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Academic year: 2021

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Universidade Federal de Santa Catarina.

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Uma análise da construção da multiterritorialidade:

a imigração haitiana em Joinville (SC) The construction of multiterritoriality: the haitian immigration in Joinville (SC), Brazil Un análisis de la construcción

de la multiterritorialidad:

la inmigración haitiana

en Joinville (SC), Brasil

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Submissão: 3-2-2017 Decisão editorial: 22-4-2019

locais, especialmente os deslocamentos e a presença de haitianos em Joinville (SC) entre os anos de 2010 e 2016. Neste artigo, o objetivo foi analisar os deslocamentos e a presença de haitianos na cidade, à luz de questões interdisciplinares da história e da comunicação que problematizem a relação entre a construção de territórios simbólicos e a multiterritorialidade.

Optou-se por contextualizar a questão da imigração realizando um percurso empírico- metodológico de análise das notícias a respeito da imigração haitiana e das memórias dos imigrantes (advindas de entrevistas orais), de forma a ponderar sobre o recente processo migratório de haitianos e suas imbricações com o espaço urbano local. As análises feitas revelam que as motivações para migrar são inúmeras e têm diferentes significados para cada imigrante. As narrativas produzidas sugerem que ações de recusa e/ou experiências de pertencimento fazem parte do mesmo jogo na disputa por ocupação de espaços territoriais, sejam eles físicos, sejam simbólicos.

Palavras-chave: Imigração haitiana. Multiterritorialidade. Narrativas jornalísticas. Memórias migrantes.

ABSTRACT

This investigation analyses the international emigrational processes and their local impact, especially the displacement and the presence of Haitian people in Joinville, SC, Brazil, between 2010 and 2016. In this article, the purpose here was to examine the displacement and the presence of Haitian people in Joinville, in the light of interdisciplinary questions from the History and the Communication fields that discuss the relation between the construction of symbolic territories and the multiterritoriality. We chose to contextualize the immigration through an empirical-methodological path of analysis of the News about the Haitian immigration and of the immigrants’ memories (collected by oral interviews), thinking on the recent Haitian emi- grational process and its imbrication with the local urban spaces. The analyses revealed that there are plenty motivations to immigrate and all of them have a different meaning for each immigrant. The produced narratives suggest that recuse actions and/or belonging experiences are part of the same game in the dispute for occupation and territorial spaces, no matter if physical, or symbolical.

Keywords: Haitian immigration. Multiterritoriality. Journalistic narratives. Migrant memories.

RESUMEN

La actual investigación analiza los procesos migratorios internacionales y sus impactos locales, especialmente los dislocamientos y la presencia de haitianos en Joinville (SC), Brasil, entre los años de 2010 y 2016. En este artículo, el objetivo fue analizar los dislocamientos y la presencia de haitianos en la ciudad, a la luz de cuestiones interdisciplinares de la historia y de la comunicación que problematicen la relación entre la construcción de territorios simbólicos y la multiterritorialidad. He optado por contextualizar la cuestión de la inmigración por una trayectoria empírico-metodológica de análisis de noticias sobre la inmigración haitiana y de las memorias de los inmigrantes (provenientes de entrevistas orales), de forma a ponderar sobre el reciente proceso migratorio de haitianos e sus imbricaciones con el espacio urbano local. Los análisis hechos revelan que las motivaciones para migrar son varias y tienen dife- rentes significados para cada inmigrante. Las narrativas producidas sugieren que acciones de denegación y/o experiencias de pertenencia hacen parte del mismo juego en la disputa por ocupación de espacios territoriales, sean ellos físicos, sean simbólicos.

Palabras clave: Imigración haitiana. Multiterritorialidad. Narrativas periodísticas. Memorias migrantes.

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No Brasil, a legislação sobre a imigração consi- derava até muito recentemente o estrangeiro uma ameaça,1 no entanto a nova Lei de Migração (n.º 13.445, de 24 de maio de 2017),2 que contempla a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos, bem como repudia e procura prevenir a xenofobia e o racismo, pode ser vista como um avanço à medida que trata o estrangeiro como sujeito possuidor de garantias e direitos (BRASIL, 2017).

O Brasil, a partir de 2008, voltou a ser um país pro- curado por imigrantes e refugiados, em decorrência da crise econômica que atingiu os Estados Unidos e a

1 Estatuto criado em 1980, durante o período da ditadura militar, tinha como base o discurso da segurança nacional, no sentido de o imigrante representar ainda uma ameaça à nação. O imigrante seria tolerado apenas considerando seu valor econômico como mão de obra barata: “Art. 2.º Na aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, sócio-econômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional” (BRASIL, 1980).

2 A Lei n.º 13.445, em seu Artigo 3.º, diz: “A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes: I – universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; II – repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; III – não criminalização da migração” (BRASIL, 2017). (Sobre a nova lei de migração

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Europa, em 2007, e das oportunidades abertas com a realização de dois grandes eventos: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Conforme dados apresentados por Cogo (2014), extraídos de um es- tudo do Observatório das Migrações Internacionais, em 2010 havia no Brasil cerca de 960 mil imigrantes internacionais e em 2013 1,7 milhão. Os dados de 2015 apontavam para 1.847.274 imigrantes regulares no Bra- sil (ARANTES, 2015, de acordo com matéria de Exame).

Os haitianos estão entre os maiores contingentes de imigrantes que o Brasil vem recebendo nesses últi- mos anos. O povo haitiano migra sucessivamente há algumas décadas, por conta das condições político- -econômicas de seu país, porém o terremoto de janeiro de 2010, que afetou três milhões de pessoas e deixou mais de 200 mil mortes (BASTANTE, 2010), é tido como a causa principal da imigração haitiana recente.

Neste artigo, nosso objetivo foi analisar os deslo- camentos e a presença de haitianos em Joinville (SC), à luz de questões interdisciplinares da história e da comunicação que problematizem a relação entre a construção de territórios simbólicos e a multiterritoria- lidade. Dados dos órgãos oficiais sobre a imigração haitiana para o Brasil, para Santa Catarina e especial- mente para Joinville ajudaram a compor o cenário do processo de contextualização e ocupação territorial pelos recentes imigrantes. Também se examinou um conjunto de fontes da imprensa escrita,3 narrativas jor- nalísticas que abordam a chegada, a presença e os lugares simbólicos destinados aos imigrantes na cidade.

Nesse momento do texto, se procurou cotejar as nar-

3 Para este artigo, optou-se por analisar três reportagens, duas das quais veiculadas no A Notícia, jornal de maior circulação impressa na cidade de Joinville, e outra de um site especializado em processos migratórios no Brasil e no mundo.

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rativas da imprensa com as narrativas de imigrantes, objetivando compreender os significados atribuídos por um e por outro no que tange aos imigrantes.

A análise das narrativas dos haitianos foi funda- mental para entender os trajetos percorridos até a chegada em seu local de destino, os significados que atribuem à sua condição migrante e as mediações socioculturais com base em suas vivências no espaço urbano joinvilense. Averiguou-se inicialmente a narra- tiva produzida de maneira especial por uma das en- trevistas orais realizadas, destacando o ser imigrante.4 Utilizaram-se em seguida as narrativas advindas da escuta dos imigrantes em um momento privilegiado de diálogo, de onde se partiu para construir todo o percurso desta pesquisa (ainda em desenvolvimento).

Essa técnica de escuta denomina-se de grupo focal.5 Esse grupo foi constituído de participantes do projeto de extensão universitária que, na sua maioria, eram integrantes também da Associação Imigrantes Haitia- nos de Joinville. Essa roda de conversa permitiu mais aproximação com os imigrantes que comporiam, no decorrer da pesquisa, o grupo de entrevistados na perspectiva da metodologia da história oral.

4 Importante ressaltar que foram realizadas durante o processo de pesquisa para a tese de doutorado ora em curso dez entrevistas orais com imigrantes haitianos que vivem em Joinville. Optou-se por problematizar neste artigo a primeira entrevista feita pela pesquisadora.

5 Técnica utilizada com frequência na área da saúde. O grupo deve ser convidado previamente e ter clareza dos objetivos da atividade. O pesquisador configura-se como mediador do grupo e deve iniciar o diálogo retomando o objetivo do encontro. Os participantes são motivados a participar do diálogo por meio de questões feitas pelo mediador. (Ver mais em: DEBUS, 2004;

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Espaço, lugar e multiterritorialidade

Antes de analisarmos as razões que levaram os imigrantes haitianos a escolherem o Brasil, especial- mente Joinville, para imigrar, faz-se necessário com- preender conceitualmente as questões de espaço e lugar a fim de entender as imbricações entre a pro- dução de territórios imigrantes (materiais e simbólicos) e a noção de multiterritorialidade.

Há que se compreender uma cidade também em dimensão espacial, adotando a acepção de San- tos6 (1978, p. 122), para quem “o espaço é um ver- dadeiro campo de forças cuja formação é desigual.

Eis a razão pela qual a evolução espacial não se apresenta de igual forma em todos os lugares”, visto que o espaço é sempre produção social no tempo.

Crítico do capitalismo, Santos (1978, p. 171) entende o espaço como “o resultado de uma práxis coletiva que reproduz as relações sociais, [...] o espaço evolui pelo movimento da sociedade total”.

Os conceitos de território e espaço são diferen- ciados em Santos (1978): “A utilização do território pelo povo cria o espaço”, contudo ambos são rela- cionados à medida que um necessariamente pode criar o outro. O espaço carrega o significado histórico

“como um conjunto de formas representativas de re- lações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que se manifestam através de processos e funções” (SAN- TOS, 1978, p. 122). Nesse sentido, é importante frisar que a noção de espaço está diretamente ligada à

6 No Brasil, foi nas décadas de 1970/80 que ocorreu a reelaboração da chamada geografia humana, movimento liderado por Milton Santos (SAQUET; SILVA, 2008).

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noção de tempo e sua materialidade se expressa na configuração de um ou dos territórios.

Também para Barbosa (2017, p. 1-2), o espaço passou a ser visto “como lugar de relações vividas no tempo”. Espaço nessa perspectiva não se refere apenas a uma questão geopolítica, “mas como lu- gar de significações”. Para a autora, em uma análise histórica, “é sempre espaço-tempo, seja porque as aberturas do presente em direção ao passado [...]

indicam a transfiguração de um espaço em outro (o presente no passado); seja por ser o tempo ele mesmo um lugar” (BARBOSA, 2017, p. 1-2). Diante dis- so, faz-se preciso compreender a “categoria espaço, não como território físico, mas como significações da vida humana” (BARBOSA, 2017, p. 7). Ou seja, verifi- car como a construção histórica ajuda a responder as questões vitais de nossa existência relacionadas à origem e ao futuro.

Para Haesbaert (2011, p. 1), a “ênfase dada hoje à espacialidade numa escala mais especificamente

‘humana’, aquela de nossa reprodução e de nossa circulação enquanto seres viventes [...], recriam o mundo pela própria ressignificação e simbolização de seu espaço-tempo”. A perspectiva dicotômica entre presente e passado, segundo o autor, não dá mais conta de explicar o que vivemos hoje, um espa- ço-tempo fluido, em constante movimento, ou ainda esse “presente geográfico”, passado que se contrai e, ao mesmo tempo, aberto para múltiplos caminhos e que permite a “combinação de trajetórias que in- corporamos no nosso presente” (HAESBAERT, 2011, p.

1). Todavia, Haesbaert (2011) ressalva que toda essa fluidez de espaço-tempo não escapa das estratégias do sistema capitalista nem das regras do mercado

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para efetivar suas ações com vistas a manter as de- sigualdades de direitos no que tange ao território.

Para a discussão sobre território, seguimos tam- bém os debates produzidos por Haesbaert (2005; 2007;

2011; 2016). O autor expande o conceito de território para além das definições político-administrativas e explicita a relação entre território e poder, não só o poder institucional e político, mas também o poder no sentido simbólico de empoderamento daqueles que usufruem um mesmo ou vários territórios. Diante dis- so, o território passa a ser visto mediante uma trama de imbricações entre o seu estatuto jurídico, político, econômico e os usos e apropriações simbólicos que se faz do espaço. Essa é a base teórica utilizada pelo autor para a proposição das categorias “multiterrito- rialidades” e “multiterritorializações”.

A rigor, os processos de desterritorialização7 e de (re)territorialização, comumente utilizados para compreender a condição migrante, não deveriam ser vistos como tais, já que territórios sempre estão necessariamente implicados com a ação e com os agenciamentos sociais, ainda que se refiram à fluidez e aos deslocamentos humanos. Para os imigrantes, por exemplo, territorialidade não depende na sua essência de território enquanto conceito jurídico.

Territorialidade envolve ação de territorializar-se, ou seja, ações de pertencimento. “O território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas re- lações de poder, do poder mais material das rela-

7 No livro O mito da desterritorialização, Haesbaert (2016) faz o percurso histórico de discussão dessa temática. Dialoga com autores como Deleuze e Guattari e sustenta a tese de que não existe “desterritorialização”, mas processos de (re) territorialização. Na perspectiva do autor, há sempre processos de construção de novos territórios.

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ções econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural”

(HAESBAERT, 2016, p. 79).

Com base nas reflexões construídas em torno dos processos diaspóricos e da interação que necessaria- mente seus protagonistas fazem com o local de des- tino, passa-se a investigar os deslocamentos dos imi- grantes haitianos para Santa Catarina, especialmente para Joinville. O objetivo com isso é entender como os haitianos narram sua condição imigrante e como a imprensa local narra essa presença. Pensando nes- ses atos comunicacionais, procura-se compreender as práticas de territorialização que esses imigrantes desenvolvem no âmbito da cidade, tecendo no es- paço urbano o que Certeau (1998, p. 191) anuncia como “lugares praticados”.

Narrativas e práticas de territorialização: espa- ços multidiscursivos

O mapa de deslocamento territorial dos imigran- tes haitianos no país mostra que há uma rota de des- tino bastante sinuosa, incerta e distante. Os estudos revelam que Tabatinga (AM), Brasileia (AC), Epita- ciolândia (AC) e São Paulo (SP) (no caso daquelas pessoas que chegam pelo espaço aéreo), conforme demonstra a Figura 1, são as cidades que receberam o maior contingente de imigrantes haitianos, contudo, a maior parte dos imigrantes não permaneceu nessas cidades, direcionando-se para municípios de outras regiões, como o Sul e o Sudeste.

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A

B

Figura 1 – Fluxos de haitianos por (A) Tabatinga (AM), (B) Brasileia e Epitaciolândia (AC) e (C) São Paulo (SP), de 2010 a 2014

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C

Fonte: PUC-MINAS (2014).

Os mapas apresentam que se tem um direcio- namento que parte do Norte do país diretamente para Estados do Sudeste e do Sul do Brasil. Tam- bém é possível verificar que entre o contingente que chega ao país pela via aérea há a permanência no Estado de São Paulo ou deslocamentos para o Sul. O Gráfico 1 demonstra que, se considerarmos os quatro primeiros Estados da federação que mais recebem imigrantes haitianos, um é do Sudeste (São Paulo) e três são do Sul (Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul). Assim, Sul e Sudeste totalizam aproximadamente 80% dos registros de haitianos que optam por esses destinos.

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Gráfico 1 – Estados da federação e registros de haitianos.

Fonte: PUC-MINAS (2014).

Como demonstra o Gráfico 2,8 o Estado de Santa Catarina é destaque, em segundo lugar, com o maior número de registro de haitianos (21,07%). Em 2014, um dado chama a atenção. De acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), 6.357 dos 23.017 imigrantes haitianos com vínculo formal de trabalho no país viviam em Santa Catarina, ou seja, mais de um quarto desse total (27,62%) (HAITIANOS NO BRASIL, 2015). Essa escolha, entre outros motivos, pode estar impulsionada pela narrativa midiática que apresenta essa região do país como “O Sul maravilha”.9 Os da- dos cedidos pela Polícia Federal de Joinville10 apon- tam a existência de 2.280 haitianos documentados

8 Pesquisa sobre a migração haitiana ao Brasil, por meio da análise de informações de registros administrativos, em 2014, desenvolvida com o Ministério do Trabalho, pela Organização Internacional de Imigração e pelo Grupo de Estudos de Distribuição Espacial da População da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas).

9 A esse respeito, ver: Souza, 2014; Thomé; Diogo, 2014.

10 Informações obtidas por mensagem eletrônica do Serviço de Informação ao Cidadão, da Polícia Federal, em 2017.

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na cidade, representando percentagem significativa do total de haitianos documentados no Estado de Santa Catarina. Os dados anunciados em reportagens no ano de 201511 já indicavam esse contingente de imigrantes na cidade.

Nos dados apresentados pelo Gráfico 2, também se identifica em Joinville uma concentração de pedi- dos de regulamentação na Polícia Federal nos anos de 2015 e 2016. Como já dito, pela legislação à época (em 30 de outubro de 2016), vencia a normativa que garantia aos imigrantes haitianos a documentação de “visto por questões humanitárias”. Esse fato pode explicar o crescimento vertiginoso da documentação oficial de permanência no Brasil e também em Joinvil- le. Tal contingente de imigrantes torna-se significativo quando se leva em conta que, pelos dados do censo populacional de 2010, Joinville apresentava população total de estrangeiros de 1.366 pessoas (578 mulheres e 788 homens) (IBGE, 2015), número muito inferior de imigrantes haitianos do que o registrado pela Polícia Federal em Joinville nos últimos cinco anos.

Segundo dados da Polícia Federal, no período de 2012 a 2016 o total de imigrantes haitianos registrados no país foi de 77.077. Destes, 21,07% registrou-se em Santa Catarina, o que representa 16.186 haitianos, dos quais 2.039 se registraram na cidade de Joinvil- le, o equivalente a 2,65% do contingente registrado nacionalmente e 12,60% do contingente registrado no Estado de Santa Catarina.

11 Em maio de 2015, a prefeitura indicava 700 imigrantes haitianos na cidade de Joinville, e a Polícia Federal, mil (A NOTÍCIA, 2015).

No mesmo ano, em agosto, as entidades de movimentos sociais apontavam a presença de aproximadamente três mil haitianos.

Esse cálculo levava em conta também os indocumentados

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Gráfico 2 – Quantidade de imigrantes (por mil) vindos da República do Haiti.

Fonte: Documento cedido por mensagem eletrônica pela Polícia Federal de Joinville (2017).

Joinville é considerada a terceira maior cida- de do Sul do país e conta com um parque industrial diversificado e que apresenta nas últimas décadas desenvolvimento significativo no setor terciário (SAA- VEDRA, 2016, conforme matéria de A Notícia). Do ponto de vista histórico e cultural, Joinville pode ser vista como uma “cidade migrante”,12 uma vez que ao longo de seus 168 anos recebeu expressivos con- tingentes migratórios nacionais e internacionais.

Com o intuito de apontar as práticas de espaço e a construção de multiterritorialidades/territorializa- ção criadas/desenvolvidas pelos imigrantes haitianos que optaram por Joinville como destino, passa-se a analisar algumas narrativas produzidas pela impren-

12 Expressão criada por Coelho (2010), que analisa a história da cidade das últimas décadas problematizando as tensões e imbricações que a chegada e permanência de migrantes provocaram na construção da vivência da diferença e suas implicações na definição do espaço urbano.

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sa local em que foram identificadas as práticas de ocupação do território por parte do imigrante. Vale ressaltar que a compreensão de território discutida aqui (como já apresentado) é a de território como espaço simbólico.

Referindo-se ao discurso jornalístico, Resende (2009, p. 32) reflete: “Talvez esteja na tessitura da nar- rativa a chance de nos havermos com as brechas que promovem os encontros”. Para o autor, “os estudos sobre os meios de comunicação foram pouco aten- tos à problemática da relação, nos fazendo crer na assepsia de um processo que se realizaria em sentido de mão única” (RESENDE, 2009, p. 32), e não em uma ação permeada pelo autor, pelo texto e pelo leitor.

Essa relação manifesta-se em “jogo de linguagem”

e em interações dialógicas, no entanto é preciso ter claro que no processo comunicacional é “que se ins- talam os modos, os contextos e os sujeitos. Nesse sen- tido, o ato de narrar, através dos meios, pode revelar legitimações, valores, representações e faltas, dados preponderantes para o processo de compreensão e leitura do mundo” (RESENDE, 2009, p. 33).

Algumas narrativas jornalísticas aqui analisadas dão ênfase ao imigrante como desterritorializado: “Pas- sados mais de cinco anos do terremoto que arrasou o Haiti, em janeiro de 2010, eles continuam chegan- do” (A NOTÍCIA, 2015). Aqui o terremoto é anunciado como o acontecimento que fez o haitiano perder seu território e ainda buscar um novo espaço para viver. O texto em questão anuncia todos os imigrantes como

“refugiados por questões humanitárias”, não levando em conta outros motivos para esse processo.

A mesma reportagem afirma: “O número de refugiados haitianos em Joinville cresce pacífica e

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silenciosamente” (A NOTÍCIA, 2015), desnudando o que se espera do imigrante em seu novo território, que se comporte de forma pacífica e principalmen- te silenciosa. Nesse caso, parece existir uma crista- lização do estereótipo em relação ao “refugiado”.

Este seria sempre a ameaça, o inimigo e o causador da violência. Há ainda referência no texto ao fato de que “a maioria dos adultos trabalha ou estuda e praticamente não há qualquer incidente registrado envolvendo os refugiados” (A NOTÍCIA, 2015).

O sentido clássico atribuído ao imigrante como trabalhador (SAYAD, 1998) é reforçado na narrativa jornalística, quando destaca a fala de uma autori- dade responsável pelo acolhimento do imigrante na cidade: “‘O que se percebe é que eles chegam e logo começam a trabalhar, estudar’ (Jocélio Narciza, responsável pelo Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP)”

(A NOTÍCIA, 2015).

Em outra reportagem e na perspectiva de relacio- nar o imigrante ao trabalho, Branco (2016, conforme matéria de Migra Mundo) reproduz outra fala represen- tativa do setor de contratação da mão de obra imi- grante de Joinville: “‘Os haitianos são comprometidos, organizados e mantêm bom relacionamento com os colegas de trabalho’, afirma Valentin Moresco, coorde- nador de seleção da RH Brasil”. A narrativa produzida em torno do imigrante escamoteia qualquer tensão envolvendo o processo migratório e a presença do imigrante na cidade, diz o representante do empre- gador: “Os haitianos chegam com vontade de traba- lhar e valorizam as oportunidades que são oferecidas.

‘Fazemos um acompanhamento após a contratação e não recebemos feedbacks negativos. Os haitianos

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são bem aceitos e à medida que surgem as vagas de trabalho, eles são empregados’” (BRANCO, 2016, de acordo com a matéria de Migra Mundo). Haja vista o texto afirmar que não há “feedbacks negativos”, re- força-se o mito da cordialidade entre os imigrantes e os trabalhadores locais, e, ao asseverar que “são bem aceitos”, dissimula-se a existência de preconceito em relação ao haitiano.

Assim como reproduz a fala do agente público e do empregador sobre os imigrantes, a narrativa jornalística traz para referendar seu conteúdo a fala do próprio imigrante: “Os haitianos demonstram gra- tidão ao país e à cidade que os acolheu. ‘Joinville é pequena e tranquila, bom para morar’ [...], declara Jean Michelet Louis, que está no país há pouco mais de um ano e diz que se sente feliz em morar no Bra- sil” (BRANCO, 2016, conforme matéria de Migra Mun- do). Observamos que há na fala reproduzida pelo jornal um conceito do que seria um espaço ideal, uma cidade para morar. “Pequena e tranquila” é quase poética, ou melhor, uma definição bucólica de cidade, o que não representa exatamente uma cidade com mais de 500 mil habitantes e que possui altos índices de criminalidade.

Sobre o acolhimento no novo território, a matéria destaca a solidariedade do povo da cidade e afirma:

“Com esse auxílio, os haitianos não pensam em deixar a cidade e confiam que no Brasil, e em Joinville, não lhes faltará um lugar para chamar de novo lar. Nessa perspectiva [...] na cidade dos príncipes, os haitianos encontram condições dignas para recomeçar a viver”

(BRANCO, 2016, conforme matéria de Migra Mundo).

Narrativa simbólica que retoma um mito fundador da

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cultura local13 e procura se aproximar dos imigrantes haitianos advindos de Porto Príncipe: “Joinville, a nova cidade dos príncipes do Haiti” (BRANCO, 2016, de acordo com a matéria de Migra Mundo). Trata-se de imbricações entre o local e o global, aproximações entre o imaginário de dois cidadãos: o joinvilense e o haitiano, possibilitando a criação de supostos es- paços simbólicos coletivos, contudo a narrativa não contempla em tempo algum os tensionamentos que necessariamente se desenvolvem durante o jogo pela ocupação do território.

A reportagem de Junges (2015, conforme ma- téria de A Notícia), reproduzida em maio de 2015, analisa uma das territorialidades instituídas pelos imi- grantes haitianos na cidade. O entrevistado é uma

13 Segundo informações disponibilizadas pelo município ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, Joinville foi fundada em 9 de março de 1851 e chamada primeiramente de Colônia Dona Francisca, em homenagem à princesa Francisca Carolina, filha de D. Pedro I, que ao casar com o príncipe François Ferdinand Phillipe Louis Marie, da região francesa de Joinville, herdou a área da região como dote de casamento. Em 1849, o príncipe cedeu parte da área para a Sociedade Colonizadora Hamburguesa, dando assim início à colonização da região de Joinville. Mais informações em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sc/joinville/historico>.

Acesso em: 28 fev. 2019. Conforme historiadores locais, o príncipe, com dificuldades financeiras, vendeu as terras para a Colonizadora Hamburguesa, que dois anos depois começou a colonização da área. Somente a partir da década de 1970, com a criação da Secretaria de Turismo do município e o boom econômico que vivia a região, resgatou-se a ideia da cidade dos príncipes no intuito de “vender” a cidade para o turismo.

Mais informações em: http://paralelojornalismo.com.br/index.

php/2017/03/09/joinville-uma-historia-oficial-que-seleciona- fragmentos/. Acesso em: 28 fev. 2019.

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liderança da Igreja Católica chamada Padre Luca,14 que explicita uma ação em que a comunidade é convidada a participar do movimento de inclusão do imigrante haitiano na cidade por intermédio do aprendizado de algumas expressões em crioulo (dialeto haitiano).15 Na matéria se tem a afirmação:

“Os grupos são fechados. Focados no trabalho, nos problemas do dia a dia. [...] É comum encontrá-los em grupos de quatro ou cinco pessoas, buscando juntos soluções para problemas simples” (JUNGES, 2015, de acordo com a matéria de A Notícia). A nar- rativa jornalística destaca o fato de que os haitianos,

“mesmo não tendo qualificação específica para o setor, estão dispostos a dar o máximo” (JUNGES, 2015, segundo matéria de A Notícia).

Outra narrativa fundamental para compreender a produção de multiterritorialidade é a do próprio imigrante haitiano, produzida pela metodologia da

14 Padre Saint Luc já morava fora do Haiti quando o terremoto atingiu o país e chegou a Joinville praticamente no mesmo movimento imigratório que os primeiros haitianos refugiados em 2011. É pároco da Paróquia Nossa Senhora de Fátima e, entre suas atividades, tem atuado como intérprete para os haitianos e, mais do que isso, incentivado os próprios moradores do bairro a entender o idioma crioulo.

15 Algumas das expressões/frases que o jornal traduziu com a ajuda de Padre Luca:

Bom dia. Bonjou (durante todo o dia. Não há o uso corrente do boa tarde);

Boa noite. Bónnwit (para ir dormir);

Oi. Tudo bem? Ola, kijan ou ye? / Toute bagay anfóm?;

Eu estou bem. Mwen bye;

E você? E ou menm?;

Meu nome é Leandro/Antônio/Osvaldo. E o seu? Non mwen se Leandro/Antônio/Osvaldo. E ou menm?;

Por favor. Tanpri / tampri souple;

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história oral.16 Trata-se de narrativas que são “criadas no encontro entre o historiador e narrador” (PORTELLI, 2016, p. 9) e possibilitam problematizar os sentidos e significados acerca dos deslocamentos e das terri- torializações produzidos pelos imigrantes haitianos.17

O imigrante ao narrar seu percurso para chegar ao local de destino elabora os territórios percorridos e “fabricados” durante seu processo de imigração.

Para Barbosa (2017, p. 7-8), “a narrativa histórica in- troduz na trama textual a espacialidade dos tempos de outrora, isto é, a espessura de um tempo como espaço de possibilidades, mas que só existe na tra- ma narrativa”. Pela narrativa se abrem “janelas em direção a um espaço-tempo” em que “o presente se direciona para o passado”, permitindo ao narrador deslocar-se “do presente ao passado, de um espaço ao outro” (BARBOSA, 2017, p. 7-8).

A narrativa advinda da entrevista realizada com o imigrante haitiano Roland Lanfront18 (2016), por exemplo, expressou o seu entendimento sobre o que

16 Em relação à problemática envolvendo os usos da história oral, ver: Amado; Ferreira, 1996; Ferreira; Fernandes; Alberti, 2000;

Pollak, 1989.

17 Para este artigo, decidiu-se por problematizar as narrativas produzidas por meio de uma entrevista oral e mediante o grupo focal. Essas e outras entrevistas, que serão problematizadas ao longo da pesquisa, farão parte do Banco de Narrativas de Imigrantes Haitianos de Joinville, que está sendo construído pela pesquisadora Sirlei de Souza, em parceria com o Grupo de Pesquisa Cidade, Cultura e Diferença, coordenado pela professora Ilanil Coelho. Essas entrevistas serão doadas, após a defesa da tese, para o acervo do Laboratório de História Oral da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE).

18 Imigrante haitiano, 36 anos de idade, estudante do segundo ano do curso de Design da UNIVILLE (em 2016, momento da entrevista). Roland saiu do Haiti e morou um ano e meio na Venezuela antes de vir para o Brasil. Hoje (2019), já concluiu seus estudos na universidade.

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significa território e como constrói sua vivência em multiterritorialidades. Uma referência importante para o nosso entrevistado diz respeito ao domínio da língua local enquanto forma estratégica para fazer parte do lugar. No entanto, mesmo ciente disso, relatou que tanto na Venezuela, onde esteve antes de vir para o Brasil, como aqui utiliza dois idiomas para se fazer en- tender e, até mesmo, conquistar seu espaço no mun- do do trabalho. No que concerne ao momento em que pleiteou uma vaga de trabalho em uma empresa local: “Naquele momento eu não sabia muita coisa de português, mas eu arrumei um jeito mais fácil pra fazer... Respondi em espanhol [...]. Eu misturei os dois, as palavras em português que eu sabia e espanhol”

(LANFRONT, 2016).19 A estratégia de caminhar por dois idiomas para se fazer entender pode significar clareza quanto à necessidade de negociações linguísticas para a conquista de espaço no novo território.

Quando perguntado sobre como está sendo viver na cidade de Joinville, com características de coloni- zação germânica, ele imediatamente responde: “Eu tenho capacidade muito grande para se acostumar”

(LANFRONT, 2016). Há nessa afirmação uma imensa demonstração de resiliência e de adaptação. Ele se- gue dizendo: “Porque sou um haitiano e eu sempre falo: [...] sou um cidadão do mundo. Por isso, eu de- veria ter uma capacidade de se adaptar muito gran-

19 Faz-se necessário esclarecer que a opção deste trabalho foi pela transcrição literal das entrevistas orais dos imigrantes haitianos, preservando sua expressão linguística de forma a ser possível problematizar seus esforços com a língua local, bem como as estratégias utilizadas para se fazer entender (a mistura com a língua espanhola, por exemplo). No decorrer da escrita, se houver necessidade, serão feitas notas de esclarecimento acerca

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de” (LANFRONT, 2016). Na profundidade de sua refle- xão, apresentam-se questões muito pertinentes para a discussão das vivências das multiterritorialidades.

Considerar-se um cidadão do mundo dá ao indiví- duo o direito de estar presente em qualquer território, de disputá-lo para si enquanto pertencendo àquele lugar e ao mundo, contudo o entrevistado segue re- fletindo no tocante a sua condição e transparecendo os tensionamentos vivenciados como imigrante: “Na Venezuela e aqui dá [...] muito certo [...] é bom e é ruim” (LANFRONT, 2016).

A memória do processo migratório é sempre uma memória coletiva, impulsionada também pelas lembranças de outros. Forma-se nesse percurso uma rede memorável, em que uma lembrança individual é capaz de provocar múltiplas memórias coletivas. Op- tou-se por convidar um grupo de imigrantes para uma conversa inicial em que fosse possível dialogar sobre o ser imigrante e as razões que os trouxeram ao Brasil.

Segundo Kotzinger e Barbour apud Barbour (2009, p.

21), “qualquer discussão de grupo pode ser chamada de grupo focal, contanto que o pesquisador esteja ativamente atento e encorajando às interações do grupo”. É crucial que aconteça a interação entre o grupo, e não apenas a interação com o pesquisador.

Os grupos focais têm sido utilizados como uma meto- dologia de pesquisa dialógica, permitindo a produção conjunta de conhecimento, envolvendo os sujeitos de pesquisa como produtores de novos saberes.

No caso das memórias que surgem e que são narradas durante o grupo focal, há entre os partici- pantes o acionamento coletivo de suas lembranças.

Um produz a referência de que o outro necessita para narrar sua história. Tecem juntos a narrativa de sua

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diáspora, constroem coletivamente os argumentos que justificam sua saída do Haiti e a escolha pelo lugar de destino.

Para esse momento de análise, utilizou-se parte das memórias produzidas pelo grupo focal20 com imi- grantes haitianos reunidos pela Associação Imigrantes Haitianos de Joinville.21 Provocado pelas questões de pesquisa, o grupo narrou coletivamente suas experiên- cias como imigrantes contemporâneos. Não se trata apenas de focar no caráter subjetivo e individual da memória, mas de problematizar o caráter coletivo de uma lembrança que unifica um grupo social.

A fala de Shiller Pierre (2016) mostra-se carregada de um esforço de elaboração para compreender o que é ser imigrante: “Eu tô tentando entender o que é ser imigrante […]. Imigrante, no Brasil, vamos dizer, no Joinville, eu acho que é bom!” A narrativa infere

20 Esse grupo focal foi reunido no dia 2 de julho de 2016, na Associação de Moradores do Comasa do Boa Vista, em Joinville. Foi mediado pela pesquisadora e professora da UNIVILLE Sirlei de Souza e teve a participação de mais dois pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade, bem como de duas alunas bolsistas do Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina (UNIEDU) do curso de Direito da universidade. Estiveram presentes nesse grupo focal seis imigrantes haitianos: Whistler Ermofils, Schiller Pierre, Alcide Lifort, Emmanuel Pierre, Serge Fortilus e Maxi Olmy.

21 A Associação Imigrantes Haitianos de Joinville foi fundada em 11 de novembro de 2015, com a presença de mais de 120 imigrantes haitianos. É coordenada por Whistler Ermofils.

A instituição tem como objetivos integrar e dar assistência aos imigrantes haitianos de Joinville e região. Nesse sentido, realiza ações que visam melhorar as condições de vida dos seus associados e integrá-los à comunidade, conforme informou seu presidente. Seus membros reúnem-se com frequência na Associação dos Moradores do Comasa do Boa Vista, onde encontraram na parceria com a direção dessa associação um

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que há uma localização territorial que pode significar diferenças entre ser imigrante aqui no Joinville ou em outras partes do mundo. Diz Pierre (2016): “A pessoa chegar e o país atender, atende nós com tranquilida- de. Daí, tem país que você chegar e que vai mandar você de volta para o teu país, né? Vai mandar de volta. Com aqui a gente chegar e isso não aconte- cer”. Aos olhos do imigrante, o Brasil mostra-se como um país acolhedor.22

Ao longo do processo de diálogo do grupo, os imigrantes foram produzindo outros fragmentos de me- mória no tocante à sua condição migrante. O espaço de conversa permitiu um ambiente propício para que elaborassem e reelaborassem o significado da imi- gração. Coletivamente, encontraram argumentos e produziram narrativas afetivas, e sobretudo políticas, sobre o processo histórico da imigração haitiana. Pela memória impulsionada de forma coletiva, produziram elos entre o passado e o presente e visualizaram o futuro, atribuindo significados para o processo migra- tório: “De repente eu deixo a minha mãe [...]. Meus amigos, o costume do meu país, e depois para se adaptar com um outro costume. Quando eu cheguei aqui, eu vivia com... É. Com o coração apertado, verdade. Com muito tristeza no meu coração. Isso foi horrível” (PIERRE, 2016).

Outro imigrante haitiano, Serge Fortilus (2016), elabora em sua narrativa vários significados para o ato de imigrar:

22 Em 2016, quando o grupo focal foi realizado, o Brasil ainda apresentava uma postura de governo aberta à chegada e permanência de imigrantes em solo brasileiro. No ano de 2019, esse cenário sofreu alterações.

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Por exemplo, podemos ter uma pessoa que sai de lá para, como? Para procurar trabalho, para ajuda da família. Mas tem outro. Tem outro que tá procurando uma saída para estudar. Tem outra pessoa que está procurando o quê? Uma tranquilidade. Por quê? Te- mos que falar disso. Eu estava trabalhando bem, na universidade. Eu tinha, não como rico. Mais ou menos [risos], tinha uma vida. Mas estar no Brasil não é por- que estava morrendo. Não... Mas isso depende da situação. Imigrar não significa que o país, ou a pes- soa, está passando mau momento. Imigrar, a pessoa, pode ser que a pessoa está procurando tranquilidade.

Tranquilidade econômica. Tranquilidade, como posso falar? Política. Isso é tudo o que está acontecendo [o conjunto].

Nessa narrativa o imigrante explicita, de forma extraordinária, as múltiplas razões para os desloca- mentos contemporâneos. Posiciona o imigrante como sujeito capaz de realizar escolhas e de definir seu des- tino. Desse modo, o retira da condição histórica de vítima e o coloca na perspectiva de sujeito: “Não estou falando para toda gente, não. Como falei: po- demos ter até cinco categorias de pessoas. O que está procurando estudar. Que está à procura de um emprego. Que está procurando tranquilidade polí- tica... E há pessoas também que gostam de viajar”

(FORTILUS, 2016).

A memória que emerge coletivamente se trans- forma em uma prática discursiva e toma forma de discurso político de defesa de valores muito caros para os haitianos. Na reunião com a Associação Imi- grantes Haitianos de Joinville, sua narrativa é significa- da como um testemunho em um espaço público; é o imigrante colocando-se como sujeito do processo nar- rativo. No decorrer do diálogo, outro imigrante, Maxi

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Olmy (2016), enfatiza: “Mas, na verdade, ser imigrante significa que tem que ter coragem, mesmo. Sair do país natal, para vir viver no outro país [...], com outra cultura, com muitas dificuldades, fica muito compli- cado, tem que ter coragem mesmo”, evidenciando a complexidade de sua condição migrante.

Considerações finais

Neste artigo o fenômeno das migrações no sé- culo XXI foi problematizado considerando a comple- xidade geopolítica da globalização. Jogos de poder entre nações e tensões entre os povos marcam esses processos migratórios. Os motivos geradores do imen- so fluxo de pessoas na atualidade estão imbricados com a maneira como se organizam o capital, as co- municações e a cultura contemporânea.

O diálogo com os imigrantes haitianos fez com- preender que as motivações para migrar são inúmeras e têm diferentes significados para cada imigrante.

Nesse percurso, fatores históricos, sociais, políticos e de caráter subjetivo emergiram para dar conta de explicar o processo da diáspora haitiana. O imigran- te não vive mais em sua terra natal, mas ele lembra e relembra seu país de origem e mantém relação com aqueles que lá ficaram. As narrativas produzidas sugerem que ações de recusa e/ou experiências de pertencimento fazem parte do mesmo jogo na dispu- ta por ocupação de espaços territoriais.

Algumas questões permanecem abertas para problematizações futuras: como os imigrantes hai- tianos se apropriam do território joinvilense? Como transformam esses territórios em espaços multiterri- toriais? Que tramas cotidianas desenvolvem e que narrativas produzem acerca dessas vivências? Tais

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questões podem ser aprofundadas pela análise de dados oficiais sobre imigração haitiana para Joinville, bem como das narrativas produzidas nas entrevistas orais, na perspectiva de entender as estratégias que os imigrantes desenvolvem, individual ou coletiva- mente, para mover-se no espaço da cidade. Tam- bém apontamos como necessária a compreensão das estratégias que os imigrantes desenvolvem para apropriar-se da cidade, tecer laços de pertencimento em relação a ela e lidar com as tensões e disputas no processo de reterritorialização.

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SIRLEI DE SOUzA

Graduada em História pela Universidade da Região de Joinville, mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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