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A publicação de O Interregno no contexto político de 1927-1928

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A publicação de O Interregno

no contexto político de 1927-1928

José Barreto* Palavras-chave

Fernando Pessoa, O Interregno, Ditadura Militar, censura, Núcleo de Acção Nacional,

Mensagem, democracia, regime autoritário. Resumo

O artigo pretende lançar luz sobre alguns aspectos do contexto político da publicação de O

Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal, de Fernando Pessoa (1928),

proporcionando novos elementos para a sua interpretação. Os contratempos da publicação do panfleto e as posições políticas nele expressas são examinadas à luz da situação política do momento, nomeadamente o debate no seio da liderança da Ditadura Militar sobre o eventual regresso à normalidade constitucional ou, em alternativa, a criação de um regime autoritário.

Keywords

Fernando Pessoa, O Interregno, Military Dictatorship, censorship, Núcleo de Acção Nacional, Mensagem, democracy, authoritarian rule.

Abstract

This article aims at shedding some light on the political context of the publication of Fernando Pessoa’s O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal (1928), providing new elements for its interpretation. The setbacks of the publishing of the pamphlet and the political views it contained are examined in the light of the moment’s political situation, namely the debate within the leadership of the Military Dictatorship on the return to constitutional normality or, alternatively, the creation of an authoritarian regime.

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I.

Possivelmente em finais de 1927, foi impresso um panfleto de formato

in-quarto, com sete páginas de texto, intitulado: O Nucleo de Acção Nacional | dirige-se terminantemente á Nação | Primeiro Manifesto | O Interregno. A autoria do texto era

anónima, colectivamente atribuível ao Núcleo de Acção Nacional. Fernando Pessoa dirá mais tarde que escreveu este texto “em fins de 1927”.1 A impressão do panfleto

pode igualmente ter ocorrido ainda nesse ano.

Fig. 1. Primeira página do panfleto

(Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, Casa Fernando Pessoa)

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Deste panfleto apenas se conhece o exemplar existente na Biblioteca Particular de Fernando Pessoa. Sabe-se, também, que não foi autorizado a circular pelas autoridades da Ditadura Militar. Assim o esclareceu posteriormente o próprio autor: “O Ministerio do Interior impediu a sahida do manifesto, a não ser que viesse assignado e convertido em livro – isto é, folheto –, pois assim não era (então) preciso ir à censura, que, tendo sido consultada sobre o manifesto, puzera varias objecções à sua sahida”.2 Ignora-se a tiragem da versão panfleto, podendo o

exemplar de Pessoa tratar-se de uma mera prova tipográfica final, idêntica à que foi apresentada à Censura. Como a lógica do exame prévio implicava que a tiragem só se fizesse depois de obtida autorização de publicação, pode conjecturar-se que o exemplar do autor conjecturar-será um dos raros que terão sido então impressos.

Algum tempo depois foi publicado, com data de 1928, mas já sob autoria expressa de Fernando Pessoa e com edição do Núcleo de Acção Nacional, um folheto de 31 páginas numeradas contendo uma versão algo diferente do manifesto, a começar pelo título: O Interregno | Defeza e Justificação | da Dictadura

Militar | em Portugal. Nesta versão, o texto é rematado por uma datação que não

constava do panfleto proibido de circular: “Lisboa, Janeiro de 1928” (p. 31). Fernando Pessoa escreveria alguns anos mais tarde que o folheto foi publicado em Janeiro3, mas, numa carta datada de 5 de Março de 1928, o autor afirmava que ele

estava então “a sair do prelo”.4 A 9 de Março, de facto, o Jornal do Comércio e das

Colónias informava que acabava de aparecer O Interregno, “um pequeno opúsculo

de cerca de 30 páginas” de que o jornal agradecia ao autor a oferta de um exemplar. Um mês depois, aparecia no mesmo jornal nova referência à obra de Pessoa, num artigo de Augusto da Costa (1928). A 3 de Maio, em carta a José Régio, Pessoa já pede desculpa pelo envio tardio do opúsculo.5

2 Carta de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões, datada de 14 de Dezembro de 1931 (Pessoa, 1998: 184).

3 Nota acima citada (BNP/E3, 92A-26r), datável de ca. 1933.

4 “Tenho a sahir do prelo a única defeza que até hoje authenticamente se fez d’este Governo” (carta a Alexandre de Mendonça Alves de 5 de março de 1928). Ver aqui o Apêndice 2.

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Fig. 2. Capa do folheto O Interregno, 1928 (Exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal)

São várias as diferenças entre o panfleto ou manifesto anónimo que foi proibido de circular e o folheto (ou opúsculo) que foi realmente publicado sob a autoria expressa de Fernando Pessoa. Do título desapareceu a referência ao Núcleo de Acção Nacional, que passou a figurar como mero editor. O Interregno passou a título principal a que o autor acrescentou, como subtítulo: Defesa e Justificação da

Ditadura Militar em Portugal. A expressão “justificação da Ditadura Militar” já

aparecia repetidamente no texto do manifesto original, mas agora tem destaque de título. Mais significativo, aparece também, quer no título quer no texto do folheto, a “defesa” (da Ditadura Militar), termo que não se achava na versão panfleto. Foi retirada a menção “Primeiro Manifesto” do título do panfleto, mas no folheto o autor continua a afirmar que se trata de um primeiro texto ao qual outros quatro se seguiriam, algo de que muito em breve abdicaria. Com efeito, na citada carta de 3 de Maio a José Régio, Pessoa declarava que O Interregno não teria “seguimento ou

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seguimentos”, contrariamente ao que anunciara na própria obra. E acrescentava: “Pode ser que o reedite, refundindo-o e dilatando-o”.

O folheto é composto, tal como o manifesto original, por cinco capítulos, mas os seus títulos só parcialmente coincidem. São eles, no manifesto original:

I – Prefacio decisivo

II – Primeira justificação da Dictadura Militar III – Segunda justificação da Dictadura Militar IV – Terceira justificação da Dictadura Militar V – Chegada á Ponte

e no folheto:

I – Primeiro aviso

II – Primeira justificação da Dictadura Militar III – Segunda justificação da Dictadura Militar IV – Terceira justificação da Dictadura Militar V – Segundo aviso6

O conteúdo do capítulo I, agora com o título “Primeiro aviso”, é no folheto substancialmente diferente do da versão anterior. A razão dessa diferença e de outras que se podem constatar reside, em parte, na circunstância de a autoria de O

Interregno e o seu formato tipográfico terem sido alterados. Dadas as objecções da

Censura à publicação do manifesto, Pessoa teve que assumir a autoria individual e que optar pelo formato de folheto. Teve, em consequência disso, que rever o texto, fazendo-o aliás “de muito mau humor”, já que o “aborreceu muito tudo aquilo das autoridades”.7 Ainda assim, como se pode constatar pelo cotejo dos dois textos

impressos, a maior parte da composição tipográfica original pôde ser reutilizada sem alterações na impressão do folheto.

O manifesto anónimo do Núcleo de Acção Nacional declarava ter sido “pensado por homens portugueses”, como se de autoria colectiva se tratasse. No folheto, de assumida autoria individual de Fernando Pessoa, acha-se algo de muito diferente, declarando inclusive o autor não pertencer ao Núcleo de Acção Nacional:

O NUCLEO DE ACÇÃO NACIONAL [...] pediu-nos, que todavia a elle não pertencemos, que escrevessemos, por ser a occasião de o fazer, um esboço ou breve formulario do que, em nosso entender, poderia ou deveria ser o Portugal futuro em as varias manifestações da sua vida collectiva. A esta incumbencia aggregou o NUCLEO a condição, a si mesmo

6 Num exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal, o título deste capítulo não está numerado. No exemplar da Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, porém, o título do capítulo aparece numerado com um V, o que sugere que o folheto teve duas tiragens.

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imposta, de que acceitaria por bom o que escrevessemos, e com tudo, o que isso fôsse, se conformaria, tendo-o por proprio. Nestas condições, gratas não só por taes, mas tambem por honrosas, escrevemos o presente opusculo [...]

Num parêntese, diga-se que o Núcleo de Acção Nacional era uma obscura organização, talvez de existência meramente nominal, que em 1919-1920 publicara, sob a direcção do republicano sidonista Geraldo Coelho de Jesus, o jornal Acção, de que saíram apenas quatro números. Nele publicou Fernando Pessoa os artigos “Como organizar Portugal” (n.º 1) e “A opinião pública” (n.os 2 e 3), o retrato de

Sidónio Pais acompanhado de uma citação de Shakespeare (primeira página do n.º 3), o poema “À Memória do Presidente Sidónio Pais” (n.º 4, pp. 2-3) e ainda, sem dúvida, a avaliar pelo estilo inconfundível, o pequeno artigo anónimo intitulado “Tenente Teophilo Duarte” (n.º 3, p. 6), elogioso desse jovem e irrequieto “cadete de Sidónio” que em 1927-28 será governador de Timor e mais tarde ministro das Colónias de Salazar. Sendo director do jornal, conforme se declara no n.º 2 (legenda do seu retrato, p. 4) e no cabeçalho do n.º 4, o engenheiro e administrador de empresas Geraldo Coelho de Jesus, é plausível que ele tivesse tido um papel proeminente no Núcleo de Acção Nacional, entidade que também editou em folheto uma obra sua, as Bases para um Plano Industrial (1919), inicialmente publicada na Acção (n.º 1). Carlos de Noronha, que não escreveu para Acção, figurou sempre no cabeçalho como editor responsável. Deram colaboração para o jornal o monárquico Luís Vieira de Castro, então estudante de Direito, e o jornalista Augusto Ferreira Gomes, republicano sidonista e amigo de Pessoa e de Coelho de Jesus. Ferreira Gomes teve também um livro de poesia editado pelo Núcleo de Acção Nacional, Procissional (Leiria, 1921). O nome do arquitecto José Pacheco, que a partir de 1922 dirigirá a revista Contemporânea, aparece também vagamente ligado ao jornal (n.º 2, p. 5). Pouco mais se sabe sobre os putativos aderentes ou simpatizantes da fantasmática organização que teve Acção como seu órgão. Oito anos mais tarde, em 1928, com a edição de O Interregno, o Núcleo de Acção Nacional terá o derradeiro lampejo de vida da sua obscura existência. Pessoa afirmará então não pertencer à organização que lhe solicitou esse manifesto. Como acima se disse, o formato alternativo de folheto fora encarado pelo Ministério do Interior como solução para a publicação de O Interregno sem ter que passar novamente pela Censura. Com efeito, não havia censura prévia de livros e folhetos, mas apenas da imprensa periódica e de cartazes, folhas volantes, panfletos, manifestos, etc. Isso não constituía garantia de que, depois de publicados sem censura prévia, os livros e folhetos não pudessem ser proibidos e apreendidos – razão pela qual mais tarde, durante o Estado Novo, embora a lei continuasse a não o impor, alguns autores e editores preferissem enviar previamente os originais de livros à Censura, para não terem que suportar prejuízos em caso de proibição.

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Segundo o relato de Pessoa a João Gaspar Simões, a Censura opôs “várias objecções” à publicação de O Interregno na versão original. Pessoa não revelou de que tipo de objecções se tratava, mas pode conjecturar-se que não se cingissem à questão da autoria anónima ou colectiva. A publicação em folheto, solução sugerida por alguém do Ministério do Interior, permitiu contornar a oposição dos censores militares. Em suma, O Interregno não teve o visto da Censura, mas, como Pessoa escreveu depois num texto publicado na revista Presença ainda em 1928, “o Governo consentiu que se editasse”.8 Pessoa não esclareceu se o Ministério do

Interior impôs quaisquer condições relativamente ao conteúdo. Embora os Serviços de Censura fossem naquela data formalmente tutelados pelo Ministério do Interior, parece ter existido alguma diferença de opinião ou critério entre os dois níveis hierárquicos no tratamento deste caso. O Ministério do Interior era à data chefiado pelo general José Vicente de Freitas, que deteve essa pasta em dois governos sucessivos, entre 26 de Agosto de 1927 e 8 de Julho de 1929, acumulando com a presidência do Ministério a partir de 10 de Novembro de 1928. O Ministério do Interior sucedeu ao Ministério da Guerra na tutela dos Serviços de Censura a 18 de Outubro de 1927 (Gomes, 2006: 27). Nos primeiros anos da década de 30, o general Vicente de Freitas defendeu a liberdade de imprensa e um regresso à normalidade constitucional, opondo-se ao partido único, a União Nacional, que começara a ser organizada pelo governo em 1930, entrando assim em conflito frontal com Salazar, que conseguira o apoio dos militares reunidos em torno do presidente Carmona para o seu projecto político autoritário. Em 1933, Vicente de Freitas seria afastado por Salazar da presidência da Câmara de Lisboa, não voltando a assumir nenhum cargo político (ver Fernandes, 2010).

Tendo tido que rever o texto pelas razões indicadas, Pessoa aproveitou, aparentemente, para fazer outras modificações. Assim, os títulos originais, algo esotéricos, dos capítulos I e V, “Prefácio decisivo” e “Chegada à Ponte”, passaram respectivamente a ”Primeiro Aviso” e “Segundo Aviso”, mantendo a linha esotérica. Quem tenha em mente a Mensagem, recordará a secção “Os Avisos” da parte do livro intitulada “O Encoberto”, de cunho ostensivamente sebastianista. Essa secção contém três poemas que correspondem, na estrutura profética da obra, a três “avisos”.9 Constata-se também aqui a íntima relação entre O Interregno e a

Mensagem, já sublinhada por Joel Serrão, para quem as duas obras constituíam

“formas diversas de dizer o mesmo: que o génio de Portugal voltara ou estaria a voltar” (cf. Pessoa, 1979: 98). O último poema do livro Mensagem, “Nevoeiro”, escrito em 10 de Dezembro de 1928, termina com a exclamação: “É a Hora!”.

8 “Tábua Bibliográfica – Fernando Pessoa”, texto publicado anonimamente por Pessoa na revista

Presença n.º 17 (Dezembro de 1928).

9 Na Mensagem o primeiro aviso é o poema “Bandarra”, o segundo é o poema “António Vieira” e o terceiro é um poema sem título, que começa: “Escrevo meu livro à beira-mágoa…” (Pessoa: 1934: 81 a 86).

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Escrito um ano antes, O Interregno rematava com frase de sentido idêntico: “É este o Primeiro Signal, vindo, como foi promettido, na Hora que se promettera”. Observe-se como Pessoa funde em O Interregno o discurso racional e a argumentação sociológico-política com o discurso visionário e a linguagem profética do sebastianismo.

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Como se disse, as alterações de conteúdo mais substanciais que apareceram no folheto O Interregno estão no capítulo I. Este foi reformulado não só para se adaptar às alterações de autoria e formato tipográfico, como também por outros motivos, não inteiramente claros. Comparem-se abaixo os capítulos I da primeira e segunda versão.

Fig. 3. Pormenor do panfleto

Fig. 4. Princípio do folheto O Interregno, 1928

O que no capítulo I foi mantido ou adaptado com alterações nem sempre respeitou a ordem original dos parágrafos da versão original. Verifica-se, por outro lado, que foi suprimido o quinto parágrafo deste capítulo do manifesto original e

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que, no folheto, dois parágrafos inteiramente novos lhe foram acrescentados, o quarto e o quinto.

O parágrafo suprimido – eventualmente por ter suscitado objecções da Censura ou do Ministério do Interior, não o sabemos – referia-se à ”estrutura política” e ao “plano nacional e social” que o Núcleo de Acção Nacional tencionava propor “para o futuro” do país. É plausível que os censores e o próprio ministro, todos militares, vissem com maus olhos quaisquer planos ou propostas de cariz político provenientes de uma organização civil – ainda que minúscula e vocacionada para intervir “obscuramente” e “suavemente” na vida da nação, como Pessoa começava cautelosamente por declarar nas duas versões de O Interregno. A Ditadura Militar declarara guerra às “quadrilhas de políticos” (os partidos) e propunha-se refrear, senão erradicar, a propaganda política partidária. Os censores militares assumiram o encargo de “corrigir o ambiente político”, como disse alguns anos depois o director nacional dos Serviços de Censura, major Álvaro Salvação Barreto. Por outro lado, a “pulverização da doutrinação política” dos próprios quadrantes políticos apoiantes da Ditadura, patente na imprensa nos primeiros tempos após o 28 de Maio de 1926, era considerada nefasta.10 A Censura procurava

inclusive dirimir conflitos e evitar a exposição de divisões entre sectores dirigentes da Ditadura Militar, no seio da qual tinham aparecido desde o início importantes clivagens. No começo do movimento militar vários “programas” tinham surgido e os primeiros tempos da Ditadura, até pelo menos 1930, foram de sucessivos rearranjos e clarificações do poder, com golpes de força e alianças entre diferentes facções políticas do exército.

Os dois parágrafos novos do capítulo I de O Interregno talvez se destinassem, por conseguinte, a dissipar dúvidas das autoridades militares sobre o intuito político da obra. Todavia, ao vincar melhor neles e até no título o propósito de defesa (termo usado só no folheto, como se disse) e justificação da Ditadura Militar, deixando vagamente entender que não pretendia tomar partido por qualquer facção militar, Pessoa reforçava também uma nota de ambiguidade já expressa no manifesto original, pois repetia agora no capítulo I uma afirmação do último capítulo, ou seja, que O Interregno não visava defender os actos particulares da Ditadura Militar, sobre os quais não se pronunciava, e que se ela viesse a cair, defenderia outra Ditadura Militar (pp. 5-6):

Este opusculo tracta exclusivamente da defeza e justificação da Dictadura Militar em Portugal e do que, em conformidade com essa defeza, chamamos as Doctrinas do

10 Este problema, sentido desde o início da Ditadura Militar, conduziria mais tarde a uma reorganização dos Serviços de Censura e a um endurecimento das suas normas, chegando ao ponto de se proibir qualquer referência na imprensa a partidos ou agrupamentos políticos. Veja-se a este respeito Gomes (2006: 17-46).

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Interregno. As razões, que nelle se presentam, nem se applicam ás dictaduras em geral, nem são transferiveis para qualquer outra dictadura, senão na proporção em que incidentalmente o sejam. Tampouco se inclue nelle, explicita- ou implicitamente, qualquer defeza dos actos particulares da Dictadura Militar presente. Nem, se amanhã essa Dictadura Militar cahir, cahirão com ella estes argumentos. Não haverá senão que reconstruil-a, que estabelecer de novo o Estado de Interregno: não ha outro caminho para a salvação e renascimento do Paiz senão a Dictadura Militar, seja esta ou seja outra. Cumpre que isto fique desde já entendido como intuito proposto; fical-o-ha como caso provado quando se houver lido o opusculo.

E justificando-se, talvez, perante eventuais críticas dos militares à pouca clareza do seu texto, dizia Pessoa no outro parágrafo acrescentado ao capítulo I:

Escrevemos estas paginas num tom, num estylo e numa fórma propositadamente anti-populares, para que o opusculo, por si mesmo, eleja quem o entenda. Tudo quanto, em materia social, é facilmente comprehensivel é falso e estupido. Tam complexa é toda materia social, que ser simples nella é estar fóra d’ella. É essa a principal razão por que a democracia é impossivel.

De qualquer modo, a nova versão do capítulo I mantinha quase inalterado um trecho que, pela sua aparente arrogância ou presunção, não terá deixado de desagradar aos militares:

Escravos da mentalidade extrangeira, uns; escravos da falta de mentalidade propria, todos – nenhuns Portuguezes, politicos ou não-politicos, teem podido fallar nacional ou superiormente a este Paiz. Fal-o hoje, pela primeira vez desde 1578, e por nosso intermedio, o

NUCLEO DE ACÇÃO NACIONAL.11

Tal juízo era logicamente extensível aos responsáveis militares da Ditadura que, subentendidos no campo dos “não políticos”, também não teriam ainda falado “nacional ou superiormente” ao país. Quanto à atitude presunçosa exibida no trecho acima, Pessoa reincidia nela, de forma ainda mais manifesta, no penúltimo parágrafo do manifesto, que o folheto manteve igual, só com pequenas alterações formais:

São estes os fins, immediatos e mediatos, do presente opusculo, que neste poncto concluimos. O que nelle escrevemos (de menor monta, comtudo, que o que escreveremos no

proprio livro) o distingue, na amplitude e precisão dos conceitos, na logica do

desinvolvimento, e na concatenação dos propósitos, de qualquer escripto politico até hoje conhecido. Nem ha hoje quem, no nosso paiz, ou em outro, tenha alma e mente, ainda que combinando-se, para compor um opusculo como este. D’isto nos orgulhamos.12

11 O Interregno, p. 6. Em itálico assinala-se o acrescento feito na versão folheto.

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João Gaspar Simões aludiu, em dois estudos publicados nos seus livros

Temas (1929) e O Mistério da Poesia (1931), a uma atitude auto-laudatória de Pessoa,

que repetidamente considerou nota de narcisismo. Fernando Pessoa responder-lhe-ia, na aqui já citada carta de 14 de Dezembro de 1931, que Gaspar Simões estaria equivocado quanto ao significado daquela passagem de O Interregno:

O que me esqueceu por completo mencionar é o caso da referencia que fiz no meu

Interregno a ser aquelle folheto escripto de maneira que ninguem mais o poderia escrever,

ou qualquer coisa neste sentido, de que me claramente não recordo. V. tomou isto como uma especie de nota de narcissismo; já o fez em Themas, e agora repetiu-o em O Mysterio da

Poesia. É perfeitamente legitimo que V. o fizesse, porque a phrase lá está. O peor é que ella

se explica de uma maneira differente. A phrase pertencia ao Interregno na sua fórma original de manifesto anonymo. O Ministerio do Interior impediu a sahida do manifesto, a não ser que viesse assignado e convertido em livro – isto é, folheto –, pois assim não era (então) preciso ir à censura, que, tendo sido consultada sobre o manifesto, puzera varias objecções à sua sahida. Na revisão que fiz, de muito mau humor, pois me aborreceu muito tudo aquillo das auctoridades, esqueci-me de tirar essa phrase, que, sendo uma insolencia de blague no manifesto anonymo, é nem mais nem menos que uma nota de mau gosto – genero Shaw ou D'Annunzio – no folheto assignado. Mais nada. Sou absolutamente incapaz de escrever, directa e deliberadamente, uma phrase d’aquella ordem em circumstancias que não sejam as de um lapso, como as que cito. Tenho empenho em accentuar-lhe isto, não para me esquivar à attribuição de narcissismo (que não é das coisas mais caracteristicas do meu espirito – mas isso, enfim, não discuto), mas para me não deixar ter por culpado de uma nota de mau gosto e de falta de educação que, na verdade, não deliberei. É uma gaffe, se V. quizer (e quererá bem, porque o é), mas não é a má-creação narcissista que, sem esta explicação, se poderia suppor.

(Pessoa, 1998: 184) Assinale-se, enfim, outra das diferenças entre o texto do capítulo I nas duas versões, que tem a ver com projectada sequência da obra. Na primeira versão, o autor referia a intenção de publicar quatro novos manifestos avulsos, enquanto na segunda versão se refere ao projecto de um livro que teria cinco partes, ou seja, o presente texto, que serviria de “parte introdutória”, e quatro partes adicionais. A razão da passagem de cinco manifestos avulsos para um livro com cinco partes reside, em boa parte, no obstáculo da censura prévia, que só poderia ser contornado pela publicação em formato de livro.

II.

O Interregno foi tudo o que Pessoa realizou de um plano mais vasto, que

compreendia quatro manifestos subsequentes, ou as restantes quatro partes de um livro, que nunca escreveu. No seguimento da obra, Pessoa propunha-se descer do nível abstracto dominante na “parte introdutória” para a indicação de vias concretas de solução das questões enunciadas. Nunca o fez. Ainda na Primavera de

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1928, como vimos atrás, abandonou a projectada sequência. Depois, em 1933, descontente já com a maneira como no próprio opúsculo introdutório estudara e expusera o assunto, pretendia “substituir” a obra publicada em 1928 por outro escrito com o mesmo título, mas com um propósito diferente, pois que, com a votação da nova Constituição, o período do Interregno terminara, existindo já um regime13 – ou mais precisamente, como se depreende do texto, a Ditadura deixara

de ser uma “ditadura de interregno”. Finalmente, em 1935, escreveu que o folheto

O Interregno devia “ser considerado como não existente”, acrescentando todavia:

“Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito”.14 Vários textos avulsos que

deixou sob a epígrafe “Interregno”, alguns datáveis ainda dos anos 20, outros dos anos 30, aparentam destinar-se a essa projectada “substituição” ou “revisão”, mas trata-se em geral de meros apontamentos, pouco numerosos e pouco extensos, que não indiciam grande perseverança na concretização do projecto.15 Destaque-se de

entre eles, pela sua novidade, uma página dactilografada que Pessoa deixou, contendo três novos parágrafos que deveriam ser intercalados no texto de O

Interregno, com indicação precisa do local da página 8 do folheto onde o acrescento

deveria ser feito.16 Não há propriamente, nesses três parágrafos, qualquer revisão

ou alteração das posições originais do autor, mas sim um esclarecimento adicional sobre as divisões políticas em Portugal, a saber, as clivagens no seio dos republicanos e no seio dos monárquicos, que proporcionariam uma curiosa aproximação entre si de determinados sectores minoritários dos dois grandes quadrantes antagónicos.

Em O Interregno, Pessoa começa por justificar a Ditadura Militar com o argumento de que o país estava irremediavelmente divido em duas metades, uma republicana, outra monárquica. Em ambas as metades havia uma minoria activa, formada respectivamente pelos partidos republicanos e monárquicos, mas a maioria, nos dois casos, seria apática e indiferente. Pessoa comparava essa situação ao facto de coexistirem então duas ortografias portuguesas, mas a maioria da população não saber escrever. A única razão pela qual existia República em Portugal residiria no facto de a minoria republicana ser maior, mais activa e mais coesa do que a minoria monárquica. A razão profunda da divisão do país em duas metades antagónicas estava na ausência, desde Alcácer Quibir, de um ideal nacional, “um conceito missional” (Pessoa referia-se a um conceito de Império),

13 BNP/E3, 92A-26r, datável de ca.1933 (ver aqui o Apêndice 1).

14 Trata-se da vulgarmente chamada “nota autobiográfica”, intitulada Fernando Pessoa e datada de 30 de Março de 1935, integralmente publicada em Eduardo Lourenço e António Braz de Oliveira (1988: 17-22). O dactiloscrito original, na posse do Arquivo do Arq. Fernando Távora, está assinado pela mão de Pessoa, sendo presumível que se destinasse a publicação. Existe uma cópia não assinada no espólio do escritor.

15 Algumas dessas notas, sob a epígrafe Interregno, foram já publicadas por Joel Serrão em Fernando Pessoa (1979: 379-385). Existem no espólio várias outras notas sob a mesma epígrafe.

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que tendesse para uma fórmula política, para um regime que lhe fosse adequado. Não haveria então um regime em Portugal, algo à imagem da França, onde a nação não acreditava no regime e não confiava na oposição. Portugal dividido ao meio e “contra si mesmo” configurava um estado de guerra civil latente. Ora num estado de guerra caberia à Força Armada, e só a ela, exercer o poder (pp. 7-9).

Pessoa nunca esclarece cabalmente a que tipo de regime deveria conduzir a Ditadura Militar, a qual era para ele um “Estado de transição”, como tal a defendendo e justificando. “Estado de transição” é definido por Pessoa como “a condição de um país em que estão suspensas, por uma necessidade ou compulsão temporária, todas as actividades superiores da Nação”, acrescentando porém que os governantes num período desses tinham que “limitar a sua acção ao mínimo, ao indispensável”, ou seja, à manutenção da ordem pública, tarefa para que estariam idealmente vocacionadas as forças armadas (p. 18). Limitando, porém, a sua acção à manutenção da ordem, como asseguraria a Ditadura Militar uma transição? Quem decidiria o sentido da transição e que regime se seguiria ao Interregno? No seu opúsculo, Pessoa não responde a isto senão parcialmente e de uma forma muito vaga, começando por indicar o que esse novo regime não deveria ser.

Não deveria ser constitucionalismo, um termo que, para o autor, abrangia os regimes parlamentares da Monarquia constitucional e da República de 1910-1926, que aparecem no texto contrapostos à Monarquia absoluta. “Toda situação governante em Portugal, depois da queda da monarquia absoluta, é substancialmente uma fraude” (p. 28). O constitucionalismo português, monárquico ou republicano, era para Pessoa um sistema desnacionalizado, fraudulento e inviável, mas o próprio constitucionalismo inglês, modelo de todos os outros, não seria o reflexo da opinião pública inglesa (pp. 13-17). Fundava-se aqui Pessoa no livro Conservatism (1912) de Lord Hugh Cecil, um político conservador muito crítico das alegadas oligarquias que comandariam os aparelhos partidários britânicos e os destinos da governação, deturpando o sentido da opinião pública (Lord Cecil é, significativamente, o único autor citado por Pessoa no seu opúsculo). A necessária erradicação do “constitucionalismo” em Portugal não significaria, porém, um regresso à Monarquia absoluta, hipótese não considerada em razão da divisão da nação a meio, nem implicava que não devesse haver uma constituição, mas apenas que esta teria que ser viável. Dessa questão deveria ocupar-se a terceira parte do futuro livro (p.30), mas Pessoa nunca o escreveu. Numa nota que deixou, sob a epígrafe INTERR[EGNO], Pessoa aparenta reconsiderar acerca dos méritos respectivos das ditaduras e do constitucionalismo: “A idéa dictatorial não encontra na maioria do verdadeiro publico, em parte nenhuma, sympathia verdadeira. É que não ha, propriamente, idéa dictatorial. A constituição pode ser uma coisa absurda, porém é uma coisa; a dictadura não é nada” (BNP/E3, 52I-36r; inédito).

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O regime a criar pelo Interregno, declara o autor, também não podia ser duradouramente um governo “tipicamente de força”, que só existiria em sociedades bárbaras e semibárbaras ou, excepcionalmente, em “episódios ditatoriais sociedades civilizadas” (p. 19). A um governo tipicamente de força, necessário numa revolução ou numa guerra civil, sucedia ao fim de um certo tempo, por um processo de consolidação e estabilização do governo de força, um “governo de autoridade”. Mas também este, afirma Pessoa, não poderia durar indefinidamente, pois que a autoridade seria um “prestígio ilógico”, logo sujeito, com o tempo, a degenerar e a desaparecer. Só restaria, pois, “estabelecer um sistema de governo fundado na opinião” (pp. 19-20).

Quando O Interregno foi publicado, na Primavera de 1928, o governo da Ditadura Militar durava há quase dois anos. Terminara o período propriamente revolucionário e dera-se uma certa estabilização do governo. No preciso mês em que O Interregno acabou por ser publicado, o general Carmona foi eleito, em lista única, presidente da República, com um mandato de cinco anos (26 de Março de 1928). No seu opúsculo, escrito meses antes da eleição presidencial, Pessoa esquivara-se a precisar se considerava a Ditadura Militar um governo de força ou de autoridade, mas pode deduzir-se do seu texto que não o consideraria um governo “tipicamente de força”. Ora Pessoa sustentava na sua obra que o governo de autoridade subsequente ao governo de força também não podia durar, havendo a necessidade de o transformar num “sistema de governo fundado na opinião”, pois além da força e da autoridade não restaria outro fundamento para a existência de um governo, senão a opinião (p. 20). O problema, colocado no imediato e não no futuro de médio ou longo prazo, consistiria pois em “extrair da opinião um sistema de governo” (pp. 19-20). Eis, assim, apontada a missão de um “Estado de transição” comandado pelos militares: a criação de um sistema de governo baseado na opinião, com a ressalva de que não seria nem um constitucionalismo continuador da Monarquia Constitucional e da República, nem um constitucionalismo inspirado no modelo inglês. Se perante tal argumentação é impossível sustentar que O Interregno é uma defesa do poder autoritário, Pessoa também não indica por que modo se extrairia da opinião um sistema de governo, ponto essencial para se poder situar o seu pensamento político quanto à questão da formação do poder.

As dificuldades não fazem que começar: o que é a opinião, como se constrói uma verdadeira opinião pública (que Pessoa considerava não existir em Portugal), quem e como extrai dela um sistema de governo? Pessoa apenas fornece uma resposta, teórica e parcial, à primeira pergunta, enumerando e descrevendo as três componentes possíveis da opinião e, por conseguinte, da opinião pública – a saber, o hábito, o instinto (ou intuição, na sua forma superior) e a inteligência, correspondendo a cada uma delas um tipo de opinião. Eliminada, porém a opinião

(16)

inteligência (que é individual) e que não existia ainda uma ciência social apta a resolver os problemas da governação, segue-se que a opinião pública se funda e apenas pode fundar-se no jogo recíproco da opinião de hábito e da opinião de intuição. A “intromissão abusiva” da inteligência – que seria abstracta, fria, analítica, desintegrante e incomunicativa – na formação da opinião colectiva apenas contribuiria, segundo Pessoa, para “separar os homens, em vez de os aproximar”. Ao contrário, o hábito (que se “pega”) e a intuição (que se “transmite” como um “fluido”) aproximariam as pessoas, sendo pois ambos aptos a fundar uma opinião colectiva. A opinião de hábito, a que também chama opinião conservadora, é a que “mantém e defende as sociedades”, resistindo à sua desintegração. A opinião de

intuição, por seu turno, é aquela que promove o progresso das sociedades,

sobretudo se a inteligência não se lhe sobrepuser, perturbando-a. Só a intuição, isto é, o visionarismo do futuro, a profecia – “a fé, se se quiser” – é que pode acreditar “na virtude e na viabilidade do que ainda se não experimentou” (p. 24). Do jogo destas duas opiniões contrárias tem que resultar um equilíbrio (p. 25):

Teem as duas forças que existir, para que haja equilibrio, e, embora haja equilibrio, que ser oppostas. Um paiz unanime numa opinião de habito não seria paiz – seria gado. Um paiz concorde numa opinião de intuição não seria paiz – seria sombras. O progresso consiste numa media entre o que a opinião de habito deseja e o que a opinião de intuição deseja. Note-se, num parêntese, quão problemática se torna, perante estes e outros argumentos tipicamente liberais de Pessoa, a rotulação categórica de O Interregno como “uma obra fundamental do pensamento político português contra-revolucionário”, como Joel Serrão queria (cf. Pessoa, 1979: 84).

A opinião pública, assim concebida como produto do jogo complexo e insondável do hábito e da intuição, não era a agregação das “opiniões individuais fornecidas pela inteligência” nem resultava da existência de quaisquer maiorias ou outros factores quantitativos, como o “conceito vulgar de democracia” erradamente supunha (p. 22). Pessoa pensa, pois, que o regime a criar durante o período do Interregno, tendo que assentar na opinião pública, não podia ser uma democracia, pelo menos a democracia do “conceito vulgar”, pois esta, além de ser “impossível” (p. 6), é por ele descrita como a “sistematização da anarquia” (p. 23).

Definindo deste modo a opinião e as suas componentes teóricas, Pessoa abstém-se, porém, de dizer como é que se poderia estabelecer ou radicar uma opinião pública em Portugal, que a não teria ainda (o padrão em mente é a Inglaterra, onde ela existiria há muito e seria forte), e como se faria entrar essa opinião pública na constituição de um sistema de governo. O tratamento da questão é remetido para a quarte parte do futuro livro que, repita-se, Pessoa não escreveu. Abstém-se, igualmente, de explicar em que consiste e como se prepara ou cria o ideal nacional indispensável para ultrapassar a divisão da nação entre duas

(17)

concepções políticas irreconciliáveis, a República e a Monarquia, questão adiada para a segunda parte do livro que, volte a repetir-se, Pessoa nunca escreveu.

Possivelmente, Pessoa não tinha respostas mais precisas ou menos vagas para as questões que ele próprio apresentou. Sabemos que acreditava no poder do mito sebastianista como meio de radicar o “sonho” ou “ideal nacional” que faltava na sociedade portuguesa e sabemos que para ele a ideia de Império configurava historicamente esse ideal. Portugal tinha “condições orgânicas para ser uma grande potência construtiva ou criadora, um Império” – escrevera Pessoa dois anos antes, em Maio de 1926, na resposta ao inquérito de Augusto da Costa “Portugal, vasto Império”.17 Portugal, obviamente, não tinha condições para ser uma grande

potência guerreira ou económica, “mas pode ser uma grande potência espiritual; e pode sê-lo porque já o foi: o antigo império português, fundado nas descobertas, era por isso mesmo fundado num fenómeno cultural”.18 Parecerá ao leitor

pessoano de hoje que o conceito mítico de Quinto Império vai surgir a qualquer momento no texto O Interregno, mas Pessoa omite-o, ficando-se pela mera sugestão.

Note-se que Augusto da Costa, no artigo aqui já citado, “Aspectos gerais do problema português”, de 13 de Abril de 1928, se referia precisamente, a propósito da questão do ideal nacional que era necessário criar, ao recente “brilhante opúsculo” de Pessoa, de que transcrevia meia dúzia de linhas. Tal como Pessoa, Augusto da Costa (que era monárquico) pensava que a questão de regime que opunha as duas “metades” da nação portuguesa era nociva e secundária. Superiormente importante era o tal ideal nacional que faltava ao país e que cumpria à “elite portuguesa” apontar ou formular. Esse ideal nacional seria o conceito de Império, que Pessoa dizia ter morrido em Alcácer Quibir. E Costa acrescentava: “Sejamos ‘sebastianistas’ sem medo, sem receio que nos tomem por tolos”.

O Interregno é obra de um “raciocinador” teórico que todavia imbrica o seu

discurso político racional com aquele mesmo visionarismo e sebastianismo que caracterizara a sua resposta ao inquérito de Augusto da Costa (publicada, por acaso, no dia da revolução de 28 de Maio de 1926, facto que Pessoa talvez não considerasse meramente casual) e que caracterizará a Mensagem, publicada em 1934. Constatando esta dupla natureza do discurso de O Interregno, José Augusto Seabra chamou-lhe uma “construção poético-política” (1977: 18). Das alturas teóricas e proféticas em que se coloca, com a presunção de ser o primeiro a “falar nacional e superiormente” aos portugueses, Pessoa demarca-se claramente da acção concreta dos militares no poder. O Interregno defende a necessidade de uma ditadura militar, mas não se ocupa da defesa da Ditadura concreta então vigente. Se esta “é composta como convém que seja, ou se se orienta como convém que se

17 Pessoa (1926), posteriormente reproduzido em Costa (1934).

18 Trecho da primeira versão da resposta de Fernando Pessoa ao inquérito “Portugal, vasto Império” (BNP/E3, 55J-37r, inédito).

(18)

oriente, ou se subsistirá como convém que subsista – tudo isso é estranho à nossa demonstração” (p. 29). Igualmente recusa o autor fazer “explícita ou implicitamente, qualquer defesa dos actos particulares da Ditadura Militar presente” (p. 6), talvez porque assim, como não se coíbe de observar, se amanhã essa ditadura militar caísse, não cairiam com ela os argumentos do autor.

Da análise sucinta que aqui se fez do conteúdo de O Interregno, conclui-se estarmos perante um pensador político com uma clara retórica antidemocrática, mas que recusava um regime baseado na autoridade, advogando a necessidade de o poder se fundar na opinião – o que hoje se designaria, mas já no tempo de Pessoa muitos designavam, incluindo o próprio, por democracia.19 Alguém que considerava

a Monarquia constitucional e a República portuguesas como fraudulentas, mas que não considerava viável a restauração da Monarquia absoluta. Alguém que defendia uma ditadura (militar) em Portugal, mas que declarava não ser essa defesa extensível a qualquer outra ditadura então existente (p. 6) – afirmação repetida por Pessoa na carta de Janeiro de 1929 ao meio-irmão Luís Nogueira Rosa, que vivia em Inglaterra, em que se refere de forma ainda mais clara ao fascismo italiano.20 Alguém que se posicionava em relação ao debate então existente entre os

dirigentes da Ditadura Militar, num ponto utopicamente intermédio entre os que defendiam a transitoriedade da ditadura e preconizavam um regresso à normalidade constitucional e aqueles que defendiam a criação de um regime de autoridade. Alguém que acreditava, com os pensadores liberais, na pluralidade da opinião e que defendia, contra os defensores das vias únicas e do unanimismo autoritário, a necessidade de um sistema de equilíbrio ou síntese entre opiniões ou forças contrárias, “que se oponham, que se combatam”, mas que “tendam para o mesmo fim” (pp. 24-25), graças ao elemento equilibrador e unificador de um grande ideal nacional – referindo como exemplo mais alto desse ideal nacional a ideia monárquica e imperial inglesa (pp. 8-9).

Uma última nota de singularidade e ambiguidade de O Interregno tem a ver com a sua retórica antidemocrática, dirigida, mais precisamente, àquilo que designa (p. 22) por “conceito vulgar de democracia”, questão acima já aflorada. Ao advogar um poder baseado na opinião, embora rejeitando a democracia do “conceito vulgar”, o texto de Pessoa abre implicitamente uma fresta, através da

19 O jovem Pessoa, numa obra de grande fôlego que em 1909-1910, com 20-21 anos, preparava para publicação (History of a Dictatorship), chama precisamente democracia ao poder baseado na opinião, para ele então sinónimo de vontade popular (BNP/E3, 92N-6r). É nessa obra, que nunca chegou a completar, mas para a qual escreveu várias centenas de páginas, que Pessoa usa pela primeira vez a tipologia das três formas de poder, consoante ele seja baseado na força, na autoridade ou na opinião – tipologia fielmente retomada em O Interregno, em 1927, embora então democracia (pelo menos a de “conceito vulgar”) e governo fundado na opinião ou na vontade popular não fossem já sinónimos para o autor.

(19)

qual a possibilidade de um outro tipo de democracia, que não a “vulgar”, parece contemplável pelo autor. Nem no panfleto nem no folheto essa eventualidade se acha explícita, mas a descoberta no espólio do escritor do rascunho de um trecho permite esclarecer melhor a questão. Considere-se o seguinte parágrafo do capítulo IV do folheto:

Fig. 5. Segundo parágrafo da p. 20 de O Interregno, 1928

E o respectivo rascunho, agora encontrado no espólio de Pessoa:

Fig. 6. BNP/E3, 92M-64r

(20)

Europa21, e nós com ella, seguiu este curso inevitavel. Confronta-nos a todos um problema: extrahir da opinião um systema de governo. Buscou-se fazer isto por o que se chamou democracia, isto é, o governo absoluto da nação pela opinião da maioria22, sendo essa opinião obtida pela somma das opiniões individuaes. O termo democracia decompõe-se pois em trez elementos: (1) o governo absoluto da nação pela maioria (que é o que se chama o constitucionalismo); (2) o governo da nação pela opinião; (3) a determinação d’essa opinião pela somma das opiniões individuaes. Por varias razões, umas já expostas, outras que vão já expor-se, a democracia, neste sentido, é inviavel; pela razão agora dicta, uma23 democracia é inevitavel. É este o problema politico moderno. Não podemos recorrer á força senão transitoriamente, e com a certeza, se quizermos fazel-o permanentemente, que pagaremos o duro preço que pagam todas as sociedades em que se pretende realizar uma contradicção.

Torna-se, assim, mais claro o pensamento implícito do autor em O Interregno. Embora na versão final da obra esta redacção não tenha sido conservada, o que o autor aqui diz é que qualquer sistema de governo baseado na opinião, inclusive aquele que Pessoa advogava na sua obra, é uma democracia, embora esta compreendesse uma variante que ele considerava inviável em Portugal e outra que ele considerava inevitável. Não se sabe o que levou Pessoa a omitir esta clarificação, mas pode conjecturar-se que tal terá resultado de uma adaptação do autor aos condicionalismos da liberdade de expressão sob a Ditadura Militar. No contexto do seu pensamento, porém, aquela clarificação faria todo o sentido.

Não admira, perante semelhante conjunto de aparentes paradoxos e de posições perfeitamente singulares, senão únicas, no panorama político português de então, que O Interregno não lograsse obter nem eco nem apoio entre os que o leram, exceptuando a citada referência laudatória, mas lacónica, de Augusto da Costa no Jornal do Comércio e Colónias. Não admira, também, que os censores militares se tivessem oposto à sua publicação. Dez meses depois da publicação de

O Interregno, Pessoa queixava-se na referida carta ao irmão Luís Miguel da “pena

de silêncio” que fora aplicada ao seu folheto. Essa carta, cujo excerto pertinente se transcreve no Apêndice 5, é uma peça muito importante para a compreensão da posição política singular e isolada em que Pessoa se encontrava em 1928. O seu panfleto, diz aí Pessoa, “sustentava uma tese que discorda da opinião de toda a gente”. Não agradava nem a gregos nem a troianos. Convergindo O Interregno pontualmente com as opiniões de A ou de B, sucedia porém – diz Pessoa – que essas convergências eram “absolutamente repugnantes” para B ou A. O panfleto, declara ainda o seu autor, sendo uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, não

21

<A> Europa 22

governo [↑ absoluto] da nação pela <maioria dos seus> [↑ opinião da maioria] 23

(21)

se referia “aos outros sistemas similares aqui no Sul” (da Europa) e não era “representativo do que se poderia chamar o pensamento político actual nos países latinos”. E acrescenta: “O pensamento político actual nos países latinos é mais rigidamente conservador do que o contido no meu panfleto; talvez não saibas – muito pouca gente o sabe em Inglaterra – a que ponto o sentimento antiliberal se tem desenvolvido nos países latinos, especialmente em França e Itália”. É uma referência clara, além do fascismo mussoliniano, a pensadores como Charles Maurras (detestado por Pessoa desde a juventude) e o filofascista Georges Valois, animadores em França dos movimentos ultranacionalistas, anti-liberais, monárquicos e pró-católicos Action française e Le Faisceau.

Sublinhe-se que Pessoa deixara em O Interregno uma série de interrogações em suspenso, remetendo as respostas para a sequência da obra, que nunca escreveu. Se o tivesse feito, dada a singularidade do seu pensamento e as soluções concretas por que teria tido de optar, seria muito improvável que fossem maiores o eco e apoio que o folheto teve – quase nulo, como se viu. Essa é, talvez, uma das razões que desmotivou Pessoa da realização do seu projecto inicial.

Conclusão

Pretendeu-se com este trabalho lançar algumas luzes novas para uma melhor compreensão do significado de O Interregno. O problema da tresleitura, passe o termo, deste escrito político de Pessoa é antigo e foi pioneiramente assinalado por José Augusto Seabra, que acusou os vários tresledores da obra de “incapacidade de ler os textos como estão – diria Pessoa” (1977: 16). De facto, a interpretação de O Interregno – em geral pouco atentamente lido e sumariamente julgado pelo subtítulo – tem sido perturbada não apenas por preconceitos políticos e falta de atenção ao texto, mas também por ter ficado por resolver o problema da compreensão da obra à luz do contexto político do momento em que foi produzida. Procurou aqui obviar-se a esta última limitação, extratextual, da análise de O

Interregno revelando algumas circunstâncias desconhecidas, outras pouco

conhecidas, quando não deliberadamente omitidas, da sua publicação: a existência, até hoje nunca assinalada, de uma versão original impressa da obra; a proibição do panfleto original pela censura – isto é, pelos censores militares da Ditadura que a obra se propunha “justificar” e até “defender”; o facto de a publicação da obra ter sido viabilizada por uma espécie de negociação entre o autor e o Ministério do Interior, que assim se sobrepôs hierarquicamente aos Serviços de Censura; a circunstância de o então ministro do Interior ser um chefe militar pró-liberal, isto é, um adepto do regresso à normalidade constitucional com realização de eleições e da restauração da liberdade de imprensa; a existência de um debate no seio das chefias militares de então (estava-se ainda longe do Estado Novo) sobre a transitoriedade ou não do Estado de excepção vigente em Portugal e sobre a

(22)

adopção ou não de um figurino autoritário para o futuro. É sobre este pano de fundo alargado que é preciso olhar para O Interregno e avaliar o posicionamento do seu autor, sem esquecer, também, a primordial recomendação de José Augusto Seabra (e de Pessoa) quanto à necessidade de ler o texto como está.

(23)

Apêndice 1

[Publiquei, em Janeiro de 1928…]24

Publiquei, em Janeiro de 192825, um folheto com o mesmo titulo que o

presente. Dou hoje esse escripto por não escripto; escrevo26 este para o substituir.

Não quere isto dizer que repudie tudo quanto nelle escrevi, ou que o repudie na essencia. Parte do que lá está, está aqui tambem e ainda. O por que o dou por não feito é que, em suas linhas geraes, estuda mal o assumpto, e nas particulares o expõe mal.

O titulo, disse, é o mesmo em um e outro; uso d’elle porém com differente proposito. Quando escrevi o outro folheto, em fins de 1927, estavamos ainda longe do Estado Novo e da Nova Constituição, embora já perto, sem que o soubessemos, da vinda e primeira phase de Salazar. Havia de facto interregno, isto é, a Dictadura era, propriamente uma dictadura de interregno27. Com a votação da Nova

Constituição estamos já num regime: o Interregno cessou. Nada importaria, ou importa, o julgar mau o Estado Novo. Existe. O interregno cessou.

Parece, pois, que este folheto deveria ter outro titulo. Succede, porém, que nelle me proponho estudar as causas do 28 de Maio, o typo de revolução em [que] se enquadra, e as suas consequencias, hoje visiveis, no mesmo Estado Novo. Girando portanto à roda do que se estava obscuramente, e depois claramente, elaborando no interregno 1926-1932 /?/, posso manter o titulo, porque é verdadeiro. Acresce28 que não me proponho discutir a Nova Constituição ou o

Estado Corporativo; a ambos acceito, por disciplina; de ambos discordo, porque não concordo.

Poderia, talvez, entitular o folheto “O Interregno e as suas consequencias”. Creio porém que os titulos grandes não são titulos, porque são descripções, como os sonetos caudatos não são sonetos, porque teem dezasete versos.

24 BNP/E3, 92A-26r. Nota dactilografada de uma página, sem título. Datável de 1933. Publicada pela primeira vez em Pessoa, Da República (1979: 361-362). Texto aparentemente inacabado, que deveria servir de prefácio a uma projectada obra intitulada O Interregno, de conteúdo diferente do folheto homónimo de 1928 e com o propósito de o “substituir”. A referência ao plebiscito da Constituição, ocorrido a 19 de Março de 1933, situa este texto com alguma probabilidade nesse ano. 25 Escrevi [↑ Publiquei], em principios [↑ Janeiro] de 1928

26 escreve] no original.

27 propriamente, <um interregno.> uma dictadura de interregno 28 Adresce] no original.

(24)

Fig. 7. BNP/E3, 92A-26r

(25)

Apêndice 2

Carta de Fernando Pessoa a Alexandre de Mendonça Alves (5 de Março de 1928)29

Lisboa, 5 de Março de 1928. Exmo. Senhor Alexandre de Mendonça Alves,

meu prezado amigo:

Tinha combinado com o Manuel Hora estar na Empreza á 1 da tarde, para de alli seguir com elle para o seu Stand, com o fim de assistir á inauguração do Chevrolet 1928. Recebi, por intermedio d’elle, o seu convite, que muito agradeço.

O Manuel Hora não esteve na Empreza até á 1.25, e por isso segui sòsinho para a Rua Eugenio dos Santos. Por infelicidade, precisamente quando eu desembocava do Norte, emergia de qualquer outro ponto da bussola o automovel do Ministro da Instrucção, que vi descer, em pessoa, d’esse carro.

Este episodio serve-me desde já de excusa de comparecer á inauguração da sua Exposição, a qual visitarei hoje mesmo, porém mais tarde, para o felicitar pessoalmente, se alli o encontrar, e lhe repetir viva voce este pedido de desculpa. É que, entre as varias coisas que podemos anticipar neste mundo, ha algumas que excedem toda a coragem e todo o esforço de vontade. A eloquencia do Alfredo de Magalhães30 é uma d’ellas. A simples perspectiva de ter que o ouvir obrigou-me a

fugir immediatamente. Puz, sem demora, entre mim e a Rua Eugenio dos Santos toda a distancia que vae de alli até o Terreiro do Paço. Quereria poder felicital-o na hora propria, mas o Alfredo de Magalhães é o meu limite. Devo-lhe varios favores e muitas attenções, mas peço licença para lhe dizer que não ha attenções nem favores que bastem para me obrigar ao risco de ter que ouvir o Ministro da Instrucção Publica.

Isto não é um caso politico – tenho a sahir do prelo a unica defeza que até hoje authenticamente se fez d’este Governo: é um caso intellectual.

Com a maior consideração e as minhas felicitações, que espero poder confirmar pessoalmente, me subscrevo seu

mto. amigo e obgdo.

29 Uma página dactilografada, provavelmente cópia de químico. Espólio familiar, sem cota. Inédita. 30 Alfredo de Magalhães era então o ministro da Instrução da Ditadura Militar.

(26)

Fig. 8. Sem cota, espólio da família de Fernando Pessoa.

(27)

Apêndice 3

Excerto da carta de Fernando Pessoa a José Régio (3 de Maio de 1928)31

[…]

Mandei-lhe tardiamente – e d’isso lhe peço desculpa – o meu opusculo O

Interregno. Foi obra que fiz á pressa, para ser agradavel a alguem, muito meu

amigo, que me pediu que a fizesse. Isso, aliás, está dicto nos primeiros paragraphos do proprio opusculo. Pode ser que o reedite, refundindo-o e dilatando-o. A idéa fundamental permanece a mesma; não haverá porém seguimento ou seguimentos. O que estava para os ser terá outra, e diversas, applicações.

[…]

31 Cópia dactilografada, de uma página, de carta manuscrita, existente no espólio familiar de Fernando Pessoa. Publicada pela primeira vez em Pessoa (1998: 67-68).

(28)

Fig. 9. Sem cota, espólio da família de Fernando Pessoa.

(29)

Apêndice 4

[Mas não é só em monarchicos e republicanos que a nação se divide…] 32

Mas não é só em monarchicos e republicanos que a nação se divide em uma egualdade fatal. A mesma divisão, que torna impossivel umas instituições representativas, se repercute a dentro de cada grupo e torna egualmente impossivel o accordo, a dentro d’elle, sobre o typo de instituição em cuja generalidade estão de accordo.

Assim, os monarchicos se dividem, em partes sensivelmente eguaes, entre os defensores da monarchia constitucional e os defensores da monarchia absoluta (a que em geral dão outro qualquer nome, como “representativa”, “organica” ou outra cousa assim). Serão talvez em maior numero, quanto33 á quantidade, os que defendem a

monarchia do typo constitucional; são em maior numero, quanto ao peso, os que a defendem diversa.

Entre os republicanos, a mesma divisão se forma, mas a composição dos dois grupos não é a mesma. A maioria34 dos republicanos, authenticamente e

sentimentalmente taes, são constitucionalistas. Mas ha republicanos conservadores que, sem terem theoria alguma definida, ou sentimento algum definido (além do sentimento conservador, em parte natural, em parte artificialmente derivado da contemplação dos resultados que deu entre nós a Republica “democratica”, em parte, ainda, da influencia das propagandas contra-revolucionarias hoje communs em toda a Europa), acceitam comtudo de bom grado qualquer governo que, sem ser monarchico, offereça garantias de decencia, de honestidade, e de estabilidade que não mostraram os governos constitucionaes. Estes republicanos conservadores são em menor numero que os republicanos constitucionalistas, que são os republicanos propriamente ditos. Mas como qualquer situação republicana conservadora, appoiada portanto pelos republicanos conservadores, não desagrada – aparte toda idéa de restauração – a grande numero de monarchicos, succede que, sommados os republicanos conservadores, que, sendo mais do que se suppõe, não são todavia muitos, aos monarchicos que acceitam de bom grado uma republica desde que seja conservadora, temos já uma egualdade de numeros entre republicanos liberaes e republicanos conservadores, visto que nestes[,] para todos os effeitos practicos[,] se comprehendem35 aquelles monarchicos.

32 BNP/E3, 92I-37r. Inédito. Trata-se de um acrescento a intercalar num ponto exacto da página 8 do folheto O Interregno, de onde se pode concluir ser posterior à sua publicação. Começa com a linha: “INTERR[EGNO]: inserir pag. 8 depois do 1.º § aberto:”.

33 <numerica> quanto 34 mioria] no original.

(30)

Fig. 10. BNP/E3, 92I-37r

(31)

Apêndice 5

Excerto da carta de Fernando Pessoa ao meio-irmão Luís Miguel Nogueira Rosa (7 de Janeiro de 1929)36

7th. January, 1929. […]

I shall send you to-morrow (I have no copy by me) a copy of a pamphlet I was asked to write at the beginning of the last year, and which I did write and was published, though it was received, as I had indeed expected, by purposed silence in all the press here. I had expected that because it puts a thesis that happens to disagree with everybody’s opinion; it has one point of contact with A’s opinion, one point of contact with B’s, and so on, but the precise point of contact with A’s opinion is on a subject absolutely repugnant to B, and so the “pena de silencio” was applied. The pamphlet, which is a defence and justification of the Military Dictatorship in Portugal (only in Portugal – it has no reference to the other similar systems here in the South) is not representative of what you may call “current political thought in the Latin countries”. Current political thought in the Latin countries is more rigidly conservative than what my pamphlet contains; perhaps you do not know it – it is very little known in England – to what an extent the anti-liberal feeling has developed in the Latin countries, and especially in France and Italy. If I had been told in 1905, say, when I came back from Durban and found almost every student a Republican here, that in 1920 to 1929 almost every student here would be an Absolutist Royalist, I should have considered the prophet mad or drunk.

[...]

36 Cópia de carta dactilografada existente no espólio familiar de Pessoa. Publicada parcialmente em Pessoa (2003: 192-195).

(32)

Fig. 11. Sem cota, espólio da família de Fernando Pessoa.

(33)

[Tradução] […]

Enviar-te-ei amanhã (não tenho nenhum exemplar comigo) um exemplar do panfleto que me pediram para escrever no começo do ano passado e que, de facto, escrevi e foi publicado, embora tenha sido recebido, como eu realmente já esperava, pelo silêncio propositado de toda a imprensa daqui. Já esperava isso porque sucede que o panfleto sustentava uma tese que discorda da opinião de toda a gente; converge num ponto com a opinião de A, noutro ponto com a de B, e assim sucessivamente, mas o ponto preciso de convergência com a opinião de A é numa matéria absolutamente repugnante para B, e assim a “pena de silêncio” foi aplicada. O panfleto, que é uma defesa e justificação da Ditadura Militar em Portugal (só em Portugal – não tem qualquer referência aos outros sistemas similares aqui no Sul) não é representativo do que se poderia chamar o “pensamento político actual nos países latinos”. O pensamento político actual nos países latinos é mais rigidamente conservador do que o contido no meu panfleto; talvez não saibas – muito pouca gente o sabe em Inglaterra – a que ponto o sentimento antiliberal se tem desenvolvido nos países latinos, especialmente em França e Itália. Se alguém me tivesse dito, por exemplo, em 1905, quando voltei de Durban e descobri que quase todos os estudantes daqui eram republicanos, que de 1920 até 1929 quase todos os estudantes daqui haveriam de ser monárquicos

absolutistas, eu teria achado esse profeta louco ou bêbado.

(34)

Bibliografia

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____ (1928). O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal. Lisboa: Núcleo de Acção Nacional.

____ (1926). “Portugal, vasto Império – Um inquérito nacional - Depoimento do escritor Fernando Pessoa”, in Jornal do Comércio e das Colónias, 28 de Maio e 5 de Junho, p. 1.

Imagem

Fig. 1. Primeira página do panfleto
Fig. 2. Capa do folheto O Interregno, 1928   (Exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal)
Fig. 4. Princípio do folheto O Interregno, 1928
Fig. 5. Segundo parágrafo da p. 20 de O Interregno, 1928
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Referências

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