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A PRÁTICA PASTORAL DIANTE DO ABORTO: O DISCURSO DOS SACERDOTES DA BAIXADA FLUMINENSE

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A PRÁTICA PASTORAL DIANTE DO ABORTO:

O DISCURSO DOS SACERDOTES

DA BAIXADA FLUMINENSE

Lúcia Ribeiro1

A questão do aborto, para o catolicismo, é uma das mais difíceis e espinhosas. Ao involucrar diretamente a própria origem da vida toca uma dimensão considerada “sagrada”, na medida em que esta é considerada como o maior dom de Deus. Ao mesmo tempo, na atual realidade brasileira, é um fato cuja existência atinge proporções elevadas, gerando polêmicas e controvérsias.

O discurso dos sacerdotes da Baixada Fluminense sobre esta questão – e mais especificamente sobre sua prática pastoral diante da mesma, objeto do presente artigo2 – assume características pró-prias. Para compreendê-las, entretanto, é indispensável uma rápida análise do contexto eclesial no qual os sacerdotes se inserem; esta será feita na parte inicial do artigo, centrando-se a seguinte sobre o seu discurso.

1 O CONTEXTO ECLESIAL

A doutrina oficial da Igreja, embora tenha sofrido trans-formações ao longo dos séculos, coloca-se claramente em favor da “defesa da Vida”, a partir da declaração do Papa Pio IX, em 1869

1 Mestra em Sociologia pela Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais/FLACSO. 2 Este artigo é parte da pesquisa Clero católico e reprodução: um estudo de caso, realizada no Instituto de Estudos da Religião – ISER de 1995 a 1997, sob a coordenação da autora, com o apoio da Fundação Ford e da Fundação Rockefeller, o qual agradeço. Por sua vez,as sugestões de Luiz Alberto G. de Souza, Regina Novaes, Kenneth Serbin, Pedro R. de Oliveira, Clodovis Boff, Renata Menezes, Solange S. Rodrigues, Paulo Fernando C. Andrade, Ivo Lesbaupin, Névio Fiorin e Davina Moscoso foram extremamente valiosas.

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(Muraro, 1989, p. 87), ao estabelecer que, desde o momento da con-cepção, o ser humano é uma pessoa, com todos os direitos inerentes à sua natureza, entre os quais o primeiro é o direito à vida (Melançon, 1993, p. 67). O discurso do magistério católico assume, desta forma, uma posição claramente contrária ao aborto.

Entretanto, se o discurso oficial da Igreja se caracteriza, hoje, pela univocidade, nem por isto nega a existência de outras questões, que permanecem em aberto, no âmbito eclesial.

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar a distinção introdu-zida no século atual, entre aborto direto e indireto. A reflexão moral reconhece que nem todos os abortos são ilícitos. Apenas a supressão de uma vida “inocente” efetuada diretamente é considerada sempre

ilícita; pelo contrário, efetuada indiretamente uma supressão de vida

pode ser lícita em certas condições (Fabri dos Anjos, 1976, p. 25). Os casos de ectopia fetal e de câncer uterino durante a gravidez são os exemplos clássicos. Nestes casos, “a intervenção abortiva salvaria grandes bens e no conjunto de tais situações não se vê porque não seria lícita” (Häring, 1972, p. 179).

Esta posição foi considerada, por muito tempo, como de acôrdo com os parâmetros da ortodoxia católica, uma vez que, nestes casos, o aborto não seria buscado em si mesmo, mas seria uma conseqüência da intervenção que salvaria a vida da mãe. Não se pode ocultar, entretanto que, recentemente a posição oficial retrocedeu sobre este ponto3, o que não impede que, para a grande maioria dos teólogos, estes casos continuem sendo lícitos.

Outra questão que se coloca é a posição da doutrina oficial do magistério, ao lidar com outros tipos de atentados contra a vida, tais como pena de morte, situações de legítima defesa e o caso de “guerra justa”; nestes casos, sua posição é muito mais tolerante. Na realidade, este enfoque diferencial com relação ao valor da vida, representa uma contradição, no interior da doutrina oficial; vem sendo criticado, inclusive por teólogos, que o consideram como uma “incoe-rência” (Melançon, 1993, p. 120) ou mais duramente como “a utiliza-ção de dois pesos e duas medidas”, como o faz Maduro, ao afirmar:

3 A Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé se declarou contrária ao aborto mesmo nestas circunstâncias extremas, de acordo com a Dichiarazione sull’aborto procurato, n. 14, Osservatore Romano, 25/26 – 11 – 1974.

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“ao mesmo tempo em que a Igreja mantém esta posição totalmente rígida, inflexível, intoleran-te, em relação ao aborto (...) se mostra bem mais flexível e adota atitudes bem mais matizadas em relação a ‘pecados’ tais como a guerra e a corrida armamentista” (Maduro, 1997).

E o autor se questiona: por que não aplicar a mesma “flexibilidade” no caso do aborto?

Por sua vez, a Igreja se confronta com uma realidade contemporânea que vem colocando novos elementos para se pensar a questão da interrupção da gravidez: de uma maneira ou de outra, estes repercutem também em seu interior.

Por um lado, os notáveis progressos científicos na área da Biologia e da Genética vêm possibilitando uma ampliação do conheci-mento sobre o processo reprodutivo, explicitando as características específicas do processo evolutivo pelo qual passa o ser em formação: zigoto/embrião/feto. Este conhecimento fornece novas bases para se pensar o próprio conceito de pessoa: em que momento o embrião pode

ser considerado como tal? Para alguns, isto ocorre no momento da concepção, para outros na etapa de nidação e para um terceiro grupo somente com a formação do córtex cerebral: “antes desta etapa não se pode falar em sujeito humano” (Ruff, Snoek, 1971, p. 878). Tal discussão permanece em aberto, no interior da Igreja (Frei Betto, 1992). Não existe uma opinião unânime acerca do começo da vida propriamente humana, no âmbito da teologia católica (Boeckle, 1980, p. 292). De acordo com a definição adotada, abrem-se possibilidades diversas para aceitar eticamente o aborto, segundo a etapa em que se encontre o zigoto ou o embrião.

Mas não é apenas a partir da ciência que surgem novas questões. As controvérsias culturais e ideológicas sobre a questão, que vêm tomando corpo, ultimamente, permeiam também as instituições eclesiais; se, por um lado, levam a fortalecer posições rigoristas e a radicalizar tendências, por outro, abrem pistas para novos posiciona-mentos. Não se pode esquecer que, longe de ser uma instituição monolítica e imutável, a Igreja constitui uma realidade complexa,

“atravessada por diferentes correntes de pensa-mento, impregnada de cultura e criadora de cultura, sacudida sem cessar por tendências

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muito diversificadas, das mais conservadoras às mais comprometidas com a transformação social” (Souza, Chaponay, 1990, p. 586).

Tal heterogeneidade se reflete também na abordagem da questão do aborto. Sob a univocidade da posição oficial do magistério, surgem questionamentos que expressam a busca de novos enfoques. É possível perceber, dentro desta perspectiva, toda uma gama de posições que vai desde os que, embora contrários ao aborto, admitem sua descriminalização legal (Faus, 1995, p. 19; Gebara, 1994, p. 9; Frei Betto, 1992, p. 69) até a posição do movimento Católicas pelo direito a decidir, que, ao lutar pelos direitos sexuais e reprodutivos, reconhece

“a validez moral das decisões tomadas pelas mulheres no campo reprodutivo, desculpabilizando as mesmas, inclusive quando decidem abortar” e propõe “a despenalização e a legalização do aborto” (Cató-licas... 1997, p. 2).

Dentro desta gama, talvez a postura mais original seja a de alguns teólogos que vêm questionando o caráter absoluto do direito à vida do feto. Aqui, há um princípio ético que assume uma importân-cia fundamental: trata-se do princípio que, em caso de conflito de valores e deveres, enfatiza a capacidade da consciência humana para avaliá-los criticamente e para discernir

“o bem maior frente a outros bens em conflito, ou – visto em têrmos negativos – o mal menor entre dois males que seriam a conseqüência de determinado comportamento” (Múnera, 1994, p. 28).

Tal princípio remonta às tradições éticas mais antigas, tendo sido formulado já por Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, ao

referir-se à epieikeia, que reconhece, em determinados casos, a

flexi-bilidade da lei.

Utilizando este princípio, um grupo de teólogos admite que

“quem honestamente escolhe a ação que, se-gundo sua consciência, considera que é um mal menor, não incorre em nenhum pecado, embora a ação escolhida seja um mal. (...) Trata-se de

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uma situação de conflito de valores ou deveres que inevitavelmente e sem culpa alguma da pessoa leva à escolha de um mal” (Universi-dad... 1995, p. 206).

Aplicando este princípio à questão do aborto, os diversos autores reconhecem, sem farisaismos, que “se trata da supressão de uma vida humana”, embora distinguindo que isto não implica necessariamente a existência de uma pessoa; mas levando em conta que o direito à vida humana não é um direito absoluto, admitem que tal supressão possa ser aceita “quando existem razões e motivos que justificam este fato” (Universidade... 1995, p. 206).

Também no Canadá, outra teóloga católica, Louise Melan-çon, embora reconhecendo a gravidade moral que implica uma inter-rupção do processo de gravidez, admite que é “uma ofensa contra o ser humano que é admissível em situações específicas” levando em conta o mesmo princípio, que nega o caráter absoluto do direito à vida. Vai ainda mais além, ao enfatizar também a dimensão de gênero: afirma que, no caso de uma eventual interrupção da gravidez, cabe à mulher tomar a decisão; para isto, baseia-se no direito moral da mulher de escolher livremente a maternidade. Admite, entretanto, que este direito de escolha tampouco é absoluto, assim como não é absoluto o direito do embrião à vida. A solução do dilema – que implica sempre uma grave responsabilidade moral – exige como critério básico o respeito pela vida, levando em conta o contexto concreto em que se coloca (Melançon, 1993, p. 129).

Também Lesbaupin, em trabalho inédito sobre a questão do aborto, elaborado já há alguns anos, se inclui na mesma perspectiva (Lesbaupin, 1978, p. 5).

A confluência entre estes diversos autores – sem prévia articulação entre eles – parece indicar a emergência de uma nova corrente teológica dentro da Igreja católica. Sua originalidade está em

conseguir escapar à polarização que freqüentemente divide o debate sobre o aborto em duas posições diamentralmente opostas: a posição mais rigorista, que absolutiza o direito à vida do feto, ou, no pólo oposto, a posição propugnada por alguns grupos feministas, que de-fendem o direito exclusivo da mulher de decidir sobre a interrupção da gravidez.

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Ao mesmo tempo, a emergência desta corrente vem de-monstrar que o debate em relação ao aborto é bem mais complexo4. Trata-se de uma temática em que coexistem posições e matizes diver-sos. O que se pretende aqui não é fazer um levantamente exaustivo das mesmas, mas simplesmente indicar a existência de posturas alternativas, no interior da própria Igreja católica.

Tais posturas não se reduzem ao nível teológico; pelo contrário, refletem sobretudo o crescente questionamento que já vem se dando na prática e na reflexão dos fiéis, configurando uma defasa-gem crescente com respeito ao discurso oficial. Esta defasadefasa-gem é reconhecida, hoje, como uma questão que afeta a Igreja do mundo todo. Nas palavras de Valladier,

“a amplidão do desacôrdo, neste âmbito, cons-titui um problema que nenhum responsável na Igreja pode ignorar, minimizar ou tratar de forma superficial” (Valladier, 1989, p. 210).

Na Igreja brasileira, tal defasagem vem sendo amplamente demons-trada por diversas pesquisas sociológicas (ver: Pierucci, 1978; Ribeiro, Luçan, 1997; Rosado Nunes, 1994, p. 174-200; Machado, 1997). Re-centemente, foi também explicitada pelos dados da pesquisa de opi-nião, realizada por ocasião da viagem do Papa ao Brasil5.

É neste contexto eclesial que se situa o discurso dos sacer-dotes; este adquire uma relevância especial, na medida em que se coloca em uma posição de mediação entre o discurso oficial do magis-tério e o discurso e a prática concreta dos fiéis. Entretanto, esta situação de mediação, justamente por se colocar enquanto tal, implica sérios dilemas: por um lado, está a impossibilidade de divergir expli-citamente do discurso oficial do magistério, até pela própria situação do clero, ao interior da hierarquia eclesial; mas por outro, exatamente por se situarem mais em contato com os problemas concretos vividos

4 O amplo trabalho de resenha dos trabalhos de diversos teólogos contemporâneos sobre a questão, feito pela Universidad Externado de Colombia, é significativo. Ver: Universidad... (1995, p. 161/234); ver também Colón et al. (1997, p. 251/276). 5 Segundo esta pesquisa, a opinião da maioria dos católicos do Grande Rio em relação ao aborto estava longe de corresponder à doutrina oficial: com efeito, 76% dos mesmos era a favor do aborto,em casos de estupro ou risco de vida da mãe. Ver: Um rebanho dividido. Pesquisa Gerp/JB. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, n. 28, set. 1997.

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pelos fiéis – e sobretudo pelas fiéis – os padres podem mais facilmente reconhecer que tal discurso nem sempre responde adequadamente a uma realidade bem mais complexa e conflitiva.

2 O DISCURSO DOS SACERDOTES

Este trabalho é parte de uma pesquisa realizada com sacerdotes que vivem e trabalham na Baixada Fluminense. Pretende descobrir como orientam seus fiéis e como atuam pastoralmente, nesta área, diante da realidade do aborto6.

O discurso dos sacerdotes se desenha sobre o pano de fundo da proibição, tanto legal quanto eclesial, do aborto. Ao mesmo tempo, se insere também na complexa situação que se verifica hoje no interior da Igreja, onde questionamentos e controvérsias estão presentes, como se viu anteriormente.

Vista através deste discurso, a questão do aborto apresen-ta-se como uma realidade complexa e simultaneamente irrefutável, entre o povo da Baixada: “muita gente faz isso”. Aliás, os padres constatam que sua existência se verifica inclusive entre os próprios membros da Igreja, embora reconheçam que, neste último caso, o fenômeno é bem mais limitado.

Sua existência é percebida como um fenômeno problemá-tico e conflitivo, particularmente quando se trata de adolescentes solteiras; nesta linha, os sacerdotes creem que é uma alternativa que as mulheres só assumem quando não há outra saída, pressionadas por motivos de ordem econômica, familiar ou cultural. “Acho que é um fato muito forte pra mãe ter que extrair ou eliminar a vida de um filho. Acho que o pessoal procura evitar antes de abortar”. Portanto, na sua percepção, não se trata de uma opção realmente livre, mas da escolha forçada de um ’mal’ inevitável. Nesta lógica, as conseqüências do aborto são percebidas como traumatizantes, gerando culpa e remorso. Diante desta percepção da realidade do aborto, o discurso dos padres assume características próprias. A primeira delas diz

6 A pesquisa se baseia em entrevistas semi-estruturadas, realizadas com uma amostra de 23 padres, incluindo 10 brasileiros e 13 estrangeiros, distribuídos por uma faixa etária que vai dos 30 aos 68 anos.

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respeito ao relativo desconhecimento que cerca o tema; à dificuldade de abordagem, por parte dos padres, se soma o constrangimento e o silêncio das fiéis, acentuado por diferenças de situação social e de gênero: os padres são homens celibatários, com valores sociais e culturais distintos, confrontados à experiência de mulheres dos seto-res populaseto-res. Isto traz como conseqüência uma informação reduzida – quando não distorcida – sobre a questão.

Mais um elemento condiciona seu discurso: são muito poucas as mulheres que procuram os sacerdotes antes do aborto.

Tendo que tomar uma decisão em situações que normalmente são vividas como extremamente difíceis e conflitivas, e conhecendo, em geral, a posição contrária da doutrina oficial da Igreja, as mulheres preferem recorrer a outras pessoas ou, freqüentemente, decidir de forma solitária.

As poucas mulheres que procuram os sacerdotes, nesta etapa, são, em geral, católicas, participantes da comunidade, que, na realidade, já vêm predispostas a não abortar.

“Procuram para aconselhar-se. E muitas vezes escutam, muitas vezes levam a sério. Há crian-ças nascidas aí por aconselhamento, mães que queriam fazer (aborto) mas que desistem. São pessoas da Igreja e que sentem que isso é gra-ve”.

A maioria das mulheres, entretanto, só entram em contac-to com os padres depois de realizado o aborcontac-to; neste momencontac-to, se sentem culpadas e então buscam apoio, para reconciliar-se com a própria consciência ou pelo menos para poder falar de seus problemas e “desabafar”. Desta forma, os sacerdotes só têm acesso à informação

a posteriori, depois do fato já sucedido.

Isto implica em duas conseqüências, que, de certa forma condicionam – quando não distorcem – sua percepção: por um lado, os sacerdotes têm a versão exclusiva seja das (poucas) mulheres católicas que os procuram antes – já predispostas a não abortar – seja das que os procuram depois do aborto realizado, em função da culpa e do arrependimento. Mas não têm possibilidade de ouvir experiências diferentes, de mulheres que tenham vivido o aborto de outras manei-ras e/ou em circunstâncias diversas.

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Por outro lado, os padres se preocupam sobretudo – quan-do não exclusivamente – com a dimensão moral e espiritual da questão: há pouco espaço – ou pouco interesse? – para averiguar as condições concretas em que se deu o aborto, os métodos utilizados, os locais e as possíveis conseqüências em termos de saúde. Assim, entende-se que os sacerdotes tenham uma percepção da realidade relativamente limitada, ambígüa e não isenta de distorções.

Neste contexto, sua prática pastoral se dá sobretudo na etapa posterior ao aborto, sendo sua ação no momento anterior bem mais reduzida. Ainda assim, é neste momento que se abre o espaço para a orientação. Se o conteúdo desta orientação está centrado sobre um valor indiscutivelmente aceito por todos – o valor da vida – as formas de traduzi-lo para a experiência concreta são diferenciais, possibilitando distinguir, entre os entrevistados, três enfoques distin-tos:

– o primeiro é contrário ao aborto em qualquer situação; este é sempre considerado um crime: “não há possibili-dades na legislação da Igreja de se aprovar nenhuma maneira de aborto: a Igreja é taxativa nisto”. Portanto, nestes casos, a orientação se resume na norma: “nunca abortar”.

– o segundo – sem divergir do princípio geral – explicita o papel da liberdade individual: reconhecendo a dificulda-de das dificulda-decisões concretas, respeita, em última análise, a consciência pessoal:

“a gente propõe aquilo que é o ideal... Agora, tendo aquela capacidade de respeitar a cami-nhada de cada um, a história de cada um”.

– O terceiro enfoque leva em conta o contexto – freqüen-temente complexo e conflitivo – em que se coloca concre-tamente a questão de realizar ou não um aborto, che-gando inclusive a admitir sua possibilidade em casos específicos.

“Nunca é bom interromper uma vida que se abre, mas, no entanto, há tantas circunstâncias cheias de conflitos que levam ao desespero... é uma situação muito complexa”.

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– Três dos entrevistados chegaram mesmo a explicitar estas circunstâncias; dois se referiram ao caso de risco de vida da mãe, no qual o fundamento moral para decidir seria o mesmo princípio de defesa da vida, percebendo que, neste caso, são duas vidas que estão em risco e que, tendo que escolher entre as duas, seria lícito optar pela vida da mãe: “eu acho que prevalece a vida que já está ali presente, que é a vida da mãe”. Um terceiro entrevis-tado acrescentou o caso de estupro:

“neste caso, é permitida uma decisão pessoal, né? Acho que o que vale também é a consciência da pessoa diante desse fato. Às vezes o fato foi tão traumatizante pra pessoa que ela não tem condições de encarar essa vida e de levar adian-te nove meses, o que é muito prejudicial à saúde e põe em risco até a vida da própria pessoa e da criança”.

Estes casos – embora representem uma minoria da amos-tra – são sintomáticos, por expressarem uma postura inovadora, em face do monolitismo da doutrina oficial e por revelarem o debate que vem se dando no interior da Igreja, no momento atual. Por outro lado, é importante observar que, mesmo admitindo a possibilidade do aborto em casos específicos, todos os entrevistados reafirmam o prin-cípio básico de defesa da vida, que é também o fundamento da posição ortodoxa, explicitamente contrária ao aborto. O que especifica e dife-rencia estas posições é que, neste terceiro tipo de orientação, tal reafirmação se baseia em um sentido amplo do conceito de vida, que inclui tanto a vida do feto quanto a vida da mãe e que leva em conta as circunstâncias em que ambas se desenvolvem.

Neste sentido, esta posição se distingue também da adota-da por algumas correntes explicitamente a favor do aborto, que consideram ser este um direito que cabe exclusivamente à mulher.

De qualquer forma, chama a atenção a diversidade dos tipos de orientação: embora defendendo os mesmos princípios éticos e considerando o dom da vida como valor fundamental, ao confrontar-se com a realidade concreta, a orientação assume formas diversas, que vão da rigidez da ortodoxia a uma maior flexibilidade, em função das circunstâncias. Esta abertura – até certo ponto inesperada – à

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com-plexidade do contexto, não tem uma relação direta com a nacionalida-de ou com a faixa etária dos entrevistados. Provavelmente, diferenças em sua formação e/ou em sua experiência ministerial ajudem a enten-der tal diversidade.

Ao mesmo tempo, as posições mais flexíveis coincidem perfeitamente com novas correntes que vêm surgindo no panorama teológico contemporâneo, onde o debate sobre a questão do aborto vem abrindo novas pistas, enfatizando matizes diversos e tentando respon-der aos desafios colocados pelo mundo atual, incarnando, neste novo contexto, os valores cristãos fundamentais. O fato de nenhum dos entrevistados ter feito referência a esta reflexão teórica não significa que se encontrem alheios à mesma. Por sua vez, o debate que vem se dando seja ao nível da ciência, seja ao dos movimentos sociais, como se viu acima, marcam o contexto brasileiro atual. É possível pensar que a circulação de idéias – assumindo formas as mais inesperadas – se dá ao longo de todo o tecido social, atingindo, de alguma forma, todos os seus setores.

Estas influências podem também representar uma respos-ta mais satisfatória aos desafios concretos que a precariedade da situação socio-econômica da Baixada coloca: na medida em que alguns sacerdotes vão tomando consciência da “situação de anormalidade” que se vive aí, passam a questionar uma doutrina feita em função de “condições normais”, que não se aplicaria neste contexto. Isto os leva a contestar abertamente o absolutismo de princípios universais, que não conseguem dar conta da complexidade do real.

Isto não significa que exista uma corrente “alternativa” já sistematicamente formalizada, entre os sacerdotes que têm uma po-sição mais flexível com respeito ao aborto; mas certamente o questio-namento presente neste pequeno grupo, a partir da prática que vivenciam cotidianamente no contexto da Baixada, abre pistas fecun-das para repensar a questão, à luz fecun-das circunstâncias concretas: enfatizam a necessidade de uma ética da responsabilidade, baseada na valorização da liberdade, da consciência pessoal e da capacidade do ser humano de tomar decisões autônomas.

Há um outro aspecto que chama a atenção: embora a maioria dos entrevistados reconheça que, na situação concreta da Baixada, a margem de liberdade é extremamente reduzida e que, ao optar pelo aborto, as mulheres – “escravas da situação” – o fazem por

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não ver outra alternativa, é muito reduzida, entretanto, a preocupação com o apoio concreto a ser dado à mulher, nesta situação. Foram muito poucos os que apontaram possibilidades de conseguir recursos para poder sustentar não só a gravidez como a futura vida da criança, seja através de apoio material ou de estratégias como a adoção. Aqui, verifica-se uma contradição objetiva entre a pregação da norma e as condições concretas que impedem seu cumprimento. Entretanto, o que parece mais relevante, para os efeitos da pesquisa, é o fato dos entrevistados – com pouquíssimas exceções – não terem se referido a este aspecto, parecendo não ter consciência da contradição que impli-ca.

O momento de maior densidade, em seu discurso, parece ser o que se refere à sua atuação enquanto pastores – na plena dimensão da palavra – na etapa posterior ao aborto. Nesta etapa, quando as mulheres vêm procurá-los sentindo-se profundamente cul-padas e arrependidas, sua atitude é basicamente de acolhimento, compaixão e perdão, tentando apoiá-las para que consigam superar suas dificuldades.

“A mulher vem aqui com a consciência pesada de ter feito o aborto. Eu ajudo mais a mulher a recuperar-se, nunca digo que alguém a está condenando. Não é cristão dizer. Acho que quem está sofrendo ali, é a própria pessoa que não quiz saber da lei da Igreja, né?”

É nesta circunstância que os sacerdotes dão mostra de uma capacidade de escuta e de compreensão, que não se limita a entender os fatos passados, mas que se abre também para a possibilidade do perdão e da reconciliação. Neste sentido, sua atitude – sem negar a “maldade” objetiva do ato em si – foge de uma dimensão condenatória, para assumir predominantemente características de apoio e de aber-tura de pistas para o futuro.

No caso do aborto, os entrevistados estabelecem uma clara distinção entre as mulheres da comunidade7 e as habitantes da

Baixa-7 No discurso dos sacerdotes, mulheres da comunidade são as que têm uma participação ativa na Igreja, não apenas na dimensão estritamente religiosa mas também em suas atividades sociais.

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da em geral. Isto não significa negar a ocorrência do aborto, entre as primeiras, – como foi anteriormente visto – mas simplesmente perce-ber que neste meio sua escala parece ser mais reduzida, já que sua posição de princípio é vista como predominantemente contrária ao aborto. São também as mulheres da comunidade que, de forma pre-ponderante, vêm consultar os sacerdotes diante da eventualidade do aborto e que, muitas vezes, terminam por aceitar seus conselhos e assumir a gravidez.

Entretanto, mesmo neste meio, o aborto existe; na percep-ção dos sacerdotes, em casos de extrema gravidade, as mulheres tomam a decisão de abortar e nem chegam a consultá-los; só depois vêm procurá-los, para confessar a culpa. Neste caso, há unanimidade na opinião dos entrevistados: sua atitude é sempre de compaixão e perdão.

Isto significa também uma enorme abertura para (re)ad-mitir as mulheres que abortaram na vida da comunidade. Para tanto, o fato do aborto se dar, na maioria dos casos, no âmbito do privado, do qual nem sempre os membros da comunidade têm conhecimento, favorece esta decisão. Mas parece haver também, por parte do clero, uma maior flexibilização neste aspecto. Pouquíssimos entrevistados se referiram explicitamente à pena de excomunhão, na qual, de acordo com o Direito Canônico, incorrem automaticamente todos os que intervêem no processo abortivo8. É certo que tal pena só se aplica sob determinadas condições, das quais a principal é o conhecimento da lei. Por outro lado, a confissão e a conseqüente absolvição do pecado anulam a pena. De qualquer forma, os entrevistados não revelaram maior interesse por esta questão; tampouco pareciam ter grande preocupação em divulgar o que estipula o Direito Canônico, o que, por sua vez, condiciona um grau de desconhecimento cada vez maior, entre os fiéis e, conseqüentemente, uma culpabilidade reduzida ou mesmo nula.

Ao atuar desta forma, os padres, em geral, parecem, uma vez mais, obedecer muito mais às exigências do pastor, que conhece as dificuldades da vida cotidiana e está preocupado com a recuperação

8 O Código Canônico, no capítulo “Dos direitos contra a vida e a liberdade do homem” Cânon (1398), afirma: “Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae”.

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de suas fiéis, que às do juiz, que aplica automaticamente normas absolutas, sem levar em conta as circunstâncias.

Concluindo, é possível afirmar que o discurso dos sacerdo-tes sobre o aborto, ao reconhecer uma prática pastoral diversificada – que inclui distintos tipos de orientação, expressando divergências e questionamentos – parece revelar, sobretudo, a dificuldade de lidar, na prática, com uma questão controvertida.

Descobre-se aí a falta de um diagnóstico mais completo e mais preciso da questão – que permitiria integrar e visualizar seus diversos ângulos – e a ausência de um espaço aberto de diálogo e debate, em face de uma realidade conflitiva, porém obscurecida pela situação de ilegalidade.

É muito clara, entretanto, a preocupação do pastor em acolher, apoiar e ajudar as mulheres, depois do aborto realizado.

Mas fica uma questão pendente, que seu discurso não consegue responder: se não basta proibir e condenar, o que é que (não) se está fazendo para prevenir a ocorrência do aborto? E como preve-ní-la, se se conhece tão pouco as condições que levam – ou forçam – as mulheres a escolher este caminho e se não se abrem opções alternati-vas?

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Referências

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