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A cenografia de Policarpo Quaresma: um processo criativo de construção compartilhada

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE TEATRO

ESCOLA DE DANÇA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

RODRIGO FROTA DE VASCONCELOS

A CENOGRAFIA DE POLICARPO QUARESMA:

UM PROCESSO CRIATIVO DE CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA

Salvador - Bahia

2013

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RODRIGO FROTA DE VASCONCELOS

A CENOGRAFIA DE POLICARPO QUARESMA:

UM PROCESSO CRIATIVO DE CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, como requisito à obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.

Área de concentração: Poéticas e Processos de Encenação – Cenografia.

Orientador: Prof. Dr. Luiz César Alves Marfuz, Universidade Federal da Bahia.

Salvador - Bahia

2013

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4 Vasconcelos, Rodrigo Frota.

A cenografia de Policarpo Quaresma: um processo criativo de construção compartilhada / Rodrigo Frota de vasconcelos. UFBA/ Escola de Teatro, 2013.

156 f. :il; 29,7cm.

Orientador: Prof. Dr. Luiz César Alves Marfuz

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia / Escola de Teatro/ PPGAC, 2013.

1. Cenografia. 2. Encenação. 3.Criação compartilhada. 4. Processo criativo. 5.Policarpo Quaresma – Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, PPGAC.

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A

Fátima, minha mãe, por todo o suporte.

Tetê, minha tia, uma segunda mãe.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe e minha tia pela dedicação e o suporte de sempre.

Ao Professor Dr. Luiz César Alves Marfuz, orientador, pela generosidade e pelo conhecimento compartilhado ao longo dos últimos anos.

À Professora Dra. Sonia Lucia Rangel e à Professora Dra. Elisa Mendes Oliveira Santos pelas contribuições doadas para este trabalho.

Ao Professor Dr. Ewald Hackler pelo acompanhamento inicial desta pesquisa. À Professora Dra. Jacyan Castilho de Oliveira pelo compromisso em ajudar sempre. À Professora Renata Cardoso. Ao Prof. Eduardo Tudella.

Ao PPGAC, Escola de Teatro - Universidade Federal da Bahia, pelo apoio, infra-estrutura, a qualidade de seus professores, pesquisadores e funcionários.

Ao Diretor do Teatro Castro Alves, Moacyr Gramacho, pela disponibilidade. À Lorena Peixoto Diretora do Centro Técnico do TCA.

À Renata Mota, parceira criativa. Ao cenotécnico Adriano Passos, representante dos agradecimentos para todos os funcionários do Centro Técnico do TCA.

Aos Colegas da turma de Mestrado do ano de 2011.

A todos os Diretores de teatro, Atores, Produtores, Figurinistas, Iluminadores e Maquiadores com quem trabalhei no decorrer da minha trajetória. Aos amigos que me acompanharam nessa jornada. Aos colaboradores; Pedro Dultra Benevides, Hamilton Lima, Erick Saboya, Miguel Carvalho e a Susan Kalik. Ao amigo João Paulo Saraiva pelo companheirismo.

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7 VASCONCELOS, Rodrigo Frota. A cenografia de Policarpo Quaresma: um processo criativo de construção compartilhada. 154 f. il.2013. Dissertação (Mestrado) – Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, 2013.

RESUMO

Este trabalho se concentra na análise do processo criativo de concepção e construção do cenário para a montagem do espetáculo teatral Policarpo Quaresma (2008), adaptação de Marcos Barbosa, com direção de Luiz Marfuz, realizada pelo Núcleo do Teatro Castro Alves, em Salvador, Bahia. Sob a ótica do ato criador em sua manifestação na cenografia e na perspectiva das relações geradas entre criadores visuais integrantes, são investigados o percurso e as estratégias empreendidas durante o processo, abarcando desde as definições conceituais até a sua materialização final, em um modo compartilhado de criação. Partindo da decomposição da obra, a pesquisa estabelece reflexões teórico-práticas sobre aspectos integrantes do movimento criativo da cenografia - as primeiras imagens, a geração dos conceitos, os diálogos com o coletivo criador do espetáculo, a escolha de materiais, sua execução prática, os mecanismos de construção, a testagem na sala de ensaios e relação com a cena e interação do elemento visual com os atores. Para tanto, a pesquisa se apoia prioritariamente nos pensamentos de cenógrafos atuantes, nos estudos de compreensão de processos criativos e nas referências das convenções não naturalistas (Brecht em especial), numa tentativa de elucidar a qualidade dinâmica e inferencial de uma obra cenográfica.

Palavras-chave: Cenografia. Encenação. Criação compartilhada. Processo criativo. Policarpo Quaresma.

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8 VASCONCELOS, Rodrigo Frota. The scenography of Policarpo Quaresma: a creative process of building shared. 154 f. il.2013. Master Dissertation – Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, 2013.

ABSTRACT

This work concentrates on the analysis of the creative processo of conception and construction of the setting for the production of Policarpo Quaresma (2008), adapted by Marcos Barbosa, directed by Luiz Marfuz and performed by the Núcleo do Teatro Castro Alves, in Salvador, Bahia. Through the lenses of the creative act in its manifestation in the setting and in the perspective of the relationships generated by the team of visual designers both the trajectory and the strategies employed are investigated. The work covers all aspects of the devising: from the conceptual definition to its final materialization. Starting with the composition of the production, the research approaches theoretical and practical aspects of the creative movement of the setting – the first images, the generation of concepts, the dialogues with the whole creative team, the testing of rehearsal rooms with the scene and interaction of the visual elements with the performers. In order to accomplish this, the work is chiefly grounded on the thinking of living set designers, in the studies of the creative processes and in the references of non naturalized conventions (particularly Brecht), in an attempt to clarify the dynamics quality and the multi-referential of the setting.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Desenho de Neher e cena de Senhor Puntila, 1949...26

Figura 2 - Desenho de Neher para Na selva das cidades, 1923...27

Figura 3 - Ensaios de A tempestade, encenação de Peter Brook, 1991...29

Figura 4 - Manuscrito guia feito por J.C.Serroni, 2007 ... 44

Figura 5 - Imagem geradora – homem imerso em estantes de livros, 2007 ... 46

Figura 6 - Exercício cenografico de Policarpo Quaresma, Rodrigo Frota, 2007 ... 47

Figura 7 - Croquis propondo as mudanças da cenografia, Rodrigo Frota, 2007 ... 48

Figura 8 - Rascunho/solução proposta cenográfica para oficina TCA.Núcleo...49

Figura 9 - Estudo final para cenário de Policarpo Quaresma, Rodrigo Frota, 2007 ... 50

Figura 10 – Croqui das mudanças cênicas para Policarpo Quaresma, Rodrigo Frota, 2007.... 51

Figura 11 - Desenho de Flávio Império, 1965...55

Figura 12 - Planta baixa da Sala do Coro - estudos dos varais para cenografia, 2008... 67

Figura 13 - Maquete virtual da Sala do Coro do Teatro Castro Alves,2013.... ... 67

Figura 14 - Reprodução de uma possível proposta para cenografia de Policarpo, 2013 ... 70

Figura 15 - Imagens geradoras juntas:oficina TCA.Núcleo e proposição dos varais... 74

Figura 16 - Cordéis em varais. Foto: Luciano Joaquim ... 74

Figura 17 - Livrinhos construídos para a maquete de Policarpo, 2008 ... 75

Figura 18 – As bandeirolas de Volpi, sem título ... 76

Figura 19 - Detalhe do piso construído para a maquete, 2008 ... 77

Figura 20 - Maquete para o cenário de Policarpo Quaresma (1º ato), 2008. ... 78

Figura 21 - Pau de fita – Maquete para o cenário de Policarpo Quaresma (1º ato), 2008... 78

Figura 22 - Retratos coloridos – Maquete para o cenário de Policarpo Quaresma (2º ato), 2008. ... 79

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Figura 24 - Foto detalhe do piso da cenografia do espetáculo Policarpo Quaresma, 2008 ... 83

Figura 25 - Foto de detalhe – livros e varais – Cenário Policarpo Quaresma, 2008 ... 84

Figura 26 - Desenho esquemático – bolachas de metal e cabos de aço, 2008... 86

Figura 27 - Desenho cenografia Policarpo Quaresma, Rodrigo Frota, 2008. ... 87

Figura 28 - Cenário para o espetáculo Policarpo Quaresma, 2008. ... 87

Figura 29 – Estudos para o figurino de Policarpo Quaresma , Miguel Carvalho , 2008...104

Figura 30 - Esquema de passagem objeto-teste para objeto definitivo...107

Figura 31 - Cena inicial do espetáculo Policarpo Quaresma, 2008...110

Figura 32 - Formação banquinhos e mesa de centro, 2008...111

Figura 33 – Flores de papel, cena 3, 2008. ... 114

Figura 34 – Chapéu fabricados em papel, 2008. ... 115

Figura 35 – Perucas de látex e postiços na cena da repartição, 2008. ... 117

Figura 36– Carimbos, máquina de escrever cena da repartição, 2008 ... 118

Figura 37 - Conjunto de lenços para bolsa, almofada de bilro e cena do tricô, 2008. ... 120

Figura 38 – Chapéus de marinheiro (chegança) e boneco-noivo de Ismênia, 2008 ... 121

Figura 39 – Cartas do baralho com proporções alteradas e cocar de papel, 2008. ... 122

Figura 40 – Maquiagem corporal da personagem Ismênia e olhos de látex, 2008... 125

Figura 41 – Detalhe do objeto de cenário pau de fita/andor, 2008. ... 127

Figura 42 – Cena da morte de Ismênia, 2008. ... 128

Figura 43 – Pomar reduzido, 2008. ... 129

Figura 44 – Instrumentos agrícolas e oratório. ... 130

Figura 45 – 1. Jornal com charge de Policarpo, 2. Personagem-tipo: a bêbada, 3. Político com maquiagem caricatural (2008). ... 132

Figura 46 – Cabeça das saúvas, 2008. ... 134

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Figura 48– Manifestação das Caretas no carnaval ... 137

Figura 49 – Cena: o trem, 2008. ... 139

Figura 50 – Cena: o entrudo, 2008. ... 140

Figura 51 - Cena: o canhão, 2008. ... 141

Figura 52 – Cena: o Maracatu, 2008 ... 142

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO... 13

2. SEÇÃO I – A CENOGRAFIA COMO ATO COMPARTILHADO. 2.1 Considerações sobre a relação encenador versus cenógrafo...20

2.2. A grafia para a cena ou ceno-grafia com foco na criação compartilhada...30

2.3. Gênese criativa da cenografia para Policarpo Quaresma: um homem emparedado por estantes com livros...38

2.4. Um cenógrafo emparedado...52

3. SEÇÃO II – CONCEPÇÃO E CONFIGURAÇÃO DA CENOGRAFIA PARA POLICARPO QUARESMA: PRIMEIRO EIXO CENOGRÁFICO. 3.1. Tessitura do movimento criativo...58

3.2. Percurso criativo da cenografia: um homem desemparedado...62

3.3. Os recursos criativos da cenografia: homens levantando os livros...81

4. SEÇÃO III – OS OBJETOS DE CENOGRAFIA NA TRANSFORMAÇÃO DA CENA: SEGUNDO EIXO CENOGRÁFICO. 4.1. Os livros...89

4.2. Homens e livros...97

4.3. Homens usando os livros...103

5. CONCLUSÃO...145

6. BIBLIOGRAFIA...149

7. ANEXOS...154 7.1. Anexos 1- Matérias de jornal

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1. INTRODUÇÃO

Desde muito pequeno eu desenho, tão cedo que não tenho guardado na lembrança onde e como comecei a rabiscar. A única coisa de que me lembro, é de minha mãe me mostrando alguns papéis brancos, cheios de traços e círculos, o que, de acordo com a percepção dela, era a primeira figura humana que desenhei.

Com dez anos de idade, morando em Fortaleza e voltando das aulas da quarta série primária, sofri um acidente de carro. Nada aconteceu a mim nem ao motorista, só a minha tia, que ocupava o banco do passageiro e se feriu gravemente: fraturou a bacia. A hospedagem dela na minha casa para sua recuperação exigiu a montagem de um aparato incrível no quarto das visitas, para oferecer-lhe conforto, pois não sabíamos se ela voltaria a andar. Sem pestanejar, assumi o cargo de “enfermeiro honorário”. No ano que se passou e até que ela começasse a andar, acho que preparei o maior estudo anatômico da figura humana deitada e de pés postos para cima, já desenvolvido por um artista mirim. Eu a desenhei de todos os ângulos possíveis e imagináveis, estudos de perspectiva e desenho de observação, teorias que só depois entenderia melhor.

Meu primeiro contato com cenografia, se assim posso constatar, deu-se nos idos da oitava série, montagem de um curso de teatro no colégio. O orientador decidiu montar

Chapeuzinho vermelho. Além de atuar, os alunos se envolviam em frentes de trabalho para a

realização do espetáculo. Quando o professor perguntou que frente de trabalho ia escolher, respondi sem hesitar: “Quero fazer as pinturas!”. Usamos cadeiras de madeira com estrutura para apoiar e pregar os leves painéis, feitos de cartolinas brancas pintadas e recortadas, com forma de arbustos, de pedaços da casinha da vovó, até de árvores. O cenário ainda tinha movimento, com as cadeiras que entravam e saiam de cena. A ideia de usar as cadeiras não foi empreendida por mim, mas eu pintei a grande parte dos painéis. O primeiro desafio no palco. O primeiro contato concreto, mesmo que sem consciência do oficio. O primeiro envolvimento com a “seara cenográfica”.

Fato foi que, só mais tarde, realmente tive minha primeira incursão na área. Na ocasião dos estudos no Curso princípios básicos de teatro, ministrado pelo ator e diretor cearense João Andrade Joca. Posso dizer que foi neste ponto que percebi e reconheci a cenografia teatral como algo do meu interesse. O nosso espetáculo de formatura, D’outro lado

de lá, estreou em novembro de 1998 e, durante dois meses, liderei os trabalhos cenográficos.

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14 uma tela armada numa estrutura de madeira que se confundia com os tecidos que compunham o resto do cenário; nesta tela, foram reveladas em sombras, algumas cenas do espetáculo. O piso era composto de folhas secas e tínhamos uma passarela suspensa que saía da plateia e se ligava ao proscênio. Realmente, a experiência primeira com a cenografia.

No ano seguinte, ingressei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) ao mesmo tempo em que me dedicava ao trabalho de ator no Colégio de Direção Teatral, curso oferecido pelo Governo do Estado através do Instituto Dragão do Mar de Arte e Indústria Audiovisual do Ceará. Enquanto me debruçava sobre os estudos de história da arte, perspectiva, desenho de observação, análises visuais, criação de projetos e ergonometria, também ingressava no mundo da prática teatral com professores altamente gabaritados no país, como Celso Nunes, Renato Icaraí (UNIRIO), o Lume (Núcleo de pesquisa da Unicamp), Rosy Gonçalves, Clóvis Levi (Universidade de Lisboa), Tonico Pereira, Mariana Muniz, Amir Haddad, Antônio Mercado, Taya Perez , Zé José Celso Martinez Corrêa e Antunes Filho. Era impossível não usar da interdisciplinaridade; todos meus trabalhos na faculdade de arquitetura focavam um único tema: o teatro. Quando estudava as influências do espaço nas ações humanas eu usava textos dramáticos para fazê-lo. Na disciplina Projeto I, meu estudo se baseou na criação de um prédio teatral para a universidade; meus trabalhos de História e Filosofia tinham como foco a resistência do movimento teatral no golpe de 68 e, nas artes visuais, minhas maquetes eram propostas cenográficas. Em nenhum momento consegui fugir dessas duas áreas que me atraíam profundamente, ao mesmo tempo em que a relação entre elas se dava naturalmente na minha vida e trajetória.

No ano de 2004, tomei a decisão de abandonar o curso de arquitetura para investir no bacharelado em Interpretação Teatral. Em consequência, abandonei a estrutura familiar, a financeira, a carreira iniciada em outro estado, na tentativa de explorar um terreno teatral inacessível para mim em Fortaleza. Adentrei na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia desejando o encontro com as novas perspectivas da profissão que decidi abraçar. Acabei também por abraçar a Escola de Teatro como uma segunda casa.

Logo no primeiro semestre, deparei com o professor Eduardo Tudella. Tê-lo como professor de Artes Visuais me ajudou a definir os possíveis caminhos de aprendizado na cenografia; trabalhei como seu assistente em algumas montagens de formatura na Escola de Teatro da UFBA, como Oito Mulheres e Sábado, Domingo e Segunda, ambas dirigidas por Harildo Déda. Foi Tudella sempre um grande incentivador para que eu experimentasse a

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15 criação cenográfica. Aceitei suas considerações, comecei fazendo o serviço de assistência de cenógrafos reconhecidos na cidade e, em seguida, criei algumas cenografias para alunos e colegas do curso de Direção Teatral da referida unidade.

Nos anos conseguintes, até o dia de hoje, criei e executei mais de sessenta trabalhos cenográficos, em sua maioria para espetáculos teatrais. Policarpo Quaresma se encaixa nesse histórico como um divisor de águas; separa as criações de cunho amador dos trabalhos desenvolvidos com o suporte de uma produção profissional e, ainda, no movimento gerado e vivido por esta experiência, tornou-se norteador da prática profissional que desenvolvo desde então. Costumo dizer que não escolhi trabalhar com cenografia; foi este ofício que me escolheu. Apenas fui fazendo, realizando, dialogando, criando e os trabalhos foram surgindo um após o outro; a experiência é que tem me formado cenógrafo.

A proposta desse trabalho se delineia, justamente, na necessidade de estabelecer um pensamento teórico movido, fundado e guiado pela prática, intensa em relação ao tempo de atuação na área, pois extensa pela quantidade de cenografias criadas e realizadas. É distanciado por essas experiências que retorno ao seio da elaboração cenográfica para

Policarpo, revisitando-a, analisando-a e por constatá-la uma experiência fundante da minha

prática , reinterpreto-a nesse discurso.

A cenografia de Policarpo, só pode ser entendida assim se observada pela distância temporal; e nessa, encontrei as bases que fortalecem uma crença em relação à forma nos trabalhos que desenvolvi posteriormente: o compartilhamento no processo de criação. Nesse sentido, Policarpo foi, é e sempre será o primeiro processo criativo com meu envolvimento a estabelecer um desenvolvimento criativo “mais horizontal”, participativo e próximo da minha convicção de que teatro é a arte do coletivo. Utilizo-me do termo “horizontal” no sentido de sua conformação, contrapondo-o à ideia de organização “vertical”, na qual as estruturas hierárquicas são rígidas e utilizadas como meio de controle sobre a criação de uma obra. Essa horizontalidade foi experimentada em processos criativos coletivizados e implica em outra abordagem das funções que compõem os procedimentos básicos de criação teatral. Essas funções adquirirem novas configurações, onde as ideias são efetivamente compartilhadas e discutidas por diferentes membros que compõem o grupo criador com foco em desenvolver uma obra que abarca a voz de todos, em uma participação ativa e direta. Por esse motivo, na escrita deste trabalho usarei, invariavelmente, a primeira pessoa do singular e do plural na intenção de abranger as várias vozes responsáveis pela criação; reafirmando no texto, a ideia de criação compartilhada.

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16 Tal perspectiva pode ser entendida como método de trabalho, tanto por profissionais da área quanto por estudiosos de teatro. Os métodos seriam os caminhos, diretrizes operacionais; nesse sentido, em Policarpo nenhum modelo comum foi seguido ou apresentado a priori, embora princípios gerais guiassem a encenação. O processo se configurou a partir do seu “modo de fazer”; posso afirmar que o modo de colocar “em diálogo” as ideias, de inter-relacionar os diferentes elementos da construção da obra, acabou por diferenciá-lo das maiorias das iniciativas criativas tradicionais (teatro de elenco) e aproximando-o de uma perspectiva criativa horizontal; interlocução estimulada e a expansão das zonas de colaboração.

Evidentemente, a consolidação e desenvolvimento desta forma/crença (compartilhamento) foi reforçada em mim no movimento do processo criativo, alimentado por um “fato disparador”, elegido como ponto de apoio deste estudo. Realizo aqui, um ponto de corte na tentativa de esclarecer este fato ocorrido no passado e, através de uma prolepse1,

antecipo uma narrativa futura presente no estudo; refere-se ao primeiro encontro com o diretor do espetáculo, após minha inserção na equipe de Policarpo Quaresma:

Fui ao encontro do encenador e, sem meias palavras, apresentei a proposta, explicando como se desenrolaria a ação em cada espaço que propunha. Não dei oportunidade para o diretor intervir. Ao terminar a explanação, ouvi a seguinte frase: “Rodrigo, para que mantenhamos uma boa relação profissional, é preciso ficar claro que o diretor do espetáculo sou eu!”. O diretor acrescentou que minha explanação parecia mais com uma sugestão de encenação, do que uma proposta cenográfica. (FROTA, 2013, p. 56).

Essa digressão se faz necessária por dois motivos: primeiro porque na época este “fato disparador” me fez pensar sobre várias questões relativas à criação de uma cenografia e, segundo, porque as questões levantadas guiam o recorte deste trabalho: como se configura uma associação criativa entre cenógrafo e diretor? Que posição em relação à criação de um espetáculo deve assumir um cenógrafo? Quando um cenógrafo propõe um espaço físico para a ação, não seria um pouco encenador e vice versa? Qual a fronteira que delimita esses papéis?

Com base nestas perguntas, a dissertação foi desenvolvida e está organizada em introdução, três seções, finalizada com uma conclusão seguida pelas referências usadas em sua construção e anexos contendo fotos do processo, matérias de jornais da época entre outros. O interesse deste trabalho não se concentra somente no estudo de conceitos

1 Prolepse, "ação de tomar antes", ou "flashforward", numa linguagem mais cinematográfica, figura também conhecida como antecipação, é uma figura de sintaxe onde ocorre o deslocamento de um termo de uma oração para outra que a precede, com o que adquire excepcional valor.

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17 definidores do espaço cênico, mas amplia esse olhar para um acontecimento estabelecido antes das conjecturas espaciais. Entendendo a criação para cena como ato integrado com o estabelecimento das visualidades que a compõem, realizo um mergulho nas relações estabelecidas entre os criadores de um espetáculo, nas influências e referências compartilhadas, especialmente naquelas que atuam e modelam as diversas escolhas estéticas para o palco.

Com foco no compartilhamento de ideias, inicio o trabalho investigando formas de relações entre cenógrafo e diretores em diversos momentos da história do teatro. Este passeio histórico-teórico se concentra a partir do surgimento da figura do encenador e segue até a atualidade, apoiando-me nos estudos de Jean Jacques Roubine, Hans-Thies Lehmann e nas experiências de Bertolt Brecht e Peter Brook. Sigo o estudo na tentativa de entender o que são e como funcionam os modos de criação e construção compartilhados, com base nas práticas do Teatro da Vertigem e nas dos grupos que desenvolveram trabalhos de criação coletiva. No último item da primeira seção introduzo aspectos ligados à criação da cenografia para

Policarpo, incluindo sua gênese criativa e os primeiros passos que criaram a relação entre o

“ser cenógrafo” e o encenador do espetáculo. Nesse percurso, utilizo-me de algumas estratégias oferecidas pela crítica genética e estudos mais recentes sobre genética teatral2 para reconstruir o trajeto inicial desta gênese, enquanto embasado pelas considerações de Pamela Howard, José Dias e Gianni Ratto e, traço um diagnóstico de como o contato inicial com o diretor conformou o delinear poético do objeto em estudo.

O processo de criação cenográfica para Policarpo deu-se em duas fases distintas: uma realizada anterior à presença do ator na sala de ensaio, relativa aos estudos de conformação espacial e outra, marcada pelo desenvolvimento das cenas para o espetáculo, referente à definição dos objetos e sua intervenção na encenação. Por este motivo, considero a perspectiva de analisar a cenografia do espetáculo sob dois eixos constituintes, definidos justamente pela presença destas duas fases na criação.

A segunda seção da dissertação é destinada ao estudo do processo de criação do que proponho ser o primeiro eixo cenográfico para o espetáculo, trata-se do estabelecimento das bases conceituais e o caminho construtivo de uma parte da cenografia centrada na definição poética do espaço. Destaca-se, nesta fase da criação, a incorporação de novos colaboradores criativos e de como suas influências, referências e diálogos interferiram e encaminharam as escolhas visuais da cenografia e da encenação. Nesse capítulo, então, apresento o objeto da

2 Ver a esse respeito os artigos sobre genética teatral, encontrados na Revista Brasileira de Estudos da Presença, v.3, n.2, maio/ago. 2013. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/presenca/index>. Acesso em: jul. 2013.

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18 pesquisa na dinâmica do seu desenvolvimento, seu estudo, seus recursos, seus materiais, suas cores e sua imbricação com as ideias que o constituíram.

Na seção que se segue, é analisado o segundo eixo cenográfico para o espetáculo: o objeto de cenografia e sua intervenção na cena. Do ponto de vista das relações inferenciais, a figura do ator é incluída como partícipe na criação e através da experimentação na sala de ensaio os conceitos desenvolvidos ganham novos formatos. O objetivo desta seção é de aprofundar a perspectiva do ato criador da cenografia, inserindo-o na rede de visualidades que, ao mesmo tempo, forma e é formado no desenrolar da criação. Realizo parte do estudo explorando o diálogo entre os objetos de cenografia e sua reverberação na cena, sua responsabilidade nas mudanças espaciais e sua significação visual. Para tanto, apoio-me nas propostas de leituras dos espetáculos empreendidas por Patrice Pavis e nos pensamentos sobre aspectos construtivos da encenação oferecidos pelos cenógrafos: J.C. Serroni, Pamela Howard, José Dias e Gianni Ratto.

Durante o desenvolvimento deste trabalho, não abandonei a perspectiva de utilizar alguns elementos de estudo do movimento criativo oferecido pela crítica genética; mas, visto sob a ótica de revisitar os registros deixados por um artista ao longo do percurso de construção de uma obra e, através desses índices materiais de processo, corroborar o ato criador como resultado processual que envolve uma rede complexa de acontecimentos e relações.

É importante perceber que, ao realizar sua pesquisa o critico genético não tem acesso a todo o processo de criação (não tem o ato criativo em suas mãos); mergulha nos rastros deixados pelo criador, investiga os manuscritos, a parte abandonada na integração da obra com intenção de remontar os caminhos criativos e, quando em contato com a materialidade que os constituiu, procura conhecê-lo melhor. No caso deste trabalho, sou pesquisador e pesquisado e grande parte da criação esteve em minhas mãos; para tanto utilizo-me de ferramentas oferecidas pelos estudos genéticos na tentativa de selecionar, interpretar e colocar novamente em movimento a composição do ato criativo da cenografia para o espetáculo

Policarpo Quaresma.

Outro aspecto importante a ser compreendido é de que a crítica genética nasce com a dedicação de estudar os manuscritos literários, porém vêm se mostrando como possibilidade de explorar um campo mais extenso, levantando a chance de discutir o processo criador em

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19 outras manifestações artísticas. Marie-Madeleine Mervant-Roux3 (2013) no artigo, Por uma

genética teatral: premissas e desafios, revela alguns caminhos seguidos na intenção de

utilizar a crítica genética como ferramenta para estudos teatrais:

Os primeiros pesquisadores em Estudos Teatrais a voltar a atenção ao procedimento genético não o fizeram de modo articulado, nem movidos pelas mesmas razões. Alguns, tendo observado o método de análise textual, viram nele o meio de abordar a escrita dramática em uma perspectiva dinâmica e pragmática, em consonância com a arte do teatro. Outros foram sensíveis à materialidade dos arquivos e compreenderam como o texto, tornado um objeto, um instrumento de trabalho marcado pelos ensaios, podia ser reintegrado no campo das artes do espetáculo, procedimento então excepcional, haja vista a clivagem estrita entre territórios universitários. Outros retiveram, enfim, os princípios genéticos em sua generalidade, e conceberam sua adaptação ao estudo do trabalho teatral propriamente dito, o qual não inclui, do seu ponto de vista, a gênese do texto. (MERVANT-ROUX, 2013, p. 384).

Percebo que a ampliação dos estudos da genética teatral para além do fenômeno textual e sua utilização em outras áreas artísticas e, mais ainda, sua incursão na área teatral em estudos recentes, instauram um território de pesquisa ainda em desvelamento e em desenvolvimento do ponto de vista metodológico. Nesse caminho, instalo-me como pesquisador que se interessa pela gênese da criação, pelo seu processo, não me abstendo de utilizar o vocabulário “genético”, mas com o objetivo claro de expor e interpretar o percurso que conduziu à criação da obra estudada.

Para isso, não pretendo estabelecer somente uma interpretação de um produto considerado final, mas rever a tensão do trajeto, as escolhas poéticas e os vetores responsáveis pela geração da criação cenográfica em Policarpo. Grande parte do material base para levantar o estudo, foi encontrado nos rastro deixado pelos criadores partícipes: os rascunhos, as anotações, os desenhos, as maquetes, os registros, os depoimentos, os protocolos, os ensaios e as marcas encontradas no próprio objeto. Nessa relação material não posso deixar de incluir uma trama “volátil” mas “consolidada”, minha memória, parceira “cientifica” e “apaixonada” capaz de “garimpar” os vestígios escondidos, dando-lhes um significado.

3Marie-Madeleine Mervant-Roux é diretora de pesquisa do ARIAS/CNRS (Laboratório de Pesquisa em Intermidialidade e Artes do Espetáculo do Centro Nacional de Pesquisa Científica, França).

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2. SEÇÃO I - A CENOGRAFIA COMO ATO COMPARTILHADO

A cenografia e os cenógrafos estão seguindo um caminho diferente dos designers de teatro (hoje já bastante confundidos com aqueles que fazem design de teatros) e estão por vezes atravessando as linhas de demarcação entre direção e design, tornando-se criadores conjuntos da mise en scéne.

Pamela Howard (2001, p. 4) em O que é cenografia?

2.1 Considerações sobre a relação encenador versus cenógrafo

Acredito que o processo de criação e de execução de um espaço para a cena é uma zona sempre dinâmica de confrontos e tensões geradas a partir de verbos e imagens desejadas por alguém que possamos chamar de diretor-intérprete, de diretor-autor ou de quem quer que seja o condutor criador de um processo que tem como fim a cena e as necessidades propostas por um texto, um pré-texto ou um roteiro. Acrescento mais turbulência a essa zona, na área visual; a personalidade criativa de um cenógrafo, a colaboração na cena dos intérpretes (atores, bailarinos, músicos), a contribuição da equipe técnica e o suporte também criativo dos cenotécnicos, com soluções empíricas.

Durante o estudo que se segue, usarei indistintamente os termos diretor e encenador para designar o agente responsável pela coordenação e criação da cena, embora seja possível encontrar no Brasil estudos que buscam estabelecer diferenças relativas a essas funções e suas nomenclaturas, como os de Walter Lima Torres4 (2008), que estuda as interseções entre os dois termos na perspectiva histórica do surgimento da encenação moderna no Brasil.

Criar é movimento, processo. Segundo Fayga Ostrower5 (2008), o ato de criar é basicamente formar, dar forma a algo novo, acompanhado da concretização de algumas possibilidades e, dessa maneira, acaba por excluir muitas outras que hipoteticamente poderiam existir, pelo menos em tempo e nível idênticos. Ainda de acordo com ela, apesar desse carácter delimitador (seletivo) que segue o ato criativo, é preciso apreciar suas qualificações dinâmicas:

4

Walter Lima Torres é doutor em Artes do Espetáculo pelo Instituto de Estudos Teatrais da Universidade de Paris III. Entre 2000 e 2003, coordenou o Curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ver os artigos; Breve introdução no teatro europeu pós-guerra no livro Dramaturgia e teatro: intersecções (2008) e Os diferentes processos de encenação e as diferentes

acepções do encenador na revista Repertório (2009), ano 12, n.13.

5 Fayga Perla Ostrower (Polônia,1920 - Rio de Janeiro, 2001). Pintora, desenhista, ilustradora, ceramista, escritora, teórica da arte, professora. Vem para o Brasil em 1934. Foi autora de vários livros sobre questões relativas à arte e processos de criação artística.

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É um processo contínuo que se regenera por si mesmo e onde o ampliar e o delimitar representam aspectos concomitantes, aspectos que se encontram em oposição e tensa unificação. A cada etapa, o delimitar participa do ampliar. Há um fechamento, uma absorção de circunstâncias anteriores, e, a partir do que anteriormente fora definido e delimitado, se dá uma nova abertura. Da definição que ocorreu, nascem as possibilidades da diversificação. Cada decisão que se toma representa assim um ponto de partida, num processo de transformação que está sempre recriando o impulso que o criou (OSTROWER, 2008, p. 26-27).

No percurso criador de um cenógrafo; concepção, estudos, referências, desenho, escolhas até a noção de atuar cenograficamente (sua materialização final) está implicado algo mais que um simples atuar. Cenografar6 além de ato criativo, talvez, deva ser também um ato no qual se compartilham ideias e experiências. Mas o que significaria esta afirmação? Pamela Howard7 (2001) nos traz uma pequena introdução a essa investigação:

Ser chamado de cenógrafo significa mais do que decorar um fundo para que atores atuem na frente. Demanda paridade entre criadores, que têm individualmente papéis individuais, responsabilidades e talentos. [...] Eu uma vez ouvi um diretor técnico bem conhecido murmurando enquanto andava por um corredor que “Se não fosse pelos atores, e pelo diretor, e os designers, eu poderia colocar este espetáculo para deslanchar sem nenhum problema...” Aqueles dias certamente acabaram. (HOWARD, 2001, p. 4).

A afirmação de Howard, situada na arte teatral, de pronto, insere o trabalho de criação do cenógrafo junto a outros partícipes com responsabilidades criativas individuais e distintas na construção de uma obra teatral; entre esses, a figura do diretor.

Nos últimos anos do século XIX, até a metade do século XX, a ideia de espetáculo teatral passou por transformações intensas, motivado por dois fenômenos: a revolução tecnológica (descoberta de novos recursos de iluminação, as primeiras experiências cinematográficas, o desenvolvimento das linhas férreas) e o que Roubine (1998, p.19) chama de “o surgimento do encenador” e, consequentemente, a disseminação de uma nova forma de ver a cena.

Outros estudiosos vinculam o aparecimento da figura do encenador sob outra perspectiva. Bernard Dort8 (1977) considera que as causas atribuídas ao surgimento do encenador não se referem exclusivamente às revoluções tecnológicas, mas também às

6 Fazer a cenografia, a execução dos cenários.

7 Pamela Howard é diretora teatral, curadora de exposições, produtora de eventos e professora emérita da University of The Arts London. Autora do livro Whats is scenography?. Texto usado aqui como referência é Anotações da cenógrafa inglesa, para uma conferência no USITT, em 21 de março de 2001, em Long Beach, Califórnia (Tradução: Fausto Viana).

8 Bernard Dort é diretor, teórico de teatro, ensaísta e escritor Francês. Tem sua tese de doutorado sobre Bertolt Brecht, que abriu em 1962, as portas do Instituto de Estudos Teatrais de Paris III, onde lecionou até 1981.

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22 condições históricas e sociológicas, como a transformação qualitativa e quantitativa do público, em função das novas classes e segmentos sociais, fruto das revoluções políticas do período, em especial a Revolução Francesa. Isto criou uma diversificação de públicos e de gosto, obrigando as companhias a modificarem seus repertórios para atender a este novo cenário. O encenador situa-se neste panorama como mediador das novas relações entre as obras, o público heterogêneo e a articulação dos novos instrumentos tecnológicos à disposição do palco. Há também ainda, o que subjaz a todas as artes, as grandes mudanças ocorridas na experiência humana através do conhecimento; resultado de um período da evolução humana que envolveu a reconstrução de objetivos, valores, conceitos (ciências naturais, filosofia e religião) e a ruptura de tradições.

Em outras palavras, as condições para uma transformação da arte cênica achavam-se reunidas: de um lado, o instrumental intelectual (a recusa a fórmulas e teorias superadas, bem como novas propostas concretas que levavam à realização de uma nova forma) e, de outro, a ferramenta técnica que tornava viável uma evolução desse alcance. O palco torna-se, então, um instrumento carregado de uma infinidade de recursos potenciais. O espaço teatral e o espaço da representação passam a integrar um conjunto de elementos que orientam e marcam a intervenção do intérprete, e o papel do encenador consiste em recusar-se a suportar passivamente essa relação, mas, pelo contrário, assumi-la e governá-la.

Mas de que forma essas informações contribuiriam para a discussão de que a cenografia, talvez, deva ser um ato no qual há compartilhamento de ideias? Cabe analisar essas informações sob outro ponto de vista. Ao realizar este exame, não estou interessado somente em acompanhar a evolução histórica do espaço cênico ou de caracterizar os movimentos teatrais através de suas escolhas. Busco entender também os fatores e variáveis que modelam as relações na experiência de estruturar um espaço para a cena.

Roubine considera Antoine9 como o primeiro encenador, a primeira assinatura que a história do espetáculo registrou, porque também foi o primeiro a sistematizar suas concepções, a teorizar a arte da encenação. Outros estudiosos detectam que a companhia do Duque George II de Saxe-Meiningen10 é uma das primeiras nas quais se pôde identificar a presença completa e definida de uma direção cênica, presidida pela coerência e pela unidade, como entendemos no sentido contemporâneo:

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André Antoine (1857-1943), Diretor teatral francês. Suas direções eliminam a cenografia como elemento de criação interpretativa. Transfere para o palco a realidade concreta das ruas, das casas dos homens.

10 Entre 1874 e 1890, a companhia dos Meiningen realizou 2591 representações no total de 81 viagens as seguintes cidades europeias; Berlim, Viena, Budapeste, Bremen, Londres, entre outras. (SIMÓN, 2007, p.3).

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O Duque George II, que tinha a última palavra em relação a todos os aspectos da direção das montagens, foi realmente quem determinou os princípios estéticos dos Meiningen. [...] George II não apenas desenhava os cenários como os figurinos, além de determinar a posição dos atores em cena e os efeitos de composição que ele pretendia conseguir. (SIMÓN, 2007, p.5).

Antes do começo dos ensaios o Duque George II mandava executar, segundo seus esboços, a cenografia, o figurino, os adereços e os mobiliários que iriam ser usados na representação e que deveriam estar presentes desde o primeiro dia de ensaio. Todos os elementos visuais que comporiam a cena eram criados de modo a respeitar as sugestões do texto e espelhavam fielmente o marco geográfico e temporal no qual se desenvolvia a ação. George II possuía um farto arquivo tanto gráfico como textual, graças ao qual mantinha documentados, os usos de época:

Esse arquivo era continuamente renovado de acordo com a necessidade de cada produção e, para isso, era requisitada a colaboração de especialistas como Pietro Visconte, diretor do Instituto Arqueológico de Roma, que foi consultado por ocasião da montagem de Júlio César de Shakespeare, ou eram feitas visitas nos lugares onde acontecia a ação de uma obra. (SIMÓN, 2007, p.11).

Com Antoine ou com a companhia dos Meiningen, o que se vê é a afirmação da supremacia do encenador, com suas escolhas técnicas e poéticas. É do diretor que provinham todas as iniciativas de organização do espetáculo teatral. A posição do cenógrafo (ou do

decorateur, segundo a expressão francesa) antes era a de um empreiteiro a quem se

encomendava um cenário de acordo com sua especialidade (palácios antigos, salas de estar, florestas), fornecendo-lhe somente uma relação das limitações impostas pela peça (época, numero de portas, etc..) e dando-lhe total confiança e crédito para o resto; depois, especialmente a partir do surgimento encenação moderna, no final do século XIX, passa a ser a de um técnico, sem grande autonomia, cuja missão consiste em tornar palpáveis as ideias formuladas pelo diretor, e é de acordo com a orientação deste que ele trabalhava.

No final do século XIX, a encenação na sala à italiana11 abandona os telões pintados comuns na cena teatral Barroca e o mimetismo rigoroso dos naturalistas12, assumindo o

11 A sala à italiana apresenta um edifício retangular divididos em duas partes distintas – a cena e a plateia – privilegiando-se a separação, pelo proscênio e a ribalta, entre a área de representação e espaço destinado ao público. A boca de cena formava uma moldura de um quadro vivo que o espectador contemplava como uma pintura. (URSSI, 2006, p.35-36).

12 Naturalismo é uma escola literária conhecida por ser a radicalização do Realismo, desenvolvida na segunda metade do século XIX.

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24 caminho de uma estrutura arquitetural da área da representação - o espaço arquitetônico13. Com a substituição do pintor pelo arquiteto, o cenógrafo passa, de certa forma, a se tornar a vedete da encenação. Nesse momento começa a se esboçar uma tendência, na qual alguns encenadores responsabilizam-se pessoalmente pela elaboração da cenografia. A melhor ilustração dessa tendência é fornecida pelas obras de Appia14 e de Gordon Craig15.

O autor Richard Beacham comenta um pequeno espetáculo que Appia dirigiu, que unia uma cena de Manfred inspirado no poema de Byron e o segundo ato de Carmem, de Bizet:

[...] o cenário e a performance atingiram um nível de unidade cuidadosamente estudado. Appia conseguiu plenamente realizar na prática suas teorias através do uso de elementos exclusivamente tridimensionais, iluminação “formativa”, cores simbólicas e um espaço estrutural, todos harmoniosamente estruturados com a música e com o drama. (BEACHAM, 1995, p.71).

Segundo Viana (2010, p.17), tudo que parecia “falso” no palco desagradava a Appia. Para ele, o corpo do ator, esse corpo tridimensional, tinha um valor muito especial para o encenador e cenógrafo. O ator jamais poderia se relacionar em cena com um objeto bidimensional, como os telões pintados, padrão cenográfico mais comum no período. E transcreve um pensamento de Appia: “O próprio ator terá dificuldade em interpretar com um painel que não preenche, por exemplo, os contornos do seu corpo. Como sentar numa cadeira pintada na parede?”. (VIANA, 2010, p.18).

Os espaços cênicos concebidos por Appia visavam trazer uma nova tridimensionalidade para o palco, no lugar de pedras e rochedos pintados, por exemplo, ele introduziu volumes reais na cena. Criou a noção de “espaços rítmicos”, baseados na construção de uma cenografia com plataformas de variadas alturas, rampas, esteiras, paredes e pilares possibilitando ao ator uma variabilidade de movimentos no espaço. Suas teorias e práticas foram responsáveis em grande parte pela renovação do teatro com os projetos de cenários que fez, embora tenha produzido poucas encenações e haja pouca documentação sobre elas. Para Vianna (2010), o desenvolvimento ideal do pensamento de Appia está na obra do seu contemporâneo Edward Gordon Craig.

13 A recusa do carácter bidimensional dos elementos componentes do cenário tradicional, que impede a utilização desses elementos pelo ator.

14

Adolph Appia (1862-1928) Suiço, diretor, cenógrafo e teórico de teatro. Seus projetos cenográficos carregados de poesia interpretam em profundidade as temáticas que a dramaturgia e o lirismo da música propõem.

15 Gordon Craig (1872- 1966) ator, diretor, cenógrafo, e teórico inglês. A partir de 1900 dedica-se à direção. Craig concebe e desenha cenários volumétricos e depurados para os quais a luz é fundamental.

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25 Para Craig, o palco precisaria de esculturas, arquitetura e objetos tridimensionais. A cenografia para ser funcional seria acompanhada por um novo estilo de interpretação, e ambos, para adquirir coerência interna, deveriam ter uma concepção radicalmente diferente de drama. Assim como Appia, suas teorias enfatizam a qualidade plástica do corpo humano em relação ao espaço bidimensional. Nesse sentido, Roubine (1998) diz que a evolução de suas reflexões teatrais levam Craig a sonhar um novo tipo de teatro:

[...] um teatro liberto das múltiplas limitações impostas pelo autor, pelo ator etc., em detrimento do poder criador do encenador. Nesse teatro utópico, a cenografia se tornaria o próprio centro do espetáculo, revelando um espaço em constante mutação, graças a um jogo conjugado da iluminação e volumes móveis. (ROUBINE, 1998, p. 140).

Não há dúvidas de que, com o domínio do diretor sobre os elementos constituintes da cena, o espetáculo teatral adquire uma unidade orgânica e estética que nunca havia antes conhecido. Todavia, se o teatro dessa época espelhou uma renovação de conceitos, sob o ponto de vista do controle da criação cênica e das relações constituintes entre concepção da cena e espaço, estava reduzido a duas vertentes: a do diretor (dotado de todos os poderes sobre os modos de criação e produção) e a do cenógrafo-encenador.

O estudo da arte de conceber e construir o espaço cênico permite fazer uma constatação: a da extraordinária diversificação das práticas e da multiplicação de concepções nos idos do final do século XIX até meados do século XX.

Segundo Lehmann (2007), o surgimento do teatro do diretor se encontra potencialmente inserido na dialética do próprio teatro, que se desenvolve como forma de representação; teatro que descobriu cada vez mais os recursos que lhe eram inerentes, a despeito do texto. Então, para o autor, no curso da revolução nas artes ocorrida na virada do século XIX, a crise do drama ocorreu paralelamente à crise da forma discursiva do próprio teatro.

O teatro dramático necessitava do espelhamento, ou seja, de um quadro que funcionava como espelho, permitindo ao mundo homogêneo do observador reconhecer-se no mundo fechado do drama, sendo necessário, nesse processo de identificação, o isolamento, a independência e a identidade própria de ambos os mundos.

É, também, diante da desta crise discursiva, que o teatro se descobriu como lugar de encontros por excelência, exponenciando o reconhecimento da forma de entender as dinâmicas da sociedade. Neste ponto, Brecht, com sua vocação política, foi sem dúvida um

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26 dos encenadores que repensou as articulações entre teatralidade e realidade. Repensou também o modo operante da encenação com a prática de processo colaborativo:

[...] o processo colaborativo de criação nos seus trabalhos criou chances para que a cenografia e os figurinos interferissem diretamente na realização do espetáculo, inclusive do ponto de vista dramatúrgico, num processo tão rico que raramente se vê igual. (VIANA, 2010, p.184).

Isso não quer dizer que as decisões sobre o espaço em outros encenadores da mesma época não influíssem na realização do espetáculo; mas o que Brecht inaugura é a parceria concreta e registrada entre um encenador e um cenógrafo (Caspar Neher)16. Viana (2010) afirma que o nível de entrosamento e colaboração visando à obra artística era notável, que não se podia saber onde começava a influência de um e onde começava a do outro nas montagens que fizeram juntos.

Participando efetivamente dos ensaios, Neher fazia desenhos e croquis que eram entregues a Brecht, que os levava para casa. Nos desenhos, ele propunha soluções cênicas, criava locais para a cena que o próprio não sabia como resolver (o banho do senhor Puntila, em o Sr. Puntila e seu criado Matti, por exemplo, Figura 1); ia, enfim, desenhando os desdobramentos da história que Brecht ia inserindo em sua dramaturgia.

Figura 1 - Desenho de Neher e sua realização cênica por Brecht com Berliner Essembler, 1949, cena 5 (o senhor Puntila no banho).

16

Caspar Neher (1897-1962) cenógrafo alemão. Em 1923 realiza seu primeiro cenário para Na selva das

cidades, e, depois para Baal e muitos outros textos de Brecht, que o define como maior construtor cênico de seu

tempo e lhe atribui a criação da bipartição do espaço cênico que consiste em estruturar um lugar de trabalho à meia altura e pintar ou projetar atrás dessa estrutura um ambiente maior.

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27 Segundo Hackler17 (1983, p.19): “a cenografia não define somente a relação de uma vida entre diretor/autor e cenógrafo. Os desenhos de Neher também exprimem a primeira evidência visual das nascentes teorias da dramaturgia e conceitos brechtiana”.

Como exemplo, destaca-se a proposta de Brecht de não rejeitar a estrutura italiana, mas sim de fazê-la trabalhar “em sentido contrário”, ajudando a teatralidade a exibir-se assumidamente, em vez de recalcá-la: mostrando os meios de produção do espetáculo, equipamentos elétricos, instrumentos musicais, entre outros, ao invés de ter enorme trabalho para torná-los invisíveis. Neher, em seus desenhos de 1922 para Na selva das cidades (Im

dickcht der stadte), já propõe o que viria posteriormente ser conhecida como “cortina

brechtiana”, que consistia numa troca da cortina tradicional dos teatros por uma meia cortina com arames e argolas, deixando à mostra os equipamentos e a própria caixa teatral, na tentativa de anular a ilusão teatral (Figura 2):

[...] naquela época (1926), a cortina de aniagem a meia altura foi usada pela primeira vez, e desde então, pertence quase que obrigatoriamente às representações da maior parte das peças do poeta/Brecht tomando o nome de “cortina Brecht”. (HACKLER apud WEITZ, 1983, p.68).

Figura 2 - Desenho de Neher para “Na selva das cidades” 1923

17

Ewald Hackler, alemão radicado no Brasil há mais de 30 anos, é um diretor de teatro e cinema. Também é cenógrafo, figurinista, iluminador e professor da Escola de Teatro da Bahia, integrando o núcleo de pós-graduação em Artes Cênicas da mesma escola. É doutor em cenografia pela Universidade da Califórnia (Berkeley).

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28 O próprio Brecht, em seu livro Estudos sobre o teatro (2005), dedica um capítulo para falar da importância da relação entre ele e seu cenógrafo na construção da cena:

[...] Os cenários de Neher são importantes testemunhos da realidade. Trabalhando os problemas com ampla visão, Neher jamais se separa, com detalhes secundários ou ornamentos, do depoimento que pretende apresentar e que é de ordem estética e ideológica. Tudo, nessas condições, é belo, e os detalhes essenciais são preparados com grande amor. (BRECHT, 2005, p.242).

Este aspecto pode ser visto na experiência mais recente, a de Peter Brook18 e a cenógrafa Chloé Obolensky para a montagem da A tempestade de Shakespeare. No seu livro

A porta aberta (1999), Brook narra que, enquanto a tradução era preparada, ele e a referida

cenógrafa começavam os embates e discussões sobre os aspectos visuais do espetáculo. Para Brook (1999, p. 89), nesse momento “o diretor e o cenógrafo não se encontram mais sozinhos com suas visões e estéticas pessoais, mas alimentados dinamicamente pela obra e suas possibilidades cênicas, e ainda da riqueza e integração de um grupo de indivíduos inspirados e criativos” E continua:

[...] por melhor que seja, o trabalho do diretor e do cenógrafo antes do ensaio é limitado e subjetivo; pior ainda, impõe formas rígida , tanto à ação cênica como à aparência externa dos atores, e muitas vezes pode castrar um desenvolvimento natural. (BROOK, op. cit. p.89).

A ideia de Brook para o espetáculo era a de trabalhar uma série de jogos cênicos com os atores, levando para a cena atores/jogadores. Do ponto de vista intelectual, a peça não teria bases realistas na geografia e na história; o encenador queria trabalhar com uma imagem símbolo da ilha proposta por Shakespeare, sem uma ilustração literal. Surge para ele imagem de um jardim zen, onde uma ilha seria sugerida por uma rocha, água e pedrinhas secas:

[...] na primeira reunião, só conseguimos ver desvantagens nessa solução. Andar sobre os seixos é difícil, eles vão ranger o tempo todo e distrair o público, e sentar sobre eles é desajeitado e incômodo. Descartamos então o jardim zen [...] (BROOK, op. cit. p.90).

No inicio dos ensaios a cenógrafa Chloé não havia preparado elementos cênicos, mas trouxe aos atores algumas possibilidades, como cordas pendendo do urdimento, escadas, cubos de madeira e pranchas. A ideia seria de que os atores experimentassem possibilidades

18 Peter Brook é diretor de teatro e cinema britânico (1925). Um dos mais respeitados profissionais de teatro da atualidade. Nos anos 70, funda em Paris o Centro de Pesquisa Teatral, o qual dirige até hoje.

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29 com esses elementos. Improvisaram e experimentaram. Mas depois de certo período de ensaios, nada parecia apropriado para Brook; tudo lhe parecia muito convencional, artificial e até batido. Ao abandonar os objetos iniciais, começaram a perceber que estes precisariam de um espaço vazio, de um campo livre para o jogo, permitindo que o espetáculo acontecesse. Chloé então trouxe várias toneladas de terra vermelha para o teatro, para que os atores ganhassem mais vida e variedade em seus movimentos. Perceberam, assim, que a grandiosidade do espaço fazia com que as ações dos atores parecessem medíocres e irrelevantes. Após cerca de dois terços dos períodos de ensaio, quando os atores já haviam decorado o texto, saíram do teatro onde ensaiavam e foram fazer uma apresentação num porão de um colégio para centenas de crianças. Improvisaram na hora uma versão da peça.

Como resultado desta experiência, Chloé e Brook chegaram a uma conclusão: as invenções divertidas funcionavam brilhantemente numa sala pequena e, em contraponto, pareciam amadorísticas e infantis se reproduzidas na imensidão do teatro que usavam. O espaço formal, o espaço da representação tornou-se então um retângulo perfeito, do tamanho de um tapete persa, emoldurado com varas de bambu e coberto de areia vermelha. Para Brook essa solução fez com que a utilização de objetos pequenos voltasse a fazer sentido (Figura 3).

Posteriormente, Brook nos conta que alguns críticos chamaram esse espaço de

playground, nome que se dá ao pátio de recreio de uma escola e que se surpreendeu quando

alguém escreveu “é um jardim zen”, imagem pertencente à primeira ideia do diretor (1999, p.101).

Figura 3 - Peter Brook com Romane Bohringer durante um ensaio de "A Tempestade" de Shakespeare, 1991 em Avignon. Fotografia: Georges Gobet/AFP/Getty Images

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30 A inserção da figura de um diretor/encenador como elemento gerador de organização e criação para a cena alterou profundamente as relações artísticas e organizacionais do trabalho teatral. Nesse sentido o fazer cenográfico e a alcunha de cenógrafo, também sofreram mudanças. Inspirados no exemplo de Brecht ou de Brook, o fato é que, para o cenógrafo de hoje, novos instrumentos se apresentam para ajudar na reflexão e criação de um projeto para a cena. Talvez seja preciso aguçar a atenção para perceber os diversos saberes envolvidos numa criação, tornando inteira a compreensão dos processos individuais e das realizações de cada tipo específico de trabalho cênico, e ainda, de como cada elemento compositor da cena se relaciona e é afetado pelo outro.

2.2 A grafia para a cena ou ceno-grafia com foco na criação compartilhada.

A investigação sobre os processos da criação de uma cenografia exige mais do que o estudo dos conceitos que definem espaço cênico. Exige um olhar no que se instaura anteriormente, nas relações entre os criadores, que conformaram os caminhos e escolhas visuais para a cena. Como diz Ratto em depoimento concedido a J.C. Serroni: “Não me interessa mais fazer a direção pela direção e a cenografia pela cenografia. Eu faço tanto uma coisa quanto outra, numa visão integrada.” (FERRARA; SERRONI, 1980, p.75).

Proponho enxergar a cenografia como um ato de criação que depende de variáveis e interferências dinâmicas para sua execução, na qual o cenógrafo se encaixa como um colaborador, seu trabalho pessoal se enxerta no trabalho de um conjunto. O cenógrafo pertence a uma equipe guiada, muitas vezes, pelo encenador. O seu esforço deve estar em harmonia com os outros artesãos do espetáculo. Um cenógrafo que se entende como coletivo. É que chamo (ou considero): cenografia como ato de criação compartilhada, conceito-guia desta pesquisa, que será examinado e desdobrado a seguir.

Para Pamela Howard (2001, p.3), a cenografia descreve um abordagem holística para se fazer teatro de uma perspectiva visual. Deriva do grego sceno-grafika, e traduzido de forma direta é “a escritura do espaço cênico – l’écriture scènique”. O termo escritura refere-se aqui a uma técnica ou método particular de expressão. Pressupõe-se, então, que um sujeito executa essa escrita. Se há uma escrita, há a grafia desta escrita, uma simbologia gráfica e manual pertencente a cada indivíduo. O espaço cênico, segundo Patrice Pavis em A análise dos

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31 representação propriamente dita e seus prolongamentos para a coxia, a plateia e todo prédio teatral. Nesse sentido, cenografar é um ato de um sujeito que põe a serviço de um espetáculo sua personalidade e criatividade, para projetar e executar dentro de um espaço tridimensional, uma área visual em que se desenvolverá uma ação cênica e outra ação fora da cena19.

A arte do teatro é uma arte do coletivo. A cenografia faz parte do instrumental do espetáculo. Gianni Ratto (1999) diz que o cenógrafo se defronta com uma pequena tempestade de tentativas, propostas e imposições para o espetáculo – nunca deve esquecer que esse espetáculo é resultante de uma série de colaborações convergentes. Para José Dias20 (1999, p.2), o trabalho bem entrosado do diretor e do cenógrafo é essencial para a consecução da unidade do espetáculo, pois, fundamentalmente, o espetáculo, no seu todo, realiza uma convergência de visões, apresentando em cena o resultado. Ainda segundo Dias, o cenógrafo não pode dissociar cenário, figurino, adereços, iluminação ou até mesmo a marcação de cena, isto é, a movimentação dos atores, porque estes também estabelecem fluxos, massas, volumes, em um determinado espaço. Pamela Howard nos conta sobre uma experiência para a criação cenográfica de Rei Henrique IV partes I e II, peça de William Shakespeare, retratando a vida do Rei Henrique IV:

Eu fui ficando cada vez mais fluente para descrever o espaço cenograficamente, trabalhando a partir do ator para fora. Juntos, o diretor e eu (porque o trabalho era unido e indivisível) criamos mais de cinquenta desenhos, mapeando como controladores de voo, a expansão e contração das cenas, através do movimento dos atores que fez o espaço falar. (HOWARD, 2001, p.3).

Colaborações convergentes, entrosamento, trabalho unido e indivisível - estas são algumas das palavras usadas por cenógrafos para descrever como através dos saberes compartilhados pode-se construir um sentido para uma representação artística (encenação). Podemos encontrar também, em paralelo, palavras de alguns encenadores sobre o processo da criação de uma cenografia.

Peter Brook, em O teatro e seu espaço (1970), considera como melhor cenógrafo aquele que avança passo a passo com o diretor, voltando atrás, mudando, reformando, à medida que gradualmente se delineia uma concepção do conjunto. Seria necessário um

19 O cenógrafo deve pensar todo o espaço cênico em prol da encenação, incluído a área das coxias, a relação palco e plateia e acessos dos atores para a cena.

20

José Dias é Mestre e Doutor pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), e atualmente desenvolvendo pesquisa sobre a arquitetura cênica no Brasil; inicia sua carreira como assistente de Pernambuco de Oliveira, em 1969, ainda estudante do Instituto de Belas Artes e do Conservatório Nacional de Teatro.

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32 desenho que chama de incompleto, com clareza e sem rigidez; que pudesse ser nomeado de “aberto”, no sentido que se opõe a fechado; e conclui que este cenógrafo deve considerar os seus desenhos em movimento constante, em ação, em relação ao que o ator constrói na cena, à medida que ela se desenrola.

Outro posicionamento interessante é a experiência de Brecht com Neher. Segundo John Willett (1967), o encenador e dramaturgo dependia frequentemente do seu velho amigo e associado Caspar Neher, que não só desenhava os cenários e indumentárias, mas que, em dezenas de esboços, também sugeria a ação. Desde o tempo de escola, na verdade, fornecia a Brecht, desenhos, projeções, e ensinou-lhe como utilizar os elementos de cenário – como se fossem, simplesmente, adereços em escala maior. Escreveu Brecht:

Mas é também frequente recebermos desenhos seus antecipadamente; o nosso amigo ajuda-nos, então a agrupar pessoas e a marcar os gestos e, também, muitas vezes a caracterizar psicologicamente as personagens e a maneira como deverão falar. O seu cenário está sempre impregnado do espirito da peça, e estimula os atores a se saírem bem. (BRECHT, 2005, p. 241).

Podemos perceber, portanto, em caminhos seguidos por muitos estudiosos e artistas, a crença de que os membros envolvidos na criação de uma encenação teatral partilhem suas experiências e conhecimento, trabalhando na direção da criação de uma obra conjunta. Mas o que significa compartilhar uma criação?

Foi dito anteriormente que a maior parte do pensamento teatral produzido no final do século XIX, e em parte do século XX, tinha na figura do encenador a direção única, o responsável pela criação de quase todo o instrumental do fazer teatral. Segundo Pavis (1999), a escrita cênica é, justamente, a encenação “assumida por um criador que controla o conjunto dos sistemas cênicos, inclusive o texto, e organiza suas interações, de modo que a representação não é o subproduto do texto, mas o fundamento do sentido teatral”. (PAVIS, 1999, p.131).

A partir dos anos 60, a ideia de criação coletiva, expressa por alguns grupos como o

Living Theather21 e Theatre du Soleil22, foi associada à descentralização das figuras do dramaturgo e do encenador, assumindo uma necessidade geral de temas que abrangessem o momento histórico no qual viviam os atores, dando maior voz dentro da encenação a esta

21

The Living Theater é uma companhia americana de teatro, fundada em 1947, o mais antigo grupo de teatro experimental do EUA.

22 O Théâtre du Soleil foi fundado em 1964 por Ariane Mnouchkine, junto com alguns colegas da Universidade de Sorbonne, como uma Sociedade Cooperativa Operária de Produção; funciona há 43 anos.

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33 categoria. Proliferados na década de 70, os espetáculos construídos à base do sistema de criação grupal, investigavam uma forma de dramaturgia ancorada na construção autoral coletiva, nos quais potencializava-se a figura do ator para além das suas capacidades interpretativas – seria um artista da não especialização: capaz de pensar, de propor, de intervir em todos os níveis e aspectos de produção do discurso do espetáculo. Ao tratar do processo colaborativo no Teatro da Vertigem, Antônio Araújo esclarece os desejos destes grupos nas décadas de 1960 e 1970:

Se pensarmos num modelo geral dessa prática – o que nem sempre é apropriado e verdadeiro, na medida em que houve diferentes tipos de criação coletiva, várias delas com traços muito peculiares – existia nela um desejo de diluição das funções artísticas ou, no mínimo, de sua relativização. Ou seja, havia um acúmulo de atributos ou uma transitoriedade mais fluida entre eles. Portanto, no limite, não tínhamos mais um único dramaturgo, mas uma dramaturgia coletiva, nem apenas um encenador, mas uma encenação coletiva, e nem mesmo um figurinista ou cenógrafo ou iluminador, mas uma criação de cenário, luz e figurinos realizada conjuntamente por todos os integrantes do grupo. (ARAÚJO, 2006, p.127).

Ainda de acordo com Araújo (2006), enquanto projeto utópico, a criação coletiva era bastante inspiradora, mas na prática revelava uma série de contradições. Talvez a mais grave fosse a que nem todos os participantes possuíam habilidades, interesse ou desejo de assumir vários papéis dentro da criação. Assim, determinados indivíduos dentro do grupo assumiam, veladamente ou com pouca consistência, as áreas de atuação em que se sentiam mais à vontade.

Outra contradição é que determinado dramaturgo ou diretor acabava assumindo uma relação de comando, pregando discurso coletivizante, para mascarar um desejo de autoridade, evitando dessa forma conflitos com os outros integrantes. Nina Caetano23 em seu artigo,

Processos coletivos de criação: a autoria compartilhada (2011, p.1), comenta que ao exercer

este comando, tais encenadores não só orientaram o treinamento autoral dos grupos, principalmente daqueles compostos, de maneira predominante, por atores, como também, em profunda correlação com esse aspecto, acabam determinando a configuração estética de muitos dos espetáculos produzidos no contexto grupal.

Segundo Araújo (2006, p. 128), existia uma vertente oposta nos grupos em que era dominante uma democracia artística exagerada sem haver alguém que encaminhasse ou propusesse uma síntese final sobre determinado quesito. Em geral, nestes casos, as

23 Nina Caetano é professora assistente de Dramaturgia do Curso de Artes Cênicas da UFOP, dramaturga e pesquisadora. Doutoranda em Teatro na ECA/USP.

Referências

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