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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

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Academic year: 2018

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Juliana Varela Geraldo

Revoluções improvisadas: clínica-poesia-coletivos

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

(2)

PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Juliana Varela Geraldo

Revoluções improvisadas: clínica-poesia-coletivos

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de MESTRE

em Psicologia Clínica.

(3)

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

Prof. Dr. Peter Pál Pelbart (Orientador)

__________________________________________

Prof. Dr. Alexandre de Oliveira Henz (membro)

__________________________________________

Prof. Dr. Luiz Benedicto Lacerda Orlandi (membro)

__________________________________________

Prof.(a) Dr.(a) Maria Cristina G. Vicentin (suplente)

__________________________________________

(4)

“O potencial revolucionário só é limitado pela nossa imaginação”

(Mostra Expressões da Revolução – Matilha Cultural, junho/2011)

“Interessem-se pelo que vocês fazem, pois isto é a menor das coisas, quer

dizer que os conceitos ou os pensamentos que vocês têm, sejam eles quais

forem, de ordem científica, de ordem filosófica, qualquer que seja a ordem,

não estejam sem que isto aumente a sua potência de existir e sem que vocês

percebam uma multiplicidade de outras coisas...”

(Gilles Deleuze)

“...experiência não é o que acontece ao homem, é o que ele faz com o que lhe acontece.”

(5)

AGRADECIMENTOS

Ao meu pai, quem primeiro me reconheceu tal como pássaro, talvez porque tenha essa natureza de gostar de voar...foi quem me apresentou a poesia...mas não voa mais! trabalha, sobrevive...inventa-se dia-a-dia.

A minha mãe, que como uma guerreira – ‘formiguinha trabalhadeira’ deu-me ninho e alimento, e mesmo não entendendo de voar disse-me certa vez ao me deixar ir: “formiga quando quer voar cria asas”...a esta que me acompanha com tanto zelo apesar das diferenças e mundos!

Aos meus avós!...a ‘neguinha’ de vocês é muito agradecida pelo carinho, por me mostrarem como é ser criança. A dona Raquel que investiu em meus estudos com empenho. Aos meus primos!...muito queridos!

Aos meus amigos, revolucionários nas lutas, seja pela alegria, pelo compartilhar, pela vontade em aprender e em empreender, pelas transformações das desigualdades e injustiças, pela dança, música, pela vontade de transformar, superar, pelo amor e pela paixão, pela arte, pela vida simples de hoje e agora! A estes também devo aprendizados intensos e transmutações! Além da imensa alegria do caminhar junto.

A minha família de coração (irmãos, sobrinhos, tias...), que me transborda a existência com essa sensação do sublime que há nos ‘encontros’, nas ‘escolhas’, nos laços!

A todos os ‘pacientes’1 que tive até hoje...Boa Sorte, de coração! Vocês me ensinaram muito, abriram-me os olhos, aliás, os poros, para a multiplicidade e alteridade, para as possibilidades de criação e transformação, para a aceitação de outros mundos...tornei-me um pouquinho de vocês também,e tantas outras junto a vocês e por isso sinto-me mais alegre!

Aos docentes que me convidaram a pensar, incomodar o pensamento e agir com muito mais do que ciência e teoria. Aos supervisores e colegas de estágios, Aprimoramento, Especialização, pela nossa dedicação conjunta na construção do cuidado, da profissão, do aprendizado, dos gestos.

Aos docentes e colegas da PUC-SP, Núcleo de Estudo da Subjetividade, pelas parcerias nas inquietações, na arte de desviar, criar, pensar com o corpo todo, vibrar. Especialmente a Peter, pela orientação e desorientação flutuante e precisa.

Aos que contaram suas histórias e de suas iniciativas, individuais e coletivas, partilharam espaços e tempos, ocuparam junto,compartilharam sonhos e modos de sonhar, realizar. Minha admiração e gratidão.

Aos amigos da UNIFESP-BS que pela riqueza da experiência conjunta muito contribuíram para as reflexões sobre nossas ocupações na vida. Especialmente ao Alê, pelo acolhimento e convite a projetos; a Mafefa pelo incentivo e dedicação; e ao Edu, amigo sempre presente com suas palavras simples e sinceras - a vocês pela gentil e delicada disposição, com muitas contribuições importantes a esta dissertação.

A CAPES pela bolsa parcial que viabilizou a permanência e conclusão do Mestrado.

Aos desejos e sonhos...as inquietações e enfrentamentos! As incertezas e curiosidades...as aspirações e disponibilidades. As transversalidades e artes (arteiras, artesãs, artistas...)!!! As minhas células e poros, todos!

1Refiro-me as minhas experiências de estágios curriculares, de extensão, e as do Aprimoramento e da

(6)

VARELA, Juliana G. Revoluções improvisadas: clínica-poesia-coletivos. São Paulo, 2011, Dissertação (Mestrado). Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de SP. Orientador: Profº Dr. Peter Pál Pelbart.

RESUMO

Este trabalho, em ressonância com práticas clínicas, aposta em percursos

experienciais como possibilidade de desmontagem de técnicas e modelos hegemônicos

nos modos de vida.

Neste sentido, busca traçar resistências e potências dos saberes e fazeres

cotidianos, improvisados, assim como estabelecer parcerias com a arte e com

organizações de coletivos e, dessa forma, delinear um campo problemático sobre modos

de cuidado e manutenção da vida em seus múltiplos territórios.

Propõe a reflexão sobre a ocupação e a vitalização dos espaços, atos e

disposições, percorrendo revoluções micropolíticas que escapem ao estabelecido e

inventem; manifestando, assim, o desejo de tecer linhas e conexões com uma política da

composição e da amizade, apostando na potência das diferenças e da matéria mesma que

nos integra e impulsiona.

(7)

ABSTRACT

This dissertation, resonating with clinical practices, drives a stake in experimental

courses with the possibility of disassemblying techniques and hegemonical patterns in the

ways of life.

Accordingly, it seeks to trace resistances and potencies of the improvised

everyday knowings and doings, as well as to establish partnerships with the art and

organizations of the collective and, therefore, to outline a field problem about the ways

of caring and the maintenance of life in its multiple territories.

It poses a reflection about the occupation and vitalization of the spaces, actions

and dispositions covering micropolitical revolutions that escape the mainstream and

invent; revealing thus, the desire of weaving lines and connections with a politics of

composition and friendship, taking a gamble on the potency of differences and the

kindred matter which both integrates and drives us.

(8)

Índice

“O apanhador de desperdícios”...08

A- Lentes Multifocais...09

Escritos experienciosos_narrativos: Kiara...11

B- Desrazantes...16

“Perdoando Deus”...23

1. Sujeição...25

“Amanhecidos”...36

2. Ocupação de espaços (“Tudo o que não invento é falso”)...37

C- Disparates e Disparadores...47

“D de desejo”...50

E- Micros e Micos...51

3. Vitalizações e Resistências...55

“F de fidelidade”...67

G- Maciços e Movências...68

4. Política de Composição...70

“O intratável”...76

H- Destrilhos...77

“Encarnação Involuntária”...79

Escritos experienciosos_narrativos: Sebastiana...80

I- Im-pessoalismos...82

Cotidianos ciberafetivos – parcerias atuantes...84

“Milágrimas”...85

Bibliografia...86

Sites...92

Filmografia...93

(9)

O Apanhador de desperdícios2 Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras fatigadas de informar.

Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas. Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença.

Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.

2Manoel de Barros, Memórias Inventadas: A Infância. Iluminuras de Martha Barros. São Paulo: Planeta,

(10)

“Ele me atormentava. Sexo, drogas, prostituição, políticas públicas, saúde coletiva, a relação entre academia e serviços eram temas frequentes nas nossas conversas, cheios de relatos interessantes e muitas, muitas discussões. Eram encontros divertidos, inteligentes, disparadores. Perdia o sono. Havia sempre inúmeras promessas, reiteradas - de lugares e coisas que sempre fizeram parte dos meus pensamentos, mas que talvez nunca tivessem acontecido se ele não tivesse passado pela minha vida...”3

A - Lentes Multifocais

Dia desses, ouvi de uma pessoa bastante querida: “É preciso partir de algum

lugar, de uma especificidade, de um tema, de uma pergunta. É assim que se pode

escrever, só assim é possível expressar-se com alguma compreensão.”

Eis minha sentença de morte! Alguém trouxe com todas as letras e palavras um

tormento que sinto ácido no fígado. Não penso assim - não que eu discorde

completamente ou não veja algum sentido nestas afirmações, mas não me sinto entre elas.

“O Jogo do mundo é escrito em aforismos. O objeto próprio do aforismo é o objeto parcial, o fragmento, o pedaço. (...) dizer e pensar o objeto parcial enquanto ele não pressupõe totalidade alguma passada da qual derivaria, mas, ao contrário, deixar o fragmento derivar por ele mesmo e pelos outros fragmentos, fazendo da distância, da divergência e do descentramento, que tanto os separam quanto os misturam, uma afirmação(...) irredutível à unidade.” 4

Tentei, não pense você que eu simplesmente segui por um caminho mais ‘fácil’ e

‘conhecido’; azedei tantas palavras e ideias quantas surgiram – e foram várias. Inverti,

reverti, planejei capítulos e explicações; quis fazer caber um panorama de

3'Codinome Beija-Flor': trecho narrativo de uma certa Alice, de um certo país das maravilhas.

4Gilles Deleuze, “Falha e fogos locais”. Tradução de Tomaz Tadeu e Sandra Corazza, in A Ilha Deserta e

(11)

atravessamentos num único tema, com foco, para que eu pudesse ser clara e

compreensível (ou algo assim!).

DESISTI. Não pude; falhei; resisti.

E dentro das invenções possíveis que este ‘eu’ é capaz de operar (agora), o que

me resta factível é partir de percursos e narrativas. Percorrer (discursivamente) em

encadeamentos e conexões as temáticas, ideias, os afectos que têm constituído planos e

amalgamas desta existência mestranda em curso de uma dissertação (e das demais existências que também me atravessam, em conjugalidade ou não).

“Tais mutações da subjetividade não funcionam apenas no registro das ideologias, mas no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular com o tecido urbano, com os processos maquínicos do trabalho e com a ordem social suporte dessas forças produtivas. Se isso é verdade, não é utópico considerar que uma revolução, uma mudança social em nível macropolítico e macrossocial, concerne também a produção da subjetividade, o que deverá ser levado em conta pelos movimentos de emancipação. Essas questões que pareceriam marginais, do domínio da psicologia, da filosofia ou dos hospitais psiquiátricos, tornam-se fundamentais com o nascimento de imensas minorias que, juntas, constituem a maioria da população do planeta. Não considero que haja uma teoria ou uma cartografia geral da forma como são semiotizadas essas problemáticas. Esse ponto é para mim fundamental, pois a representação teórica e ideológica é inseparável de uma práxis social, inseparável das condições dessa práxis: é algo que se busca no próprio movimento, incluindo-se aí os recuos, as reapreciações e as reorganizações das referências que forem necessários.”5

5Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica: Cartografias do Desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 10ª

(12)

Escritos experienciosos_narrativos: Kiara

Kiara vivia em vários momentos ao mesmo tempo, nem sabia ao certo o que era

real, de fato encontrava – a cada dia com mais significados e formas - que não havia ‘O

REAL’. Era possível inventar o que fosse como realidade para sua vida...e sua vida já não

a satisfazia, aliás, talvez nunca tenha satisfeito.

Sentia uma certa obrigação em viver, e viver bem. Já havia sentido e vivido

diferente, mas não se lembrava com memória muito viva como era isso, de alguma

forma, sua vida havia sido um tanto sugada e a sensação era como se já não fosse sangue

vital que corresse em suas veias, mas algo como uma graxa, destas que impedem a

ferrugem e mantém o maquinário em funcionamento, mas há um ‘quê’ de secura nisto

tudo...as partes não se atritam mas também não se conjugam....

Kiara sentia um gosto amargo, algo que lhe incomodava a garganta, uma

inquietação de quem deseja libertar-se, de quem precisa se libertar, quase como se a areia

movediça já estivesse à cima do pescoço e o tempo se esgotando!

TEMPO – Nos últimos anos de sua vida Kiara deparava-se nitidamente com esse

monstro angélico sem formas e definições – o Tempo.

Ele arrastou suas possibilidades, levou-a para outras cidades, outra vida, novas

configurações. Suas linhas de vínculos foram todas alargadas como elásticos, até quase

estourarem. Tudo que a fazia sentir-se com os pés no chão, com alguma segurança e

certeza foi tirado, modificado, entortado...transfigurou-se o tempo em tantas e várias

(13)

E o que ela sentia, algo descomunal, esse mesmo TEMPO que a violentava,

esse carrasco que a convidava, seduzia e lançava, deixava ao leu...esse mesmo ente

inescrupuloso era seu maior e melhor amante, alimento para o que chamam de alma.6

E Kiara sabia-se louca, insana e cada vez mais desorientada, pois sua

compreensão das coisas demonstrava-se deslocada, a forma como apreendia a tudo, as

lógicas e sentidos que criava destoavam. Ela se deitava com o Tempo e, portanto,

nenhum espaço, lógica, sensação, sentido...nada permanecia sob o mesmo regime.

No início, era como uma droga, ela queria mesmo fugir de tudo que a rodeava,

inclusive e até principalmente as pessoas, a família, os colegas, os lugares, espaços,

papéis – amor/ódio que sentia por tudo que a cercava e alimentava/sugava – ela queria

lançar-se para fora de si, e mesmo aos poucos, com alguns saltos e com alguns passos

receosos, ora correndo e ora esgueirando-se, foi isso que ela se pôs a fazer.

Permitiu-se ser muito do que não imaginava ser, afrouxou limites, permitiu

vontades, esticou padrões e valores – melecou-se do que até então achava que não

deveria provar, rio um riso de profano e chorou com todo e de todo vazio que era possível

alguém respirar (sendo este alguém genérico, em realidade, seu próprio EU voluntarioso).

Nota de meio-pé: nem foi TUDO e nem foi NADA; ela se permitiu pra além do

que achava e conhecia até então como de ‘direito’ (e ‘dever’) a alguém, digamos assim,

dignamente humano e que pretende (espera de Deus ou figura que o valha) alguma

6Acrescento aqui uma frase que me ajudou a compreender melhor essa relação de Kiara com o tempo; vale

(14)

absolvição/salvação – exatamente por ser tão humano. Seu escárnio profano, ou sua

dor dramática e seu vazio dilacerador cabiam a sua vida, eram O TUDO e TODO, OS

EXTREMOS para si, já que cada existência inventa e sente o que cria para si e a cada

momento reinventa tudo de novo.

INGENUIDADE – Kiara era de carregar sempre consigo um jeito de

compreender o mundo e de ser a si mesma que tinha algo de muito ingênuo, tanto no

sentido pueril, como no sentido imbecil. [Não é de burrice que estamos falando aqui, mas

algo como a singularidade de uma certa idiotice, que até pra não mergulhar na estupidez e

não ter que se a ver com ela ou com a criatividade encontrou na idiotice uma aliada de

um certo entre-caminhos...mas também é fato que esta certa idiotice serve de um

mascaramento, um esticamento de tempo para quem pretende algo mais com isso, alçar

alguma outra estratégia, rota...]

Sabe-se lá porque sempre houve alguma espécie de ‘porta aberta’ em seu jeito de

ser, sentir, compreender...o ponto final para ela nunca era demasiado final; a definição e

restrição das coisas sempre guardava alguma brecha, talvez por isso ela estivesse sempre

a espiar e também a esperar...

Não havia nenhum dom nisso, nenhuma maravilha. Foi como ela aprendeu a

viver, uma de suas vidas, diga-se de passagem. Era bastante solitária, vivia num mundo

de muitas idéias e idealizações. Sentia-se invadida por sentimentos e sensações que a

convidavam a visualizar novos trajetos, outras trilhas. E isso num constante ver a si como

(15)

ao estilo platônico. Mas veja bem, ela se imaginaria mais ali, próxima da entrada, já

com fagulhas de iluminação atingindo seu corpo e de forma alguma se veria

acorrentada.}

Era assim: não pertencia ao mundo adulto que a rodeava, não pertencia ao mundo

infantil que a rodeava – sempre havia muitas razões para isso, por mais que gostasse de

muitos momentos compartilhados com esses entes dos diferentes mundos, o que

afirmavam para si e para o mundo sempre diferia, para Kiara, numa sensação profunda,

que talvez seja bastante semelhante ao que alguns chamam de essência; ou para outros

uma certa intuição. [O mundo não cabia nela ou ela não cabia no mundo; afinal, “o

mundo inteiro é um ovo”7]

Buscava ser igual, desejava ser como todos - achava mesmo que as pessoas eram

iguais, ou quase, afinal, demonstravam-se e falavam de tudo em termos de tantas certezas

e realidades, de tantas verdades e normas, ela que estava ali, insegura, achando-se

diminuída por não se encaixar. Porém, a tentativa de igualar-se era ainda mais desastrosa.

Algo em si não permitia que se ajustasse bem a nenhum grupo (ou seria algo nos

grupos, ou algo no mundo? E se o quebra-cabeças veio com peças faltando?). Cresceu

assim, enxergando-se estabanada; e mais: uma menina simpática, com um jeitinho

querido até, meio quieta, com raros momentos de brilho, de destaques, mas uma criança

insossa, submissa aos que sabiam mais e eram melhores, pois eram unívocos. {E tem

mesmo quem acredite nisso ou pense assim?!...}

7Com referência a dinamismos, estruturas e movimentos embrionários, pré-individuais; ao ovo como corpo

(16)

Sua submissão era a da prontidão, da prestatividade eficiente e não a de seguir

como ‘cordeiro’ cabisbaixo; aliás, péssima expressão e péssimo hábito esse nosso de nos

explicarmos a partir dos atos dos animais. Nós, a todo custo, tentamos fingir que não

somos animais (também!); ficamos nos convencendo de que somos melhores, os únicos

racionais!

Fugimos do que nos torna parte de um todo, queremos ser únicos (e depois únicos

novamente quando alguns ‘bandos’ humanos não nos servem, e únicos novamente...oras,

únicos somos todos! ‘Racionais’ e ‘irracionais’, mas haveria necessidade de um pódio da

evolução animal – A ESPÉCIE RACIONAL8?!?

Mas era de Kiara que falávamos, e ela estava fazendo isso, mesmo sem saber:

matando a pauladas sua ‘primitividade’, sua ‘espontaneidade’, seu direito a ser animal e

só querer saber de viver, pronto! Ter sim, alguma história evolutiva, com histórias sociais

e políticas; no entanto, guardar em si rastros e traços ancestrais - e gerar outros tantos –

dar passagem a muitos tempos e espaços, muitos modos. Ser um ponto entre tantos outros

(mais um grão de areia) numa rede complexa de organizações e expressões – estar em

conexão com a EXISTÊNCIA; viver em ramificações e cooperações: encontros.

8“553. Abaixo do Animal – Quando o homem relincha ao gargalhar, supera todos os animais com sua

vulgaridade.” Nietzsche, Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.278. Indico site:

(17)

“É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras – e é novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é a minha quarta dimensão”.9

B – Desrazantes

Mania pelo dualismo, binômios, assim parece que nossa sociedade tem se

organizado de uma forma mais hegemônica, em lógicas de oposição – o herói e

anti-herói, o certo e errado e segue-se essa pobreza em preto e branco - branco e preto. Às

vezes, se insinua uma tendência a zebras de listras paralelas que insistem no cabresto.

Uma certa persistência numa divisão do mundo em racional e abstrato/emocional;

divide-se o corpo e a mente também: viramos em cada um de nós dois! O anjinho e o

diabinho que nos falam ao pé do ouvido. Oposições sem fim que nos colocam em guerra,

cada um com um ‘consigo próprio’ que deve fazer a escolha certa, a coisa certa. Melhor

seria se assumíssemos logo que não somos mesmo um, e nem dois, somos vários,

diversos.

“Bom e mau têm pois um primeiro sentido, objetivo, mas relativo e parcial: o que convém á nossa natureza e o que não convém. E, em conseqüência, bom e mau têm um segundo sentido, subjetivo e modal, qualificando dois tipos, dois modos de existência do homem: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição de potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso

(18)

dos encontros, que se contenta em sofrer as conseqüências, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria impotência”10

Daí também surgem ‘personas renomadas’, colunistas, acadêmicos, especialistas

que discorrem sobre o embate entre desejo e culpa.

“Não basta sequer dizer que a consciência gera ilusões: ela é inseparável da tripla ilusão que a constitui, ilusão da finalidade, ilusão da liberdade, ilusão teológica. A consciência é apenas um sonho de olhos abertos.”11

Que a culpa é um mecanismo interessantíssimo de controle e herança de um

moralismo religioso, isso não discuto. Mas desejo não é o mesmo que satisfação de ego,

de prazeres e alívios dos que querem fingir não sentir culpa ou dos que já a

transformaram em algo como a indiferença.

“A culpabilização é uma função da subjetividade capitalística. A raiz das tecnologias capitalísticas de culpabilização consiste em propor sempre uma imagem de referência a partir da qual colocam-se questões tais como: “quem é você?”, “você que ousa ter uma opinião, você fala em nome de quê?”, “o que você vale na escala de valores reconhecidos enquanto tais na sociedade?”, “a que corresponde sua fala?”, “que etiqueta poderia classificar você?” E somos obrigados a assumir a singularidade de nossa própria posição com o máximo de consistência. Só que isso é frequentemente impossível de fazermos sozinhos, pois uma posição implica sempre um agenciamento coletivo. No entanto, à menor vacilação diante dessa exigência de referência, acaba-se caindo automaticamente numa espécie de buraco, que faz com que a gente comece a se indagar: “afinal de contas quem sou eu?” será que sou uma merda?” é como se nosso próprio direito de existência desabasse. E aí se pensa que a melhor coisa que se tem a fazer é calar-se e interiorizar esses valores. Mas quem é que diz isso? Talvez não seja necessariamente o professor, ou o mestre explícito exterior, mas sim algo de nós mesmos, em nós mesmos e que nós mesmos reproduzimos.” 12

10Gilles Deleuze, Espinosa - Filosofia Prática. Tradução Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo:

Editora Escuta, 2002, p. 28-29.

11Idem, p. 26.

12Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 10ª

(19)

Deparei-me com um artigo13 que se alegrava pelo fato dos japoneses não

atribuírem a Deus a tragédia que passaram recentemente, noutro artigo14 o colunista

parabeniza os japoneses que saberão “enfrentar a dureza da vida sem frescuras.” Pois ele confia “nos samurais contra esta bela besta-fera que é a natureza.” Em ambos discorre-se sobre a ignorância de alguns acharem que estamos sendo punidos pela

Natureza e/ou por Deus, e essa mania de culpa; que isso tudo é reflexo da nulidade da

vida, do bando de frustrados que somos porque não realizamos nossos desejos ou os

realizamos demais, tornando a eles e a nós mercadorias baratas de consumo, e por isso

sem graça e sem prazer.

“POTÊNCIA – Um dos pontos fundamentais da Ética consiste em negar de Deus qualquer poder (potestas) análogo ao de um tirano ou mesmo de um príncipe esclarecido. É que Deus não é vontade, mesmo que fosse uma vontade esclarecida por um entendimento legislador. Deus não concebe possíveis no seu entendimento, que realizaria por sua vontade. O entendimento divino não é senão um modo pelo qual Deus não compreende outra coisa senão a sua própria essência e o que dela se segue, a sua vontade é apenas um modo sob o qual todas as conseqüências decorrem da sua essência ou do que ele compreende. Também, ele não tem poder (potestas) mas apenas um potência (potentia) idêntica à sua essência. Por esta potencia, Deus é igualmente causa de todas as coisas que se seguem da sua essência, e causa de si mesmo, isto é, da sua existência tal como é envolvida pela essência (Ética, I, 34).”15

Os referidos artigos abordam discussões e campos temáticos bastante

interessantes e importantes, e devo ressaltar que não fiz jus nesses breves comentários a

tudo que foi debatido por eles; efetuei recortes sobre o que compreendi como

13“O prazer e a culpa” de Contardo Calligaris. Caderno: Ilustrada (E). Jornal Folha de São Paulo,

24/03/2011, p. 14.

14“O delicioso perfume de Emma Bovary” de Luiz Felipe Ponde. Caderno: Ilustrada (E). Jornal Folha de

São Paulo, 21/03/2011, p. 10.

(20)

polarizações que não instigam a multiplicidade e ao respeito à diferença, a uma

compreensão de complexidades que se fazem presentes numa determinada situação.

Por exemplo, um certo jogo de oposições e simplificações reducionistas pode ser

observado no segundo artigo: “Claro que o bloco dos 2012 maníacos pelo fim do mundo vai dizer que a “mãe Terra” (que está mais para Medeia do que pra Gaia) está nos mandando um recado, mas isso é bobagem, a natureza é cega. Não faço parte dos fanáticos “believers da religião verde”. Sou um herege. Os “nature lovers” sabem que câncer é natural?”

À parte com os fanatismos e ‘causismos’ religiosos, moralizantes e culpantes,

num acontecimento como esse do Japão, de catástrofes naturais e diante tudo o mais que

temos visto com os índices de poluição do ar e água, com os degelos, aquecimento

global, mudanças climáticas e por aí segue uma longa e triste lista, será mesmo tão

absurdo nos perguntarmos o que temos a ver com tudo isso?

“Há, efetivamente, em Espinosa, uma filosofia da “vida”: ela consiste precisamente em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes que a orientam contra a vida, vinculados às condições e às ilusões da nossa consciência. A vida está envenenada pelas categorias do Bem e do Mal, de falta e do mérito, do pecado e da remissão. O que perverte a vida é o ódio, inclusive o ódio contra si mesmo, a culpabilidade. Espinosa segue passo a passo o terrível encadeamento das paixões tristes (...). A verdadeira cidade propõe aos cidadãos o amor da liberdade de preferência à esperança das recompensas ou mesmo a segurança dos bens, pois “é aos escravos, não aos homens livres, que damos recompensas por boa conduta”. Espinosa não é daqueles que pensam que uma paixão triste tem algo de bom. Antes de Nietzsche, ele denuncia todas as falsificações da vida: nós não vivemos, mantemos apenas uma aparência de vida, pensamos apenas em evitar a morte e toda a nossa vida é um culto à morte.”16

Não me refiro a assumir culpa e se manter consolado por ser um bom cristão que

sente culpa, ela só evita que se faça o que tem que ser feito, é quase um passa tempo

(21)

fugaz. Mas o mundo em que vivemos e tudo que há nele – pra além de nós e inclusive

conosco – não está tudo envolvido, interligado em relações complexas (o que não é

sinônimo de complicado), de várias maneiras não é um sistema interdependente, ou

melhor, coexistente?!...

“O insuportável era o próprio desmanchar-se e não o perigo dele transformar-se em finalidade. Insuportável nisso tudo era o perigo da quebra das principais engrenagens da sociedade em que vivemos. Para aqueles que assim encararam esses acontecimentos, mudanças só são concebíveis no plano molar, plano das formas e suas representações, ao passo que toda e qualquer mudança de textura molecular é invariavelmente vivida como portadora de um perigo de violência e caos. Confunde-se a preservação da textura de determinada ordem social com a preservação da ordem social enquanto tal, seja qual for sua natureza; e, implicitamente, confunde-se a preservação da textura de um determinado mundo psíquico com a preservação do mundo psíquico enquanto tal. Em outras palavras o que se confunde nesse caso é a preservação de uma determinada figura de si mesmo, com a preservação de sua suposta essência. (...) O medo de perder casas e coisas é nada em face do terror de perder a si mesmo.”17

Não é uma questão de conduta meritória que pretendo abordar, mas nesses

embates e competições dualísticos não estaríamos nos desimplicando de agir? Agirmos

na nossa responsabilidade com a gestação e manutenção da vida se estende num cuidado

com o meio que habitamos, nos inserimos, que modificamos e nos modifica em toda a

extensão de nossa vida. Pensar, com reflexão e intervenção, em nossa relação e trato com

o meio ambiente, com o que temos causado a ele e construído nele e com ele é um ato de

atenção e cuidado a manutenção da vida e de tudo que a nutre. Questão de cooperação,

composição, enfim, integração.

“Mas nós, como seres conscientes, recolhemos apenas os efeitos dessas composições e decomposições: sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e com ele se compõe, quando uma ideia se encontra com a nossa alma e com ela se compõe; inversamente, sentimos tristeza quando um corpo ou uma ideia ameaçam nossa própria coerência. Encontramo-nos numa tal situação que recolhemos apenas “o que acontece” ao nosso corpo, “o que acontece” à nossa alma, quer dizer, o efeito de um corpo sobre o

(22)

nosso, o efeito de uma ideia sobre a nossa. Mas o que é nosso corpo sob a sua própria relação, e nossa alma sob a sua própria relação, e os outros corpos e as outras almas ou ideias sob suas relações respectivas, e as regras segundo as quais todas essas relações se compõem e decompõem – nada sabemos disso tudo na ordem de nosso conhecimento e de nossa consciência. Em suma, as condições em que conhecemos as coisas e tomamos consciência de nós mesmos condenam-nos a ter apenas idéias inadequadas, confusas e mutiladas, efeitos distintos de suas próprias causas. É por isso que não podemos nem sequer pensar que as criancinhas sejam felizes, nem o primeiro homem seja perfeito: ignorantes das causas e das naturezas, reduzidos à consciência do acontecimento, condenados a sofrer efeitos cuja lei lhes escapa, eles são escravos de qualquer coisa, angustiados e infelizes, na medida de sua imperfeição.” 18

Esta questão de mundos cindidos nem de longe é uma problemática específica dos

artigos aqui citados. Há uma pulverização dessa divisão, que também se expressa numa

outra polarização frequentemente realizada que é a da teoria versus a prática. Como se

prática fosse do campo dos afazeres sem fim, de uma movimentação perceptível do que

se convenciona concreto e teoria o que se encontra nos papéis e nas ideias.

Então, novamente somos seres divididos, que quando agem são robôs e quando

pensam são devaneios filosóficos de sonhadores e idealistas.

“Teriam um quê de razão, uns e outros, não fosse a circunstância particular de que determinadas experimentações teóricas e vitais têm na divagação e na digressão sua matéria-prima. Pois na sua textura mais íntima, mesmo quando atreladas a aparatos acadêmicos rigorosos, as experimentações teóricas comportam um quinhão irredutível de ficção. Assim, ao invés de negar a dimensão ficcional do pensamento, mimetizando sistemas insossos e pseudocientíficos, tratou-se aqui de construir brinquedos, ressonâncias caleidoscópicas. (...)Não é este um dos sonhos do pensamento? O de insuflar na vida, a partir dela mesma, uma grande e nova leveza lúdica?”19

Bem, trataremos aqui de questões, conceitos e universos que dizem respeito à vida

sendo experienciada e também pensada, experienciada e também escrita, experienciada e

também teorizada, experienciada e também praticada...e enquanto vivida tantos verbos

mais se efetuando.

18Gilles Deleuze, Espinosa - Filosofia Prática,op.cit., p. 25-26.

19Peter Pál Pelbart, A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago

(23)

“(...) o mais importante problema teatral, o problema de um movimento que atingisse diretamente a alma e que fosse o movimento da alma.”20

As linhas pragmáticas acompanham todo este percurso, e muitas outras linhas

também, portanto, eu te proponho: busquemos uma conversa em que sejamos nós inteiros

o meio de realização desta prosa?!...Tentemos nos conhecer sem ressalvas e ‘a prioris’, só

nos acompanhemos por um tempo.

“Uma ressonância capaz de reforçar as passagens entre autonomia pessoal e vínculo social, entre as condutas do aqui-agora e as de outra épocas, que antecedem nossa existência ou que a ultrapassam.”21

20

Gilles Deleuze, Diferença e Repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado. 2ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 29.

21Denise Bernuzzi de Sant’Anna, “Passagens para condutas éticas na vida cotidiana” in Corpos de

(24)

Perdoando Deus22

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho.

O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue.

Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato?

A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

(25)

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão.

Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala.

Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo.

(26)

“535. Fantasia do medo é aquele perverso, simiesco duende que pula sobre as costas do homem quando ele carrega justamente o fardo mais pesado.”23

1. Sujeição:

Certa ocasião, em uma das aulas da pós, ouvi que “somos obrigados, forçados a

pensar”, que “pensamos por ressonância”, então poderíamos pensar “que sentido em mim

é acionado por ressonância e me leva a pensar?”24

Neste momento buscava resolver um pouco dessa tensão de transformar todo o

campo problemático que me afetava em um tema para a dissertação, e foi então que

começou a se desenhar essa linha de percursos das temáticas e inquietações que me

tomavam.

Pois bem, a problemática que me intrigava desde a graduação era sobre a

sujeição, a docilidade dos corpos. Aproximei-me da obra de Michel Foucault,

especialmente dos conceitos de biopolítica, biopoder e biopotência, buscando

compreender que dinâmicas, jogos e desejos sustentam uma certa apatia social e pessoas

figurando um lugar servil. Sim, o capitalismo contemporâneo captura as subjetividades,

ele vai até nas sutilezas da vida, do cotidiano e insere sua lógica, suas raízes de

competitividade, de apropriação do potencial produtivo e criativo, de consumismo e de

geração da falta.

23Nietzsche, Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres, op.cit., p.274.

24Pensar por ressonância é entrar em variações que o outro e/ou objetos, situações suscitam; é circular pelos

(27)

“A figura do vampiro, evocada por Karl Marx para definir o sistema capitalista, precisaria agora perder os traços de nobreza que a caracterizaram no século XIX: não se trata de sugar apenas o sangue, a força de trabalho dos humanos, mas também de capturar a sua carne, o seu espírito e, ainda, de ser alimentado de todos os seres vivos, sem luxo nem desperdício. O valor do requinte foi substituído pelo da eficácia. Os vampiros querem músculos e não temem os espelhos. A vampirização aburguesou-se e já faz tempo. Tornou-se menos espetacular e mais ordinária, defendo o conforto e não se limita a antigos luxos: não dorme de dia nem tem pela preferência pela noite. Sua insônia é sua força. Está nas praias, nos shoppings, nos laboratórios, nas cidades e nas florestas. Parece enfim plugada a todo ser vivo, como uma larva banal.”25

A questão é que o capitalismo existe, e dessa forma, porque vem sendo

re-inventado e sustentado assim por toda a ‘sociedade globalizada’ e, portanto, não só por

escolhas e decisões de grandes banqueiros, políticos e empresários, mas também por

posturas corriqueiras e comuns aos indivíduos.

“O que faz a força da subjetividade capitalística é que ela se produz tanto em nível dos opressores quanto dos oprimidos. Nisto ela se distingue dos sistemas de classes sociais ou das antigas castas senhoriais e religiosas. O Japão é um bom exemplo, pois é um país onde a subjetividade tende a ser totalmente serva do processo maquínico, onde existe uma paixão pela produção, inclusive entre os trabalhadores mais explorados. Estabelece-se uma espécie de relação de complementaridade e de dependência entre as diferentes categorias sociais, o que acaba desmontando as alianças de classe, as alianças sociais.”26

Não é uma nave-mãe extraterrestre que se apossou da Terra, é algo que também

temos construído e mantido – não trago isso como a culpa da humanidade ou em prol da

justiça do aço, talvez traga mais até no sentido da vergonha, como disse Deleuze:

“No capitalismo só uma coisa é universal, o mercado. Não existe Estado universal, justamente porque existe um mercado universal cujas sedes são os Estados, as Bolsas. Ora, ele não é universalizante, homogeineizante, é uma fantástica fábrica de riqueza e de miséria. Os direitos do homem não nos obrigarão a abençoar as “alegrias” do capitalismo liberal do qual eles participam ativamente. Não há Estado democrático que

25Denise Bernuzzi de Sant’Anna, “Passagens para condutas éticas na vida cotidiana” in Corpos de

Passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea, op.cit., p. 93-94.

(28)

não esteja totalmente comprometido nesta fabricação da miséria humana. A vergonha é não termos nenhum meio seguro para preservar, e principalmente para alçar os devires, inclusive em nós mesmos. Como um grupo se transformará, como recairá na história, eis o que nos impõem um perpétuo “cuidado”. Já não dispomos da imagem de um proletário a quem bastaria tomar consciência.”27

Correndo o risco de ceder ao mau hábito prolixo e de encadeamentos que se

pretendem organizados e até temporais – isto ocorre muito mais para que eu não me

perca completamente numa infinidade de pensamentos e associações, do que por

acreditar numa historicidade das coisas que leve a resultados e compreensões lógicas -,

acredito que abrir dois parênteses aqui pode localizar o campo dessa inquietação com a

sujeição (individual/coletiva).

Trafegam-me inúmeros registros e marcas de experiências militantes. Militância

em movimento estudantil da psicologia, em movimento da luta anti-manicomial e de

participação em movimentos sociais. Aliás, durante a formação em Psicologia, as

experiências voluntárias e de estágios foram quase todas relacionadas a populações, em

alguma instância (mental, social, escolar, gênero), convencionadas ‘vulneráveis’, pessoas

e/ou grupos mais genericamente intitulados ‘marginalizados’ (e deve lhe soar tão

indigesto o peso desses termos ‘politicamente corretos’ quanto soam a mim).

Apresento estas marcas por compreender que ter ocupado este lugar de militante,

ter vestido essa máscara e tomado pra mim, por algum tempo, essa identidade, pode ainda

contaminar, em algum grau e em atravessamentos inesperados e também viciados, minha

visão de jogos e fluxos de saberes e poderes, por ter sofrido um certo contágio e costume

27Gilles Deleuze, Conversações (1972-1990). Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2ª edição,

(29)

de formas de pensar as revoluções, uma tendência a pensar em termos de contradições

e dicotomias, além da inclinação por fala retórica e panfletária.28

“Deleuze não acalenta ideais de um futuro na história onde possa realizar-se uma expressão colectiva e duradoura de uma vida liberada, igualitária ou justa, mas não deixa de apostar nos efeitos “libertadores” de explosões puras de desejo. Passa, deste modo, da REVOLUÇÃO como fim da história, à revolução como linha de transformação, isto é, à afirmação da resistência, em detrimento da revolução concebida como o advento irreversível e radical de uma sociedade finalmente totalizada, não dividida, reconciliada.29

Enfim, toda uma lógica de pensamento, que é um gancho de sustentação de tudo

que mais critica e que, infelizmente, quando menos esperamos, nos impregna e nos

acomete se não estivermos atentos. É uma certa captura do campo paradoxal para um

campo identitário e polarizado.

Num campo paradoxal, que se permita complexo, as diferentes forças estão

presentes e em tensão, é uma coexistência e não um ‘cabo de guerra’, então todas as

forças estão ali e puxando para todos os cantos, fugir para um canto pode ser uma

resolução imediata, mas a tensão permanecerá, de alguma forma, pois as forças estão ali

presentes; é preciso encarar o meio, pois é neste campo em suspenso que se intensifica a

guerra do pensamento, que o intensivo e a arte ganham passagem; o paradoxo – campo

do meio - como um certo motor de produção.

28Ainda que ao meu favor, possa declarar, suspeitamente, que discordava de posicionamentos militantes

mais clássicos, como o pensamento dos iluminados militantes que precisam salvar os não-esclarecidos das garras da opressão do sistema – um sistema pensado apartado de toda e qualquer dinâmica da sociedade, de responsabilidade “deles” que querem o poder. (seriam “eles” os vírus? Os ET’s? Os americanos? A máfia? Quem serão estes grandes outros maquiavélicos e malvados, anti-heróis inescrupulosos?)

29Eduardo Pellejero, “A luta sem futuro de revolução” in Cadernos de Subjetividade, Núcleo de Estudos e

(30)

No entanto, falando da questão da militância, pretendia também falar de uma

certa teimosia do pensamento em querer mudar as situações, em buscar discutir as

catástrofes mundiais, as inconsistências das práticas morais, a apatia das populações, o

comodismo...

E vez por outras a personagem militante vai encarnando o corpo, em diferentes

graus e nuances, tomando o cenário para si, impregnada dessa violência da indignação e,

pior, num certo embate culpados x mocinhos, permitindo que uma lógica moralizante e

do ódio opere, promovendo julgamentos, pois se os culpados não são os políticos e

empresários, são os que assistem a tudo sem nada fazerem, só espetacularizam as

situações. E por aí vai todo um arsenal de críticas e toda uma produção e política do

ressentimento.

“A filosofia é inseparável de uma “crítica”. Acontece que há duas maneiras de criticar. Ou são criticadas as “falsas aplicações”: critica-se a falsa moral, os falsos conhecimentos, as falsas religiões etc.; é deste modo que Kant, por exemplo, concebe a famosa “Crítica”, da qual saem intactos o ideal de conhecimento, a verdadeira moral, a fé. De outra parte, há uma outra família de filósofos, aquela que critica inteiramente a verdadeira moral, a verdadeira fé, o conhecimento ideal, em proveito de outra coisa, em função de uma nova imagem do pensamento. Enquanto se satisfaz em criticar o “falso” não se faz mal a ninguém (a verdadeira crítica é a crítica das verdadeiras formas e não dos falsos conteúdos; não se critica o capitalismo ou o imperialismo ao denunciar seus “erros”). Esta outra família de filósofos é a de Lucrécio, Espinosa, Nietzsche, uma linhagem prodigiosa em filosofia, uma linha quebrada, explosiva, totalmente vulcânica.”30

O segundo parênteses, refere-se a marcas de alguma experiência clínica cultivada.

Nada no sentido de expertise na área – na verdade, com todo o referencial de militância e

30Gilles Deleuze, “Sobre Nietzsche e a imagem do pensamento”. Tradução de Tomaz Tadeu e Sandra

(31)

atuação em Saúde Pública e Coletiva, Psicologia Social e Comunitária e Saúde Mental,

nem era de se imaginar trabalhar com Clínica31.

Depois de algumas vivências entristecedoras nos primeiros anos de faculdade,

com a apresentação de um certo treino e apelo para uma espécie de

‘operária-investigativa de almas e mentes’, a serviço dos resultados de teorias, settings, técnicas e métodos, não importando muito situações e contextos outros; desfrutei da bonita

oportunidade de tecer conexões produtivas e positivas com a Clínica, no último ano de

faculdade, estagiando no núcleo “Clínica da Diferença”32.

Conheci e pratiquei uma clínica que não é ampliada só no sentido extensivo, que

busca relacionar-se em rede, mas também que abarca grupalidades e atravessamentos

coletivos, que é vontade de estabelecer parcerias e encontros alegres, no sentido de

produzir potência, desinvestindo o terapeuta do lugar de soberania do saber,

desmoronando a pretensa neutralidade, assim como a identidade individualizada.

Uma clínica que se pretenda ética, pois abandona a moral, verdade e preconceitos

para pensar a vida e modos de existência que potencializem os afetos, as relações e em

termos de singularidade e multiplicidade; estética, já que cria, inventa-se no

espaço-tempo atual e desloca-se intensivamente, multiplicando os sentidos; política, visto que se

31Não imaginava trabalhar com Clínica nesse sentido de atendimento individual, num consultório, com

acompanhamento contínuo. Ultrapassando a questão da dualidade e da mera forma, a experiência clínica foi uma aposta na possibilidade de uma clínica que carrega dispositivos de uma 'clínica tradicional' mas que também é coletiva, é política e inserida em contextos, inclusive o social e econômico, isso também ali, entre quatro paredes e duas pessoas.

32Estágio coordenado pela professora Marília Muylaert, oferecido no CPPA da UNESP-Assis. Vale

(32)

implica com a vida, com as forças presentes, que afirma a heterogeneidade, o coletivo

e impessoal, que se lança em relação.

“De fato, o respeito às relações aparece como uma questão de sobrevivência individual e coletiva. Talvez por isso mesmo o respeito à vida não seja simplesmente o objeto final, mas muito mais, o modo de existência dos seres, durante toda a sua duração. Em suma, entende-se por ética, o estabelecimento de relações nas quais, no lugar de dominação, se exercem composições entre os seres; estas não são nem adequações harmoniosas entre diferenças, nem fusões totalitárias fadadas a tornar todos os seres similares. Trata-se de estabelecer uma composição na qual os seres envolvidos se mantêm singulares, diferentes, do começo ao fim da relação: a composição entre eles realça tais diferenças sem, contudo, degradar qualquer uma delas em proveito de outras.”33

Foram estes referenciais e marcas que recheavam a caixa de ferramentas que levei

para a Clínica após graduada. Durante um ano e meio povoaram-me diferentes

experiências clínicas neste sentido de psicoterapia individual34, tanto em consultório

particular, quanto em clínica de convênios com planos de saúde (é um horror! O

‘mercadão’ do acolhimento e atendimento do ‘sofrimento psíquico’) e num Plantão

Psicológico35.

33Denise Bernuzzi de Sant’Anna, “Passagens para condutas éticas na vida cotidiana” in Corpos de

Passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea, op.cit., p. 95. Abordando o conceito de ética para Gilbert Simondon, apresentando a questão do respeito nas relações e das possibilidades de composições.

34Acho bastante interessante o vigor com que novas ‘configurações’ e contornos têm atravessado o que se

convencionou chamar de prática de atendimento psicológico individual. Ela possibilita um amplo campo de compartilhamentos e composições, e pelo fato de ser individual necessariamente não deixa de trabalhar numa perspectiva do coletivo. No entanto, há iniciativas e experiências que têm privilegiado investir esse potencial clínico em dimensões coletivas, de outras formas e com outras metodologias, em espaços como escolas, associações de cultura e lazer, promoção de grupos e atividades artísticas, diluindo e /ou expandindo todo o potencial nas práticas e convívios da vida (sem exclusivismo da psicologia ou do campo psicoterapêutico como ele tradicionalmente se configurou).

35Atendimento em Plantão Psicológico é um projeto do LEFE – Laboratório de Estudos em Fenomenologia

(33)

Uma das coisas que chamava bastante atenção, nesse universo um tanto diverso

de pacientes (diverso em termos de região de domicilio, de poder aquisitivo, de

constituição familiar, de faixa etária, etc) era uma certa crença na impotência, uma busca

por quem desejasse por eles, uma procura por fórmulas e receitas – pela medicação de

uma vida que buscava se convencer que nada podia a não ser anestesiar-se e seguir

reproduzindo uma rotina, um script.

Falando sobre a produção de um amor ao ego e das consequências desta produção

no século XX, dentre elas uma banalização desse amor, que se integra a mídia, inclusive,

Denise Sant’Anna (2001) traça um certo panorama desta guerra “de seres humanos

buscando uma fidelidade absoluta a eles mesmos”:

“Pois cada um é coagido a ser fiel a si mesmo na medida em que se distancia geográfica e sensivelmente do outro; cada um com orelhas voltadas para dentro de si e bocas que por isso mesmo são conduzidas à emissão de gritos, esperando atrair a atenção do outro. Um deserto repleto de corpos chamados a responder incessantemente aos apelos do prazer individual, defensores tenazes da necessidade de “expressarem livremente seus sentimentos” e, portanto, sedentos de público, ouvidos e atenção; sobrecarregados de responsabilidades, dúvidas e receios. Uma situação aparentemente sem saída.(...)no lugar de fortalecer o afeto por si, tornou-se miserável. Pois, em sua fabricação industrial, o cultivo de si foi separado das responsabilidades para com os outros. Por vezes esta fabricação chegou a estabelecer uma oposição entre o bem-estar pessoal e o do coletivo, como se para estar bem fosse imprescindível desconectar-se do que se passa no meio em que se vive.”.36

Maurizio Lazzarato (2010)37 fala de duas modalidades de produção e exploração

da subjetividade, a sujeição social e a servidão maquínica. Na sujeição social produz-se

um sujeito “empresário de si”, assumindo os riscos, créditos e culpas por suas escolhas e

36Denise Bernuzzi de Sant’Anna, “Corpos-Passagens” in Corpos de Passagem: ensaios sobre a

subjetividade contemporânea, op.cit., p. 118.

37Maurizio Lazzarato, “Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo” in Cadernos de Subjetividade,

(34)

investimentos, como se fossem completamente individualizadas; ele é um “sujeito

individuado”:

“A sujeição social, ao nos prover de uma subjetividade, ao nos assinalar uma identidade, um sexo, uma profissão, uma nacionalidade ,etc., produz e distribui papéis e lugares. Ela constitui uma armadilha significante e representativa à qual ninguém escapa.”38

Já na servidão maquínica o que se apresenta é o dispositivo “homens-máquinas”,

no qual homem e máquina são peças do processo. Não há mais um sujeito individuado,

personalizado no ‘eu’, mas o homem como um componente dos agenciamentos e dos

equipamentos:

“Na servidão, o indivíduo não somente “faz peça com o agenciamento” como é também feito em pedaços por ele: os componentes de sua subjetividade (inteligência, afetos, sensações, cognição, memória, força física) não são mais unificados no “eu”, não tem mais o sujeito individuado como referente. Inteligência, afetos, sensações, cognição, memória, força física constituem doravante componentes que não encontram mais sua síntese na pessoa, mas no agenciamento ou no processo (empresa, mídia, serviço público, escola, etc.) .”39

Neste caso, a servidão maquínica inova, pois subjuga a partir dos dispositivos e

procedimentos, não é uma forma de governar a subjetividade, como na sujeição, pois não

há subjetividade em termos de diferenciação entre sujeito e objeto. Ela ultrapassa a

relação de trabalho convencional, ela inova a maneira de exercer dominação:

“Mas, na realidade, o que o capital compra não é somente tempo de presença da força de trabalho em uma empresa, em uma instituição, em uma função social, ou ainda o tempo disponível do desempregado ou do telespectador. O que ele compra em primeiro lugar é o direito de poder explorar um agenciamento “complexo”(...). A servidão libera assim potências de produção incomensuráveis com as emprego e do trabalho humano.”40

(35)

O capitalismo se apropria do potencial produtivo, dos sonhos, do intelecto, do

desejo do ‘indivíduo’, ele desliza em fluxos, expande-se em redes, opera processos de

subjetivação e dessubjetivação, e por isso uma máquina revolucionária que se oponha em

embate direto ao capitalismo acaba por ser capturada, tem suas forças e armas acopladas

a ele, como se fosse engolida, usurpada.

“Quase tudo o que fazemos pode ter se tornado trabalho – as culturas de voluntarismo e empreendedorismo significam que nossas amizades se tornaram relações de trabalho, o que quer dizer que um sentido de abstração paira sobre as coisas que costumávamos fazer com mais abertura. Ao imitar a vida, o trabalho nos engana, orientando tudo o que fazemos a ficar em torno de projetos e de produtividade. Agora temos saudades da vida, e queremos saber como retornar ao trabalho e à vida de uma forma diferente.”41

Manuela Zechner (2010) desenvolve discussão sobre a relação entre subjetividade

e poder abordando o fato de não sermos sujeitos neutros nas relações de poder, pois toda

ação constitui e é constituída, ao mesmo tempo, por subjetividade e poder; nossa

liberdade de ação nos implica nas relações de poder, portanto não há como se opor ou

escapar dele como se fosse algo localizado e externo a qualquer indivíduo.

“Compreenda-se, as forças de repressão sempre tiveram necessidade de EUS atribuíveis, de indivíduos determinados, sobre os quais elas pudessem se exercer. Quando nos tornamos um pouco líquidos, quando nos furtamos à atribuição do EU, quando não há mais homem sobre o qual Deus possa exercer seu rigor, ou pelo qual ele possa ser substituído, então a polícia perde a cabeça. Isso não é algo teórico.”42

E se as relações de poder não só nos atravessam como nos constituem, operar

transversalmente ao poder, diferenciando-nos, desindividualizando-nos, mostra-se como

estratégia, como linha de fuga, que combate o controle sobre o ‘eu’; essa

‘desidentificação’ é experimentada em vários níveis (social, psíquico, físico, coletivo).

41Manuela Zechner, “Subjetividade e coletividade: problemas de relação” in Cadernos de Subjetividade,

op.cit., p. 141.

42Gilles Deleuze, “Sobre Nietzsche e a imagem do pensamento”. Tradução de Tomaz Tadeu e Sandra

(36)

Aponta-se para um certo desapego, desapego do modelo ‘eu’, desapego às instituições

e aos instituídos padronizados.

“Foucault sugere que uma luta contra a subjetivação-enquanto-sujeição deve ser realizada através da invenção de práticas e técnicas de uma espécie de abolição de si (’déprise de soi’). Essas técnicas, porém, não existem como tais – são instâncias singulares de invenção que surgem, em dado momento, para afirmar a diferença. Desindividualização é uma prática local que combate tudo o que liga o indivíduo a si mesmo (...)”43

Numa mesma perspectiva, aponta Lazzarato (2010):

“A ação política se coloca, então, de maneira nova, pois deve partir do modo em que as servidões e os assujeitamentos trabalham o desejo, isto é, implicam a subjetividade. A ação política deve operar uma dessubjetivação e produzir, ao mesmo tempo, uma nova subjetivação, recusar a injunção de ocupar os lugares e os papéis dentro da divisão social do trabalho, e construir, problematizar e reconfigurar o agenciamento maquínico, isto é, um mundo e seus possíveis.”44

Sendo assim, dispondo-se transversalmente ao poder, aliando-se a alguns pontos e

linhas de poder, deslizando em suas estratégias, podemos operar liberações, ou melhor,

deixar que elas se operem.

43Manuela Zechner, “Subjetividade e coletividade: problemas de relação” in Cadernos de Subjetividade,

op.cit., p. 135.

44Maurizio Lazzarato, “Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo” in Cadernos de Subjetividade,

(37)

Amanhecidos45

Os homens do coração amanhecido Emanam uma luz do peito

E por ela se deixam guiar. Os seus passos são constantes Mesmo assim, caem

Mas quando caem, se levantam. Em algumas ocasiões

São maltrapilhos; Em outras, usam gravata. Enfrentam filas de ônibus Ou andam de carro.

Os homens do coração amanhecido São calmos e não elevam a voz: Mais escutam do que falam. E agem, anônimos.

Às vezes,

Pedem com os olhos. Outras vezes,

Com os olhos, se dão. Choram,

Sonham E amam.

Sobretudo, amam.

Os homens do coração amanhecido Andam pelas ruas

Mas ninguém os vê.

Referências

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