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Memórias indígenas e História Pública sobre os índios: historiografia e emergência étnica no Nordeste contemporâneo.

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no Nordeste contemporâneo.

CARLOS FERNANDO DOS SANTOS JÚNIOR .

A História oficial do Brasil, melhor dizendo, a memória pública sobre a História do Brasil favoreceu a construção da imagem dos índios e dos negros como coparticipantes na formação social do povo brasileiro. Esta memória situa a participação dos índios e dos negros como colaboradores, cuja cooperação foi situada no passado distante do tempo presente. Um passado relacionado aos períodos colonial e imperial, nos quais a escravidão de africanos e indígenas predominava junto com os processos de ocidentalização do continente americano. No Século XIX, outra memória oficial no Brasil se desenvolveu, a gradativa assimilação e mestiçagem de índios e negros a sociedade nacional e, concomitantemente, o "desaparecimento" das identidades africanas e indígenas.

No entanto, contra as estimativas do desaparecimento dessas identidades, no Século XX, os povos indígenas e comunidades quilombolas passaram a afirmar publicamente suas identidades por meio de suas expressões socioculturais, suas religiosidades e suas memórias coletivas sobre o passado/origem/ancestralidade. Destacamos o uso das memórias que esses sujeitos fazem para legitimar a sua origem/ancestralidade e exigir do Estado políticas de assistência e da reparação de direitos, principalmente o direito a homologação dos territórios tradicionais.

Dessa forma, levantamos um problema: como as comunidades indígenas utilizam, no tempo presente, as suas memórias, a História e a historiografia para afirmação de suas identidades e conquista de direitos no Brasil? A questão central em debate são os usos que os povos

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indígenas fazem de suas memórias coletivas e das memórias públicas sobre eles, construídas pela historiografia brasileira, para o acionamento de suas identidades.

O presente artigo foca-se em estabelecer uma relação entre as memórias dos índios no Nordeste, especialmente os povos indígenas em Pernambuco, e a memória produzida pela historiografia, bem como o uso que os indígenas fazem dessas duas memórias nos seus projetos políticos de reconhecimento social e acesso a terra. Em especial, como o Povo Pankará e o Povo Atikum acionam as suas memórias e a História indígena em Pernambuco para afirmação pública de suas identidades, na luta pelo reconhecimento político e o direito a manutenção de seus territórios tradicionais.

A memória deve ser entendida "como a presença do passado no presente, passou, ela própria a ser objeto do conhecimento historiográfico" (ABREU, MATTOS e DANTAS, 2009, p. 196). Assim, a memória coletiva e outras memórias são objetos de estudo para a História, na medida em que os historiadores/as estejam atentos às analises que procederem sobre as representações do passado impostas pelas memórias e o uso de outras fontes para compreensão do passado representado.

Quanto aos povos indígenas contemporâneos no Nordeste e em Pernambuco, ao fazerem uso das suas memórias e da história para afirmação de sua identidade, eles estão politicamente afirmando que possuem uma identidade diferenciada. Conforme Barth, o acionamento da identidade étnica é uma resposta atualizada a "uma forma particular de organização estatal e às oportunidades políticas criadas por ela" (BARTH, 2004, p. 25).

Então, em situações de conflitos com outros grupos sociais, os indígenas acionam racionalmente a sua etnicidade para contrastar dentro de um contexto sociopolítico. Nesse momento, os indígenas criam estratégias de manutenção da sua identidade étnica, reelaborando suas tradições e sua relação com o passado, e selecionando alguns itens

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particulares da cultura como ícones dessa identidade em contraste (Ibidem, p.24). Esses dados nos levam a noção de "identidade contrastiva" pensada por Roberto Cardoso de Oliveira, pois quando um grupo afirma sua identidade é por meio da oposição a outro (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976 apud MENDONÇA, 2003, p.12).

Para Michael Pollak (1992, p.202), a memória é um fenômeno construído social e individualmente, uma parte da identidade do individuo. E utilizando o conceito de "memória coletiva" de Maurice Halbwachs, ele compreendeu que este tipo de memória é seletiva e tem a função de reforçar a coesão social de um grupo por meio da adesão afetiva e a capacidade de negociação para conciliar com as memórias individuais (POLLAK, 1989, p.3).

Ao relacionarmos a produção científica contemporânea sobre a história indígena em Pernambuco com as memórias dos grupos indígenas acerca de seu passado, desenvolvemos três questões que ajudam na compreensão da experiência histórica vivenciada pelos povos indígenas em Pernambuco: quais eram as populações indígenas habitantes na Região do Sertão de Pernambuco e o que estava ocorrendo com elas entre os Séculos XVIII-XIX? Como foram construídos os argumentos de desaparecimento e miscigenação dos índios, e a expropriação das terras indígenas na segunda metade do Século XIX? Quais foram as circunstancias da emergência dos povos indígenas no Século XX e suas estratégias políticas para o reconhecimento de sua identidade?

Conforme conceituado por Aleida Assmann (2011, p.147-155), há um imbricamento entre o que ela chamou de memória funcional (serve de referência a um grupo e vinculada a valores e a orientação para o futuro) e a memória cumulativa (as ciências históricas). Pois "uma memória cumulativa desvinculada da memória funcional decai à condição de fantasmagoria, e uma memória funcional desvinculada da memória cumulativa decai à condição de uma massa de informações sem significado" (ASSMANN, loc. cit.).

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Apontamos as quatro memórias acionada pelos índios em Pernambuco para afirmação de sua identidade:

1) a memória dos seus antepassados/ancestrais míticos que viveram nas serras (brejos de altitude) que pontuam na geografia do Agreste e Sertão do Estado, nas ilhas e margens do Rio São Francisco e seus afluentes nos Século XVIII e XIX;

2) a memória da extinção dos aldeamentos e a expropriação da terras indígenas ocorrida no final do Século XIX, memória esta que durante o processo de emergência étnica, ocorrida no Século XX, foi acionada pelos povos indígenas como elemento de "identidade contrastiva" e mobilização para retomada de seus territórios tradicionais;

3) a memória da identidade cabocla como identidade indígena;

4) a memória da emergência dos índios em Pernambuco no Século XX, de sua mobilização para o reconhecimento oficial e assistência do Governo Federal no que toca a demarcação e homologação das terras indígenas.

Essas memórias são indicativas do processo histórico da colonização vivenciado pelos povos indígenas no Nordeste. Um processo chamado de territorialização, no qual diante das imposições culturais e político-administrativas do Estado, as comunidades indígenas reformularam suas identidades, "instituindo mecanismo de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso)" (OLIVEIRA, 2004, p.24).

A partir do conceito de territorialização e por meio das memórias dos índios e da historiografia podemos traçar a dinâmica histórica dos índios de Pernambuco entre os Séculos XVIII e XX. Uma dinâmica marcada pela descontinuidade/desaparecimento dos índios no final do Século XIX, como citado nos documentos oficiais redigidos pelas autoridades do Estado e pelos intelectuais, e a emergência e atuação política indígena no Século XX.

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A Região do Rio São Francisco entre os Séculos XVII e XVIII experimentou a interiorização da sociedade colonial através da instalação das fazendas de criação de gado e de pequenos núcleos urbanos. Migraram para Região colonos pobres que não conseguiram enriquecer nos centros urbanos litorâneos, criadores de gado, religiosos e índios aldeados no litoral para o povoamento da Região (SILVA, K., 2003). Concomitantemente, a incorporação do Sertão nordestino a lógica colonial ocorreram conflitos entre os agentes colonizadores com as populações autóctones da Região, denominadas pelas fontes da época como Tapuias. Estes conflitos foram denominados pela historiografia brasileira de "A Guerra dos Bárbaros" (PUNTONI, 2002).

No período Colonial ocorreram duas experiências civilizatórias com os índios na Região do São Francisco, na Capitania de Pernambuco. A primeira foi a instalação de missões religiosas nas ilhas do Rio São Francisco, nas quais ordens religiosas (Jesuítas, Franciscanos, Carmelitas, Beneditinos e os Oratorianos) alternadamente cuidaram da administração temporal (dos bens e do trabalho indígena) e espiritual (catequização) dos índios aldeados (POMPA, 2003).

A segunda experiência ocorreu na segunda metade do Século XVIII, quando o Estado português por meio do Diretório Pombalino transferiu a administração e civilização dos índios para as mãos de funcionários régios, em detrimento dos padres missionários. Transformou os aldeamentos missionários em vilas e lugares, promoveu os casamentos entre índios e brancos como estratégia de assimilação (ALMEIDA, R., 1997; AZEVEDO, 2004; SALDANHA, 2002).

No início do Século XIX, o Sertão de Pernambuco era habitado pelos etnônimos Bancararus, Tuxá, Rodelas e Tamaqueus nas margens do Rio São Francisco, e os Oê, Chocó, Pipipã e Umã no Vale do Rio Pajeú território que tem seus limites ao Norte com o Ceará e Paraíba e ao

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Sul com São Francisco, nas proximidades dos atuais municípios de Cabrobó e Tacaratu no Estado de Pernambuco (COSTA,1987, p. 165-171). A Serra Negra também servia de refúgio para os grupos que se deslocavam entre o Rio Moxotó, as Ilhas do São Francisco e serras do Vale Pajeú. Essas populações vivenciaram conflitos com os criadores de gados na disputa pela Serra Negra que durante o período serviu de refúgio dos índios nos períodos das secas e era o lugar de resistência contra as investidas dos brancos (ROSA, 1988).

Nesse período ocorreu outra experiência civilizatória, os Capuchinhos Italianos Frei Vital de Frescarollo e Frei Ângelo Maurício de Nisa atuaram na pacificação dos “gentios” Pipipã, Chocó, Oê (Vouê) e Omaris (Umã), considerados índios "dispersos" e "bravos" que habitavam a Serra Negra e as ribeiras do São Francisco, Pajeú e Moxotó. Em 1801, Frescarollo foi enviado a região pelo Governo da Capitania de Pernambuco para catequizar os índios Umã e os Oê aldeados na Aldeia do Olho d'Água da Gameleira que logo em seguida foi transformada na Missão do Olho d'Água da Gameleira1.

No ano de 1802, o religioso fundou a Aldeia do Jacaré para os índios Pipipã da região do Moxotó. Segundo Frescarollo, no dia primeiro de agosto do ano de 1802 após a Missa, avisados pelos moradores da chegada do religioso, dois índios pipipães foram pedir para serem aldeados e batizados. Informaram que os demais de sua gente estava no mato, esperando pelo missionário no lugar chamado Jacaré (FRESCAROLLO, 1883, p.107-111). Em 1804, ele notificou o seu sucesso na pacificação e aldeamento dos índios Oê, Umã, Pipipã e Chocó.

No total, o missionário aldeou 265 "gentios brabos" e afirmou que não havia mais deles soltos nos matos que pudessem “desgostar os moradores e a Sua Alteza Real". Mas, o religioso estava cansado e não possuía mais saúde para prosseguir com o trabalho missionário. Em seu

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lugar, o Frei Ângelo Maurício de Nisa assumiu o comando da Missão do Jacaré e a Missão da Gameleira. Porém o Frade encontrou dificuldades no andamento de seu trabalho, em virtude da seca e os ataques dos criadores de gado as aldeias que, consequentemente, provocou a fuga dos índios das missões e novos ataques dos indígenas as fazendas.

Para pôr fim a essa situação, em 1806, o Governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, ordenou a Francisco Barbosa Nogueira prender os índios "rebeldes", em número de sete ou oito, a fim de "evitarem suas as suas terríveis vinganças, como para que não desencaminhem outros, que arrastem atrás de si para os mattos" e a transferir a Aldeia do Jacaré para o lugar mais oportuno2. Nesse ano, os índios da Gameleira e da Serra Negra foram autorizados pelo Governo de Pernambuco a criar uma nova aldeia no lugar chamado de Baixa Verde aos cuidados do Frei Ângelo. Em outubro de 1812, foi concedida meia légua de terra em quadra para os índios na nova Missão da Baixa Verde3 na Serra Grande do Pajeú, na qual Frei Ângelo fundou a Missão de Nossa Senhora das Dores da Baixa Verde4 e onde permaneceu na direção da missão até o seu falecimento em 1824 (SILVA e FONTOURA, 2005).

Na história oral dos Atikum e Pankará, eles acreditam que o seus ancestrais míticos foram oriundos da Serra Negra. Para os Pankará o seu ancestral foi o “Velho Anjucá”, filho do índio Umã e irmão de “Atikum”, o ancestral dos Atikum-Umã (MENDONÇA, 2003). Nesse ponto, esses dois povos constroem uma linha parentesco baseada num ancestral místico em comum, o etnônimo Umã, e no local de origem desse ancestral, a Serra Negra. Tal parentesco foi acionado por eles no Século XX durante o seu processo de etnogênese, pois permitiu maior coesão social entre eles e uma aliança política nos seus processos de reconhecimento.

2APEJE, Ofícios do Governo (OG-11). Ofício. Recife, 04/08/1806, fl. 174.

3 Atualmente, o sítio da antiga Missão da Baixa Verde deu origem ao Município de Triunfo - PE.

4MJPE, Comarca de Flores Cx. 381 ROR 05/03/1814: CARTA. Registro da Carta de Sesmaria de meia légua de

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Essas populações residem nas Serras Umã (os Atikum), Cacaria e Arapuá (os Pankará). As citadas serras estão localizadas no município de Carnaubeira da Penha/PE, no Sertão do Pajeú. No Século XIX, essas serras abrigaram diversos grupos indígenas, entre eles o grupo Umã. Outras informações apontam que as serras apresentavam uma ocupação indígena antiga e contínua. Na Serra da Cacaria foi encontrada uma grande concentração de fragmentos de cerâmica e artefatos de pedra indicando ocupação humana no local desde o período Pré-histórico (MENDONÇA, 2003). E também, na memória oral tanto dos Atikum quanto dos Pankará remetem a presença de negros na Serra do Arapuá (GRÜNEWALD, 1993 e MENDONÇA, 2003).

Na segunda metade do Século XIX, ocorreram a usurpação das terras indígenas e a extinção dos aldeamentos no Nordeste, legitimadas pela Lei de Terras de 1850 que transformou as terras indígenas não ocupadas em devolutas e a afirmação do desparecimento dos índios nos aldeamentos. Em 1873, a Presidência da Província de Pernambuco nomeou uma Comissão para averiguar o estado das sete aldeias5. A Comissão constatou que muitas delas se encontravam em péssimo estado, pela má administração dos diretores das aldeias – por não promoverem a instrução civil e religiosa, deixando os índios viverem “na maior imoralidade” – e a ocupação ilegal das terras das aldeias por não índios, que não pagavam o seu arrendamento a Diretoria dos Índios (MELO, 1825/1975, p.340).

A Comissão aconselhou a Presidência da Província que não extinguisse totalmente as aldeias, pois ainda existia um grande número de índios e seria prejudicial deixá-los no abandono. Mas que promovesse uma reorganização na administração propondo: a extinção de cinco aldeias (Barreiros, Riacho do Mato, Ipanema, Brejo dos Padres e Santa Maria); a demarcação das terras das aldeias extintas e reivindicação das usurpadas; a distribuição de lotes de terras de

5 Riacho do Mato, Barreiros, Cimbres, Ipanema, Brejo dos padres, Assunção e Santa Maria (MELO, 1825/1975,

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22.500 braças quadradas para cada família dos índios; e as aldeias de Cimbres e Assunção fossem conservadas e organizadas sob um regime de colônia para concentrar os índios das aldeias extintas, que não receberam terras do governo (Ibidem, p.350-351).

No final do Século XIX, os índios no Nordeste foram transformados em caboclos. Pois, naquele período, os registros administrativos estatais relatando o "desaparecimento" das populações indígenas nas províncias do Nordeste, corroboraram para o silêncio oficial e intencional sobre os povos indígenas na Região, ratificando a ideia de assimilação dos índios a sociedade brasileira. Os índios foram "confundidos com a massa da população" – uma frase repetidamente citada pelas autoridades – transformados em "caboclos", pelos intelectuais do Século XX, por possuírem costumes exóticos e "manifestações folclóricas em vias de extinção" (SILVA, E., 2004, p.132).

No inicio do Século XX, os índios no Nordeste vivenciaram sua emergência étnica. Na década de 1920, foram fundados os Postos Indígenas na Região pelo Serviço de Proteção dos Índios (SPI). Marcando o reconhecimento oficial por parte dos governos Federal e Estadual da existência de populações indígenas ou de “remanescentes” dessas populações, em virtude da história das missões e aldeamentos no Sertão. Nas décadas de 1920 a 1950, o Governo do Estado de Pernambuco reconheceu formalmente grupos de “remanescentes” no seu território, o que significou a doação de terras para o assentamento desses grupos.

Durante esse período, foram fundados Postos Indígenas no Estado de Pernambuco e em outras áreas no Nordeste. Em Pernambuco, foram fundados postos para os Fulni-ô em Águas Belas (1925), Pankararu em Brejo dos Padres (1937), Atikum Serra do Umã/Floresta (1949), Kambiwá em Buíque (1954) e Xukuru em Pesqueira (1954). Para esse reconhecimento os governos Federal e Estadual exigiram expressões culturais que caracterizassem o modo de vida dos índios e de seus “remanescentes”, e uma organização política centrada nas figuras

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das lideranças (Cacique, Pajé e Conselheiro), como elementos definidores da indianidade (OLIVEIRA, 2004, p.27).

Durante esse processo de emergência, os índios em Pernambuco contaram com uma rede de solidariedade com índios e não índios que atuaram como mediadores do reconhecimento oficial diante o SPI. Os Fulni-ô (1925) tiveram como seus mediadores o Padre Alfredo Dâmaso e o Antropólogo Estevão Pinto, e estes dois auxiliaram também os Pankararu (1937). Em seguida, os Pankararu auxiliaram os Kambiwá na Serra Negra (Final da década de 1930) e os Tuxá de Rodelas/BA (1942). Mais tarde, os próprios Tuxá seriam a ponte entre outros grupos e o órgão indigenista, como no caso dos Truká, localizados na ilha da Assunção na década de 1940 (ARRUTI, 1995, p.26-28).

A exigência feita pelo SPI para o reconhecimento dos índios no Nordeste foi a dança do Toré. Era uma exigência de caráter burocrático do próprio órgão. Os seus funcionários estavam acostumados a identificar aqueles índios como caboclos, e não possuíam formação antropológica para entender a dinamicidade e flexibilidade da identidade indígena na Região. Então, os agentes do SPI simplificaram, instituíram o Toré como o critério fixo de observação direta e imediata de fácil reconhecimento do índio (Ibidem, p.41).

Assim, só seriam reconhecidos os grupos que soubessem dançar o Toré da maneira exigida pelo órgão. Para as populações que não conheciam ou não dançavam o Toré da maneira especificada pelo SPI, elas contavam com a ajuda dos povos reconhecidos que lhes ensinavam como deveriam dançar o Toré exigido pela instituição. Este dado revela a existência de uma rede de solidariedade entre os indígenas baseada na crença coletiva de partilharem uma ancestralidade, parentesco e tradições religiosas em comum.

Esse parentesco é sempre lembrado pelos índios quando eles utilizam a metáfora "Tronco Velho e Pontas de Rama", na qual os “troncos velhos” corresponderiam aos ancestrais

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comuns (reais ou imaginários) ligados a um tempo histórico homogeneizado e de religiosidade indígena, dos quais as atuais etnias no Nordeste se consideram descendentes, ou seja, as “pontas da rama” (ARRUTI, 1995, p.33-34). A metáfora "tronco velho e ponta de rama" permitiu a construção de um laço identidade e parentesco entre os grupos indígenas, muito utilizado pelos índios durante a ação do SPI, para o reconhecimento das identidades indígenas em Pernambuco.

A imagem do "Caboclo" foi reelaborada como elemento de afirmação de etnicidade dos índios em Pernambuco na atualidade. A terminologia foi criada no período colonial para designar os índios da "língua geral" aldeados nas missões litorâneas e transferidos para o Sertão durante a "Guerra dos Bárbaros" (SANTOS JUNIOR, 2010, p.26). No Século XIX, o termo foi utilizado para caracterizar os descendentes dos índios como mestiço sem direito a terra (FERREIRA, 2006). No Século XX, os índios ressignificaram a palavra para designar o índio contemporâneo e também pressionar as autoridades o reconhecimento oficial enquanto grupos étnicos diferenciados (SILVA, E,. 2004, p.132).

A emergência dos índios Atikum da Serra do Umã ocorreu na década de 1940, através da articulação de alianças com outras populações indígenas no Sertão do Rio São Francisco-Tuxá (Rodelas-BA), Serra Negra-PE (atualmente os Kambiwá) e Pankararu (Brejo dos Padres em Tacaratu-PE) - os Atikum foram informados sobre a criação de Postos Indígenas e o reconhecimento étnico oficial do Estado pelo SPI. E umas das exigências deste órgão para o reconhecimento era a dança do Toré. A partir dessa informação ocorreu uma organização do povo em torno do Toré, chamando alguns Tuxá de Rodelas para ensinar o ritual, a fim de esperar uma equipe (do SPI) para o reconhecimento na área (GRÜNEWALD, 2004, p.149-152).

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Em 1946, o Diretor da Inspetoria Regional nº 4, Raimundo Dantas Carneiro, enviou para a Serra do Umã o Inspetor Especial Tubal Fialho Viana que constatou a existência de 1.800

descendentes dos índios Aticuns que apesar de mesclados com os civilizados conservaram os

costumes e festas religiosas com todos os rituais de seus primitivos6e relatou os conflitos por

terras entre estes índios com os fazendeiros e proprietários de terras do município de Floresta-PE. Em virtude desse parecer, em 1949, o SPI reconheceu o Povo Atikum e instalou um Posto Indígena na Serra do Umã.

Nesse processo de reconhecimento, os Atikum foram auxiliados pelos índios Tuxá (Rodelas-BA) e os índios das Serras da Cacaria e do Arapuá (serras próximas a Serra Umã) que ensinaram a dançar o Toré exigido pelo SPI. Os responsáveis de levar o Toré para a Serra Umã foram Luiz Antônio dos Santos (Luiz Limeira) da Serra da Cacaria e os membros das famílias Amanso, Rosa e Cacheado, moradores da Serra do Arapuá (MENDONÇA, 2003). A partir desse reconhecimento e da criação do Posto Atikum, os índios da Serra da Cacaria e da Serra do Arapuá também reivindicaram o seu reconhecimento e o direito a receber a assistência do órgão indigenista estatal. Inicialmente, estes índios desejavam ser assistidos pelo Posto Atikum e que os sítios existentes na Cacaria e Arapuá fossem incorporados à administração do dito posto. Mas essa solicitação não foi atendida de imediato pela falta de capacidade política do SPI em negociar com o Governo de Pernambuco e os conflitos agrários no município de Floresta, que continuariam por muitas décadas, inviabilizando qualquer nova tentativa de reconhecimento de terras aos índios naqueles locais.

Também ocorreram conflitos entre os Atikum e os índios das Serras da Cacaria e Arapuá por causa dos serviços de assistências médica e das políticas indigenistas do Governo Federal entre os anos de 1950 e 1990. Em 1999, os índios da Serra do Arapuá se mobilizaram para

6 Inspetorias Regionais. IR 4 Nordeste. Microfilme 152. RELATÓRIO, Recife 21/06/1946. Instalação de um

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pedir o seu reconhecimento pelas lideranças da Serra do Umã enquanto grupo pertencente a família Atikum, no entanto, uma ação de pouco sucesso7 (MENDONÇA. 2003, p.41).

Em virtude dessa falta de apoio e reconhecimento por parte dos Atikum da Serra Umã, em maio de 2003, durante o "I Encontro Nacional de Povos em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territórial", promovido pelo CIMI8, os índios da Serra do Arapuá publicamente se auto declararam Pankará (ANDRADE, 2010, p.40) visando o seu reconhecimento pela sociedade brasileira e pelos poderes públicos para serem assistidos em suas demandas por terra, saúde e educação.

A mais recente conquista dos povos indígenas em Pernambuco foi a criação do Curso de Licenciatura Intercultural na Universidade Federal de Pernambuco/Campus Caruaru, iniciado em 2009. A criação deste curso foi fruto das mobilizações dos professores indígenas organizados na COPIPE9 para reivindicar aos governos Federal e Estadual o reconhecimento de um currículo escolar indígena diferenciado e oferecer aos professores o acesso ao ensino superior, que valorize a sua cultura e saberes aliados à formação acadêmica.

A criação desse curso teve o apoio e a parceria da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - através da articulação interna com a Proacad10, do Núcleo de Formação de Docentes do Campus do Agreste, do Núcleo de Estudos sobre Etnicidade (Nepe) e do Núcleo de Estudos Indigenistas (NEI) do Campus de Recife - e com outras instituições como a Universidade Federal Rural de Garanhuns (UFRPE), o Centro de Cultura Luiz Freire, a

7 Pelos depoimentos colhidos por Mendonça, em 1999 os índios da Serra do Arapuá foram a aldeia sede (na qual

está instalado o PI Atikum) pedir o seu reconhecimento, mas foram impedidos de dançar o Toré. Essa decisão não foi feita pela comunidade Atikum, mas de um membro da família Cirilo, pois a essa família na época exercia um poder político sobre a Serra Umã.

8 Conselho Indigenistas Missionário.

9 Comissão dos Professores Indígenas em Pernambuco. 10 Pró-Reitoria para Assuntos Acadêmicos

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Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e com a Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco (SEDUC)11.

As escolas indígenas tem seu corpo docente formado por professores com nível superior completo e graduandos. Devemos entender a criação de um curso superior específico para os professores indígenas como uma conquista política coletiva da população indígena, na qual eles se apropriam do conhecimento acadêmico e do status que ele proporciona. Dessa forma, eles utilizam o conhecimento acadêmico como uma arma de afirmação étnica, de reelaboração da sua cultura e da História para fazer oposição cultura e a política do não índio que procurou negar a identidade indígena por meio da construção de uma "história oficial e nacional" do desaparecimento dos índios no Nordeste.

John Manuel Monteiro apontou, muito bem, que para as lideranças e professores indígenas a apropriação da História lhes "proporciona uma fonte de informações sobre um processo de subordinação e sobre os direitos legais, capazes de sustentar reivindicações concretas no presente e estratégias para o futuro, proporcionando, assim, uma nova arma na articulação de uma nova espécie de resistência" (MONTEIRO, 1999, p.243-244). Contudo, o historiador ressalta que, ao se apropriarem da História para construir a sua própria história indígena, os índios estão usando de "categorias analíticas e de imagens e representações que são produtos do mundo dos brancos" (Ibidem, p.244).

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Referências

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