Supremo Tribunal de Justiça Processo nº 06A2365
Relator: SILVA SALAZAR Sessão: 28 Setembro 2006 Número: SJ200609280023651 Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA CONTRATO DE EMPREITADA
DEFEITOS DIREITO A REPARAÇÃO REDUÇÃO DO PREÇO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário
I - Essencial para que haja empreitada é que o contrato tenha por objecto a realização de uma obra consistente na construção, criação, reparação,
modificação ou demolição de uma coisa, mas sem que se possa prescindir do seu resultado material.
II - Como resulta dos factos provados, esse resultado não foi utilmente
produzido pela autora, pois esta tentou concretizar a - pela ré proprietária e fornecedora da malha -, encomendada confecção
das peças de vestuário, mas ficando estas com tantos defeitos que não
permitiam que as peças fabricadas pela autora fossem consideradas como a concretização da obra encomendada, a ponto de muitas das peças terem ficado inutilizadas e de ter havido necessidade de desfazer e
desmanchar numerosas outras peças para fazer tudo de novo, por entidades distintas da autora devido a incapacidade desta.
III - Assim, por falta de execução útil e eficaz pela autora da obra
encomendada pela ré, é manifesto que aquela não pode adquirir o direito a receber o preço respeitante a uma obra que não concretizou.
IV - Tratando-se de um contrato de empreitada e havendo defeitos, resulta do disposto nos arts. 1221.º e 1222.º do CC que os direitos do dono da obra devem ser exercidos segundo a ordem ali indicada.
V - Face à possibilidade de eliminação dos defeitos, não tinha a ré de exigir nova obra, precisamente porque o direito de exigir nova construção dependia da impossibilidade da eliminação.
VI - Quanto à redução do preço, dependia esta de ser devido um preço, mas este não se podia considerar devido enquanto a obra não fosse executada pela autora em condições de o seu resultado poder ser utilizado para a exportação a que se destinava
VII - Embora a ré não fale expressamente em resolução do contrato, os factos por ela invocados, não deixam de integrar essa resolução, implicitamente declarada à autora com a comunicação de ela própria, ré, ter de providenciar por desmanchar as peças e por as refazer, e como tal
podendo ser classificados à luz do disposto no art. 664.º do CPC.
VIII - Existe, assim, uma notória perda de interesse da ré, como tal atendível (art. 514.º do CPC), no cumprimento do contrato pela autora, determinante da resolução do contrato, por esta, que se encontrava em mora quer quanto à confecção quer quanto à reparação dos defeitos por não ter logrado aquela reparação até à data da entrega fixada, ter incumprido definitivamente a sua prestação devido à sua incapacidade (art. 808.º do CC).
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 7/7/97, Empresa-A, instaurou contra Empresa-B, acção com processo ordinário, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 2.492.609$00, preço de artigos de vestuário que diz ter-lhe vendido no exercício da sua
actividade comercial, e juros legais até integral pagamento, somando os vencidos 103.406$00.
A ré, em contestação, sustentou que o acordado entre ambas não integrava uma compra e venda, pois a confecção das peças de vestuário em causa fôra encomendada à autora por ela ré, que fornecera a malha, sendo que, por outro lado, nunca aceitou qualquer parte da obra por esta enfermar de numerosos e graves defeitos que a autora não conseguiu reparar, após várias tentativas;
por isso teve a ré de proceder, ela própria, à reparação, tendo porém numerosas peças ficado irrecuperáveis, para além de ela ré ter tido de proceder ao fornecimento das peças reparadas ao seu cliente com atraso;
em consequência do incumprimento da autora sofreu ele ré prejuízos no
montante de 3.011.575$00, que, - para além de pretender a improcedência da acção -, pediu em reconvenção que a autora fosse condenada a pagar-lhe,
acrescida dos respectivos juros legais de mora.
Em réplica, a autora rebateu a matéria de excepção e a da reconvenção.
Teve lugar uma audiência preliminar em que não se obteve conciliação, ao que se seguiu a elaboração de despacho saneador que decidiu não haver
excepções dilatórias nem nulidades secundárias.
Após, foi enumerada a matéria de facto desde logo dada por assente e foi elaborada a base instrutória.
Oportunamente teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo sido decidida a matéria de facto sujeita a instrução, após o que foi proferida
sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar à autora a quantia de 2.492.609$00, equivalente a 12.433,08 euros, acrescida dos respectivos juros legais de mora a contar da data da mesma sentença até integral pagamento, e que julgou a reconvenção parcialmente procedente, condenando a autora a pagar à ré as quantias de 2.189.184$00, equivalente a 10.919,60 euros, e de 312. 390$00, equivalente a 1.558,19 euros, ambas acrescidas dos respectivos juros legais de mora desde a data da mesma sentença até integral pagamento.
Apelaram ambas as partes, tendo a Relação julgado totalmente improcedente o recurso da ré e parcialmente procedente o da autora, pelo que revogou a sentença ali recorrida apenas na parte em que julgara o pedido
reconvencional parcialmente procedente com a consequente condenação da autora no pagamento à ré das quantias acima indicadas.
É do acórdão que assim decidiu que vem interposta a presente revista, pela ré, que, em alegações, formulou as seguintes conclusões:
1ª - A recorrente não pode deixar de começar as presentes alegações por manifestar a sua mais profunda discordância com o acórdão recorrido, que constitui, na sua convicção, um prémio injusto e injustificado ao contraente faltoso/relapso, ou seja, à aqui recorrida;
2ª - Ao julgar improcedente o recurso por si interposto e parcialmente procedente o recurso intentado pela recorrida, revogando a sentença do Tribunal de Primeira Instância apenas na parte em que julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional, o acórdão recorrido ignorou por
completo o flagrante e grosseiro incumprimento contratual da recorrida, produzindo uma decisão iníqua, inaceitável e incompreensível para o comum dos cidadãos;
3ª - É que são os próprios Senhores Juízes Desembargadores que consideram:
(i) por um lado, que “parte da obra ficou irrealizável” – cfr. página 18 verso do acórdão recorrido, linhas 22 a 24;
(ii) e, por outro lado, que a obra foi executada “com grandes defeitos” – cfr.
página 18 verso do acórdão recorrido, linhas 28 e 29.
(vide, também, fls. 19 verso, linhas 15 a 17):
4ª - O Tribunal “a quo”, em conformidade com o decidido pelo Tribunal de Primeira Instância, e contrariamente à qualificação que a recorrida preconizou na petição inicial, entendeu que o contrato celebrado entre a recorrida e a recorrente deve ser qualificado como um contrato de empreitada.
· A necessária procedência do pedido reconvencional formulado pela recorrente contra a recorrida;
5ª - A posição tradicional da doutrina e da jurisprudência nas situações em que a obra é realizada com vícios é que aquilo que o dono da obra tem a fazer, se o empreiteiro se recusar a eliminar os defeitos ou a realizar de novo a obra, é recorrer ao tribunal, para obter uma condenação prévia do empreiteiro, após o que, em execução de prestação de facto, conseguirá a eliminação dos
defeitos ou a nova construção, pelo próprio empreiteiro ou por terceiro, nos termos do art.º 828º do Código Civil;
6ª - A melhor doutrina e a jurisprudência, porém, são igualmente unânimes em reconhecer uma excepção a este regime legal formalista e imperativo: a
verificação/existência de um caso de manifesta urgência;
7ª - Com efeito, em situações de manifesta urgência, a lei permite que o dono da obra tome a iniciativa de eliminar, ele próprio, os defeitos, ou de construir de novo a obra, para, em seguida, reclamar uma indemnização do empreiteiro pelas despesas que teve, de harmonia com os princípios gerais de direito, designadamente o constante do art.º 339º do Código Civil;
8ª - A verdade, portanto, é que no âmbito do contrato de empreitada já se admitiu a condenação do empreiteiro que não cumpriu o dever de eliminar os defeitos no pagamento dos custos dessa eliminação por terceiro, assim como já se defendeu a possibilidade de o dono da obra proceder à eliminação dos defeitos, por si ou através de terceiro, e sem intervenção judicial, em casos de manifesta urgência, responsabilizando o empreiteiro pelo custo dos trabalhos efectuados (cfr. indicação de doutrina e jurisprudência neste sentido em
“Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”, pág.
112, de AA);
9ª - Atendendo às regras e princípios acabados de expor, a outra conclusão não podemos chegar que não seja a de que andou, de facto, mal o acórdão recorrido ao julgar improcedente o pedido reconvencional e ao confirmar a sentença do Tribunal de 1ª Instância quanto à condenação da recorrente no pagamento do preço;
10ª - A decisão recorrida assenta, neste particular, numa premissa
completamente errada que subverte, irremediavelmente, a conclusão final a que chega: a de que a recorrente, enquanto dona da obra, não interpelou a recorrida, empreiteira, para eliminar os defeitos da obra e que, portanto, o
empreiteiro não se colocou em mora relativamente à sua obrigação;
11ª- Vejamos aquilo que resultou provado dos autos e que corresponde à alegação da recorrente na sua contestação:
a) o funcionário da ré, BB, ao controlar a qualidade, durante o fabrico dos modelos, no estabelecimento da autora, detectou, logo, defeitos, assinalados em 18/2/97, no modelo 83778, designadamente, carcelas com pregas, buracos nas carcelas, bainhas por apanhar, reconhecidos pela assinatura da
representante da autora, CC (documento de fls. 24 cujo teor se dá por integralmente reproduzido) – alínea F) dos factos assentes;
b) mais se constataram defeitos nos modelos 83779 e 81601, relativamente aos fechos e bico, conforme documento de fls. 24 – alínea G) dos factos assentes;
c) em 25/2/97 MANTIVERAM-SE os defeitos nas carcelas e nas bainhas, além de diferentes distâncias entre agulhas na mesma peça e costuras das cavas descasadas, conforme nota interna n.º 1401 entregue pela ré à autora – resposta ao quesito 4º;
d) em 4/3/97 CONTINUAVAM a verificar-se defeitos nas peças,
designadamente bainhas tortas, emendas mal feitas e bicos descentrados, conforme nota interna n.º 1402, entregue pela ré à autora – resposta ao quesito 5º;
e) a autora não conseguia corrigir os defeitos constantemente detectados durante o fabrico – resposta ao quesito 6º;
f) nessa conformidade, logo após a chegada das últimas peças ao seu
estabelecimento, a ré fez notar à autora a ineptidão desta, informando-a da necessidade de ter que desmanchar todo o modelo…. para corrigir bainhas tortas e medidas incorrectas, conforme consta da fotocópia de FAX junta a fls.
28 dos autos – resposta ao quesito 7º;
g) a ré mais informou a autora, na data (6/3/97), que o modelo …. tinha
inúmeras peças picadas, destinadas a lote com defeito, e apresentava medidas diferentes nas bainhas, obrigando a que fossem descosidas, além de ter golas descosidas – resposta ao quesito 8º;
h) transmitiu ainda à autora, pelo referido FAX, que o modelo 81601 tinha decotes tortos e medidas diferentes nas bainhas – resposta ao quesito 9º;
i) já em 6/3/97 procedia a ré, por sua conta e sacrifício, à reparação de todos os defeitos alegados – resposta ao quesito 13º;
j) em consequência, POR CAUSA DA INCAPACIDADE DA AUTORA, VIU-SE A RÉ OBRIGADA a desmanchar parte da malha que aquela cortou e coseu, a coser buracos, a refazer peças e arranjos, ficando irrecuperáveis 725 peças, despendendo ainda considerável quantia em frete de camião expresso, devido ao atraso da encomenda em seguir para Itália, onde deveria estar até ao final
de Fevereiro de 1997 – respostas aos quesitos 14º a 18º.
11ª - Os factos são evidentes, falam por si!;
12ª - A verdade é que a recorrente detectou defeitos logo no processo de fabrico, em 18/2/97, dando à recorrida a possibilidade de os eliminar: carcelas com pregas, buracos nas carcelas, bainhas, fechos e bico;
13ª - Não obstante, em 25/2/97, MANTIVERAM-SE os defeitos nas carcelas e nas bainhas, sendo ainda detectados novos e mais gritantes defeitos;
14ª - O mesmo acontecendo no dia 4/3/97, em que CONTINUAVAM a verificar- se defeitos nas peças, designadamente bainhas, emendas mal feitas e bicos!;
15ª - Ou seja, a recorrida, apesar de ter sido alertada pela recorrente logo no dia 18/2/97 para a existência de defeitos e de lhe ter sido dada a oportunidade de os corrigir, PERSISTIU NO CUMPRIMENTO DEFEITUOSO DA SUA
PRESTAÇÃO, revelando uma incapacidade total, manifesta, não apenas de executar a obra sem vícios, mas também de os eliminar uma vez detectados os mesmos;
16ª - Repare-se que os problemas com bainhas, bicos e carcelas se MANTÊM em 25/2/97 e em 4/3/97!;
17ª - E que, em 4/3/97, se registam, para além do mais, “emendas mal feitas”
nos produtos fabricados pela recorrida, o que revela à saciedade a existência de tentativas frustradas de eliminação de defeitos;
18ª - Por outro lado, e a corroborar o que acima se deixou exposto, resultou também provado dos autos que a recorrida, enquanto empreiteira, NÃO CONSEGUIA CORRIGIR OS DEFEITOS CONSTANTEMENTE DETECTADOS DURANTE O FABRICO;
19ª - Vale isto por dizer que a recorrente concedeu à recorrida, antes de a si se substituir na execução das obras destinadas a eliminar os defeitos, a oportunidade de ser esta a corrigir os vícios das peças que produziu, em obediência ao estatuído nos arts. 1221º e seguintes do Código Civil;
20ª - E tanto assim foi que resultou igualmente provado que foi POR CAUSA DA INCAPACIDADE DA RECORRIDA que a recorrente se viu obrigada a desmanchar parte da malha que aquela cortou e coseu, a coser buracos, a refazer peças e arranjos, ficando, ainda assim, irrecuperáveis 725 peças;
21ª - Ao não valorar devidamente toda esta factualidade, o acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 1221º e seguintes do Código Civil;
Sem prescindir,
22ª - A recorrente, contrariamente ao decidido no douto acórdão recorrido, não estava, no presente caso concreto, obrigada a percorrer o caminho processual indicado nos arts. 1221º e 1222º do Código Civil;
23ª - Com efeito, resulta claro da sequência dos factos relatados que era grande a urgência da recorrente na entrega das peças de vestuário em
perfeitas condições pois tinha a necessidade, que era do conhecimento da recorrida, de as enviar para Itália até ao final de Fevereiro de 1997 – cfr. supra alíneas c), f) e u) da breve resenha dos factos provados;
24ª - Sabe-se, aliás, que qualquer empresa ligada ao fabrico e/ou exportação de produtos têxteis, nomeadamente de vestuário, precisa absolutamente de cumprir prazos de entrega e altos níveis de qualidade, uma vez que, como é do conhecimento geral, as peças se destinam a uma determinada estação do ano e obedecem a tendências de moda dominantes para cada estação que, uma vez ultrapassada, faz com que as mesmas deixem de ter qualquer valor e não mais possam ser comercializadas;
25ª - A urgência na situação ajuizada nada teve de extraordinário ou anormal e foi, de resto, considerada na sentença do Tribunal de Primeira Instância e no próprio acórdão recorrido;
26ª - Encontrando-se admitida por acordo das partes desde a fase dos
articulados, como pode ver-se do texto dos arts. 6º, 7º, 10º, 15º, 20º, 39º e 40º da contestação/reconvenção e 6º e 10º da réplica, sendo um facto atendível por este Supremo Tribunal;
27ª - Ora, como acima se alegou, no âmbito do contrato de empreitada tem sido admitida pela doutrina e pela jurisprudência maioritárias, com
fundamento nos princípios gerais de direito, designadamente o constante do art.º 339º do Código Civil, a possibilidade de o dono da obra proceder à eliminação dos defeitos, por si ou através de terceiro, e sem intervenção
judicial, em casos de manifesta urgência, responsabilizando o empreiteiro pelo custo dos trabalhos efectuados;
28ª - Tal entendimento, que se afigura inteiramente razoável, é válido, por maioria de razão, numa situação como a presente, em que, para além da comprovada urgência da recorrente, resultou também provada uma
verdadeira incapacidade/impossibilidade de eliminação dos defeitos por parte da recorrida – vide supra alíneas m) e u) da breve resenha dos factos
provados;
29ª - Ao conceder provimento parcial ao recurso de apelação da recorrida, absolvendo-a in totum do pedido reconvencional por entender que, não obstante a situação de urgência, a empreiteira não se colocou em mora por não ter sido interpelada pela dona da obra para proceder à eliminação dos defeitos, o acórdão recorrido errou;
30ª - Desde logo, por partir de uma premissa que, na prática, e como se deixou exposto, não se verifica: a de que a recorrente não interpelou a recorrida para cumprir a sua prestação, não lhe tendo dado a oportunidade de, na qualidade de empreiteira, eliminar os vícios da obra;
31ª - Depois, por condicionar de forma absoluta, numa situação de manifesta
urgência, o direito do dono da obra a eliminar ele próprio os defeitos ou de construir de novo a obra, como sucedeu com algumas das peças de vestuário, à prévia interpelação da empreiteira e à sua constituição em mora;
32ª - Finalmente, por ter pura e simplesmente ignorado todos os antecedentes em relação às tentativas frustradas de eliminação dos defeitos por parte da recorrida e à sua comprovada incapacidade para cumprir pontual e
integralmente a prestação a que se obrigara;
33ª - À recorrente não era exigível mais do que aquilo que fez atentos os antecedentes e o histórico da situação;
34ª - Aquilo que o acórdão recorrido fez mais não foi do que iludir os factos para, a partir daí, fazer uma construção jurídica aparentemente perfeita, mas baseada em puras abstracções;
35ª - Não faz, na verdade, qualquer sentido, ante os factos provados, sequer colocar a hipótese da interpelação da recorrida para a eliminação dos vícios da obra;
36ª - A partir da matéria de facto provada, a que título, com que lógica poderá falar-se em denúncia dos defeitos da obra, em eliminação destes, em nova construção, em redução do preço?;
37ª - O vencimento da tese preconizada pelo acórdão recorrido, numa situação como a presente e atentos os factos provados, constituiria uma inadmissível violência para a recorrente;
38ª - Em termos objectivos, semelhante resultado traduz um verdadeiro prémio para quem prevaricou, um autêntico benefício do (único) infractor, repelido pelo princípio geral da boa fé e também pela norma que proíbe o exercício abusivo dos direitos (arts. 762º e 334º do Código Civil);
39ª - O douto acórdão recorrido viola, pois, o disposto nos arts. 334º, 339º, 406º, n.º 1, 762º, n.º 2, 798º, 1221º, 1222º e 1223º, todos do Código Civil.
· A necessária improcedência da acção
40ª - O Tribunal da Relação do Porto julgou igualmente, no aresto recorrido, totalmente improcedente o recurso de apelação da recorrente, onde esta
pugnava pela revogação parcial da sentença do Tribunal de Primeira Instância na parte em que julgou a acção procedente por provada, condenando-a a
pagar à recorrida o preço total da empreitada, acrescido dos juros de mora;
41ª - Atenta, porém, toda a factualidade que foi descrita e se encontra provada nos autos, parece evidente à recorrente que estamos aqui perante um caso exemplar de impossibilidade de realização da prestação da recorrida, atenta a sua manifesta incapacidade em cumprir pontual e integralmente com o que foi contratualmente acordado;
42ª - Tal incapacidade encontra-se, de resto, demonstrada nos autos e persiste durante toda a execução contratual, como resulta de forma cristalina da
matéria de facto provada;
43ª - A este propósito cumpre, também, salientar a própria fundamentação da resposta à matéria constante da base instrutória, que não foi devidamente valorada pelo Tribunal “a quo” e que de seguida se transcreve nas suas partes mais relevantes:
(i) depoimento da testemunha DD: “A testemunha esclareceu que as peças foram confeccionadas com defeitos e que a autora se confessou incapaz de solucionar; esclareceu, ainda, que foi acordado com o legal representante da autora, Sr. EE, que os produtos seriam entregues à ré para que esta
procedesse, por si, ou contratando outras empresas, à sua reparação (…);
informou que foi acordado que a autora suportaria os custos da reparação”;
(ii) depoimento da testemunha FF: “(…) esclareceu que, após várias tentativas goradas de reparação dos defeitos das peças por parte da autora, acabou a ré por entregá-las a terceiros para reparação”;
44ª - Ora, impossibilitada a prestação da recorrida por causa que lhe foi inteiramente imputável, torna-se fácil de ver que o contrato celebrado, na prática, se extinguiu;
45ª - É, portanto, lícito dizer-se que a conduta culposa da recorrida, atentas as consequências a que deu lugar, determinou a perda do seu direito a cumprir, libertando ao mesmo tempo a recorrente para, sem violação do contrato, solucionar pelo recurso a terceiros o problema surgido e para o qual em nada concorreu;
46ª - Ao negar provimento ao recurso interposto pela recorrente, o acórdão recorrido violou, deste modo, o disposto nos arts. 334º, 762º, n.º 2, 801º e 808º, todos do Código Civil;
Sem prescindir,
47ª - A recorrida alegou, mas não provou, que acordara com a recorrente que o pagamento das mercadorias deveria efectuar-se no prazo de 10 dias após a emissão da factura – cfr. resposta negativa ao quesito 2º da base instrutória;
48ª - Assim, não resultando dos autos a existência de qualquer cláusula sobre o prazo de pagamento do preço, teremos que nos socorrer, necessariamente, do regime supletivo do art.º 1211º, n.º 2, do Código Civil, que dispõe que “o preço deve ser pago, não havendo cláusula ou uso contrário, no acto de aceitação da obra”;
49ª - O acórdão recorrido considerou, todavia, que, apesar dos “amplos defeitos” e da “perda parcial” da obra, uma vez que esta foi concluída, a recorrida teria direito a receber o preço!;
50ª - Sucede, porém, que a recorrente alegou e provou NUNCA TER
ACEITADO QUALQUER PARTE DA OBRA EM VIRTUDE DOS DEFEITOS APRESENTADOS – cfr. resposta ao quesito 3º da base instrutória;
51ª - Ora, se a obra não foi aceite pela recorrente, por força do supra citado art.º 1211º, n.º 2, do Código Civil, não se venceu a sua obrigação de
pagamento do preço!;
52ª - Ao decidir em sentido contrário, o acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 405º, 406º e 1211º, n.º 2, do Código Civil;
Sempre sem prescindir,
53ª - O instituto da excepção do não cumprimento do contrato, nos termos do art. 428º do Código Civil, opera também no caso do não cumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso;
54ª - Por via da chamada exceptio non rite adimpleti contractus, o contraente pode recusar a sua prestação enquanto a outra não for completada ou
rectificada;
55ª - Estando a recorrida obrigada a cumprir primeiro, a recorrente podia recusar o pagamento do preço da factura, sem incorrer em mora, por força do cumprimento defeituoso da recorrida;
56ª - Com efeito, o contraente que cumpre defeituosamente a sua obrigação não tem o direito de exigir a respectiva contraprestação enquanto não corrigir o defeito da sua prestação e o contraente faltoso só adquire o direito à
contraprestação quando, prévia ou simultaneamente, se ofereça para reparar os danos causados à contraparte, repondo a situação dela;
57ª - Ora, a recorrida revelou-se incapaz de corrigir o defeito da sua prestação e de cumprir pontual e integralmente a mesma;
58ª - Por outro lado, não se ofereceu (muito pelo contrário) para reparar os danos causados à recorrente;
59ª - Consequentemente, a recorrente não era obrigada a pagar o preço sem que a recorrida reparasse os vícios da obra ou oferecesse a reparação dos danos que esta apresentava, em resultado do cumprimento defeituoso da sua prestação;
60ª - Por isso, o pagamento do preço pela recorrente não é devido;
61ª - Ao não considerar esta realidade jurídica o douto acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 405º, 406º e 428º do Código Civil.
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e o provimento do recurso.
Não houve contra alegações.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que as instâncias declararam assentes os factos seguintes, que como tal têm de ser
considerados por este Supremo não dispor de poderes para sindicar a respectiva decisão:
1º - A autora é uma sociedade comercial que se dedica á indústria de
confecções, com carácter permanente e com fins lucrativos;
2º - A ré dedica-se ao comércio de vestuário, com intuito lucrativo;
3º - No exercício da sua actividade, a ré solicitou à autora a confecção de várias peças de vestuário mediante o fornecimento de malha;
4º - A ré, em 10/1/97, enviou à autora os “croquis” dos três modelos a
confeccionar (83778, 81601 e 83779), conforme o documento de fls. 19 a 22;
5º - Após vários contactos, em 14/2/97 a autora asseverou à ré que entregaria aquelas peças confeccionadas, respectivamente, em 25/2/97, o modelo 83778, e em 28/2/97, os modelos 83779 e 81601;
6º - O funcionário da ré, BB, ao controlar a qualidade, durante o fabrico dos modelos, no estabelecimento da autora, detectou logo defeitos, assinalados em 18/2/97, no modelo 83778, designadamente carcelas com pregas, buracos nas carcelas, bainhas por apanhar, reconhecidos pela assinatura da representante da autora, CC (documento de fls. 24);
7º - Mais se constataram defeitos nos modelos 83779 e 81601, relativamente aos fechos e bico (mesmo documento);
8º - Ficou ainda expressa na dita comunicação a data do embarque do modelo 83778, em 25/2/97, bem como a referência ao controlo dos modelos 81601 e 83778 (mesmo documento);
9º - Em 28/2/97, a autora reconheceu não poder fazer a entrega total da encomenda, propondo-se efectuar entregas parciais até terça feira (4/3/97) – documento de fls. 26;
10º - A autora enviou à ré a factura n.º…, cuja cópia está junta a fls. 10;
11º - A autora entregou à ré produtos têxteis manufacturados descritos na factura n.º;
12º - A ré nunca aceitou qualquer parte da obra, em virtude dos defeitos apresentados;
13º - Em 25/2/97 mantiveram-se os defeitos nas carcelas e nas bainhas, além de diferentes distâncias entre agulhas na mesma peça e costuras das cavas descasadas, conforme nota interna n.º… entregue pela ré à autora;
14º - Em 4/3/97 continuavam a verificar-se defeitos nas peças,
designadamente bainhas tortas, emendas mal feitas e bicos descentrados, conforme nota interna n.º …, entregue pela ré à autora;
15º - A autora não conseguia corrigir os defeitos constantemente detectados durante o fabrico;
16º - Nessa conformidade, logo em 6/3/97, após a chegada das últimas peças ao seu estabelecimento, a ré fez notar à autora a ineptidão desta, informando- a da necessidade de ter que desmanchar todo o modelo , para corrigir bainhas tortas e medidas incorrectas, conforme fotocópia de fax a fls. 28;
17º - A ré mais informou a autora, na data (6/3/97), que o modelo … tinha
inúmeras peças picadas, destinadas a lote com defeito, e apresentava medidas diferentes nas bainhas, obrigando a que fossem descosidas, além de também ter golas descosidas;
18º - Transmitiu ainda à autora, pelo referido fax, que o modelo … tinha decotes tortos e medidas diferentes nas bainhas;
19º - Na sequência da conduta assumida pela ré, exigida pela concorrência europeia do sector, esta, em 13/3/97, comunicou à autora que o 1º modelo,…, teve que ser todo desmanchado nas bainhas e ponteado, registando-se 30% de peças com defeito, que, após reparação, seguiram para Itália no dia seguinte;
20º - A ré, por fim, em 15/4/97, enviou a nota de lançamento n.º…, debitando à autora o preço da reparação dos modelos objecto da solicitação mencionada no antecedente n.º 4º;
21º - Remetendo conjuntamente a descrição daquela nota de lançamento, referente às operações de desmanchar peças, coser buracos, refazer peças e arranjos, quantidades irrecuperáveis a preços fixados pela autora e despesas de frete de camião expresso, no montante global de 2.146.645$00, conforme carta fotocopiada a fls. 32;
22º - Já em 6/3/97 procedia a ré por sua conta e sacrifício à reparação de todos os defeitos alegados;
23º - Em consequência, por causa da incapacidade da autora, viu-se a ré obrigada a desmanchar parte da malha que aquela cortou e coseu, a coser buracos, a refazer peças e arranjos, ficando irrecuperáveis 725 peças,
despendendo ainda considerável quantia em frete de camião expresso, devido ao atraso da encomenda a seguir para Itália, onde deveria estar até ao final de Fevereiro de 1997;
24º - As operações referidas no número antecedente custaram à ré 2.511.575
$00;
25º - A mercadoria entregue pela autora à ré foi acompanhada das guias de remessa n.ºs…, de 28/2/97, …, de 4/3/97, e …, de 6/3/97;
26º - A ré aceitou os novos prazos de entrega propostos pela autora, a que se refere o antecedente n.º … e o documento de fls. 26.
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A causa de pedir invocada pela autora na presente acção é um contrato de compra e venda comercial (art.ºs 874º do Cód. Civil e 463º do Cód. Comercial) que, no dizer da autora, - que na petição inicial não invoca senão factos
integrantes de tal contrato -, teria sido celebrado entre esta e a ré: o que a autora pede, na petição inicial, é o pagamento, pela ré, do preço de produtos têxteis manufacturados que lhe teria vendido, sendo por outro lado certo que nunca a autora declarou pretender alterar a causa de pedir nos termos dos art.ºs 272º ou 273º do Cód. Proc. Civil.
Sendo, pois, esse o negócio que a autora invoca como fundamento do direito que se arroga (art.º 467º, n.º 1, al. d), do Cód. Proc. Civil), sobre ela recaía o ónus da prova da celebração de tal contrato (art.º 342º, n.º 1, do Cód. Civil), a fim de lhe poder ser reconhecido o direito ao pagamento do preço devido pela compra e venda.
Não fez a autora, porém, a prova da celebração de tal contrato, pois o que ficou provado ter sido celebrado entre ambas as partes foi um contrato de empreitada, aliás não invocado pela autora, mas pela ré. Com efeito, os factos provados a tal respeito (n.ºs 3º, 4º e 5º) integram, não o dispositivo do dito art.º 874º, conjugado com o mencionado art.º 463º, mas o dispositivo do art.º 1207º do Cód. Civil, o que é de conhecimento oficioso.
Tanto basta para se concluir que a autora não logrou demonstrar os factos e as razões de direito de que fez depender a sua pretensão, o que implica não ter ela, ao menos com tal fundamento, direito ao pagamento do preço que pretende. E tal conduz, quanto ao pedido da mesma autora, sem necessidade de mais considerações e apesar de com fundamentação diversa da invocada pela ora recorrente, ao reconhecimento da razão desta.
Ainda que, porém, se entendesse que o contrato de empreitada invocado pela ré e que ficou efectivamente provado poderia basear o reconhecimento do direito da autora ao pagamento do preço que pretende nesta acção, é
manifesto que a obrigação de pagamento do preço acordado na empreitada não resulta da simples celebração do contrato, mas, em princípio, da execução da obra acordada. É isso mesmo que deriva do disposto no citado art.º 1207º (empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço) e no art.º 1211º, n.º 2, do mesmo Código (o preço deve ser pago, não havendo cláusula ou uso em contrário, no acto de aceitação da obra).
Quer isto dizer que essencial para que haja empreitada é que o contrato tenha por objecto a realização de uma obra, consistente na construção, criação, reparação, modificação ou demolição de uma coisa, mas sem que se possa prescindir do seu resultado material.
Ora, como resulta dos factos provados, esse resultado não foi utilmente produzido pela autora, pois esta tentou concretizar a, pela ré, proprietária e fornecedora da malha, encomendada confecção das peças de vestuário, mas ficando estas com tantos defeitos que não permitiam que as peças fabricadas pela autora fossem consideradas como a concretização da obra encomendada, a ponto de muitas das peças terem ficado inutilizadas e de ter havido
necessidade de desfazer e desmanchar numerosas outras peças para fazer tudo de novo, por entidades distintas da autora devido a incapacidade desta.
Daí que não se possa dizer que a obra executada seja a obra encomendada:
uma coisa é uma obra encomendada e executada com defeitos que o
empreiteiro consegue reparar para a tornar aproveitável, outra bem diferente é uma obra encomendada mas executada com tantos defeitos que a tornam inaproveitável a ponto de ter de ser desfeita e novamente executada desde o início por diferentes pessoas por incapacidade da primeira executante.
Assim, por falta de execução útil e eficaz pela autora da obra encomendada pela ré, é manifesto que aquela não pode adquirir o direito a receber o preço respeitante a uma obra que não concretizou.
De todo o modo, mesmo que se entenda que os numerosos defeitos da obra não obstam a que se sustente que a autora executou, embora com defeitos, a obra encomendada pela ré, sempre haveria que atentar no disposto nos art.ºs 1218º e segs. do Cód. Civil.
Ora, a ré, dona da obra, nunca aceitou qualquer parte desta, justificadamente, face aos referidos defeitos, que verificou logo no próprio decurso do processo de tentativa de execução e que de imediato comunicou à autora.
É certo que, tratando-se de um contrato de empreitada e havendo defeitos, resulta do disposto nos art.ºs 1221º e 1222º do Cód. Civil que os direitos do dono da obra devem ser exercidos segundo determinada ordem. Em primeiro lugar, há que verificar se os defeitos podem ser suprimidos ou não; se o
puderem ser, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação; se não puderem ser eliminados, o dono da obra pode exigir nova construção; só não sendo eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, é que o dono pode exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina.
A autora tentou, como resulta dos factos provados, a eliminação dos defeitos, o que significa que interpretou a comunicação destes feita pela ré no sentido de que esta pretendia a sua eliminação, tanto bastando para se concluir que a ré começou por exercer o direito de pedir da autora a eliminação desses
defeitos, até porque a lei não exige que essa pretensão seja manifestada por alguma forma sacramental. Isto, tanto mais que, se a autora, como ficou provado, nunca conseguiu corrigir os defeitos que constantemente foram detectados ao longo do fabrico, só pode ser porque essa possibilidade de correcção lhe foi dada pela ré, que é precisamente o que a lei pretende ao determinar que o dono da obra comece por pedir ao empreiteiro a eliminação dos defeitos. Aliás, isso mesmo resulta também do teor das mencionadas notas internas da ré n.ºs 1401 e 1402, por ela entregues à autora.
Mas, embora tais defeitos pudessem ser suprimidos, a autora não os
conseguiu eliminar. E, face à possibilidade de eliminação dos defeitos, não tinha a ré de exigir nova obra, precisamente porque o direito de exigir nova construção dependia da impossibilidade de eliminação.
Quanto à redução do preço, dependia esta de ser devido um preço, mas este não se podia considerar devido enquanto a obra não fosse executada pela autora em condições de o seu resultado poder ser utilizado para a exportação a que se destinava por forma a que a ré a pudesse aceitar (art.º 428º do Cód.
Civil), coisa que não aconteceu por incapacidade da mesma autora.
Por outro lado, embora a ré não fale expressamente em resolução do contrato, os factos por ela invocados não deixam de integrar essa resolução,
implicitamente declarada à autora com a comunicação de ela própria, ré, ter de providenciar por desmanchar as peças e por as refazer, e como tal podendo ser classificados à luz do disposto no art.º 664º do Cód. Proc. Civil.
É que a reparação dos defeitos por que a ré providenciou, após a autora se ter mostrado incapaz de a efectuar e já depois de esgotados os prazos da
confecção, - mesmo o novo prazo proposto pela autora e que a ré aceitara -, com o consequente atraso na remessa das peças para Itália, reflecte
claramente uma perda objectiva de interesse da ré no cumprimento das obrigações contratuais da autora, em cujas capacidades perdera a confiança, tanto mais que, perante a data em que as peças deviam ser remetidas para Itália e que a autora conhecia, havia manifesta urgência da ré na confecção das peças e na reparação dos defeitos para não se atrasar ou se atrasar o menos possível nessa remessa. Nem sequer se justificaria que fosse dada à autora nova oportunidade de reparação quando esta já se mostrara incapaz de eliminar os defeitos das peças: tal seria perfeitamente inútil e determinante de ainda maior atraso.
Existe, assim, uma notória perda de interesse da ré, como tal atendível (art.º 514º do Cód. Proc. Civil), no cumprimento do contrato pela autora,
determinante da resolução do contrato, por esta, que se encontrava em mora quer quanto à confecção quer quanto à reparação dos defeitos por não ter logrado aquela reparação até à data de entrega fixada, ter incumprido
definitivamente a sua prestação devido à sua incapacidade (art.º 808º do Cód.
Civil).
De todo o modo, seria impensável a exportação das peças em causa para Itália com os defeitos de que enfermavam e que por isso as tornavam inadequadas para os fins comerciais a que se destinavam, tudo originando que, mediante aquela comunicação, se deva ter o contrato por resolvido, com os efeitos previstos nos art.ºs 433º, 434º, n.º 1, e 289º, n.º 1, do Cód. Civil, do que resulta nada haver a pagar pela ré à autora por esta não ter prestado com utilidade e eficácia a obra encomendada.
Quando muito, poderia haver lugar a uma redução do negócio, com base no disposto nos art.ºs 433º e 292º do Cód. Civil, por dos factos provados parecer resultar que nem todas as peças confeccionadas pela autora tinham defeitos.
Só que tal não permite se conceda provimento parcial à acção, por, como acima se referiu, a autora ter invocado como causa de pedir apenas factos integrantes de contrato de compra e venda.
De tudo resulta a improcedência da acção.
Quanto à reconvenção, há que ter em conta que, nos termos do art.º 1223º do Cód. Civil, o exercício, pelo dono da obra, dos direitos conferidos nos artigos antecedentes, não exclui o direito a ser indemnizado nos termos gerais. Ou seja, tem a ré direito a ser indemnizada pelos prejuízos que dos aludidos defeitos lhe resultaram.
Fora uma quantia de 500.000$00 por desgaste de imagem que agora não está em causa por não ter sido concedida e a ré não ter reagido contra tal decisão, pediu ela o pagamento, pela autora, da quantia global de 2.511.575$00 a título de indemnização por ter suportado um custo nesse montante, ao ter tido de desmanchar parte da malha que a autora cortara e cosera, ao ter tido de coser buracos e de refazer peças e arranjos, por ter ficado com 725 peças que a autora tentara executar irrecuperáveis, e ainda por ter gasto uma quantia em frete de camião expresso devido ao atraso na remessa da encomenda para Itália.
Provou a ré todos esses factos, mas nem todos podem ser considerados como danos.
Com efeito, quanto ao frete do camião expresso, ignora-se qual a forma e custo do transporte que, se a remessa tivesse sido feita sem atraso, deveria ter sido adoptada, pois a ré, que disso tinha o respectivo ónus de alegação e prova (art.º 342º, n.º 1, do Cód. Civil), não o referiu nem demonstrou. Assim, não tendo a ré demonstrado que, sem o atraso, a remessa teria sido feita por preço inferior, não pode o montante dispendido com o frete, de 312.390$00 (documentos de fls. 31 e 32), ser considerado um dano.
Também o custo de refazer peças e arranjos, no montante global de 906.246
$90 (conforme documentos de fls. 31 e 32), não pode, sem outros elementos que à ré igualmente incumbia fornecer, ser considerado dano. Só o poderia ser se a ré tivesse de efectuar o pagamento à autora do preço da respectiva
confecção; não tendo de o fazer, sempre teria logicamente de suportar aquele custo com a produção das peças em causa, pelo que nesta parte não mostra a ré que a sua situação patrimonial, suportando-o, seja diferente da que seria se a autora tivesse executado a obra sem defeitos (art.º 562º do Cód. Civil).
Assim, tem o montante pedido pela ré de ser deduzido da quantia de 1.218.636$90, ficando reduzido a 1.292.938$10.
Pelo exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista, revogando-se o acórdão recorrido, e, em consequência:
julga-se a acção improcedente, absolvendo-se a ré do pedido;
julga-se a reconvenção parcialmente procedente, condenando-se a autora a pagar à ré a quantia em euros correspondente a 1.292.938$10, acrescida dos respectivos juros legais para as empresas comerciais a contar da notificação da contestação até integral pagamento;
e julga-se a reconvenção improcedente na parte restante, em que se absolve a autora do pedido reconvencional.
Custas por ambas as partes na proporção de ¾ pela autora e de ¼ pela ré.
Lisboa, 28 de Setembro de 2006
Silva Salazar ( relator) Afonso Correia
Ribeiro de Almeida