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A etnia e o genero na construção do Estado-Nação guatemalteco

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Academic year: 2021

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Dorotea Antonia Gómez Grijalva

Ri b´anikil tinamit, ri b´anikil winaq rech usuk´maxik rij ri

saqamaq´-tinamital pa we Paxil Kayalá

A etnia e o gênero na construção do Estado-Nação guatemalteco

Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientação do(a) Prof. Dr. Robin M. Wright.

Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação defendida e aprovada pela Comissão Julgadora em 15 / 02 / 2007.

BANCA

Prof. Dr. Robin M. Wright IFCH, Presidente (ausente) Prof. Dr. Mauro Almeida, IFCH, Presidente Suplente Profa. Dra Alcida Rita Ramos, UNB, Titular

Profa. Dra. Vanessa R. Lea, IFCH, Titular Prof. Dr. John M. Monteiro, IFCH, Suplente

Profa. Dra. Regina Müller, IA, Suplente

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH – UNICAMP

Título em inglês: Ethnicity and gender in the construction of the Guatemalan Nation-State

Palavras-chave em inglês (Keywords):

Titulação: Mestre em Antropologia Social

Banca examinadora: Robin M. Wright (orientador) Alcida Rita Ramos

Vanessa R. Lea

Data da defesa: 15/02/2007

Programa de Pós-Graduação: Pós-graduação em Antropologia Social National State

Guatemala – Ethnic relations Guatemala – Gender relations Genocide

Rural development

Indians – Guatemala – Land tenure

Grijalva, Dorotea Antonia Gómez

G878e A etnia e o gênero na construção do Estado-Nação guatemalteco / Dorotea Antonia Gómez Grijalva. - - Campinas, SP: [s.n.], 2007.

Orientador: Robin M. Wright.

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Estado nacional. 2. Guatemala – Relações étnicas. 3. Guatemala – Relações de gênero. 4. Genocídio - Guatemala. 5. Desenvolvimento rural. 6. Índios – Guatemala – Posse da terra. I. Wright, Robin M. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

III. Título.

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RESUMO

Este estudo tem como objetivo indagar e analisar as características do projeto de Estado-Nação guatemalteco na Guatemala atual. Portanto, a partir da etnia e do gênero, investiga os avanços e os limites com relação às reivindicações dos povos indígenas e das mulheres, principalmente Maya, e ao mesmo tempo identifica o lugar deles e delas nas tentativas da re-configuração do Estado-nação guatemalteco. Dessa forma, enfatiza a análise nos quatro pilares principais da estrutura do Estado, que são: a) representatividade e participação dos povos indígenas e das mulheres; b) acesso, segurança jurídica e uso da terra; c) saúde; e d) educação. Para a realização deste estudo, utilizaram-se fontes históricas e bibliográficas sobre a história dos povos indígenas e as mulheres tanto na Guatemala como de outros lugares do mundo. A tese também analisa quatro propostas de desenvolvimento rural publicadas entre 2001 e 2002 na Guatemala, dois acordos de paz que estão estreitamente relacionados com os compromissos étnicos e de gênero e minhas próprias experiências de engajamento nas reivindicações históricas dos indígenas e das mulheres com relação a política étnica com enfoque de gênero na Guatemala atual.

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ABSTRACT

The objective of this study is to inquire about and analyze the features of the Guatemalan Nation-State project in present-day Guatemala. Thus, the inquiry will be based on a consideration of ethnicity and gender, investigating the advances and limitations of the project with regard to the legitimate claims of indigenous peoples and women, mainly Mayan, and simultaneously identifying their places in the concrete proposals to reshape the Guatemalan Nation-State. In this way, the emphasis of the analysis is on the four main pillars of the structure of the State which are:: a) representation and participation of the indigenous peoples and women; b) access to, legal security over and use of the land; c) health; and d) education. To undertake this study, historical and bibliographical sources were utilized on the history of the indigenous peoples and women both in Guatemala and in other places of the world. Also, this thesis utilizes materials from four proposals for rural development published between 2001 and 2002 in Guatemala, two peace accords that are strictly related to ethnic and gender commitments and my own experiences of political engagement in the historical claims of indigenous peoples and women in relation to ethnic politics focused on gender in present-day Guatemala.

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A Francisca, minha irmã, com quem comparto a mesma raiz, a rebeldia e a amizade cúmplice para a realização dos meus sonhos.

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Agradecimentos

Um aspecto fundamental para minhas conquistas no campo formal da educação na Guatemala foi o grande esforço material e emocional que minha mãe Vicenta e meu pai Leonidas fizeram para que eu pudesse aceder aos pilares básicos do ensino formal, pois através deles consegui forjar meus projetos no campo profissional além do colegial.

Especial agradecimento a todas as mulheres Maya guatemaltecas dos diferentes contextos rurais que ao compartilhar suas vidas, muitas vezes mutiladas pela crueldade da guerra, da violência, do racismo e da discriminação na Guatemala profunda, motivaram-me a continuar confiando na luta por um mundo mais humano.

Agradeço a Robin por ter aceitado a responsabilidade de me orientar, por me incentivar a acreditar no meu projeto de pesquisa e por sua amizade e estima com que me acompanhou desde o primeiro dia em que cheguei ao Brasil. O tempo dedicado ao primeiro ano de formação do mestrado foi imprescindível para que minha inserção fosse menos frustrante na discussão e compreensão dos conteúdos abordados nas disciplinas do mestrado.

A Vanessa, pelo seu afeto, confiança e amizade compartilhada durante o mestrado, especialmente durante o último ano. Minha profunda gratidão por seus aportes críticos ao meu trabalho, principalmente no momento em que participou da minha banca de qualificação.

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Meus sinceros agradecimentos a Mauro, por ter contribuído de forma especial para que eu pudesse confiar e acreditar no meu estilo de ler as realidades sociais. Seus aportes teóricos e práticos sobre a riqueza da dádiva me fizeram valorizar ainda mais a sensibilidade de sua amizade.

A Omar pelos momentos de alegria e afeto compartilhados.

A Liliana, Laura, Ludmilia, Augusto, Bukke, Neusa, Isabel e Fernanda por todo o amor e carinho compartilhado. A amizade e ternura delas e deles foram vitais para desfrutar com intensidade a minha vida no Brasil. Sem elas e eles eu não teria tecido a tese com humor e perseverança.

Finalmente quero manifestar minha satisfação por ter sido beneficiada como bolsista do Centro de Investigaciones Regionales de Mesoameria (CIRMA) que, em parceria com o programa da Fundação FORD, financiaram os dois anos do mestrado. Eu considero que este tipo de iniciativa representa apenas um dos esforços mínimos para ressarcir a dívidas históricas para com os povos originários da Guatemala.

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SIGLAS E ABREVIATURAS

AIDPI Acordo sobre Identidade dos Povos Indígenas ASC Assembléia da Sociedade Civil

ASESA Acordo Sócio-econômico e Situação Agrária

AVANCSO Asociación para el Avance de las Ciencias Sociales en Guatemala

CACIF Comitê Coordenador de Associações Agrícolas, Comerciais, Industriais e Financeiras

CALDH Centro para la Acción Legal em Derechos Humanos CEH Comissão para o Esclarecimento Histórico

CEPAL Comissão Econômica para a América Latina

CNOC Coordenadora Nacional de Organizações Camponesas CNOC CNR Comissão Nacional de Reconciliação

CONAVIGUA Coordenadora Nacional de Viúvas Indígenas da Guatemala CONIC Coordinadora Nacional Indígena y Campesina

COPMAGUA Coordenadora de Organizações do Povo Maya COPREDEH Comissão Presidencial para os Direitos Humanos CPR Comunidades de Poblacion em Resistência CPR CUC Comite de Unidad Campesina

DEMI Defensoria da Mulher Indígena EGP Ejército Guerrillero de los Pobres

ERP Estratégia de Reducción de la Pobreza FAR Frente Armado Rebelde

FONTIERRAS Fondo de Tierras GAM Grupo de Apoio Mutuo

INE Instituto Nacional de Estatística

MINUGUA Missão de Verificação das Nações Unidas na Guatemala ORPA Organizacion Revolucionaria del Pueblo

OIT Organização Internacional do Trabalho PAC Patrulhas de Autodefesa Civil

PTI Pastoral de la Tierra Interdiocesana

SEGEPLAN Secretaria General de Planejamento e Programação Nacional SEPREM Secretaria Presidencial da Mulher

URNG Unidade Revolucionaria Nacional Guatemalteca

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Índice

Apresentação 1

Capítulo I: Um Estado-Nação guatemalteco que se imagina homogêneo 13

A etnia e o gênero como categorias de análise da hegemonia 13

A consolidação do poder econômico liberal 15

O liberalismo econômico e suas implicações na vida dos povos indígenas 19 A educação requisito obrigatório para o direito e a cidadania 24 Um Estado “revolucionário” com visão nacionalista 1944-1954 26

A reforma agrária e o fim do Estado “revolucionário” 29

O desenvolvimento como instrumento “anticomunista” 34 Educar para homogeneizar 38 Capitulo II: Contexto Histórico: antes, durante e depois do conflito armado45 A dinâmica sócio-política dos povos indígenas antes do conflito armado 48

O surgimento organizado e político dos indígenas 53 As outras organizações indígenas surgidas paralelas ao CUC 59 O surgimento da guerrilha e a desarticulação do movimento indígena 62 Conflito armado e a desarticulação do tecido social das comunidades Maya 67 O caráter etnocida da política contra-insurgente do Estado 70

O projeto guerrilheiro e as demandas étnicas e de gênero 79

O inicio do processo da transição democrática 82 O ressurgimento do movimento indígena 85 As mulheres como sujeitas políticas de oposição e questionamento frente ao Estado 92 O discurso do gênero na organização das mulheres Maya 95

A negociação dos acordos para o cessar fogo: os direitos étnicos e de gênero 106 A implementação dos Acordos 114

Capítulo III: A metamorfose no discurso sobre o Estado-Nação homogêneo vrs. o Estado-Nação multiétnico, pluricultural e multilingüe 129

As propostas de desenvolvimento rural e seus proponentes 1. Coordenadora Nacional de Organizações Camponesas (CNOC) 121

Características gerais da proposta de desenvolvimento 124

Identidade Indígena e representatividade 126

Os direitos a terra 127

Saúde 128

Educação 130

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2. Plataforma Agrária 132

Características gerais da proposta 136

Identidade Indígena e representatividade 139

Os direitos a terra 139

Os direitos e a participação das mulheres 140

Saúde 140

Educação 141

3. Comitê Coordenador de Associações Agrícolas, Comerciais, Industriais e Financeiras (CACIF) 141

Características principais da proposta 142

Direitos a terra 143

Identidade indígena e representatividade 143

Educação 144

Saúde 144

Os direitos e a participação das mulheres 144

4. Secretaria General de Planejamento e Programação Nacional (SEGEPLAN) 144

Características gerais da proposta 145

Educação 147

Saúde 148

Acesso à terra 149

Participação e representação indígena 151

Os direitos e a participação das mulheres 151

A linguagem do desenvolvimento e os direitos étnicos e de gênero 151

A URNG na negociação e implementação do AIDPI e o ASESA 161

A cooperação internacional no período de transição da guerra à paz 163

A Missão de Verificação das Nações Unidas na Guatemala (MINUGUA) 169

Breve reflexão sobre as propostas e as lacunas entre o discurso e a prática de seus proponentes 172

Conclusões finais 179

Referências bibliográficas 184

Anexo Mapa da Guatemala 193

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Apresentação

Esta pesquisa está estreitamente vinculada a minha preocupação pela forma como se tecem as relações sociais, econômicas e políticas na Guatemala hoje. Portanto, antes de explicar do que se trata, gostaria de expor os motivos pessoais que me estimularam a fazê-la.

Nasci em uma comunidade Maya k’ichee’ chamada Xesic I, no Departamento de El Quiché, localizado no ocidente da Guatemala, região habitada majoritariamente por povos Maya (ver Mapa anexo). Em 1981, esta região foi decretada como uma das principais fontes das forças guerrilheiras e, portanto, no mapa oficial, foi marcada como território vermelho pelas instituições militares, especialmente o exército nacional. O Estado argumentou que esta região abrigava “comunistas” considerados uma ameaça para a segurança interna do país. Nesse momento, eu tinha 6 anos de idade e os efeitos do conflito armado interno detonaram lenta e traumaticamente a vida da minha comunidade, devastando-a de forma permanente e sistemática, arrebatando a vida de vários parentes e vizinhos. Este contexto obrigou minha família a se deslocar para a capital do Departamento de El Quiché, chamada de Santa Cruz del Quiché, e, a partir daí, minha vida se constrói entre o urbano e o rural, dois mundos totalmente diferentes, principalmente porque o poder político e econômico, que rege as relações e, conseqüentemente, o acesso aos serviços públicos no contexto urbano, estava sob domínio dos ladinos1. Por conta disso, a reconstrução das nossas vidas em Santa Cruz del Quiché implicou uma luta imensa. Primeiro, porque, como parte de uma população rural deslocada, tínhamos o estigma de ser guerrilheiros e, portanto, a sociedade – os moradores do espaço urbano, especialmente ladinos2 – desconfiava da nossa presença. Éramos o alvo principal das constantes “buscas” dos militares e dos policiais que invadiam nossas casas sem mandato de busca e apreensão. Segundo, porque o fato de sermos do povo Maya dificultava a nossa

1

Termo utilizado para designar as pessoas guatemaltecas que não são só descendentes de indígenas. Neste sentido, a maioria dos ladinos é descendente de espanhóis e de espanhóis com indígenas.

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aceitação, por parte dos professores e colegas na escola. A escola tinha uma política bastante homogeneizadora, jamais considerando uma metodologia pedagógica que facilitasse a incorporação dos colegas que tinham dificuldade com a língua espanhola por pertencerem a famílias totalmente monolíngües – o que determinou, em muitos casos, a desistência escolar. Essa situação era agravada pelo fato de que, nos atos públicos, proibia-se que as crianças indígenas vestissem sua indumentária identitária3 – éramos obrigadas a utilizar o uniforme oficial da escola, caso contrário, ficávamos excluídas das atividades e com resultados negativos nas notas finais das disciplinas.4

Paralelamente aos 4 anos dedicados à formação colegial na capital da Guatemala, tive acesso aos sérios e profundos debates que diversas organizações ou lideranças Maya realizavam sobre as reivindicações indígenas5. Através desses debates compreendi melhor as causas do conflito armado interno e comecei a entender as lutas organizadas dos Maya e os obstáculos político-institucionais que dificultavam a conquista de suas demandas. Por volta de 1995, comecei a me vincular a ONGs que trabalhavam em comunidades indígenas rurais vítimas do conflito armado. Através delas quis me aproximar dos diversos contextos rurais da Guatemala, principalmente porque necessitava entender

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Dos três povos indígenas só os descendentes Maya vestem indumentárias étnicas na vida cotidiana, mas são as mulheres as principais criadoras e portadoras das mesmas, pois é mais comum que os homens vistam roupa ocidental. As indumentárias e as línguas Maya são os traços visíveis de afirmação da identidade étnica. A indumentária é considerada como um dos elementos de caráter político, econômico e espiritual mais visíveis da identidade dos povos Maya. A elaboração dos tecidos permite o desenvolvimento artístico das mulheres, assim com certa autonomia econômica através dos ganhos com esse trabalho. Eu a defino como a segunda pele tanto individual como coletiva já que através das cores e desenhos se recria e fortalece a memória histórica dos povos e o sentimento de pertecer à identidade Maya.

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Quando iniciei meus estudos no primeiro ano do colegial na capital da Guatemala, fui obrigada a me submeter à terapia psicológica para aceitar a utilização do uniforme oficial para que eu pudesse assistir às aulas, devido a minha insistência em ir à escola com minha indumentária indígena. Várias mulheres indígenas experimentam situações parecidas em diferentes centros educativos e em espaços de trabalho. Em outros casos, as mulheres foram expulsas de lugares públicos, como restaurantes, bares, etc, pelo fato de vestirem sua indumentária Maya.

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Quero salientar que neste estudo eu resgatarei mais a experiência dos povos Maya, porque eles têm assumido um papel protagonista face ao Estado-Nação guatemalteco, mas também porque representam a maioria da população indígena do país. Ao longo do estudo utilizarei, de forma livre, o termo Maya, ou indígena, para referir-me aos povos de descendência Maya, mas também utilizarei o termo indígena para referir-me a todos os aspectos que envolvem a vida, interesses, preocupações dos Maya, dos Xinca e dos Garifuna. Cabe esclarecer que o uso do termo Maya ao invés do indígena, utilizado por várias mulheres e homens pertencentes ao povo Maya, cobra importância política, porque através dele se reafirma a consciência política sobre os direitos étnicos frente ao Estado e à sociedade em geral, mas até hoje não tem sido assumido por todos os descendentes Maya, que mais comumente se identificam como indígenas, ou

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melhor como estas comunidades estavam se recuperando, ou sobrevivendo aos traumas da guerra, para que, assim, eu pudesse entender melhor meus próprios traumas e também conhecer como as ONGs projetavam e executavam seu trabalho com elas. Esta experiência possibilitou minha aproximação das lógicas e políticas de financiamento encaminhadas para o “desenvolvimento”. Deparei-me com as relações bastante contraditórias dos “financiadores/administradores/ desenvolvidos” com os “beneficiários/subdesenvolvidos”. Muito cedo me decepcionei com as formas de implementação dos projetos, pois vi de perto como as características e condições de financiamento, embora tendo o objetivo de melhorar a vida das comunidades excluídas pelo próprio Estado, provocavam mais conflitos aos já existentes, especialmente porque os projetos não beneficiavam todos os habitantes das comunidades onde haviam sido implementados. E, além disso, na maioria dos casos, as ONGs envolvidas foram administradas por pessoas que pouco se preocupavam em conhecer e compreender a dimensão étnica das realidades dos povos indígenas. Portanto, os planos de desenvolvimento e projetos assistencialistas não respondiam às necessidades e interesses das populações com as quais trabalhavam.

Em 1998 participei de uma equipe de pesquisa que realizou um estudo para compreender as mudanças na vida das mulheres Maya guatemaltecas, refugiadas no México por mais de 12 anos, retornando a Guatemala entre 1993 -1999. O propósito foi identificar os fatores que possibilitaram mudanças na vida pessoal e comunitária destas mulheres, com relação a seus interesses específicos de gênero, principalmente sobre organização, participação comunitária, capacitação, educação, saúde e acesso a terra; por outro lado, este estudo também buscou compreender as dificuldades que elas encontravam no território guatemalteco para continuar fortalecendo suas experiências e conquistar suas demandas frente às organizações comunitárias e às instituições do Estado. Através desta pesquisa, que acabou no ano 2000, conheci e me relacionei de forma mais direta com um universo de organizações tanto indígenas como ladinas, constituídas só por homens ou só por mulheres, camponesas ou não, rurais ou urbanas e mistas.

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Durante a pesquisa observei as diversas estratégias que estas organizações utilizaram para construir alianças entre elas, para estabelecer vínculos com o Estado e a cooperação internacional e para participar ativamente na implementação dos compromissos dos acordos de paz. As organizações confiavam na possibilidade de dar realidade a existência de um Estado mais democrático e participativo, capaz de reconhecer plenamente os povos indígenas e as mulheres.

Minha presença nas comunidades e em algumas destas organizações me motivou a compreender cada vez melhor a complexidade dos obstáculos políticos, sociais e econômicos que dificultavam a implementação dos compromissos de tais acordos. Por isso optei por participar em outros projetos de pesquisa sempre vinculados às comunidades rurais, indígenas e de mulheres. No entanto, estes estudos não se aprofundavam nas questões étnicas e de gênero, devido ao fato de que as categorias utilizadas eram também homogeneizantes (por exemplo: camponeses, mulheres, etc.). A partir dos resultados das pesquisas em que me envolvi, quis entender se nas instituições novas, criadas a partir dos acordos de paz, a visão do Estado sobre os indígenas e as mulheres tinha mudado em alguma coisa. Minha intenção foi mergulhar na dinâmica de uma dessas instituições, não mais como pesquisadora, mas fazendo parte de sua estrutura interna. Assim, em 2003, aceitei trabalhar na Secretaria Presidencial da Mulher, que tem como responsabilidade principal assessorar e coordenar a elaboração e implementação das políticas públicas para mulheres em todo o país. A experiência foi frustrante, porque as propostas para reforma ou elaboração de políticas públicas não consideravam, em nenhum momento, a questão étnica. A justificativa era de que uma secretaria da mulher devia focar sua luta nos direitos de gênero, e que para os direitos étnicos, um ministério ou secretaria indígena teria que ser criado! Negociar e dialogar numa estrutura integrada por mais de 50 funcionárias onde as indígenas eram apenas 3 não foi fácil. Defender os posicionamentos políticos sem maior respaldo provou-se ainda mais difícil, pois a resistência em reconhecer que na Guatemala a etnia e o gênero devem ir necessariamente juntos

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é realmente grave. Por tudo isso, conclui que as mudanças no discurso do Estado, não se refletem nas práticas de sua estrutura e, com isso, resolvi voltar meu olhar para aqueles atores sociais que, com suas vozes e atuações, estão provocando, a duras penas, algumas mudanças significativas.

No segundo semestre do 2003, realizei um trabalho de acompanhamento técnico e político para uma organização de mulheres indígenas rurais, chamada Mamá Maquin - uma das três organizações fundadas no refugio. Essas organizações são pioneiras na questão da luta das mulheres pelo direito a terra, pelos direitos de participação política nas estruturas de suas comunidades e, por conseguinte, lutam pela participação dessas comunidades nas decisões nacionais6. A discussão central entre as responsáveis pela coordenação nacional desta organização girava em torno das diversas propostas sobre a política de desenvolvimento rural. Esta organização queria indagar até que ponto suas reivindicações estavam incluídas nos conteúdos dessas propostas, já que estas haviam sido feitas por diversos atores sociais que não as haviam convidado para participar do processo de elaboração das mesmas. Para as integrantes desta organização era fundamental conhecer o que as propostas compreendiam por desenvolvimento rural, qual o conteúdo das mesmas e como participar do processo de negociações com o Estado que as duas coordenações nacionais de indígenas camponeses tentavam impulsionar. Portanto, os debates já não se focavam sobre conteúdo e compromisso dos acordos de paz, mas sobre a discussão da política de desenvolvimento rural.

A partir desta última experiência é que achei interessante realizar, no Mestrado, um estudo que me permitisse indagar e compreender as características da política étnica depois do fim do conflito armado na Guatemala atual, identificar os avanços e os limites dela com relação às demandas dos povos indígenas e, ao mesmo tempo, identificar o lugar das mulheres nesta política e,

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Em coordenação com Mamá Maquin, também trabalham as outras duas organizações de mulheres refugiadas retornadas: Madre Tierra e Ixmucané. A diferença entre as três organizações é que Mamá Maquin está integrada majoritariamente por mulheres Maya e as outras duas são integradas majoritariamente por

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conseqüentemente, nas políticas públicas. Já que se os povos indígenas são excluídos e discriminados nas estruturas de poder formal e nas políticas públicas do Estado, é necessário reconhecer que as mulheres sofrem os maiores efeitos destas relações desiguais, especialmente as mulheres indígenas e rurais. Atualmente, as principais políticas públicas que afetam os homens e as mulheres da Guatemala, como na maioria dos países do mundo, são elaboradas por e a partir da visão dos homens e brancos; porém, os conteúdos e o enfoque desta visão não correspondem à maneira e aos procedimentos que os povos e as mulheres necessitam, por exemplo: o acesso à terra por parte de indígenas e ladinos camponeses não garante o direito das mulheres aos títulos de propriedade porque na maioria dos casos o nome delas não é registrado – todos os benefícios que giram em torno da terra as exclui. A deficiência das instituições públicas no que diz respeito aos direitos das mulheres indígenas começa pelo fato de utilizarem somente a língua espanhola, enquanto as mulheres indígenas são majoritariamente monolíngües em comparação com os homens. Outro aspecto importante é que independentemente do gênero e da etnia, os problemas de saúde e educação são mais graves na vida das mulheres indígenas.

A sociedade guatemalteca está se recuperando dos efeitos de um longo e desumano conflito armado interno, que durou 36 anos, de 1960 a 1996. Em 1985, na América Central, foram realizados encontros entre os governos de Estado para coordenar a criação das bases que dariam início ao diálogo entre governos e grupos revolucionários, com o propósito principal de acabar com as guerras e estabelecer as condições para a reconstrução das nações afetadas7. Na Guatemala, o processo que deu margem ao diálogo entre o governo e a Unidade Revolucionaria Nacional Guatemalteca (URNG) iniciou em 1987, mas só se concretizou a partir de 1991 e as negociações fundamentais para o cessar-fogo se desenvolveram com maior intensidade entre 1994 e 1996. Nesta última fase da negociação, a sociedade civil participou de forma indireta no processo e os povos

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O interesse dos Estados, nessa ocasião, esteve motivado pela necessidade de superar o isolamento internacional que conseqüentemente os estava excluindo das políticas econômicas de financiamento externo

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indígenas e as mulheres foram reconhecidos como atores sociais, sendo, portanto, chamados a participar da elaboração e discussão de propostas que deveriam ser incluídas na mesa de negociação entre o Estado e a URNG.

A assinatura dos acordos de paz e o cessar-fogo definitivo assinado em dezembro de 1996 significaram para a população guatemalteca, especialmente para indígenas e mulheres, a oportunidade de estabelecer as bases para um projeto de nação democrático, não mais determinado e subordinado aos interesses de setores do poder econômico e militar liderado totalmente por ladinos e homens. As negociações de paz nos últimos anos do conflito armado abriram espaços de participação. As organizações de indígenas e de mulheres emergiram da clandestinidade e se reafirmaram como movimentos e como sujeitos políticos. Apesar das seqüelas devastadoras da guerra, criaram-se estratégias e mecanismos inovadores para negociar e dialogar com o Estado, servindo como recursos para os procedimentos e ações necessários para construir uma nação capaz de reconhecer e respeitar os direitos étnicos e das mulheres.

O conflito armado e o processo que levou ao seu fim por meio dos acordos de paz são fenômenos sócio-políticos que provocaram mudanças nas relações entre o Estado, os povos indígenas e as mulheres. Embora o conteúdo dos acordos de paz abordasse problemas estruturais nunca antes reconhecidos na história guatemalteca, infelizmente nestes últimos 10 anos a implementação dos compromissos assumidos por parte do Estado não corresponde à magnitude e profundidade da problemática social, econômica e política que afeta a maioria da população. As organizações sociais, entre as quais destacam-se as de indígenas e mulheres, ao assumirem a função de auditores sociais de verificação do cumprimento de tais acordos, continuam denunciando que os resultados não são significativos se comparados aos compromissos fundamentais neles assumidos.

Assim, este contexto de constante fluxo dentro da nação guatemalteca se torna propício para a realização deste estudo que enfatiza a análise da questão

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étnica e de gênero, ambas focadas nos seguintes aspectos: a) representatividade e participação dos povos indígenas e das mulheres; b) acesso, segurança jurídica e uso da terra; c) saúde; e d) educação. Seguramente outros estudos utilizariam outras questões, mas do meu ponto de vista, estes quatro aspectos são os pilares principais da estrutura do Estado e estão estreitamente vinculados às relações de poder marcadas pelo etnocentrismo e o racismo. Para realizar os objetivos deste estudo, considerei como recursos fundamentais os acordos de paz e as quatro propostas de desenvolvimento rural publicadas entre 2001 e 2003. Através das propostas de desenvolvimento, pretendo entender como o Estado, os indígenas camponeses e os setores econômicos de poder entendem a política étnica e recuperam as reivindicações históricas dos indígenas e das mulheres. Pretendo entender como os acordos de paz traduzem os compromissos étnicos e de gênero e quais são os aspectos que os aproximam ou os distanciam do foco da política étnica com enfoque de gênero. Basicamente utilizarei fontes históricas e bibliográficas, além das minhas próprias experiências de engajamento, para melhor entender o processo histórico e os fatores que deram lugar à configuração de tais posicionamentos.

Relevância Política desta pesquisa

A Guatemala é um país pequeno, com extensão territorial de 108.888 km2 e habitado por 11.237.196 (onze milhões, duzentos e trinta e sete mil, cento e noventa e seis pessoas) – sendo que 60.3% habitam na área rural e, desta parcela, 59% é indígena – caracterizando-se pela sua heterogeneidade e diversidade étnica, como ocorre em outros países do mundo. A população da Guatemala é composta por quatro povos, sendo três deles indígenas. Segundo os resultados do censo nacional realizado em 2002, o povo Maya constitui 39.8%8 e

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Os Povos Indígenas da Guatemala contestam o resultado do censo, pois percebem a sua população muito mais numerosa do que o apontado. De fato, tendo a compartilhar dessa opinião, pois nem sempre o censo é feito com rigor e o exemplo da minha casa é significante: quando por lá passaram, eu não estava e minha irmã foi quem respondeu ao questionário. Depois de inúmeras perguntas, o entrevistador a deixou sem ao menos perguntar quais línguas ela falava e se ela se identificava com alguma etnia indígena. Acredito que isso ocorreu por ela não estar vestida a caráter e falar espanhol fluentemente. Esse é o caso de muitos indígenas que vivem na cidade capital e em todo o país. Contudo, deixar de se vestir suas indumentárias

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é formado por 21 grupos lingüísticos9. Além dos Maya há o povo Xinca e o povo Garífuna10 que constituem 0.2%. O grupo Ladino que não se identifica como indígena, em sua maioria é composto por descendentes de uma mistura de espanhóis e indígenas, descendentes de espanhóis e também de outras nacionalidades como alemães, franceses, etc e constitui o 60% da população. Segundo o documento Constitucional do país datado de 1985, a Guatemala se caracteriza por um sistema de governo republicano, democrático e representativo.

De todos os países da região Centro Americana, a Guatemala é o país com maior presença indígena. A distribuição do espaço urbano e rural reflete uma política oficial que determinou o urbano para os ladinos e o rural para os indígenas, o que conseqüentemente outorga o controle do poder econômico e político aos ladinos. Esta lógica de distribuição do espaço remonta desde a época da invasão espanhola no século XVI e, mesmo com as mudanças promovidas a partir da independência em 1821, esta lógica se fortaleceu ainda mais. A terra mais fértil concentrou-se nas mãos de poucas famílias descendentes de espanhóis e, com o passar do tempo, o sistema latifundiário se constituiu como instrumento fundamental de estruturação das relações de poder profundamente desigual entre ladinos e indígenas.

podemos supor que esse exemplo possa ter ocorrido em inúmeros domicílios.

9

São eles: K´iche´, Kaqchikel, Q´eqchi´, Mam, Poqomam, Achi, Akateko, Awakateko, Chuj, Itza´, Ixil, Jakalteko, Q´anjob´al, Mopan, Poqomchi´, Sakapulteko, Sipakapense, Tektiteko, Tz´utujil, Uspanteko y Chorti´.

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Os pertencentes ao povo Xinca são descendentes da família lingüística Yuto-Azteca, que migraram do México para Guatemala muitos anos antes da chegada dos Espanhóis, mas não existem dados que indiquem o período exato em que chegaram a Guatemala. Os Garífuna são descendentes da mistura entre o povo Kallinagú – mais conhecido como índios Caribe-da ilha de San Vicente próxima à Venezuela e de escravos africanos. O que se sabe é que em 1642 um barco negreiro português com destino para o Brasil naufragou perto da ilha San Vicente, a partir daí os escravos africanos se refugiaram com os Kallinagu e, com o passar do tempo, os africanos casaram-se com mulheres Kallinagu e dessa mistura identificaram-se como Garinagu. Nos anos que se seguiram, ao longo do mar Caribe, espalhou-se a notícia da existência da ilha de San Vicente onde indígenas e africanos moravam de forma livre. O que provocou, em 1734, a fuga de aproximadamente 500 escravos africanos da ilha de Martinica para San Vicente. No entanto, em 1796, os ingleses lograram invadir e ocupar a ilha e como castigo a resistência dos Garinagu, o rei da Inglaterra, em 1797 ordenou desterrar 500 Garinagu para enviá-los a ilha de Roatam. A partir de 1802 os Garinagu começaram a se deslocar pelo Mar Atlântico e chegaram a Guatemala, Belice e Nicarágua aproximadamente em 1832. Na Guatemala se estabeleceram na ilha de Livingston, no Departamento de Izabal, atualmente eles se identificam como Garifuna. A língua que os identifica também é chamada Garifuna, ela é uma mistura de Kallinagu, francês e inglês. Atualmente continuam morando em Livingston e apesar de, por muito tempo, não se misturarem com os povos Maya, recentemente se tem registrado casamentos entre homens Garifuna e

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O projeto de Estado-Nação guatemalteco – assim como em outras realidades do mundo – dista do caráter pluri-étnico da população que forma o país, pois seu propósito principal é construir um Estado etnicamente homogêneo. Evidentemente, as estratégias institucionais para torná-lo realidade se fundamentam numa ideologia extremamente etnocêntrica e racista que se materializou na implementação intercalada de políticas de integração e assimilação dos povos indígenas. Essas estratégias, usadas desde a independência até 1954, apoiaram-se de maneira permanente na imposição do trabalho forçado institucionalizado – que durante o período liberal (1871-1943) chegou a ter um caráter quase escravo para os indígenas e os expropriou impunemente das terras que ainda conservavam.

Atualmente na estrutura de governo e nas instâncias de poder estatal – que compreende o municipal, o departamental e o central – a presença e participação direta dos povos indígenas e das mulheres é pouco significativa e evidencia a persistência da resistência do Estado em reconhecê-las (los) nos espaços de decisão institucionalizados legitimamente e na sua estrutura formal. Por exemplo, no Congresso da República, dos 158 deputados atuais, 18 são Maya11 e a representação feminina também é inexpressiva, pois há apenas 14 mulheres atuando como deputadas, sendo que apenas uma é indígena12. Das 331 prefeituras apenas 111 são ocupadas por indígenas, apenas 8 mulheres são prefeitas e dessas uma Maya.

A política contra-insurgente que o Estado guatemalteco desenvolveu para submeter o levante guerrilheiro teve uma característica extremamente genocida e, durante os anos de 1981-1983, tornou-se também etnocida, evidenciando a máxima expressão do racismo institucionalizado na política militar que reprimiu indiscriminadamente a maioria do povo Maya. Especificamente entre 1981 e 1983,

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Depois do cessar-fogo o número de deputados indígenas no congresso aumentou, já que entre 1985 e 1995 não superou 8 vagas e nas eleições de 1999 foram eleitos 14, mais esta tendência não representa avanços significativos se comparados com as porcentagens de população indígena e ladina que habitam a Guatemala.

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o exército implementou a chamada política Tierra Arrasada pela qual decretou o extermínio de todas as comunidades Maya localizadas nas regiões de maior presença guerrilheira, exterminando assim 626 comunidades somente neste período13. A partir destes anos, os pertencentes aos povos Maya foram acusados e estigmatizados como inimigos do Estado. Condenados como comunistas foram submetidos a processos sistemáticos de ataque, extermínio e controle militar até o fim do conflito armado.

Entendendo que a Guatemala ainda está em fase de reconstrução, este estudo pode constituir-se em um recurso importante para os planejadores tanto nacionais quanto internacionais, de modo a considerar os aspectos relevantes e indispensáveis ao contexto guatemalteco. Especialmente para que o Estado e suas políticas superem a visão e a prática excludente e repressiva para com os povos indígenas e as mulheres.

O estudo será organizado três capítulos. No primeiro, tentarei colocar os aportes teóricos dos autores que utilizarei ao longo da tese para analisar a relação da etnia e o gênero no processo de implementação do projeto de Estado-nação guatemalteco e sua relação com os indígenas camponeses, as mulheres e o rural. As teorias, conceitos e definições apenas servirão para auxiliar a compreensão e a análise do propósito principal do estudo. Especificamente, o que pretendo é recuperar o discurso oficial do Estado sobre os indígenas e as mulheres e os contra-discursos dos atores sociais representados pelos camponeses e pelos setores que concentram o poder econômico e político. No segundo capítulo, pretendo fazer uma breve descrição das causas histórico-estruturais que provocaram o surgimento do projeto revolucionário militar guerrilheiro e, como e por que os indígenas se integraram a ele. Realçarei como esse projeto integrou, ou não, as reivindicações étnicas e das mulheres, para logo recuperar como se deu o processo de negociação dos acordos de paz, os encontros e desencontros entre indígenas e os outros atores sociais na discussão e na elaboração das

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propostas relacionadas ao Acordo Sobre Identidade e Direitos dos Povos Indígenas e o Acordo Sócio-econômico e Situação Agrária. Interessa resgatar aqui as expectativas e os vazios destes em relação às demandas dos povos indígenas e das mulheres, assim como as alianças construídas entre eles a partir do processo da implementação dos acordos.

No terceiro capítulo farei uma análise das quatro propostas de desenvolvimento mais relevantes e representativas da Guatemala. Tentarei resgatar o que propõem sobre: a) representatividade e participação dos povos indígenas e das mulheres; b) o acesso, a segurança jurídica e o uso da terra; c) saúde; e d) educação. Em seguida, discutirei a relação destas propostas com os compromissos do Acordo sobre Identidade dos Povos Indígenas (AIDPI) e o Acordo Sócio-econômico e Situação Agrária (ASESA). Também recuperarei de forma geral o posicionamento da URNG com relação à implementação do AIDPI e do ASESA. Em seguida farei uma discussão sobre as reivindicações dos povos indígenas e das mulheres e se estas fazem parte das propostas escritas e publicadas para implementar ações ou negociar a elaboração de políticas públicas por parte do Estado.

Por outro lado, considero necessário colocar a seguinte questão: qual foi o papel da cooperação internacional no processo de negociação e implementação dos acordos? A análise dos informes da Missão de Verificação das Nações Unidas na Guatemala me permitirá conhecer o posicionamento e o discurso de cooperação sobre os povos indígenas e as mulheres. Logo, realizarei uma reflexão sobre a viabilidade das propostas de desenvolvimento e uma crítica as lacunas existentes entre o discurso e a prática dos seus proponentes. Finalmente colocarei minhas conclusões sobre os desafios que o Estado-nação guatemalteco enfrenta na construção de uma política étnica e de gênero na Guatemala atual.

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Capitulo I

Um Estado-Nação guatemalteco que se imagina homogêneo

1. A etnia e o gênero como categorias de análise da hegemonia

A etnia e o gênero serão meus principais fios condutores para compreender a complexidade das relações sócio-políticas na dinâmica do processo de implementação do projeto de Estado-nação guatemalteco. Neste capitulo e ao longo da tese, tentarei tecer aspectos da vida dos povos indígenas e das mulheres, principalmente as indígenas, com os aportes teóricos dos autores que fazem sentido e se aproximam da perspectiva com que me propus analisar a realidade étnica e de gênero na dinâmica social da Guatemala. Especificamente, interessa-me relacionar o caráter multi-étnico da sociedade guatemalteca frente ao caráter do Estado estruturado a partir de uma lógica etnocêntrica homogeneizante é patriarcal. Aqui me propus recuperar, com especial ênfase, as características do projeto de Estado-nação a partir do período que compreende 50 anos após a independência da Espanha e antes que os povos indígenas – principalmente Maya – surgissem organizados como atores políticos de oposição e questionamento frente à lógica repressiva e homogeneizante da estrutura estatal que os exclui, explora, discrimina e oprime fundamentalmente por sua origem étnica.

Por etnia, compreendo e utilizo a definição de Cardoso de Oliveira, “como um “classificador” que opera no interior do sistema interétnico e ao nível ideológico como produto de representações coletivas polarizadas por grupos sociais em oposição latente ou manifesta” (1976:XVII). E, por gênero, o que define Joan Scott, ou seja, “como o elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferencias percebidas entre os sexos e como o primeiro modo de dar significado ás relações de poder entre masculino e feminino”(1990:14)14. A

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Neste sentido por diferenças de sexo compreendo os atributos biológicos com que nascem os homens e as mulheres. E por diferenças de gênero as características sócio-culturais com que se identificam o ser feminino

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ideologia etnocêntrica do Estado-nação no contexto da sociedade multi-étnica guatemalteca tem sérias implicações para a vida dos povos indígenas. A conjugação das representações de etnia e de gênero dessa ideologia na sua estrutura política e cultural tem efeitos mais sérios na vida das mulheres indígenas porque na realidade “o gênero não deixa de ser uma dimensão decisiva da organização da igualdade e da desigualdade” e porque “as estruturas hierárquicas repousam sobre percepções generalizadas da relação pretensamente natural entre masculino e feminino” (1990:14-18).

Recuperando, assim, as contribuições de Cardoso de Oliveira e de Scott, tanto a etnia como o gênero abrangem identidades e padrões de cultura, ao mesmo tempo em que se constituem como elementos chaves através dos quais se constroem ideologias, símbolos culturais, conceitos normativos, instituições, sistemas políticos e econômicos que permeiam a polarização das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre grupos étnicos e entre os sexos. Conseqüentemente, dão significado às desiguais relações de poder na dinâmica das sociedades. Efetivamente, no caso da Guatemala, a significação que o Estado dá, na sociedade, ao exercício do poder nas relações sociais, econômicas e políticas se produz a partir da articulação e construção de valores culturais e ideológicos que descansam na estreita combinação da etnia e do gênero.

Portanto, do meu ponto de vista, utilizando estas duas categorias será possível analisar de maneira mais concreta como a ideologia etnocêntrica do Estado-nacão guatemalteco está fundamentada na imposição de um aparato político cuja estrutura e administração tem criado instituições e políticas a partir de uma lógica ladina que nega a existência das formas próprias de organização sócio-econômica e política dos diversos povos indígenas guatemaltecos, ao mesmo tempo em que se empenha em impor uma identidade homogênea inspirada essencialmente nas características das sociedades européias. É possível analisar também como seu caráter e ideologia tanto etnocêntrica quanto racista e patriarcal, reproduz na sociedade, valores culturais e procedimentos

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político-institucionais através dos quais legitima a desvalorização das mulheres e dos indígenas como cidadãos de segunda categoria. Dessa forma, a organização de sua estrutura e de suas instituições se sustenta numa ideologia de poder injusto e desigual que recria valores e práticas que consolidam a implementação de políticas de exclusão, opressão e discriminação étnica e de gênero, como veremos neste capítulo e ao longo dos outros capítulos desta tese.

A consolidação do poder econômico liberal

Apesar de o processo sócio-político de independência da Guatemala da Espanha – que se deu em 1821 – ter envolvido uma forte participação dos povos indígenas e de algumas mulheres, a fundação da estrutura política formal da República guatemalteca e das bases que deram a sustentação ideológica e política ao projeto de Estado-nação se fizeram predominante com a participação dos Criollos que formavam a elite econômica guatemalteca. Os Criollos eram os espanhóis residentes, nascidos ou não na Guatemala, que eram descendentes de espanhóis sem miscigenação indígena15. Concretamente eram descendentes dos “conquistadores” e colonizadores com uma posição econômica forte, já que existiam descendentes de espanhóis imigrados para a Guatemala durante a colônia que não eram misturados e que, apesar de possuírem riqueza suficiente e serem parte da elite econômica, sua participação política na condução e administração do Estado não era considerada legítima por não serem descendentes dos “conquistadores” e colonizadores.16

Desde a independência da Espanha até 1943, o Estado foi administrado por um sistema tradicional de governos ditatoriais, majoritariamente militares, que serviam e protegiam enfaticamente os interesses da classe dominante que se

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Eles se identificavam como Criollos, para diferenciar-se dos indígenas, dos espanhóis pobres sem mistura que eram filhos de imigrantes e dos espanhóis com descendência indígena chamados de Ladinos, especialmente para legitimar e garantir seus direitos de herança e poder por serem filhos ou descendentes dos “conquistadores” e dos colonizadores ricos. No entanto, Taracena (2002) afirma que, na altura de 1840, o termo Ladino começou a ser utilizado para nomear todos os guatemaltecos que não eram ou se identificavam como indígenas. E foi só até 1960 que o Estado o adotou ideologicamente.

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dividia em dois grupos principais: conservadores e liberais. Os conservadores integrados exclusivamente pelos Criollos, segundo Cambranes (1996), estavam interessados em preservar a estrutura de poder de origem colonial, assegurando suas vidas parasitárias de senhores da terra, usurários e burocratas com renda permanente proveniente especialmente da exploração de trabalhadores indígenas, da especulação mercantil e financeira. Os conservadores exerceram seu poder na administração do Estado durante o período que compreende 1821 a 1871.

Os liberais, integrados por descendentes espanhóis com e sem miscigenação indígena, caracterizaram-se por sua visão “progressista” de expandir para todo o país o cultivo capitalista da agro-exportação do café, como meio de consolidar os interesses da burguesia agrária e do capital estrangeiro como condição principal para competir no mercado econômico internacional. Cafeicultores dos Altos da Guatemala, comerciantes e proeminentes políticos conscientes que, para o pleno desenvolvimento do capital comercial, necessitavam do desenvolvimento do capitalismo agrário, construíram uma aliança para derrubar a ditadura conservadora e ter acesso ao controle e domínio direto do poder político, já que através disso se tornava mais fácil a eliminação de todos os obstáculos para a consolidação da cafeicultura comercial e a consolidação de seu domínio de classe, visando acelerar o processo de conversão da economia fundamentalmente rural em uma economia de mercado como meio para assegurar um maior enriquecimento econômico.

O período que compreende 1871-1943 é conhecido como “Reforma Liberal”. Os precursores desta reforma se propuseram “[...] eliminar los obstáculos jurídicos que impedían el libre acceso a la propriedad individual de la tierra de cultivo tradicionalmente em poder de la Iglesia y de las comunidades indígenas” (Cambranes.1992:314)17. Por suas características é também chamada como a ditadura dos fazendeiros, porque foi liderada e dominada pelos principais produtores e exportadores de café, que se identificavam como os representantes

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“do desenvolvimento da agricultura e o progresso do país”. Com a chegada dos liberais ao poder de condução e administração do Estado, a hegemonia da elite econômica Criolla foi lentamente desintegrada e substituída pelos ladinos ricos conforme foram adquirindo poder sobre a posse da terra e de exploração da mão de obra indígena e ladina pobre. Através da consolidação de seu poder sobre a terra, fortaleceram e ampliaram seu poder de decisão no processo de definição e implementação do projeto de Estado-nação. Neste sentido, autores como Taracena afirmam que:

“en las tres primeras décadas del siglo XX [...] el discurso estatal y el de sus intelectuales organicos [...] hacia del ladino el equivalente [...] de la identidad nacional guatemalteca. Más que el mestizo era el ladino entendido culturalmente como el no indígena, que se iba consolidando como el actor del nacionalimso guatemalteco” (Taracena.2002:132).

Respondendo a seu objetivo, o triunfo liberal além de converter em propriedade privada a propriedade coletiva das comunidades indígenas, institucionalizou a política de obrigar os povos indígenas a servir aos interesses dos fazendeiros. Segundo Cambranes (1996), a burguesia agrária representada pelos cafeeiros foi fortemente influenciada pela revolução industrial que se deu na Europa e nos Estados Unidos no século XIX. Essa revolução contribuiu para que, na segunda metade do século XIX, a Guatemala fosse incorporada ao mercado mundial na qualidade de semicolônia Alemã18 e, na primeira metade do século XX, dos Estados Unidos. Desta forma, o projeto dos liberais centrou-se no desenvolvimento da agricultura, especialmente do café, para integrar-se ao mercado internacional. Assim, desde 1871, com o estabelecimento do capitalismo neocolonial, a história dos povos indígenas volta a ser marcada pelas expropriações de suas terras, a emissão e aplicação de leis que os obrigaram ao trabalho forçado que se caracterizou pela prática da escravidão encoberta ou peonagem. Dessa forma, continuaram sendo oprimidos e explorados não mais

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pelos interesses da colônia, mas pelos interesses dos fazendeiros nacionais e estrangeiros dedicados ao cultivo do café e a acumulação econômica.

Com o pretexto de impulsionar o progresso do país, a administração liberal abriu as portas com total liberdade ao capital estrangeiro, especialmente alemão e estadunidense. Nas palavras do primeiro governo liberal Justo Rufino Barrios, para o progresso nacional “valian más 100 famílias extranjeras que 20,000 indígenas guatemaltecos” (Cambranes.1996:221). Com esta visão os governos que se sucederam no poder autorizaram o confisco impune das terras comunais dos povos indígenas – a apropriação de 675 até 6750 hectares de terreno por família com o propósito de fortalecer a produção do café. Nesses processos de confisco de terras muitas comunidades ou famílias indígenas tornaram-se colonos passando a ser forçosamente propriedade dos fazendeiros. E muitas famílias ladinas tiveram uma significativa ascensão econômica e, automaticamente, passaram a ser parte da elite econômica da qual não faziam parte anteriormente.

Ser parte do mercado internacional implicava não só modernizar o cultivo para exportação, mas também “modernizar” a sociedade através da criação de condições que facilitassem a competição no campo econômico internacional. Portanto, o Estado se esforçou em promover avanços na educação, administração pública, infra-estrutura viária, energia elétrica, etc. Mas estes avanços do novo projeto “modernizador” não beneficiaram os povos indígenas, já que os confinaram a contextos desoladores de exploração ainda mais perversos ao expropriar suas terras e submetê-los a processos sistemáticos de trabalho forçado. E, em função dos interesses da oligarquia fazendeira, o Estado radicalizou a implementação de leis e políticas que fortaleceram a exclusão e discriminação econômica, social, política e cultural que os povos indígenas vinham experimentando desde a invasão espanhola.

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O liberalismo econômico e suas implicações na vida dos povos indígenas

O projeto dos fazendeiros liberais se sustentou principalmente na emissão e implementação de duas leis básicas por meio das quais se condicionou a obrigatoriedade do trabalho forçado para os indígenas nas fazendas.

Em 1829, o Estado emitiu a Ley de Jornaleros o de La Vagancia, que continuou vigente durante todo o período liberal, sofrendo mudanças mínimas em 1944-1952 e só foi abolida definitivamente em 198519. Através desta lei, o Estado decretou e autorizou que os fazendeiros ou donos de outras empresas agrícolas solicitassem aos prefeitos e governadores20 dos municípios e departamentos o envio obrigatório de jornaleros21 para a realização de trabalho nas fazendas de café, algodão e de cana de açúcar. Para garantir o controle sobre o número de indígenas disponíveis para o trabalho nas fazendas os “alcaldes22 de las comunidades indígenas debian enviar a la jefatura política listas de todos los campesinos, desde cartorce hasta los cincuenta años de edad” (Cambranes. 1996:138). O Estado justificou a implementação desta lei, argumentando que com ela se garantia que os indígenas não voltassem ao estado selvagem por conta de seus vícios de “vagância e ócio”. Mas o principal propósito foi criar condições legais em benefício do crescimento econômico da elite no poder, já que como Cambranes coloca:

“Con el decreto 177 o Reglamento de Jornaleros, [...] el campesinado indígena y mestizo guatemalteco fue sometido a una brutal explotación de su fuerza de trabajo, mientras el desarrollo comercial y el

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Mas cabe assinalar que o fato de ter sido abolida não implicou a redução da migração dos grandes contingentes de trabalhadores sazonais que até hoje anualmente continuam indo às fazendas de

agro-exportação e tampouco melhorou as desumanas condições de trabalhocom que são tratados por parte dos

fazendeiros. Segundo o relatório de 2000 da Missão de Verificação das Nações Unidas na Guatemala – MINUGUA -, em 1992 se calculou que 700.000 trabalhadores rurais são trabalhadores agrícolas temporários e sazonais. Ou seja, equivalem a 87% do total dos trabalhadores agrícolas no país; e destes 98% são indígenas.

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Todos eles ladinos.

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Os jornaleros na Guatemala são no Brasil os migrantes temporários para o trabalho sazonal.

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Alcades são os representantes comunitários através dos quais as comunidades rurais estabelecem vínculos formais com as prefeituras municipais e com as autoridades formais do Estado, tanto no nível municipal como

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crecimiento económico impulsados por el capital alemán, obtenían ganâncias fabulosas.”(Cambranes, 1996:334).

Por conta disso, vários contingentes de indígenas se viam obrigados a migrar de 4 a 7 meses nas fazendas dependendo do cultivo, já que segundo algumas pesquisas a permanência para o corte de algodão é de 4 meses, para a coleta de café é de seis e para o corte de cana 7 meses. Esta lei afirmava que todas as atividades que não eram precisamente agrícolas, como produção e venda de artesanato ou dedicação ao comércio deviam ser registradas como praticas da “vagância ou ócio”, porém “ [...] cada individuo indígena debia tener um libreto, em el cual debian aparecer 150 jornales al año, obligatorios, con la respectiva firma del patrono para quien se hubiera trabajado. Se hacia con el fin de evitar la vagância” (Martinez Pelaez. 1991:342)

Em 1874, o Estado decretou e aprovou a Ley de vialidad23: esta segunda lei dava por entender que os indígenas estavam obrigados a trabalhar obrigatoriamente e sem remuneração na construção da infra-estrutura viária ou deveriam pagar as prefeituras o dinheiro equivalente aos dias de trabalho que estavam obrigados a cumprir para o Estado. Os indígenas que se rebelavam e lutavam contra os fazendeiros, eram encarcerados pelo exército e a polícia logo os enviava ao trabalho forçado da construção e reparação de estradas e colocação de trilhos de trem até que morriam de cansaço e fome.

Estas leis foram os instrumentos legais pelos quais o Estado submeteu arbitrariamente os povos indígenas a trabalharem em condições de escravidão – que outros chamam de “trabalho forçado” – nas etapas mais importantes da produção das fazendas de agro-exportação (prioritária e predominantemente nas de café, cana e algodão) e na construção da infra-estrutura viária para a exportação destes produtos, especialmente na região Sul do país, onde se concentram as fazendas mais extensas e importantes dos cultivos já

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mencionados. Desta maneira, a maioria da população indígena abandonou sua própria produção local, sua organização sócio-política e seu crescimento e estabilidade econômica. Os fazendeiros deviam remunerar em dinheiro ou em espécie aos trabalhadores, essa remuneração não se comparava a um salário capaz de satisfazer as necessidades básicas das famílias dos trabalhadores. Por outro lado, aproveitando-se do monolíngüismo dos indígenas, dentro das fazendas se criaram diversas estratégias impunes para endividá-los, segundo vários documentos e bibliografia consultada, especialmente os publicados por Cambranes. Os fazendeiros, nos dias de pagamento, enchiam as lojas de abastecimento com roupas, produtos básicos de alimentação e venda de bebidas alcoólicas e dessa forma, o mísero salário que os trabalhadores recebiam retornavam ao capital do fazendeiro, já que era proibido o abandono da fazenda durante o tempo que compreendia o período de trabalho estabelecido. Através dessas lojas, criavam-se necessidades de consumo nos trabalhadores, estabelecendo o sistema de venda a crédito que era controlado por meio de cadernetas que os administradores preenchiam de forma corrupta e os trabalhadores as assinavam sem ter certeza dos saldos reais. E com o passar do tempo e pelos juros das dívidas, muitos desses trabalhadores não tiveram outra escolha do que migrar obrigatoriamente às fazendas para pagar suas dívidas com sua força de trabalho. Gerações de indígenas foram condenados ao trabalho por dívida de forma ininterrupta, caso contrário eram denunciados pelos fazendeiros e conseqüentemente presos pelas autoridades públicas. Os fazendeiros utilizaram o sistema de trabalho por dívidas como outra forma de enriquecimento fácil. Em 1880, um fazendeiro revelou ao etnólogo Otto Stoll:

“que todo aquel que deseaba enriquecerse com el cultivo del café debía procurar mantener endeudados a los trabajadores más laboriosos [ya que] com lo que se pagaba por um esclavo negro em otras regiones del planeta, era más barato y rentable esclavizar por deudas a um hombre [indígena] em Guatemala” (Cambranes, 1996:129).

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Em 1934, o governo aboliu o trabalho por dívidas, o que de certa forma permitiu que muitos jovens das famílias condenadas ao trabalho por dívida se libertassem e vários deles conseguissem dedicar-se a outro tipo de atividades como o comércio, migrando para várias localidades do país.

No decorrer dos 73 anos de ditadura da oligarquia fazendeira, a distância entre o latifúndio e minifúndio aprofundou-se de forma radical e, apesar das diferenças existentes entre conservadores e liberais no começo da introdução do liberalismo econômico no país, com o passar do tempo, ambos acabaram se juntando no interesse de ampliar seu monopólio sobre a terra e sobre a força de trabalho dos povos indígenas. Assim, a ditadura liberal adaptou a estrutura estatal a seus interesses políticos e econômicos, expropriou os povos indígenas, enriqueceu os comerciantes, os empresários agrários, os banqueiros estrangeiros, os grandes fazendeiros guatemaltecos e os políticos corruptos e, por outro lado, empobreceu a maioria de população rural, predominantemente indígena. Para que a lei de trabalho forçado fosse efetiva, expropriaram das comunidades indígenas as suas melhores terras, já que sem elas a grande maioria dos indígenas viu-se na necessidade de trabalhar para os fazendeiros como trabalhadores temporários como único meio de sobreviver. Em 1898, todas as melhores terras férteis do país estavam nas mãos dos grandes fazendeiros tanto conservadores como liberais e também do capital alemão e estadunidense que foram consolidando-se na economia guatemalteca.

Vários autores como, Martinez Pelaez, Cambranes e Taracena registram que os povos indígenas não aceitaram passivamente as arbitrariedades dos fazendeiros legitimadas pelo Estado por meio de suas políticas. Os indígenas, organizados ou não, tentaram se opor à expropriação de suas terras e à exploração da qual eram objeto por parte do poder instalado, mas não o conseguiram. Cambranes o constata assim:

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“El rechazo de los comuneros indígenas a la expropiación de sus tierras y a su conversión de mozos de las surgientes plantaciones se manifestó, em algunos casos em misteriosos incendios, que consumiam cafetales y cañaverales [...] solo poniendo em practica uma política de destrucción de siembras [...] y de aniquilamiento físico de la población indígena, pudieron los liberales someter a la población rebelde y controlar la situación” ( Cambranes., 1992:338).

Estes três autores registram que ao longo da ditadura liberal, em várias regiões do país, os indígenas realizaram ações de oposição e resistência que foram reprimidas e minadas pela violência institucional do Estado.

Nesse sentido, é interessante que os trabalhos que registram a experiência dos povos indígenas durante a Reforma Liberal, Cambranes e Martinez Pelaez façam alusão à situação das mulheres durante este período. Para Cambranes, o trabalho forçado foi também imposto às mulheres e a esse respeito ele aponta que a mulher camponesa foi “[...] víctima temprana del trabajo forzado. Ella también fue incorporada al servicio [...] habiendo em muchos casos, superado a los hombres en las columnas de cuadrilleros”24(Cambranes,1996:158). Por outro lado, afirma que nas comunidades, os trabalhos de subsistência – como o cultivo do milho – antigamente reservados aos homens, passou a ser responsabilidade das mulheres quando o trabalho forçado foi implementado e os homens deviam ausentar-se durante longos períodos. Com relação à violência institucional exercida pelo Estado, este autor também registra que em 1890 o chefe político responsável pelo departamento de Alta Verapaz, escreveu ao Ministro de Trabalho que uma fórmula para que os homens não fugissem do trabalho forçado consistiu:

“[...] en poner em detencion a las mujeres de los indígenas que huyan para que estos vuelvan y presten su servicio [...] sabiendo que si se esconden sus mujeres van a dar a la detención es seguro que no huirían

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Referências

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