• Nenhum resultado encontrado

Veganismo em disputa: discursos e práticas em construção nas relações entre diversos animais humanos e não humanos 1.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Veganismo em disputa: discursos e práticas em construção nas relações entre diversos animais humanos e não humanos 1."

Copied!
20
0
0

Texto

(1)

1

Veganismo em disputa: discursos e práticas em construção nas

relações entre diversos animais humanos e não humanos

1

.

Rodolfo de Moraes Santos Cerqueira (PPGA/UFF)

I - Introdução

O presente artigo discute a temática do veganismo e as disputas em torno do seu significado e práticas. É um desdobramento da minha dissertação de mestrado, intitulada “Veganismo não é dieta: Alteridade e conflitos na ética animalista vegana”, defendida em 2016. Pretendi chegar a uma reflexão sobre os conflitos que atravessam os debates em torno do que chamarei de ética animalista vegana. Considero aqui ética animalista o pressuposto de agir em consideração aos interesses de animais de outras espécies e incluindo também a nossa. A referida ética encontra sua aplicação na prática do Veganismo, em suma, a prática de abolir o consumo de alimentos e produtos de origem animal em vestuário, cosméticos e mesmo entretenimento, como zoológicos, circos e rodeios.

É possível afirmar que a prática do veganismo possui algumas bases reconhecidas por grande parte dos seus adeptos e estudiosos da teoria dos direitos dos animais (Cerqueira, 2017; Ferrigno,2012; Perrota, 2015).

I- O reconhecimento da senciência, ou seja, a capacidade que todos os organismos animais possuem de sentir dor ou sofrimento físico e psicológico e, por outro lado, de sentir prazer e satisfação ( Singer, 1975). Tal reconhecimento foi corroborado mais recentemente, em 2012, o cientista Phillip Low escreveu a Declaração de

(2)

2 Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos2, documento também seguido, editado e assinado por um grupo de neurocientistas colaboradores.

II- A ideia de que os animais são vítimas de uma forma de discriminação arbitrária baseada na espécie, o especismo, a partir da qual a condição de espécie dá o direito ao humano de subjugar, explorar e coisificar animais não humanos. O termo

Especismo foi criado na década de 1970 pelo psicólogo Rychard D.Ryder (1975),

e diz respeito à diferenciação de valores entre indivíduos, baseada nas diferenciações entre espécies. Peter Singer o faz em seu livro Libertação Animal (1975) em analogia com racismo e Sexismo. Ou seja, a justificação de práticas desiguais e violentais com base em uma característica arbitrária supostamente natural, utilizando-se de argumentos extraídos hora das ciências (e pseudociências) modernas, hora das religiões (sobretudo as judaico-cristãs).

III- A crítica à condição de propriedade relegada aos animais não humanos que os torna objetos pertencentes a um humano, mercadoria do ponto de vista jurídico, moral, econômico e político. De acordo com Francione, o aspecto de propriedade dos animais é quase sempre o componente principal na resolução de conflitos entre humanos e animais. Pois ainda que o status de propriedade não esteja explicitado, em quase todos os casos nos quais interesses de humanos e de animais conflitam, é o ser humano que prevalece pelo direito de exercer domínio sobre sua propriedade. O vencedor da disputa está predeterminado pela maneira como o conflito é abordado desde o início. O seu pensamento faz uso da analogia com a escravidão humana como referência. Se pensarmos na lógica que coloca o escravo como propriedade de outro, este se torna mercadoria, objeto intercambiável que possui um proprietário. Seguindo esse raciocínio, o autor conclui que o viés adequado a se seguir é o da abolição da exploração animal.

2

Disponível em:

http://www.labea.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-de- Cambridge-sobre-Consci%C3%AAncia-Animal.pdf Acesso em: 02/11/2020

O texto original não foi encontrado no site da conferência. No entanto, a tradução é facilmente encontrada em diversos sites.

(3)

3

IV- A diferenciação entre Abolicionismo animal e bem-estarismo. Ocorre que nem todas as pessoas que estão, mobilizadas pela defesa dos animais entendem essa luta como uma luta por direitos ou libertação do uso humano. Como exemplo a Lei 9.605/98, Seção I, art. 32 que diz “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” 3. Logo, se existem atos de crueldade e abuso, a defesa dos animais estaria em regulamentar as práticas de uso animal dentro de algum critério moral de consenso (de quem?) ou e se eliminar ou minimizar a dor e sofrimento do animal cativo, de preferência com corroboração científica. Tal tendência de determinados protetores de animais, profissionais de biomédica e saúde animal, assim como as legislações gerais e regulamentações específicas de uso de animais em laboratório e abate por exemplo é chamada de bem-estarismo animal (welfarism). No contexto geral do veganismo existe uma oposição a essa abordagem das relações interespécie.

Por considerar essas bases, sobre tudo a questão do abolicionismo animal, o veganismo então seria uma ética aplicada que visa abolir a exploração animal nos hábitos de consumo. Porém, o veganismo não se encerra nessa conclusão. A questão que pretendo evidenciar é que o veganismo não é apenas restrito a dimensão do consumo e que está em constante disputa. Tanto sobre seu significado, quanto sobre práticas que se coadunam ao mesmo ou não.

Fazendo aqui uma apropriação dos termos de Malinowski, o que foi dito até agora revela apenas o que é o “esqueleto” do veganismo e do trabalho empreendido sobre o tema. Ou seja, é apenas os dados coletados sobre o arcabouço teórico e o que se define em linhas gerais sobre o objeto. A inserção e observação das pessoas aplicando o veganismo em suas vidas, refletindo e discutindo sobre suas práticas com outras, seja presencialmente ou online, a participação nos diferentes espaços, imponderáveis do cotidiano, tais como conflitos, divergências, dificuldades assim como as possíveis convergências, é que forma a "carne" e o "sangue", ou seja, o veganismo sendo mobilizado e vivido pelas pessoas com suas contradições, negociações, conflitos e ordenamentos. E seguindo tal influência a etnografia pode ser pensada como um corpo que necessita dessas três partes, esqueleto (para ir atrás da), carne e sangue.

3

(4)

4

Nesse sentido, me deparei com questões em disputa no meio vegano: As formas de apropriações por empresas e pessoas do veganismo e o que qualifica qual produto, empresa ou maneira de produzir é coerente com o veganismo ou não? Uma vez que o movimento dos direitos dos animais é influenciado pelo repertório dos direitos humanos, Qual noção ou noções de humano estão são acionadas quando se fala em direitos dos animais e veganismo? Quais os atravessamentos do veganismo com perspectivas políticas que pautam classe, raça e gênero?

Os dados que pretendo evidenciar num primeiro momento do presente artigo foram coletados em grupos da rede social Facebook em 2016, como parte da minhas pesquisa da dissertação. Posteriormente, descreverei os desdobramentos dos conflitos abordados que levaram a construção de uma nova organização vegana no Brasil, A União Vegana de Ativismo (UVA). Obtive essas informações a partir de relatos de dois de seus fundadores, do seu site oficial4 e das redes sociais da organização (Youtube, Facebook). Por fim, farei uma análise composta de conclusões da minha dissertação e outras parciais como caminhos possíveis para compreender as questões apresentadas no parágrafo anterior.

II – Metodologia de pesquisa nos grupos do Facebook

Os grupos do Facebook são fóruns em que as pessoas debatem postagens com links de imagens, vídeos, textos ou mesmo questionamentos e outros conteúdos da própria pessoa autora da postagem. Tais espaços servem (ou pelo menos serviram na época da pesquisa) como motor de conflitos e divergências entre pessoas veganas sobre o que é veganismo e a sua extensão. Também podem ser constitutivos de debates de caráter qualitativo que auxiliam pessoas e tem o potencial de estabelecer alianças situacionais, bem como, rompimentos.

Para coletar os dados da pesquisa mapeei tópicos em discussão em diversos grupos da rede social Facebook envolvidos com o tema veganismo. Foram eles: Veganismo Social – Discussões Interseccionais, Trolls Veganos, Troll Ajuda, Veganismo Libertário, Veganismo

4

(5)

5

Popular. Nos referidos grupos do Facebook travei contato com mais de 40 pessoas em debates sobre diversos tópicos tratados ao longo da dissertação Não era necessário declarar o gênero, nome, etnia ou mesmo mostrar a imagem das pessoas em questão. Portanto omiti imagens e nomes de pessoas, bem como empresas, ongs e marcas, pois não havia intenção nem relevância expor. O interesse é no conteúdo dos diálogos, embates e trocas travadas nos grupos dessa rede social, no que toca a temática do trabalho.

Portanto, para retirar a identificação pessoal de interlocutores e buscar extrair o máximo apenas dos conteúdos dos textos, substitui em cada seção os nomes das pessoas por animais personagens do jogo do bicho. É importante destacar que as opiniões publicadas em tais fóruns estão disponíveis para todas as pessoas que se engajem nesses grupos, de tal forma que não são informações de foro íntimo, que possam retirar a primeira vista pessoas do anonimato e expor suas vidas pessoais.

Além disso, a respeito da formatação das transcrições, tive que criar uma solução que pudesse em alguma medida reproduzir a estrutura de réplicas das páginas de grupos do Facebook. Nesta rede social, quando alguém responde um tópico postado no grupo é possível que uma pessoa responda diretamente a cada resposta dada ao tópico de referência. Assim, cada resposta pode criar um debate paralelo sobre o tópico. Para que a leitura das transcrições fizesse sentido decidi aumentar o recuo quando se trata de uma resposta provocada por outra.

Por exemplo,

O texto cuja resposta remete ao tópico principal ficou com esse recuo.

(6)

6

Para acompanhar a discussão fiz referência a trechos retirados dos grupos diretamente da rede social referida, com a devida edição, as imagens do tópico estarão presentes, seguidas pelos debates entre interlocutores (as) usando a formatação conforme referida acima.

III.I – O conflito em questão: É vegano ou não ?

Uma boa parte conflitos e discussões entre pessoas veganas, ou que desejam seguir a prática do veganismo, se dá a respeito do que é realmente vegano ou não, algo esbarra por vezes na definição de veganismo. O que parece óbvio, desde as características dos alimentos, até se os produtos passaram por testes ou não, ou seja, definir o que é vegan ou não em termos de atitudes ou mesmo de bens de consumo passa pela definição do que é veganismo, algo que está muitas vezes em discussão, vigilância e disputa.

(7)

7

Na postagem acima vemos outra consequência do conflito de definição do que é vegano e o que é vegetariano estrito. A discussão surgiu das reclamações na página de uma rede de restaurantes do Rio de Janeiro que possui opções lacto vegetarianas e veganas ou vegetarianas estritas. A questão foi anunciar um milk-shake vegan que tinha como base um leite de soja suspeito por ao menos dois motivos: possuir vitamina D de origem animal em sua composição e ser marca de uma empresa que realiza testes em animais. Sendo assim, para algumas pessoas veganas tal leite de soja não poderia ser considerado vegano, nem vegetariano estrito, apenas composto de ingredientes de origem animal. Ou seja, se o produto tem algum componente de origem animal já não é vegan. Se a empresa realiza testes em animal pode ser vegetariano estrito (alimento de origem vegetal apenas), mas não está de acordo com o veganismo.

Interlocutor (a) Cabra - O problema do (marca de leite de arroz) é o preço de custo que ficará muito alto. Uma alternativa seria o da (marca de laticínios que tem linha de produtos a base de soja) (não é vegano mas pelo que vi é vegetariano estrito) ou então eles fabricarem o próprio.

Interlocutor (a) Touro - Acho que (marca de laticínios que tem linha de produtos a base de soja) é liberado, só tem o problema de ser de uma empresa que explora milhares de animais todos os anos.

Interlocutor (a) Burro - A(marca de laticínios que tem linha de produtos a base de soja) é da (empresa de laticínios), que é da (grande corporação internacional), que testa. Logo, não dá para usar em algo divulgado como vegano. Acho que eles poderiam tentar uma parceria com a (marca de leite de arroz) para cair o custo.

Já no bloco seguinte, em busca a alternativas para o uso do leite da referida marca surgem duas opções. Um dos leites é o de arroz e nos supermercados custa muito caro, o segundo apontado como vegetariano estrito, não vegano, pois é de uma marca de laticínios que é uma das mais populares na venda de iogurte, mas possui sua linha de produtos de soja. É importante ressaltar que nem todas as pessoas que se consideram veganos fazem essa

(8)

8

diferença entre produtos vegetarianos estritos, porém de marcas que exploram animais e produtos veganos.

Interlocutor (a) Porco: A (ong conhecida no meio vegano) que tava indicando (Leite vegetal de marca que realiza testes em animais) pra galera né?

Interlocutor (a) Porco: depois que a gente fala que essas ongs são duvidosas, chamam a gente de chato. Chato é você tentar ser coerente com os Animais e vem gente com influencia e poder e bagunça tudo. Aí é mais chato ainda os Animais ficarem no meio dessa briga toda.

Interlocutor (a) Burro: A (ong) está toda errada, indicando biscoitos da (grande corporação de alimentos industrializados), indicando (outra corporação citada na discussão anterior do mesmo tópico), falando que devemos comprar produtos de empresa que testam em animais, mas que não tem nada de origem animal para estimular as empresas a fazerem mais produtos assim... Só digo uma coisa: dinheiro ahah.

Interlocutor (a) Camelo: A (ong) não é um ONG vegana. No site deles diz que são contra abate, apenas. O foco deles é quem come carne. Não acho o melhor posicionamento, mas não vai rolar retratação.

No bloco acima, atinge-se um dos objetivos da postagem inicial, denunciar uma ong por indicar produtos que na verdade são vegetarianos estritos porém não veganos. Além disso, apontam que a ong, embora frequente espaços de veganismo, só discute alimentação e não se posiciona contra testes e usos de peles. Além disso, e retornando ao conflito inicial, indicam produtos vegetarianos estritos por acreditarem que o aumento da demanda por esses produtos fará com que as empresas produzam mais opções veganas e abandonem gradativamente a exploração animal por está se tornar menos lucrativa.

(9)

9

Do outro lado, está quem diz que apoiar tais empresas que exploram de diversas maneiras, ao comprar seus produtos, na verdade só está fortalecendo a lógica de tornar um veganismo mais um nicho de mercado. Afinal, nada impede que a empresa faça linhas de produtos diferentes e comece a lucrar nas duas pontas do mercado, das pessoas que consomem animais e seus derivados, e das pessoas veganas ou vegetarianas estritas.

Situações nas quais um ingrediente do produto é questionado por talvez ser de origem animal, ou mesmo um produto ser contestado por sem de uma empresa que testa em animais era acontecimento corriqueiro nos espaços veganos na época. Porém, começo a perceber em 2015/2016 o surgimento de alguns pontos veganismo atualmente. Não se apenas uma escolha individual de consumo mais ou menos ético. Um debate que se inicia sobre um leite vegetal de uma marca evoca questões que problematizam táticas adotadas por veganos, e também quais as bases políticas que alimentam as ações de coletivos e indivíduos veganos.

III.II – Sobre o dia em que o pesquisador entrou em conflito no campo.

O trabalho em fóruns de debate nos grupos do Facebook era sobre temas que, além de relevância para a pesquisa, me afetavam pessoalmente. A partir do momento em que comecei a observar os debates online, evitava postar também para não direcionar o debate e criar uma outra polêmica que poderia mudar os rumos da discussão. No entanto, uma das discussões em que não me furtei e participei pode ilustrar um dos conflitos centrais do campo da pesquisa e localizar o pesquisador também dentro desses debates.

Para falar sobre esse dia, tenho que mencionar o espaço online em que ocorreu. O grupo Trolls Veganos é um dos quais na temática do veganismo tem grande fluxo de postagens no Facebook e muitos membros.

(10)

10

1 – VALORIZAMOS POSTS relacionados à proposta do grupo como pérolas carnistas5, tirinhas de humor, desenhos e tudo que se encaixa neste contexto. Damos prioridade ao humor sarcástico e ácido, e sabemos que existe um limite virtual estabelecido entre o que é engraçado e o que pode ser preconceituoso. Seja consciente e antes de postar se coloque no lugar da outra pessoa. Empatia é tudo.

2 – Insultos e/ou ofensas pessoais entre os membros estão PROIBIDAS. Caso isto ocorra, pedimos que seja feito um print da agressão para ser encaminhado a um dos administradores. Cada caso será analisado individualmente e as punições variam (BAN, exclusão dos posts, advertência, etc). Sua birra ou implicância com alguém não será considerada. Avaliaremos apenas as provas encaminhadas.

6 – Não somos tolerantes com machismo/racismo/sexismo/homofobia. Se tal for feito entre em contato com os moderadores.

8 – Não se identificou com o grupo? Acha que está tudo errado? Ao invés de polemizar, saia. Sério, será melhor para você e para nós.

Pois bem no grupo referido ocorreu a postagem descrita na seção I, e dentre as respostas obtidas apareceram as seguintes:

Interlocutor (a) Carneiro: Acho que o problema é confundir veganismo com direitos humanos. Quem é vegano e ajuda pessoas em causas sociais, parabéns!! mas não podem fazer disso uma regra. Já tem gente demais pra cuidar dos "desumanos".

5 Termo utilizado por muitos veganos para designar o conjunto de crenças e práticas de quem consome carnes de

animais. Vide : Joy, Melanie (2001). "From Carnivore to Carnist: Liberating the Language of Meat", Satya, 18(2), September, pp. 126–127.

(11)

11

Interlocutor (a) Macaco: Veganismo é sobre e somente sobre animais e para animais. Não há a mínima condição de misturar mais nada nisso. Sempre vai embolar o meio e os animais vão se foder, porque o mais fraco sempre se fode.

Interlocutor (a) Avestruz: #animalsfirst

Não me lembro porque na época decidi me manifestar. Decerto não estava satisfeito com o conteúdo da postagem, nem com alguns comentários que se seguiram dos quais alguns nem reproduzirei aqui. Deixo para quem estiver lendo este texto tirar suas considerações sobre o debate que segue.

Eu: vocês não acham complicado esse negócio de direitos dos animais e ponto não? Porque na hora de fazer comparações com holocausto nazista e abolicionismo aí serve beber da fonte dos direitos humanos, ou não? Ok, eu entendo o que o escritor do post quis dizer. Mas engolir vegano reaça, que passa pano pra machista e defende ruralista eu não topo.

Eu: Veganismo também de coxinha de jaca a 8 reais não contempla classe trabalhadora. Então que libertação animal que é essa somente acessível para uma classe social? Sou vegano a 5 anos e defendo a popularização do veganismo e não uma onda hipster de ficar botando camisa de ong e pagar de ativista no facebook.

Interlocutor (a) Touro: Rodolfo, quem disse que o veganismo é acessível somente para uma classe social? Da onde você inventou isso?

Eu: Menos agressividade amiga. Acho que se vc prestar atenção no meu post tô criticando certas apropriações e vivências do veganismo que são acessíveis apenas da classe média pra lá. Exemplifiquei no post até. Assim como tem gente que necessita e se preocupa em mostrar formas acessíveis d se tornar vegan tem a gourmetização do

(12)

12

veganismo tb. E aí tem veganismo que é acessível somente pra uma classe social. Nem todo mundo que quer tem condições pra se tornar vegano rapidamente e enfim investir no ativismo com recorte de classe pra mim é melhor. Mas cada um com o seu ativismo pra sua classe se pá ne.

Interlocutor (a) Touro: Não tem agressividade nenhuma, parça. O que eu não tolero é distorção dos fatos ou tentativas de justificar o injustificável. Veganismo é viável para todos. Basta querer. Nenhuma classe social está sendo deixada de lado ou desconsiderada, uma vez que todas elas contribuem consideravelmente para a manutenção e crescimento deste neo nazismo onde os animais são as vítimas.

Eu: Mano não tem nada distorcido aqui. Assim só que esse papo veganismo basta querer não dialoga com as pessoas. Pq uns tem vinte reais pra almoçar, outros tem dez e outros dois e vao comer no restaurante popular. Ae fica complicado pra mim afirmar pra esse cara q basta ele querer. Ele tem que querer, óbvio, pra dar certo. Mas basta querer é complicado. Agora, não digo isso como uma tentativa de distorcer ou acusar o veganismo nem dizer q é inviável e elitista. Só que é um processo de construção que tem q ter recorte de classe pra gente construir e divulgar opções viáveis sabendo abordar as pessoas enfim. Eu não to vendo muito disso. Por isso falei de gourmetização do veganismo e tal. Mas enfim se tu quer chamar o cara do restaurante popular de dois reais de neo nazista porque o cidadão come carne aí a escolha é tua.

Interlocutor (a) Touro: Chamo todos desta forma, sejam eles ricos ou pobres. Não passo a mão da cabeça de quem paga pelo assassinato de um animal, independente da origem que tenha. No mais, acho que te falta embasamento para qualificar ou pontuar o resultado de outros ativistas que estão nessa luta há décadas e quase perderam a vida em nome desse ideal.

Interlocutor (a) Urso: Apropriação, discurso de ódio, reacionário, fascista, misoginia, desconstrução, estudar história... é (Interlocutor (a) Touro), melhor usar as palavras

(13)

13

chaves acima, são essas que funcionam na cabeça do missangueiro acima xD. Que gente caricata pqp!!! Kkkk

Interlocutor (a) Touro: a lobotomização está forte nas universidades. Não precisa ser muito gênio para enxergar a engenharia social que está sendo aplicada para sabotar o veganismo. Esta politização forçada dentro do veganismo só tem o objetivo de fragmentar a causa.

Eu: Engenharia social aplicada para sabotar o veganismo? lobotomização? Missangueiro? Fragmentar a causa? Cara eu faço ativismo com recorte e reconheço. Se vocês acham que fazem o único, original e verdadeiro, sem lobotomização boa sorte.

Interlocutor (a) Urso: tens toda razão, essas pintas são todas iguais, que se formaram no ensino médio nos últimos 12 anos e assim sabemos que sofreram aquela influência bolivariana... É só dar uma olhada nos perfis: pirralhos, pseudo- intelectuais, cosplay de pobre periférico... é caricata também.

Ao expor minhas posições nesse debate conflituoso que rumou para a tentativa de exposição e humilhação pessoal pelas pessoas que me antagonizavam, pretendo revelar algo sobre elas também. A ideia de que veganismo pode ser afirmado acima das diferenças e que possa ser um discurso unívoco não é algo possível. As tentativas de humilhação das quais fui alvo revelam as posições e crenças políticas dos interlocutores em questão. Criticar termos que se referem à militância negra, feminista, queer, dizer que ocorre “lobotomização” na universidade pública e que o ensino médio tem influência bolivariana, me parece um repertório comum às referências de direita da imprensa e da política brasileira.

Além disso, a ideia de que se deve ignorar outras causas em prol do veganismo me suscita a seguinte dúvida. Quais as pessoas que não tem outros enfrentamentos cotidianos a fazer e que pode ignorar as mazelas sociais pelas quais sofre para se importar apenas com o outro? Essa

(14)

14

não é a realidade da maioria das pessoas no Brasil e não é a de todas as pessoas veganas também. Então como seria possível ser unívoco no que se refere a essa discussão?

IV – O que compõe o seu veganismo? Cisões e novas articulações no veganismo brasileiro.

Na discussão descrita acima e em outros espaços online em minha pesquisa me deparei com a #animalsfirst. Tal hashtag é postada por pessoas veganas que dizem defender a ideia de que seja qual for a questão ética e política em que humanos e outros animais entre em conflito, prevalecerá o direito humano. Dizendo assim esse pensamento guarda coerência com as formulações de Francione sobre o status de propriedade dos animas não humanos. A

#animalsfirst foi usada pelos defensores da ideia do veganismo supostamente para priorizar

ou tornar exclusivas as questões relativas aos animais não humanos, acima de todas as outras diferenças ideológicas e identitárias da humanidade. Defensores dessa ideia acusam pessoas que defendem um veganismo interseccional, ou anarquista, ou qualquer coisa que remeta a ideias de esquerda de serem “humans first”. Ou seja, especistas que vem para enfraquecer e fragmentar a causa do veganismo.

Um dos autores e ativistas críticos a essa abordagem, Robson Fernandes, criador do site Veganagente produziu uma série de textos sobre a temática6. Na percepção do autor a perspectiva dos que defendem a ideia de animal first são na verdade veganos de direita que se apoiam em três pressupostos em geral: Veganismo é apenas pelos animais não humanos, o capitalismo é aliado do veganismo no objetivo de acabar com a exploração animal, questões políticas e éticas não devem ter nenhuma ligação com libertação animal ou veganismo.

O discursos em questão aqui já demonstram a formação de posições antagônicas a partir de concepções acerca das reflexões e práticas veganas.

(15)

15

IV.II – “Fazer o recorte”

Passar pela situação descrita no tópico anterior também me fez perceber algo muito importante. Eu utilizei o termo recorte para me referir ao tipo de ativismo vegano que eu fazia. Naturalizei um conceito que era usado pelos interlocutores no campo e que eu ouvia é necessário “fazer o recorte”. Foi aí que percebi que precisava desnaturalizar esse termo e fazer a devida reflexão sobre.

A expressão se referia não apenas a questões identitárias como origem, etnia, gênero, religião, geração, sexualidade no que toca essas características relacionais que situam e expressam indivíduos e coletividades num dado período histórico. Pode se referir também a concepções políticas e a forma como é percebido o lugar que ocupa nas relações de poder no tempo atual.

Segundo Agier, a concepção relacional da identidade permite nos aproximarmos um pouco mais da busca de seu “abrigo virtual”. Com efeito, o ponto de partida das buscas de identidade individuais ou coletivas é o fato de que somos sempre o outro de alguém, o outro de outro. É necessário, então, pensar-se a si próprio a partir de um olhar externo, até mesmo de vários olhares cruzados. (2001, p.9)

Nesse sentido cada pessoa pode se ver e ser vista através desses múltiplos olhares e sua adesão ao veganismo refletirá e será refletida através destes.

Era comum que essa expressão surgisse em grupos como Veganismo Social – Discussões Interseccionais e Veganismo popular. No grupo veganismo Libertário, seus administradores além de reconhecerem que determinados “setores sociais” terão mais facilidade para desconstruir o Especismo por acesso a informação. Colocam-se como críticos ao capitalismo e ao elitismo no meio vegano. E por fim reconhecem a necessidade da aliança com outras causas sociais para desconstruir a ideia de que vegans só se importam com animais.

(16)

16

Já no grupo veganismo social – discussões interseccionais, o próprio nome já evoca a ideia de interseccionalidade. Em geral a crítica interseccional partiu de intelectuais militantes negras que fazem uma crítica a unilateralidade de intelectuais e movimentos sociais que acompanhavam na época: a de lutar contra o machismo dentro do movimento negro, contra o racismo dentro do feminismo e de falar do ponto de vista inclusive teórico da mulher trabalhadora negra tal como fez Davis (1982), fizeram com que essas pensadoras desenvolvessem trabalhos que não mais fossem unilaterais ou centrados num único marcador de diferença ou desigualdade social. Sendo assim, começaram a elaborar uma forma de falar que trouxesse intersecções entre formas de exploração e opressão para poder falar sobre a condição da mulher negra e construir uma ferramenta intelectual utilizável para outras minorias e lutas.

Se o papel da interseccionalidade é “oferecer ferramentas analíticas para apreender a articulação de múltiplas diferenças e desigualdades” (Piscitelli, 2008 p. 266), a contribuição das pensadoras negras nos permite repensar a alteridade enquanto compreensão do outro e de si. Ao pensar as múltiplas possibilidades de ser pessoa e as diferentes relações de poder e desigualdades que compõe essas realidades, percebe-se que o humano universal, como caricatura do especista, é muito limitado para dar conta dos desafios que a realidade impõe para a expansão do veganismo.

IV.III – Conflitos produzem novas organizações e coletivos.

Recentemente, estou retomando a pesquisa para meu projeto de doutorado e estou atento aos surgimentos de coletivos veganos tanto nacionais quanto internacionais que passaram a atuar no brasil. O surgimento de pelo menos um deles está ligado a discussão inicial sobre apoiar a compra de produtos considerados por ativistas e algumas ongs como veganos. Produtos esses de empresas que empresas que fazem teste com animais, ou mesmo empresas de carnes e laticínios de origem animal.

A história que pretendo brevemente explanar como exemplo é sobre o contexto de surgimento da organização UVA (União Vegana de Ativismo). Os relatos foram obtidos mediante

(17)

17

entrevistas por áudios de whatsapp com dois de seus fundadores. Além disso, venho acompanhando o site e as redes sociais (youtube e facebook)da organização. Porém, para começar a descrever as questões que levaram a criação da UVA preciso antes apresentar a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) e sobretudo uma dos seus projetos e frentes de atuação.

A SVB (Sociedade Vegetariana Brasileira). A ONG foi fundada no Brasil em 2003 e diz promover a “alimentação vegetariana como uma escolha saudável, ética, sustentável e socialmente justa", “trabalhar para aumentar o acesso da população a produtos e serviços vegetarianos”7. Entre as missões da ONG “difundir informação de referência para profissionais, instituições, instituições e sociedade brasileira em geral sobre fundamentos, viabilidade e benefícios da alimentação vegetariana estrita” 8.

Uma dos projetos da SVB é o Selo Vegano. Segundo a própria Ong o sele foi criado para atestar que produtos de empresas são seguros para veganos atendendo os critérios de: não ter componentes de origem animal, a empresa não testar o produto finalizado em animais e os fabricantes fornecedores não testarem os ingredientes nos animais (período de carência de no mínimo 5 anos)9.

Duas questões têm de ser destacadas. Em primeiro lugar não há menção ao termo veganismo nas sessões visitadas no site da SVB, ao se referir à alimentação o termo utilizado é dieta vegetariana estrita. Em segundo lugar a de se notar que o selo vegano é relacionado a produto, podendo ser entregue a empresas que tem outros produtos de origem animal e até que testão. Uma estratégia “pragmática” para inserir mais produtos veganos nas prateleiras dos mercados com a justificativa de popularizar e aproximar o veganismo das pessoas. Criando assim um “veganismo de produto”. 7 Disponível em : https://www.svb.org.br/svb/quem-somos/sobre 8 Idem ao 6. 9 Disponível em : https://www.selovegano.com.br/sobre/

(18)

18

É importante destacar que a SVB não é a única a adotar essa estratégia e acreditar que esse é um caminho para divulgar o vegetarianismo estrito no caso da ONG, ou veganismo no caso de influencers em redes sociais que inclusive fazem anúncios publicitários de produtos veganos de empresas que fazem uso de e teste em animais não humanos.

Parte dos fundadores da UVA era de um dos núcleos estaduais da SVB e ao ver essa relação da ong com as marcas e uma abordagem em suas próprias palavras mais liberal e voltada para o mercado, num primeiro momento tentaram disputar a presidência da ong para modifica-la por dentro. Isso se deve provavelmente a força, influência e a referência que a SVB criou desde 2003. Porém paralelamente construíram com outros ativistas a proposta de um coletivo vegano interseccional e popular que veio a ser a UVA. Foi então que segundo um dos fundadores, o desgaste do processo eleitoral e esgotadas as tentativas de influir por dentro da ong, escreveram uma carta na qual os membros do núcleo se retiram oficialmente da SVB Nacional.

Outra das fundadoras da Uva me relatou que sempre teve uma preocupação em articular causas como feminismo, ambientalismo e veganismo, mas crítico ao capitalismo. Disse ter detectado uma tendência de não dar espaço a esses debates e um alinhamento maior a empresas, a indústria alimentícia e um silenciamento de acusações de machismo a um famoso

influencer do meio vegano. A partir de discussões travadas com outros ativistas sobre a

necessidade de articular o combate a opressões sofridas por animais humanos e não humanos, nas suas próprias palavras, começou a participar da construção da UVA.

A Uva diz em sua carta de princípios lutar com base no anti-especismo, justiça social e equidade, autonomia, suprapartidarismo, soberania alimentar e direito a alimentação adequada, laicismo, Saúde e sustentabilidade.

(19)

19 Considerações finais

Ao final do presente artigo foi possível detectar ao menos três tendências que possuem convergências e divergências no meio vegano: Uma que aposta na pauta do consumo de produtos veganos industrializados na prateleira e acredita em reformar o sistema de exploração animal ou que ele deixe de existir através de campanhas do estímulo ao consumo desses produtos. Uma que convergindo ou não com a primeira não acredita na inclusão de pautas dos direitos humanos dentro dos espaços do veganismo, pois essa prevaleceria sobre as causas animalistas e enfraqueceria e fragmentaria a luta. E outra que vem tentando fazer o esforço de se distanciar da anteriores sendo crítica ao capitalismo e as grandes empresas que tem começado a enxergar o veganismo como oportunidade de mais um nicho de mercado. Também seguidores dessa tendência tem procurado dialogar com as pautas de classe, raça e gênero entre outras relacionadas a bandeiras de esquerda e/ou direitos humanos.

Ao denunciar essas práticas as práticas de exploração dos animais não humanos o veganismo critica a lógica de controle que se utiliza dos binômios natureza-cultura, animalidade-humanidade para submeter o outro, lógica que se apresenta também no empreendimento colonial.

No entanto, ao anunciar uma dicotomia em que só existe um conceito de humano universal opressor versus animais não humanos englobados, muitas pessoas veganas acabam por reafirmar o modo de pensar ocidental, eurocêntrico, colonizador. Tanto a espécie humana é muito diversa entre si no que toca as relações em que estão inseridos, quanto animais não humanos são muito diversos, pela mesma razão.

Seria interessante pensar, influenciado por Perrota (2015) que vivemos uma logica em que determinados animais não humanos que não estão inseridos na comunidade moral e alguns sim, parcialmente ao menos. Bem como existem seres humanos que estão excluídos parcial ou totalmente da comunidade moral e outros não.

(20)

20 Referências Bibliográficas

AGIER, Michel. Distúrbios Identitários em Tempos de Globalização. MANA 7(2):7-33, 2001

CERQUEIRA, Rodolfo de Moraes Santos. Veganismo não é Dieta: Alteridade e Conflitos

na Ética Animalista Vegana. 2017. 128 p. Dissertação (Mestrado em Antropologia )-

Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017.

FERRIGNO, Mayra Vergotti. Veganismo e libertação animal: um estudo etnográfico Campinas, SP : [s.n.], 2012.

FRANCIONE, G. L. Animals, property, and the law. Philadelphia: Temple University Press, 1995.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. Os Pensadores, São Paulo, (1998 [1922]), Abril Cultural.

PERROTA, Ana Paula. Humanidade Estendida: A construção dos animais como sujeitos

de direitos. - UFRJ,2015.

PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de

migrantes brasileiras. Sociedade e cultura, V.11, n.2, jul/dez. 2008. p. 263 a 274

SINGER, Peter. Libertação Animal. Editora Lugano, 1975.

TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Animais como pessoas: a Abordagem Abolicionista

Referências

Documentos relacionados

Controle químico da traça do tomateiro Scrobipalpula absoluta (Meyrick, 1917) (Lepidoptera: Gelechiidae) no Submédio São Francisco.. Anais da Sociedade Entomológica do

The purpose of this study is to recognize and describe anatomical variations of the sphenoid sinus and the parasellar region, mainly describing the anatomy of

Neste trabalho iremos discutir a importância do Planejamento Estratégico no processo de gestão com vistas à eficácia empresarial, bem como apresentar um modelo de elaboração

Duas novas formulações foram elaboradas com extrato crioconcentrado de 3,1ºBrix até 19,1°Brix visando uma padronização do pH da emulsão e melhoria no sabor,

Nessa seara, o ato tem permitido, desde então, que a Câmara aprecie, sem bloqueio, propostas de emenda constitucional (PEC), projetos de lei complementar (PLC) e projetos de

Os peixes foram alojados em lotes homogêneos de 10 peixes por caixa, com duas refeições diárias (9hrs-17hrs) até saciedade aparente; Ao final dos 60 dias foram submetidos a

Basicamente, pelo estudo da casuística, destacam-se os seguintes principais pontos: 1 a condenação dos Estados Unidos à revisão e reconsideração das sentenças de morte; haja vista

aulas a serem ministradas, possibilitando a construção do senso crítico do aluno diante do estudo, buscando sempre uma relação com a temática proposta e o cotidiano