• Nenhum resultado encontrado

Estudo das lideranças políticas femininas através da escuta de suas resistências à dominação masculina

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Estudo das lideranças políticas femininas através da escuta de suas resistências à dominação masculina"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

Estudo das lideranças políticas femininas através da escuta de suas

resistências à dominação masculina

Jade Neves Moreira1

Maria Raiele Santos Sousa2 Bárbara Lou da Costa Veloso Dias3

Resumo

O presente trabalho se trata de estudo qualitativo de gênero, cujo objetivo é compreender a construção das disposições comportamentais de mulheres que atuam profissionalmente no campo político. Pretende-se avaliar os obstáculos enfrentados por elas em seu campo de atuação pensando a partir de seu pertencimento de grupo, pois considera-se que as especificidades presentes nas experiências de vida dos sujeitos repercutem em suas dinâmicas de resistência na sociedade. O estudo baseou-se na análise das biografias de quatro políticas do Estado do Pará.

Introdução

Pierre Bourdieu4 demonstra que a construção social do corpo está fundamentada em uma ordem física e social que se organiza a partir da divisão androcêntrica entre masculino e feminino, na qual os gêneros são definidos de maneira relacional e como sendo essencialmente opostos. Trata-se de uma construção simbólica que se completa em uma construção prática. O princípio de divisão dos sexos molda as identidades relativas ao feminino e ao masculino instituindo para cada um dos gêneros determinados – e antagônicos – usos legítimos do corpo.

Ainda recorrendo às colocações de Bordieu, essa lógica se constitui por uma construção arbitrária do biológico que se naturaliza socialmente sob a forma de dominação dos homens sobre as mulheres, do masculino sobre o feminino, de modo que as diferenças biológicas sejam traduzidas, objetivamente, em desigualdades e hierarquias no campo social. Essa ordem, característica da sociedade patriarcal, funda percepções, pensamentos e ações

1 Graduanda de Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (IFCH/UFPA). 2 Graduanda de Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (IFCH/UFPA).

3 Docente da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Programa de

Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP/UFPA).

(2)

compartilhados por todos os membros da sociedade e se vê refletida na divisão do trabalho e nos rituais da vida coletiva e privada.

Assim, atribui-se aos homens a virilidade, a força, o poder e as atividades da esfera pública, enquanto as mulheres – excluídas dos espaços associados ao masculino – são incumbidas das tarefas privadas da vida doméstica (como a limpeza e o cuidado com os filhos), de demonstrar passividade e ter disciplina com o corpo.

As relações sociais assentadas nesse princípio de associação, em que se manifesta a imposição da dominação das mulheres pelos homens, são discutidas por Carole Pateman5 em

termos de contrato. Este contrato, de caráter social-sexual, constitui o patriarcado moderno. No entanto, a autora enfatiza que sua dimensão sexual foi sistematicamente ocultada da história e ignorada pelas abordagens tradicionais da teoria política, uma vez que a esfera privada não é encarada como politicamente relevante, ao passo que o contrato social – tido como original – é vinculado à constituição da esfera pública, ou seja, a esfera da liberdade civil (PATEMAN, 1993, p.18).

Quanto a isso, Pateman assevera:

As duas esferas da sociedade civil são separáveis e inseparáveis ao mesmo tempo. O domínio público não pode ser totalmente compreendido sem a esfera privada e, do mesmo modo, o sentido do contrato original é desvirtuado sem as duas metades interdependentes da história. A liberdade civil depende do direito patriarcal (PATEMAN, 1993, p.19).

O direito patriarcal civil ao qual Pateman se refere deriva do suposto direito natural que os homens possuem sobre as mulheres. Nesse sentido, o contrato social-sexual gera, no cotidiano, uma série de contratos reais que exprimem as diferenças biológicas entre os sexos como oposição entre liberdade e sujeição.

A autora também aponta para a ambiguidade presente na concepção liberal de público e privado, afirmando se tratar de uma ideologia que confere à divisão das esferas a aparência de uma ordem universal e igualitária, tão natural quanto as diferenças entre os sexos. Porém, essa construção obscurece a realidade, qual seja a oposição desigual entre homens e mulheres baseada na primazia masculina (PATEMAN, 2014, p.57).

Divisão sexual do trabalho e o campo político formal

(3)

A divisão sexual do trabalho reproduz sistematicamente as desigualdades entre homens e mulheres, resultando na desvalorização e apropriação não remunerada do trabalho feminino, oculto na esfera do lar e, portanto, tido como improdutivo. Este ordenamento, que incide sobre a vida doméstica e a divisão de tarefas cotidianas, está longe de limitar-se a esses aspectos.

A atribuição da maternidade como uma vocação natural de mulheres, mesmo quando contrária à vontade destas, é também um elemento constitutivo de seu papel de gênero nas sociedades capitalistas. O Estado imprime nos corpos das mulheres a qualidade de instrumento de reprodução da força de trabalho e, assim, as reduz à categoria de “não trabalhadoras” (FEDERICI, 2017). Os homens, por sua vez, seriam os responsáveis pelo trabalho produtivo na esfera pública, e mesmo quando este é realizado por mulheres o valor que se lhe confere é menor, vide a persistência da desigualdade salarial entre homens e mulheres em exercício de ocupações remuneradas6.

Logo, as identidades e papéis de gênero assim constituídos se refletem de forma institucionalizada no Estado e no mercado de trabalho. Ao serem socialmente encarregadas pelas responsabilidades da esfera doméstica e familiar – das quais os homens são coletivamente liberados –, as mulheres enfrentam desvantagens para inserir-se no mercado de trabalho e, com isso, desempenhar atividades remuneradas, ao mesmo tempo em que prejudica seu acesso a tempo, recursos e redes de contato.

Além disso, a estrutura capitalista e patriarcal das relações sociais impõe limites às possibilidades de atuação das mulheres em diversas outras esferas da sociedade, a exemplo do campo político institucional, onde sua presença é ainda muito menor que a dos homens (BIROLI, 2018).

A divisão sexual do trabalho tem caráter estruturante [...]. Ela não é expressão das escolhas de mulheres e homens, mas constitui estruturas que são ativadas pela responsabilização desigual de umas e outros pelo trabalho doméstico, definindo condições favoráveis à sua reprodução. Essas estruturas são constitutivas das possibilidades de ação, uma vez que restringem as alternativas, incitam julgamentos, que são apresentados como de base biológica (aptidões e tendências que seriam naturais a mulheres e homens), e fundamentam formas de organização da vida que, apresentadas como naturais ou necessárias, alimentam essas mesmas estruturas, garantindo assim sua reprodução (BIROLI, 2018, p. 23).

6 OLIVEIRA, Nielmar de. Pesquisa do IBGE mostra que mulher ganha menos em todas as ocupações. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 8 de mar. de 2019. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-03/pesquisa-do-ibge-mostra-que-mulher-ganha-menos-em-todas-ocupacoes. Acesso em: 25 de nov. de 2020.

(4)

É importante notar que essa vulnerabilidade – conforme caracteriza Flávia Biroli7 – atinge as mulheres desigualmente, podendo implicar maiores desvantagens ou privilégios a depender de sua posição de classe, raça, nacionalidade e sexualidade. Isto implica dizer que, nesse contexto, as características biológicas assumem a função de justificar assimetrias não apenas entre homens e mulheres, mas também no interior dos dois grupos.

Sendo assim, as mulheres negras e pobres são as mais afetadas por esse sistema de dominação. As múltiplas opressões que lhes são impostas, associadas ao fato de ser designada, principalmente a elas, a execução do serviço doméstico remunerado, é um fator que favorece a liberação de outro grupo de mulheres – mais favorecido nas hierarquias de classe e raça – para o desempenho de demais atividades, inclusive na esfera pública. Biroli oferece elucidações a esse respeito na seguinte passagem:

O conjunto de problemas que a divisão do trabalho suscita, nesse caso, pode ter baixa prioridade não apenas para os homens, mas também para muitas mulheres. Para um determinado grupo de mulheres, ele [o trabalho doméstico] pode não assumir a forma de obstáculo para sua atuação na vida pública porque elas têm a possibilidade de contratar o trabalho doméstico remunerado de outras mulheres. [...] Por isso, podem não ser “percebido[s] como um problema de gênero porque não faz[em] parte da experiência das mulheres dos grupos dominantes”. Embora esse grupo seja minoritário entre as mulheres, é sua posição que predomina entre as que ocupam cargos políticos (BIROLI, 2018, p.26).

Em vista disso, torna-se ainda mais difícil para determinados grupos de mulheres a politização de seus interesses e demandas, a ocupação de cargos políticos e a influência sobre a agenda política, pois seu acesso a essa esfera da sociedade é limitado por múltiplos fatores estruturais, como o racismo e a desigualdade de classes.

A partir desse pressuposto, o presente estudo propõe uma investigação biográfica acerca das experiências vivenciadas por mulheres que ocupam espaços na política, a fim de visualizar de que maneira seus contextos individuais – que não deixam de ser, simultaneamente, sociais – implicam possibilidades e/ou obstáculos à sua atuação no campo político.

Relatos de resistência

7 BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Boitempo,

(5)

De acordo com o que foi demonstrado, há uma série de desafios que se coloca diante da inserção e manutenção da presença feminina na política institucional, mais ainda tratando-se de cargos importantes de decisão. Devido ao fato de o campo político estar fundamentado na dominação patriarcal – ou seja, na figura do homem, que estrutura o habitus imperante em sua esfera – a representação política das mulheres é submetida a diversas violências materiais e simbólicas, o que dificulta profundamente as suas candidaturas e a legitimação de suas vozes.

Para compreender quais são os recursos mobilizados pelas mulheres que conseguiram adentrar a política profissional, bem como as respostas aplicadas por elas frente às demandas de representação do grupo, faz-se necessário investigar as disposições que incorporaram ao longo de suas experiências de vida. Por isso, a análise baseia-se nos estudos da Sociologia Disposicional, sobretudo aqueles desenvolvidos por Bernard Lahire, que permitem investigar as dinâmicas sociais em escala individual. Para tal objetivo, foram entrevistadas cinco políticas do Estado do Pará, de variadas posições quanto às categorias de raça e classe, das quais todas já foram candidatas, porém nem todas eleitas.

O estudo das disposições – ou, dito de outra maneira, das propensões – comportamentais, enquanto realidades construídas, parte do pressuposto de que o social não se manifesta apenas no que é geral ou coletivo, mas também está fundamentado na singularidade dos indivíduos. Trata-se de remontar a produção social do indivíduo a partir de um trabalho interpretativo acerca de comportamentos e práticas (LAHIRE, 2004; 2017).

Desse modo, a análise biográfica das entrevistadas permite apreender a cisão entre público e privado sustentada pelo liberalismo, em que a “esfera pública” seria em si o lugar da figura masculina e dos atributos associados à masculinidade, como o poder, enquanto às mulheres se reserva o espaço privado da vida doméstica (PATEMAN, 2014).

Os entraves que isto gera, na prática, à participação política das mulheres estão diretamente associados aos processos políticos e sociais que lhes atribuem a realização do trabalho reprodutivo, ou seja, aquele ligado aos cuidados com a casa e a família.

Os relatos das entrevistadas indicam que, para adentrarem o campo político formal, se fez fundamental a subversão de estímulos e imposições relacionados ao papel socialmente reconhecido como feminino desde seu círculo familiar. Isto se encontra expresso, principalmente, no incentivo ao casamento e no desencorajamento em relação aos estudos e ao trabalho fora de casa por parte das figuras masculinas de seu convívio, como evidenciam determinadas falas.

(6)

A mamãe casou muito nova [...], papai não deixou ela estudar, como eu disse, muito machista. [...] Mas ela pelo menos me ensinou que o principal era a educação e eu segui esse caminho, né. [...] Comecei a namorar no convênio, [...] mas eu não pensava na época [em] casar, já pensei em casar depois (Entrevistada A).

Muito, muito difícil pra mim. [O meu pai] não deixava namorar e a minha mãe, não. Minha mãe me liberava pra tudo, minha mãe sempre foi muito liberal porque como ela foi muito presa e a mãe dela quase não conversava com ela... Então, ela fazia o contrário, conversava comigo e me soltava. Dizia: “Olha, tô te educando. Tu tens que aprender a te virar”. [...] Ela dizia assim: “Tô criando filho pro mundo”. Então, fui criada pro mundo, a minha mãe sempre me deixou muito virada (Entrevistada B).

A minha mãe tinha muita vontade que os filhos dela estudassem, ela chegou a esconder do meu pai a minha irmã mais velha, que ela atravessava [...] de canoa [...] pra levar minha irmã pra estudar na cidade. E o meu pai achava que [...] mulher não tinha que estudar, mulher tem que casar e ter marido (Entrevistada C).

Nesse aspecto, se faz interessante notar que as entrevistadas ressaltam o papel fundamental exercido por suas mães ao contraporem-se aos estímulos de caráter sexista, com o intuito de as incentivarem ao engajamento na esfera pública. Ao mesmo tempo, revelam que foi justamente através do movimento estudantil e das demandas estudantis que deram – a maioria delas – início à sua atuação política.

Ainda, elas se remetem à sua criação familiar e às exclusões vivenciadas no contexto social de origem destacando as circunstâncias que as fizeram desenvolver posturas assertivas, algo que se tornou um recurso fundamental para que pudessem conquistar espaço na política institucional posteriormente.

Então, ela queria mostrar assim: “Não, a minha filha vai ser alguém e eu vou mostrar pra esse pessoal todo [...] que a gente vai conseguir, que vai ser diferente”. Porque [...] existe muito isso de perpetuar essa exploração, entendeu? A mãe empregada, a filha automaticamente vai

(7)

ser empregada também. [...] Então, quando eu era criança, eu passava muita humilhação, de dizerem [...] que eu não podia brincar porque eu era filha da empregada. [...] Eu queria brincar, eles diziam: “Não, não pode brincar”. [...] Só que eu sempre fui muito respondona, minha mãe me ensinou a ser muito respondona. [...] Depois que eu entendi porque sempre era comigo, entendeu? [...] E eu achava que as pessoas me pediam pra fazer as coisas porque eu era a mais boazinha, porque eu era a disciplinada. [...] Depois que eu fui entender que não era isso. [...] É que eu era a filha da empregada (Entrevistada B).

Muitas vezes eu fui interrompida. [...] Eu sou muito autoritária, então comigo é mais difícil colar essa pecha de que eu tenho que tá ali pra me submeter, porque eu tenho uma forma de me organizar nos espaços [...] criada pela minha vida, pela minha história. [...] Eu fui para ali pra fazer disputa. Eu disputo todos os minutos. E eu estudo pra disputar. [...] Eu internalizei de uma tal forma essa coisa de “respeita meu espaço”, “respeita minhas decisões”, “respeita minhas escolhas”. Que nem eu faço no parlamento. É uma vigilância permanente pra que eu não me afaste do que eu fui fazer lá. Entendeu? (Entrevistada C).

Há também a incidência constante de obstáculos relacionados à dimensão étnico-racial, que impõem desvantagens, sobretudo, para as mulheres negras e indígenas que buscam construir campanhas e ocupar cargos de poder. Isso se reflete também no interior dos partidos e na distribuição de fundos para campanha, como é possível observar em uma das biografias analisadas, nesse caso, de uma mulher indígena.

[...] Nós somos uma sociedade cheia de estereótipos, cheia de rótulos, aí existe aquele rótulo de que o índio não sabe de nada, é muito ignorante. [...] Eu acho que não é essa a questão. [...] Cria-se escolas lindas, maravilhosas, mas que não acontece nada lá dentro. Então, como é que aquela pessoa vai ter aprendizado? [...] Não é que o índio não saiba, [...] é porque não tá acontecendo aquilo pra ele. [...] Existe pessoas que querem diminuir, que querem desclassificar. [...]

(8)

Por exemplo, como hoje tá mais forte a questão das políticas públicas, aí tem pessoas que: “Ah eu vou respeitar o indígena, o meio ambiente”, mas não é uma coisa verdadeira. [...] É um comportamento manipulado. [...] Não é porque eles gostam, é porque é politicamente correto. É legal ter no meu partido uma mulher, ainda mais indígena, é exótico. Mas é só isso que a pessoa pensa, entendeu? Não vê mais além, não vê que o índio ele tem ideias, ele tem conhecimentos também.

[...] Não deram dinheiro pra campanha dela. [...] Quando ela se candidatou ela veio com mais dois candidatos de alta... Então, eu percebia [...] como eles encaixaram só pra politicamente correto. Eles deixavam ela de fora. [...] Aí, pra eles, pros outros dois – eram dois homens tipo agricultor lá da região – deram dinheiro e pra ela não deram. Então, por que pra ela não deram? Porque pensaram assim: “Ah, é só pra ela preencher o espaço aí”, tá entendendo? (Entrevistada D – relatos comunicados pela irmã).

Para além disso, as diferenças étnicas se acentuam no campo da linguagem – também atravessado pelo gênero –, tornando-se mais desafiadora para os grupos minoritários, especialmente para as mulheres, a tarefa de introduzir suas demandas na agenda política, devido o impasse da comunicação com outros grupos e instituições e pelo reforço à predominância masculina.

Eles eram aldeados, eles moram na aldeia [...]. Aí, eu percebi essa diferença, as mulheres não falavam português, só os homens que falavam português. Então, os homens falavam português pra se comunicar com os outros [...]. E as mulheres não, as mulheres, elas são muito mais submissas, as aldeadas. Tem o compromisso de atender o marido e atender a família, sem nenhuma manifestação pessoal (Entrevistada D – relatos comunicados pela irmã).

Também fica evidente que quando as mulheres incluem em suas campanhas a pauta de gênero, a dificuldade para que elas consigam legitimar seu discurso é ainda maior e suas candidaturas acabam por serem vistas como não prioritárias, tanto pelos partidos quanto pelos eleitores, como se estivessem circunscritas apenas às demandas sociais de mulheres. Isso se

(9)

torna um impasse significativo para a articulação de estratégias de representação e também na conquista de votos para lideranças femininas.

De dizer que: “Ah, não é prioridade discutir isso”, entendeu? [...] Parece querendo menosprezar as nossas lutas. Mas, a gente tinha muita segurança de que era isso mesmo. Isso ia ser o diferencial. Era ter uma campanha, uma candidatura que ia priorizar a pauta de mulheres, porque discutir mulheres é discutir mais da metade da população, é discutir uma variedade de pessoas, né? Que ser mulher não é algo único, existe vários perfis de mulheres, têm várias coisas pra abordar sobre mulheres (Entrevistada B).

Mesmo o plano da vida afetiva e sexual se torna uma questão no debate público quando se trata de mulheres atuando na política, esteja-se em exercício de cargo político ou não. Notadamente, fatores como divórcio ou o número de parceiros ao longo da vida, que para as mulheres gera fortes julgamentos, raramente adquire relevância ao falar-se dos políticos homens. Associado a outros elementos, esse discurso é um forte agravante ante a vulnerabilidade à qual as mulheres estão sujeitas no campo político.

[...] Eu fui muito vítima de calúnias, entendeu? Eles inventavam baixarias... Eu até dizia assim: “Gente, só queria ter dez por cento dos namorados que esse povo me dá”. [...] Eu até parei de me relacionar com qualquer pessoa porque fiquei com medo. [...] Tinha um namorado, depois fizeram tanto escândalo que eu acabei me afastando, né.

[...] Esses três elementos [ser mulher, de esquerda e separada], eles são mortais. Você ser mulher e ser sozinha, você ser mulher e ser de esquerda, e ser Poder Executivo... Prepare-se pra ter uma oposição sistemática perante a própria sociedade (Entrevistada A).

Ao serem instigadas a relatar suas impressões sobre a experiência de ser mulher atuante no campo político, as entrevistadas reiteram a necessidade de se empregar resistência às hierarquias de gênero, raça e classe, para transpor a subalternização sistemática de sua presença e discursos na política.

(10)

Desde a hora que a gente decidiu fazer uma campanha de mulheres, uma campanha feminista, [houve] várias pessoas atacando diretamente a minha [...] capacidade, entendeu? [...] De dizer que eu não ia aguentar, que ia ser muito pesado pra mim, que na [...] primeira crítica eu ia chorar. [...] Falavam que a nossa candidatura não era prioritária. A gente tinha outros candidatos que a gente ia lançar e a nossa candidatura ia ser uma candidatura de mulheres. Ponto. Demarcado nossa posição política enquanto mulheres (Entrevistada B).

O capital tem a sua ética, né? As elites têm a sua ética, os machos têm a sua ética. E a gente tem a nossa, que é de manter esse processo de inquietação, de incomodar. Eu tenho que incomodar. Eu preciso incomodar esses machos. É um pouco essa a necessidade. A minha presença é um incômodo pra eles, o que eu digo é um incômodo pra eles, como eu digo é incômodo pra eles. Isso estimula outras mulheres também (Entrevistada C).

Diante das variações individuais de comportamento e dos diferentes patrimônios de disposições articulados no interior dos grupos sociais, importa notar que a construção de mecanismos de resistência é perpassada por conteúdos latentes nos indivíduos e que são, ao mesmo tempo, invisibilizados pelos processos de exclusão. Com isso, quer-se reafirmar a inseparabilidade do singular em relação ao social.

Conclusão

Muito embora as mulheres empreguem esforços consideráveis em sua organização política e na tentativa de estarem efetivamente presentes nos espaços de decisão, o campo político formal ainda reproduz sua estrutura, pautada nas opressões e silenciamentos decorrentes das desigualdades sociais em suas variadas formas, e determina, sob esse molde, os limites da representação feminina.

Nas biografias analisadas nota-se que as possibilidades de eleição para cargos políticos – embora reduzidas às mulheres de modo geral – aumentam na medida em que há alguma adequação ao padrão discursivo do meio. Isto quer dizer que candidatas mais inclinadas a um perfil tradicional, ascético e orientado à família conseguem maior expressão nos espaços de tomada de decisão.

(11)

Em uma perspectiva interseccional, deve-se acrescentar que as posições de gênero, raça, classe, sexualidade e geração que se impõem como perfil predominante na política institucional – qual seja o de homem branco, heterossexual, de meia idade, empresário – implica que quanto mais distante as mulheres se encontram em relação a esse padrão, maior é a sua subalternização, como é o caso das mulheres pobres, negras, indígenas e LGBT’s (KULKAMP, 2019, p.18-19).

Então, depreende-se que os impedimentos à presença física de mulheres nos espaços da política institucional têm graves consequências para a expressão pública de seus interesses e demandas e, assim, para o exercício de influência direta na agenda política. A deslegitimação de sua participação política acarreta o ônus de atuarem enquanto sujeitos subalternos, cujas vozes enfrentam a sobrecarga da dominação. Por isso, suprimir a concentração de poder e a sub-representação política das mulheres pressupõe o desafio de se articular estratégias democráticas de representação que permitam redefinir os limites do próprio campo político.

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

KULKAMP, Camila. As tensões da representação das mulheres no campo político brasileiro. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.

LAHIRE, Bernard. Patrimônios de disposições. In: VISSER, Ricardo; JUNQUEIRA, Júlia. Dossiê Bernard Lahire. Belo Horizonte: UFMG, 2017.

LAHIRE, Bernard. Retratos Sociológicos: disposições e variações individuais. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2004.

LAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997.

(12)

PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Niterói: Eduff, 2014. PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1993.

Referências

Documentos relacionados

Dessa forma, a partir da perspectiva teórica do sociólogo francês Pierre Bourdieu, o presente trabalho busca compreender como a lógica produtivista introduzida no campo

O CES é constituído por 54 itens, destinados a avaliar: (a) cinco tipos de crenças, a saber: (a1) Estatuto de Emprego - avalia até que ponto são favoráveis, as

Tais orientações se pautaram em quatro ações básicas: apresentação dessa pesquisa à Secretaria de Educação de Juiz de Fora; reuniões pedagógicas simultâneas com

É importante destacar também que, a formação que se propõem deve ir além da capacitação dos professores para o uso dos LIs (ainda que essa etapa.. seja necessária),

O termo extrusão do núcleo pulposo aguda e não compressiva (Enpanc) é usado aqui, pois descreve as principais características da doença e ajuda a

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

esta espécie foi encontrada em borda de mata ciliar, savana graminosa, savana parque e área de transição mata ciliar e savana.. Observações: Esta espécie ocorre

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam