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PARIR PARA EVITAR FRONTEIRAS: TURISMO DE PARTO DE MULHERES RUSSAS NO CONTEXTO DO REGIME DE CONTROLE GLOBAL DE MOBILIDADES

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PARIR PARA EVITAR FRONTEIRAS:

TURISMO DE PARTO DE MULHERES RUSSAS NO CONTEXTO DO REGIME DE CONTROLE GLOBAL DE MOBILIDADES

Svetlana Ruseishvili1

Resumo: O deslocamento de mulheres com intuito de realizar atividades reprodutivas é um tema insurgente nos estudos migratórios. As modalidades mais bem pesquisadas desse fenômeno são deslocamentos para a realização de fertilização ou para o parto. Esse último, intitulado comumente de turismo de parto, tem entrado na pauta midiática e política dos países norte-americanos devido ao crescente número de mulheres, sobretudo chinesas e russas, que se deslocam para parir para que seus filhos adquiram a nacionalidade desses países. No Brasil, a migração das mulheres grávidas, principalmente no âmbito dos fluxos Sul-Sul, tem sido interpretada como uma forma de regularização no país com intuito de permanecer nele. No entanto, o turismo de parto diz respeito às mulheres que escolham um país para parir, sem pretensão de se estabelecer nele e, sim, para obter o passaporte para o seu filho. No presente trabalho, discuto o turismo de parto das mulheres russas que vêm para o Brasil para parir seus filhos. Aponto que a principal motivação dessas mulheres para um deslocamento tão longo e custoso não é o parto em si, mas o objetivo de fazer passaporte brasileiro para seus filhos e por meio dele acessar também a nacionalidade para toda a família. A capacidade reprodutiva se torna, assim, um dispositivo criativo e exclusivamente feminino de acesso à maior liberdade de movimento, já que o passaporte brasileiro dispensa vistos para muitos países do norte global.

Palavras-chave: Turismo de parto. Migração. Regime de mobilidade. Reprodução. Russas.

Resumen. El desplazamiento de mujeres para realizar actividades reproductivas es un tema insurgente en los estudios migratorios. Las modalidades mejor investigadas de este fenómeno son los desplazamientos para realizar la fecundación o el parto. Este último, comúnmente llamado turismo del parto, ha entrado en la agenda mediática y política de los países norteamericanos debido al creciente número de mujeres, especialmente chinas y rusas, que viajan para dar a luz para que sus hijos adquieran la nacionalidad de estos países. En Brasil, la migración de mujeres embarazadas, principalmente en el contexto de los flujos Sur-Sur, se ha interpretado como una forma de regularización en el país con el objetivo de permanecer allí. Sin embargo, el turismo de parto concierne a las mujeres que eligen un país en el que dar a luz, no con la intención de establecerse en él, sino de obtener un pasaporte para su hijo. En este artículo, analizo el turismo de partos de las mujeres rusas que vienen a Brasil para dar a luz a sus hijos. Señalo que la principal motivación de estas mujeres para un viaje tan largo y costoso no es el nacimiento en sí, sino el objetivo de hacer un pasaporte brasileño para sus hijos y, a través de él, acceder también a la nacionalidad para toda la familia. La capacidad reproductiva se convierte así en un dispositivo creativo y exclusivamente

1 Departamento e Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, Brasil. svetlana@ufscar.br.

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femenino para acceder a una mayor libertad de movimiento, ya que el pasaporte brasileño no requiere visas para muchos países del norte global.

Palabras-clave: Turismo de parto. Migración. Régimen de movilidad. Reproducción. Rusas.

Introdução

No início de 2019, os jornais da cidade de Florianópolis, Santa Catarina, divulgaram que a Polícia Federal e Ministério Público iriam investigar o nascimento de bebês de pais russos, suspeitos de tráfico de crianças. Desde 2014, diz uma reportagem, pelo menos sete casais russos, vindos como turistas, deram à luz bebês em maternidades da cidade e logo depois foram embora do país.

Em novembro de 2018, o Conselho tutelar da cidade levou uma denúncia ao Ministério Público e em seguida à Vara da Infância e Juventude determinou retirar um recém-nascido da mãe russa para apurar a suspeita de tráfico de pessoas. O Ministério Público acusava as famílias de negligência, por terem vindo ao Brasil com a mulher no sétimo mês de gestação sem possuir uma rede de apoio na cidade. O promotor também alegou que existem páginas na internet estimulando as mulheres russas a virem ao Brasil para dar à luz seus filhos, o que, segundo ele, poderia ser considerado um “estímulo ilegal” à imigração2.

A Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina ajuizou um Habeas Corpus e a criança foi logo devolvida à família. Posteriormente, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina determinou que não havia qualquer indício que o casal esteja envolvido no tráfico de crianças. O caso foi encerrado por falta de provas, mas chamou atenção da imprensa local, embora não tenha tido uma repercussão posterior mais ampla3.

Ainda pouco abordado pelo debate público e acadêmico no Brasil, o fenômeno de “turismo de parto” (birth tourism, na versão inglesa) é uma questão social que se encontra na intersecção de temas abordados nas áreas de estudos variadas: mobilidades e migrações, globalização, consumo, cidadania e nacionalidade, gênero e estratificação social. Mais presente na literatura de língua inglesa, o termo designa a prática de deslocamento de mulheres para um país estrangeiro para dar à luz4. Os

2 “PF investigará nascimento de bebés de casais russos em Florianópolis”. Notícias R7. 22/2/2019. Disponível em:

https://noticias.r7.com/brasil/pf-investigara-nascimento-de-bebes-de-casais-russos-em-florianopolis- 22022019. Acesso em 12/01/2021.

3 “Os motivos que levam os casais russos a darem à luz bebés em Florianópolis”. NSCtotal. 23/02/2019. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/noticias/os-motivos-que-levam-casais-russos-a-darem-a-luz-bebes-em-santa- catarina. Acesso em: 12/01/2021.

4 São usados também termos “turismo maternal” (maternity tourism) e turismo reprodutivo.

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motivos dessas mulheres são variados, mas os principais são a busca de melhores condições médicas e o acesso à cidadania para a sua criança e, eventualmente, para outros membros da família.

O turismo de parto é praticado nos países, nos quais o acesso à cidadania é baseado nos critérios de nascimento (jus soli) e não de ascendência (jus sanguinis). A cidadania pelo lugar de nascimento (birthright citizenship) é mais comum nos países da América, cuja construção nacional foi muito influenciada pela grande imigração do século XIX. Geralmente, as mulheres que praticam o turismo de parto provêm de países, cujos cidadãos sofrem com restrições à mobilidade internacional. A geografia política global do direito à cidadania e à mobilidade molda os fluxos das mulheres dispostas a dar à luz no estrangeiro, como veremos mais adiante.

O debate público sobre o turismo de parto na América do Norte

Nos países da América do Norte, sobretudo nos Estados Unidos e no Canadá, o tema do turismo de parto tem entrado na pauta política. Nos Estados Unidos, o assunto faz parte do debate público desde a eleição de Donald Trump para a presidência. No contexto do controle migratório mais rígido, da securitização da fronteira, da criminalização dos migrantes indocumentados e do aumento do número de deportados, os setores conservadores do governo têm proposto medidas para frear o turismo de parto no país. Enquanto algumas medidas objetivam restringir a vinda das mulheres grávidas ao país, outras propõem até mesmo modificar os termos da 14ª Emenda da Constituição que prevê a cidadania para as crianças nascidas no solo estadunidense.

Em janeiro de 2020, o governo de Trump impôs novas regras para emissão dos vistos para mulheres grávidas. De acordo com essas novas orientações, as gestantes não podem obter o visto americano caso não consigam comprovar que possuem condições financeiras para garantir o atendimento médico ou razões médicas imprescindíveis para fazer o parto nos Estados Unidos. Vale destacar que estas restrições não se aplicam aos cidadãos de 39 países que não precisam de vistos para estadias de curta duração: os países da União Europeia mais Coréia do Sul, Singapura, Taiwan, Nova Zelândia, Brunei, Chile e alguns outros não europeus5.

Paralelamente, a administração de Trump tem aplicado regras mais restritivas para as mulheres gestantes na fronteira com o México, antes consideradas como grupo vulnerável e tratadas com menos violência. Tais restrições visam diminuir a quantidade de “bebês-âncora” (“anchor

5 Visa Waiver Program. Disponível em: https://travel.state.gov/content/travel/en/us-visas/tourism-visit/visa-waiver- program.html. Acesso em: 12/01/2021.

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babies”), termo depreciativo usado pelos setores anti-imigração para designar os filhos de imigrantes nascidos nos Estados Unidos e que, portanto, possuem direito à cidadania e à reunião familiar com os seus progenitores e irmãos não-cidadãos. No governo de Trump, os bebês-âncora foram estigmatizados como mera estratégia de regularização migratória para famílias de imigrantes indocumentados. Junto com o turismo de parto, os bebês-âncora se tornaram o centro da retórica anti- imigração da administração de Trump.

Os setores mais conservadores têm procurado também limitar o direito do solo que rege o acesso à cidadania estadunidense. A senadora republicana Lindsey Graham chamou o direito de solo de “erro”, argumentando que ele promove a vinda dos imigrantes para “lançar bebês” (em clara alusão à expressão “lançar âncora”). O congressista Steve King tentou repetidamente introduzir uma legislação que dificulta o acesso à cidadania dessas crianças6.

Seyla Benhabib e Judith Reznik (GORDON-ZOLOV, 2010) argumentam que a discussão política em torno dos filhos de mulheres imigrantes é uma difícil negociação de demandas competitivas entre o Estado e as crianças americanas nascidas nas famílias de não-cidadãos. Fica evidente a tentativa de restringir o acesso à cidadania pelo direito de solo aos imigrantes mais pobres, irregulares e de países menos desenvolvidos. A cidadania opera nesse contexto por meio da inclusão diferencial (MEZZADRA, NEILSON, 2013) no sentido de regular o acesso pleno ao espaço político nacional àqueles que são considerados como estrangeiros “desejáveis” pelo Estado e manter na irregularidade aqueles que são considerados como “indesejáveis”. As categorias de

“desejável/indesejável” são fortemente atravessadas pelas construções de classe, raça, capacidades físicas e nacionalidade. Ademais, o direito do solo não exclui a aplicação do direito de ascendência, de modo que nos Estados Unidos, uma criança nascida de uma mãe americana fora do território do país recebe a cidadania americana, enquanto a criança nascida nos Estados Unidos dos pais não residentes precisa lutar para assegurar a não deportação dos seus cuidadores em situação irregular, como apontam Benhabib e Reznik (GORDON-ZOLOV, 2010, p. 282).

No Canadá, as “turistas de parto” e seus filhos estão sendo estigmatizados como contraventores. Isso faz parte de uma tendência mais ampla da criminalização dos migrantes fundamentada na retórica do “merecimento”. Essas mães e seus bebês são retratados como pessoas que tentam infringir as regras da cidadania e “pular” a fila da naturalização, se tornando imigrantes

6 ‘Anchor babies’: the ‘ludicrous’ immigration myth that treats people as pawns”. Alexandra Villarreal. The Guardian, 16 de março de 2020. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2020/mar/16/anchor-babies-the-ludicrous- immigration-myth-that-treats-people-as-pawns. Acesso em: 12/01/2021.

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que não merecem a “generosidade” dos canadenses7. Khosravi (2010, p. 116) argumenta que as

“tecnologias de anti-cidadania” são operadas pelos governos para produzir os seus cidadãos como sujeitos morais em contraste com os irresponsáveis e anti-éticos “Outros”. A construção discursiva de alguns imigrantes como anti-cidadãos, continua o autor, cria o pânico moral na sociedade, alimentado pelos técnicos, mídia e autoridades políticas que anunciam um “perigo” para a sociedade.

Nessa retórica de risco, a fertilidade de mulheres imigrantes é posicionada como ameaça à integridade da nação. “Nesse contexto, amor, sexualidade e reprodução não são mais assuntos privados/biológicos, mas pertencentes às esferas pública e política. O corpo da mulher se torna um campo de batalha no qual uma guerra contra os imigrantes é travada”, complementa Khosravi (2010, p. 119), resgatando a ideia do feminismo crítico que “o pessoal é político” (VARIKAS, 1996). Vale ressaltar, que essas políticas migratórias também devem ser tratadas sob a ótica da persistência da eugenia, já que envolvem ideias e práticas que visam interferir na reprodução das populações tidas como “indesejáveis” e subalternas (veja RUSEISHVILI, 2020 sobre as políticas migratórias, eugenia e branqueamento no Brasil).

Embora no debate público norte-americano os bebês-âncora e o turismo de parto são tratados como fenômenos equivalentes, há neles diferenças substanciais. A retórica de bebês-âncora foi criada pelos setores anti-imigração para contemplar os filhos nascidos no país de mães estrangeiras com dificuldades de regularização migratória. Muitas vezes, são imigrantes indocumentados ou solicitantes de refúgio, provenientes dos países do Sul Global. O turismo de parto, em contraste, se refere aos deslocamentos de mulheres com recursos e provenientes (pelo menos, para o caso da América do Norte) dos países em desenvolvimento, como China, Rússia e Nigéria8. A crescente popularidade da prática tem moldado uma indústria composta por empresas que auxiliam as gestantes com vistos, residência, atendimento médico e informações. Nos Estados Unidos, o processo pode custar até 100.000 dólares, como apontam algumas reportagens9. Além disso, algumas fontes ressaltam que para essas mulheres, dar ao filho a cidadania americana é muito mais questão de status

7 Birth tourism and the demonizing of pregnant women. Megan Gaucher, Lindsay Larios. Policy Oprtions. 17/01/2020.

Disponível em: https://policyoptions.irpp.org/magazines/january-2020/birth-tourism-and-the-demonizing-of-pregnant- migrant-women/. Acesso em: 12/01/2021.

8 “Anchor babies”, “birth tourism”, and most american’s complete ignorance of Immigration Law”. Sonia Canzater. 22 de janeiro de 2018. O’Neill Institute for National 7 Global Health Law. Dsiponível em:

https://oneill.law.georgetown.edu/anchor-babies-birth-tourism-and-most-americans-complete-ignorance-of- immigration-law/. Acesso em: 12/01/2021.

9 “Here’s why Russian Moms are Coming to the U.S. to Give Birth”. Sophie Hirsh. Romper. 11 de janeiro de 2018.

Disponível em: https://www.romper.com/p/heres-why-russian-moms-are-coming-to-the-us-to-give-birth-7858801.

Acesso em: 12/01/2021.

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social do que a necessidade de se regularizar nos Estados Unidos10. De fato, diante de tantas dificuldades burocráticas e da estigmatização da prática na América do Norte, o parto se torna um investimento de longo prazo. Pelas estimativas, são necessários cerca de 25 anos para se regularizar por meio da reunião familiar com o seu filho nascido nos Estados Unidos.

Longe do debate público, o turismo de parto também ocorre nos países da América Latina, onde a cidadania é regida pelo jus soli. Diferentemente dos Estados Unidos e Canadá, os países sul- americanos não promovem medidas violentas que criminalizam a imigração irregular, embora nos últimos anos tenha aumentado o número de medidas restritivas nesse sentido (DOMENECH, DIAS, 2020; RUSEISHVILI, CHAVES, 2020). De forma geral, o tema é tratado pelo debate público enquanto o movimento das mulheres latino-americanas para os países da América do Norte e não como um fenômeno que ocorre no território desses países protagonizado pelas mulheres vindas de outros países e continentes11. No Brasil, como vimos no início desse texto, a questão de mulheres estrangeiras não residentes darem à luz no país se tornou a pauta, embora local e momentânea, após o caso das mulheres russas em Florianópolis em 2017.

No entanto, o Brasil e a América Latina têm se tornado destinos populares, se acreditarmos nos materiais produzidos para as gestantes em idioma russo e acessíveis na internet. México, Chile, Argentina e Brasil são quatro principais países latino-americanos presentes na divulgação da prática do turismo de parto em idioma russo, destinados para todo o espaço pós-soviético. Pelo menos um site para cada um desses países é facilmente localizado numa pesquisa preliminar no Google12. Esses sites são montados e operados por empresas que vendem a assessoria para as gestantes russas que desejam dar à luz no país. Geralmente, essas empresas pertencem aos imigrantes russófonos residentes no país e que muitas vezes são mulheres. Diferentemente dos países norte-americanos, os pacotes completos de assessoria na América do Sul são muito mais baratos, variando entre $ 1.500 e

$ 5.000. Além disso, existem também páginas nas redes sociais, como Facebook e Instagram, e fóruns de discussão no Telegram e outras plataformas, onde as mulheres de todo o espaço pós-soviético

10 Idem.

11 “Turismo de partos: las latinoamericanas que viajan a dar a luz a EE.UU”. BBC Mundo. 30 de setembro de 2015.

Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias/2015/09/150925_eeuu_tener_bebe_miami_turismo_parto_ep.

Acesso em: 12/01/2021. “Turismo de maternidad: madres embarazadas viajan a EEUU para dejarle una 'herencia' a sus hijos”. Paula Diaz. Univision Arizona. Disponível em: https://www.univision.com/local/arizona-ktvw/turismo-de- maternidad-madres-embarazadas-viajan-a-eeuu-para-dejarle-una-herencia-a-sus-hijos. Acesso em: 12/01/2021. Com exceção do Chile, onde a mídia já relata o aumento de mulheres estrangeiras que dão à luz nos hospitais do país: “Turismo obstétrico”: registran aumento de madres extranjeras que llegan a Chile para dar a luz”. T 13. 10/02/2020. Disponível em:

https://www.t13.cl/noticia/nacional/Turismo-obstetrico-registran-aumento-de-madres-extranjeras-que-llegan-a-Chile- para-dar-a-luz. Acesso em: 12/01/2021.

12 Chile: chilekids.me; México: birth-in-mexico.com; Brasil: rodivbrazilii.com, bornbrazil.com; Argentina:

baby.ruargentina.com.

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trocam experiências sobre o parto na América Latina, o que abre as possibilidades de fazer o parto por conta própria, sem recorrer aos serviços de empresas.

Turismo de parto: mobilidades reprodutivas, cidadania e gênero

O turismo de parto está presente de forma marginal nos textos acadêmicos. Na literatura anglófona a maioria dos trabalhos se refere à análise da mobilidade de novas elites econômicas dos países da semiperiferia do sistema-mundo e suas estratégias de ascensão social pela imigração (ALTAN-OLCAY, BALTA, 2016; HARPAZ, 2019; HUI, 2016; JARAMILLO, GOYAL, LUNG, 2019). Esses estudos evidenciam que a cidadania no mundo contemporâneo não é apenas um elemento descritivo dos indivíduos, mas sobretudo uma ferramenta para ascensão social global ou manutenção de status social ou ainda um ativo para o aumento do capital social. Altan-Olcay e Balta (2016) discutem a transnacionalização das estratégias de distinção da elite turca, que vê a cidadania americana como um incremento ao seu capital social e como garantia da transmissão intergeracional dos privilégios de classe. Harpaz (2019) chama atenção para o fato de que os valores práticos efetivos da cidadania não são os mesmos para diversos países no mundo e que essas disparidades moldam estratégias individuais para mobilidade ascendente por meio do deslocamento.

O elemento analítico importante a ser considerado na análise do turismo de parto é o papel da mulher imigrante e da sua capacidade reprodutiva. Foster (2017) analisa como a retórica empreendida pelo Estado americano para estigmatizar o turismo de parto contribui para a marginalização de mulheres não brancas, imigrantes ou indocumentadas. A capacidade reprodutiva das mulheres não nacionais se torna um assunto público e é nacionalizada pelo Estado que controla a mobilidade.

O presente texto visa compreender o fenômeno do turismo de parto contemplando a sua complexidade que envolve a tensão entre o Estado e a mulher migrante pelo acesso à cidadania, a capacidade reprodutiva feminina como estratégia de subversão da soberania estatal e as formas de mobilidade internacional generificada. Para isso, mobiliza-se o referencial teórico desenvolvido no âmbito do novo paradigma de mobilidades desenvolvido pela Escola de Lancaster, que tende a alargar a compreensão dos deslocamentos geográficos no mundo contemporâneo enquanto uma série de sistemas interconectados: mobilidade e imobilidade, fluxos e infraestrutura fixa, sistemas econômicos, financeiros, políticos e culturais (FREIRE-MEDEIROS, LAGES, 2020; URRY, 2007;

ELLIOTT, URRY, 2010). A mobilidade vista pela lente da teoria de mobilidades é um fenômeno

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complexo que envolve diversos atores humanos e não humanos, práticas e infraestruturas que formam constelações específicas que possibilitam ou estimulam a (i)mobilidade. O turismo de parto deve ser compreendido nesse sentido como uma modalidade complexa da mobilidade que articula práticas e infraestruturas turísticas com as de mobilidades migratórias e transnacionalismo.

Nesse sentido, a principal questão é como as mulheres agenciam a sua capacidade reprodutiva para subverter o controle do Estado sobre o acesso à cidadania e com isso aumentam o seu capital de rede e incrementam a capacidade de deslocamento para si mesmas, seus filhos e suas famílias.

Acredito que a crescente popularidade de turismo de parto se deve muito ao regime global de mobilidade heterogêneo, que normaliza o movimento de uns enquanto criminaliza e dificulta o movimento de outros (GLICK-SCHILLER, SALAZAR, 2013, p. 189). Por sua vez, o regime global de mobilidade se fundamenta na visão neo-colonial do mundo, segundo a qual as diferentes cidadanias não concedem aos indivíduos as mesmas capacidades de deslocamento. No contexto em que o deslocamento depende de passaportes, vistos e acordos internacionais, existe uma hierarquização de cidadanias que concedem aos seus membros maior ou menor liberdade de movimento13.

Quando pensamos na mobilidade feminina pela perspectiva de acesso à cidadania, fica claro que a capacidade reprodutiva gera oportunidades de subverter a “loteria dos direitos adquiridos pelo nascimento” (birthright lottery) (FAVELL, 2021) que leva ao “apartheid de passaportes”

(KOCHENOV, 2020).

A raça, o gênero, a cultura ou ainda a deficiência podem ter efeitos mais locais ou ligados ao contexto sobre a diferenciação, mas o quadro geral de desigualdades absolutas permanece bem ilustrado pela diferença que há entre nascer nos Estados Unidos com a cidadania americana e nascer em Somália com a cidadania somaliana, independentemente da raça, do gênero, da cultura, da deficiência, etc. (FAVELL, 2021, p. 64).

Essa estratificação absoluta e adscrita aleatoriamente contém no seu seio o germe de sua superação: a liberdade da mulher de se deslocar para parir a sua criança, e, junto a ela, uma nova cidadania.

O turismo de parto deve ser também analisado em relação com as práticas de aumento da motilidade, entendida como a capacidade de se movimentar (KAUFMANN, BERGMAN, JOYE, 2004). Lozanski (2020) aponta que, para as turistas de parto chinesas nos Estados Unidos, a motilidade é ao mesmo tempo objetivo e ativo para o turismo de parto. Isso porque, para que o

13 Essa estratificação é explicitada pelo ranking global de passaportes, hierarquizados pela sua capacidade de prover ao seu portador uma viagem sem vistos e outros obstáculos. Ver Henley Passport Index. Disponível em:

https://www.henleypassportindex.com/passport. Acesso em: 28 de janeiro de 2020.

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deslocamento aconteça, a mulher precisa possuir um capital de rede14 suficiente para superar o controle migratório: obter o visto, passar pelo controle fronteiriço etc. (LOZANSKI, 2020, P. 151;

SCHELLER, 2018, P. 15).

Essa observação é fundamental para compreender a geografia dos fluxos do turismo de parto.

Se para entrar nos Estados Unidos e Canadá é preciso obter um visto de turista, que opera como um potente filtro que rejeita as mulheres com baixo capital de rede, que inclui o baixo poder aquisitivo, a formação profissional insuficiente, as características étnicas e raciais específicas (LOZANSKI, 2020, p. 151), a América Latina surge como alternativa. Para as mulheres russas, por exemplo, os vistos de turista não são exigidos para entrar nos países da América Latina, o que faz com que as possuidoras de maior capital de rede se direcionam para a América Anglófona15 e com menor – para a América Latina.

O acesso ao sistema de saúde em diversos países também constitui o fator que direciona a mobilidade reprodutiva. Em vários países da América Latina o acesso à saúde pública é universal e gratuito para os não residentes, somado aos preços da medicina particular mais baixos de que, por exemplo, nos Estados Unidos e Canadá. Diante disso, é necessário levar em conta a infraestrutura imóvel que promove a mobilidade reprodutiva, definida pela teoria da mobilidade como

“ancoradouros” da mobilidade (HANNAM, SCHELLER, URRY, 2006).

Pensar o turismo de parto como um fenômeno da mobilidade reprodutiva é um caminho analítico fecundo. Sheller (2020, p. 188) pondera que “pesquisa crítica sobre processos reprodutivos, espacialidades, temporalidades e tecnologias pode estimular a teoria das mobilidades para repensar as políticas de (i)mobilidades por meio das relações de poder envolvidas em corporeidades móveis heterogêneas e emaranhados corporais de reprodução”. O diálogo entre a teoria feminista da reprodução e a teoria das mobilidades pode resultar em novas visões sobre as formas de desigualdades no mundo contemporâneo que tem raízes tanto nas relações de gênero, quanto na “política cinética”

global (SHELLER, 2020, p. 189).

Vale ressaltar que as teóricas feministas da reprodução social têm apontado para a relação conflituosa entre a capacidade reprodutiva da mulher e a sua motilidade. Silvia Federici (2017, p.

144), quando analisa o processo de cercamentos na Europa a partir do século XVI como um processo

14 Capital de rede é definido pelo paradigma de mobilidades como “a capacidade de gerar e sustentar relaç ões sociais com pessoas não necessariamente próximas e que produzem benefícios emocionais, financeiros e práticos (embora isso envolva frequentemente vários objetos e tecnologias ou meios de construir redes [networking])” (Urry, 2007, p. 197 apud Freire-Medeiros, Lages, 2020).

15 “Here’s why Russian Moms are Coming to the U.S. to Give Birth”. Sophie Hirsh. Romper. 11 de janeiro de 2018.

Disponível em: https://www.romper.com/p/heres-why-russian-moms-are-coming-to-the-us-to-give-birth-7858801.

Acesso em: 12/01/2021.

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disciplinar para o assalariamento dos trabalhadores, ressalta que o impacto foi maior para as mulheres.

Se considerarmos o aumento da mobilidade das massas trabalhadoras como uma forma de resistência ao assalariamento (taxado como “vagabundagem”), as mulheres tiveram acesso reduzido a essas práticas por conta da gravidez e dos cuidados com filhos, idosos e dependentes. Por outro lado, o autocontrole da natalidade pelas mulheres no contexto da criminalização dessas práticas pode ser compreendido como uma forma de agenciamento e subversão ao regime de poder opressivo (DAVIS, 2016).

Desse ponto de vista, o turismo de parto é compreendido como agenciamento de suas funções reprodutivas pelas mulheres subalternizadas pelo regime heterogêneo de mobilidades com objetivo de providenciar uma mobilidade social ascendente para suas famílias e seus descendentes. As formas da reprodução (biológica e da estratificação cinética global) e a (i)mobilidade são, portanto, mutualmente determinadas.

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Giving birth, avoiding borders: birth tourism of Russian women in the context of regime of global mobility control

Abstract: Mobility of women in order to realize reproductive activities in other countries is an insurgent topic in migration studies. The best-known modalities of this phenomenon are fertility and birth tourism. The later one has drawn the attention of media and politicians in the north-American countries due to increasing number of women, mostly Russian and Chinese, who travel to give birth so that their child can acquire the citizenship of these countries. In Brazil, migration studies scholars have interpreted the foreign-born women (especially from Portuguese-speaking Africa) practice of coming in order to give birth as a strategy of migration status regularization for all the family that aims to settle down. However, the birth tourism phenomenon frequently concerns women who choose a country to give birth without pretending to stay in it but to obtain its citizenship for their child, as a sort of investment in his future mobility capital. In this paper, I discuss the birth tourism of Russian women in Brazil. I point out that the main motivation of these women for such a long and expensive journey is not childbirth itself, but the goal of making a Brazilian passport for their children and thereby accessing nationality for the whole family in the future. Reproductive capacity thus becomes a creative and exclusively feminine device for access to greater freedom of movement, as the Brazilian passport dispenses visas for many countries in the global North.

Keywords: Birth Toursim. Migration. Mobility Regime. Reproduction. Russian women.

Referências

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