no pesadelo da poluição e do desequilíbrio ecológico.

O primeiro sonho do maquinismo foi a libertação das tarefas mais árduas e repetitivas.

No entanto, o que temos observado é a ampliação do “batalhão de operários” executando ordens mecanicamente sem que tenha havido significativa redução do tempo de trabalho ou melhoria da qualidade de vida.

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Já no século das luzes (XVIII), Rousseau contrariava as expectativas otimistas que a maioria depositava nas vantagens do desenvolvimento da técnica, denunciando o avanço da desigualdade entre os homens. Afinal, o que ainda hoje constatamos, é que os frutos da tecnologia não têm sido distribuídos de forma igual entre os homens.

Na segunda metade do século XVIII, operários da região de Lancashire, na Inglaterra, fizeram diversos movimentos entre os quais era destruído o maquinário das instalações fabris. Os “quebradores de máquinas”, na verdade, já percebiam, com aflição, as profundas modificações decorrentes da passagem da produção artesanal e doméstica para a fabril.

É típico do trabalho artesanal o conhecimento de todas as fases da produção, mas a mecanização desenvolveu a tendência à divisão do trabalho. Essa fragmentação culmina no século XX com a produção em linha de montagem, quando o operário perde a visão global do que está sendo produzido. Com essa nova organização do trabalho, o operário perde o saber técnico, cabendo a ele apenas executar o que foi concebido e planejado em outro setor, acentuando-se assim a separação entre concepção e execução do trabalho. Em decorrência disso surge a figura do técnico especialista, de saber qualificado, como engenheiros, administradores, etc.

No desenvolvimento do sistema capitalista, o operário confinado à fábrica perde bons instrumentos do trabalho, a posse do produto e, em consequência, perde a autonomia.

Deixa de ser o centro de si mesmo: não escolhe o salário, nem o horário, nem o ritmo do trabalho. Com isso se dá uma grande inversão, em que o produto passa a valer mais que o próprio operário, uma vez que aquele determina as condições de trabalho deste e até as demissões e contratações. Trata-se de uma inversão porque aquilo que é inerte (a coisa, o produto) passa a “ter vida” e o que tem vida (o homem) se transforma em “coisa”.

Assim se configura o que chamamos trabalho alienado. (etimologicamente, a palavra alienação vem do latim alienare, que significa ‘que pertence ao outro’. Alienar, portanto, é tornar alheio, é transferir para outrem o que é seu.)

Ora, se admitimos que, pelo trabalho, ao mesmo tempo que o homem faz uma coisa também se faz a si mesmo, o trabalho alienado é condição de desumanização, pois os trabalhadores perdem o controle do produto e, consequentemente, de si mesmo, tornando- se incapazes de atuar no mundo de forma crítica.

A tecnocracia

O desenvolvimento acelerado da técnica cria o mito do progresso. Segundo essa crença, tudo tende para o aperfeiçoamento, mediante a atualização de potencialidades que se encontram em estado latente, embrionário. E, se tudo evolui para melhor, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia só faria acelerar

esse processo.

A partir de tal concepção, compreende-se como natural a necessidade do aumento crescente da produção(ideal de produtividade); para tanto é estimulada a competitividade (a fim de que cada empresa seja melhor naquilo que produz), bem como a especialização (segundo a qual cada vez mais as grandes decisões são deixadas a cargo de especialistas na área).

Com o passar do tempo, as formas de controle de produção e divisão do trabalho tornam- se mais rigorosas, desenvolvendo-se para tantos métodos científicos de "racionalização" do

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trabalho, que têm em vista os objetivos já referidos de produtividade, competitividade e especialização.

O mundo da produção assim configurado leva fatalmente à tecnocracia, que significa o domínio dos técnicos e da técnica. Ou seja, na civilização tecnicista e cientificista, a última palavra é sempre dada ao especialista, ao técnico competente.

No entanto, vivemos hoje a crise desses valores. O ideal de progresso inexorável é desmistificado quando constatamos que o desenvolvimento da ciência e da técnica nem sempre vem acompanhado pelo progresso moral.

Razão louca e razão sábia

Os tempos modernos surgiram marcados pelo ideal da racionalidade que culminou no Iluminismo do século XVIII. Superando a concepção medieval, centrada na tradição e na visão religiosa do mundo, a modernidade se torna laica (não-religiosa) e busca na razão a possibilidade da autonomia do homem. O desenvolvimento técnico e científico é a expressão do racionalismo dos tempos modernos.

Mas, quando nos referimos à racionalidade da sociedade contemporânea, é bom indagar a respeito de que razão estamos falando. A razão que serve para o desenvolvimento da técnica é a razão instrumental, bem diferente da razão vital, por meio da qual o homem se torna capaz de compreender criticamente a situação em que vive.

Ora, se nunca o homem teve tanto saber nem tanto poder em suas mãos, também é verdade que o acréscimo de saber e de poder não tem sido acompanhado de sabedoria. O homem contemporâneo sabe o que fazer e como fazer, mas perdeu de vista o para que fazer.

O “especialista competente” pode ser o “aprendiz de feiticeiro” que não reflete suficientemente bem a respeito dos fins de sua ação. Fazemos essa triste constatação quando nos defrontamos com o desequilíbrio entre riqueza e miséria, a violência da guerra com seus armamentos sofisticados, os níveis insuportáveis de competição, o consumo desenfreado criando necessidades artificiais, as desordens morais da sociedade centrada nos valores de posse.

Além disso, uma das inúmeras contradições da sociedade pós-industrial é que o homem se acha saturado de informações inúmeras e complexas, mas tão rápidas e fragmentadas (como um videoclipe!), que nem sempre é capaz de reorganizá-las de forma crítica. A grande “maioria silenciosa” é despolitizada e mais preocupada com os problemas de seu cotidiano individual, com os problemas práticos de alcance imediato.

Presenciamos no século XX e início do atual um período de crise: a razão, que deveria servir para vincular o homem ao real a fim de compreendê-lo, para escolher o que é melhor para a sua vida, essa razão se acha “enlouquecida”.

O trabalho do pensamento, de um humanismo alternativo, consiste em recuperar a razão sábia, a razão vital, como instrumento para resgatar o sentido humano do mundo.

Extraído de Temas de Filosofia de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins – Editora Moderna

Referências

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