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Veronica Aparecida Silveira Aguiar. A pregação franciscana segundo as Regulae e Testamentum ( ). (Mestranda em História Social USP)

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

Veronica Aparecida Silveira Aguiar. A pregação franciscana segundo as Regulae e Testamentum (1221-1226). (Mestranda em História Social – USP)

As ordens mendicantes surgiram no século XIII. A mendicidade apareceu como um valor e um comportamento. Os mendicantes não eram monges segundo a tradição monástica, mas irmãos que viviam entre os homens e não na solidão, além disso, instalavam-se nas cidades. As duas principais ordens mendicantes1 eram a ordem dos irmãos pregadores (dominicanos) fundada pelo espanhol São Domingos (1170-1221) e a ordem dos irmãos menores, fundada pelo italiano Francisco de Assis (1181-1226)2 que será aqui o nosso objeto de estudo.

Pregar vem do latim praedicare e significa falar com a intenção de convencer; no caso dos Frades Menores, convenceram a população italiana de que o vivere secundum formam Sancti Evangelii era uma forma de participar da religião, sem cair no perigo da heresia. O discurso da pobreza e a imitação da vida de Cristo constituiu a base dos Frades Menores. A pregação não podia ser contra a ortodoxia da Santa Sé, por isso foi necessário definir os contornos da pregação que atraíram as massas e ao mesmo tempo combateram as heresias tão em voga. Deste modo definiu-se um novo modelo de cristianismo voltado ao povo.

Assim, na Baixa Idade Média, principalmente no século XIII, com o surgimento das Ordens Mendicantes, tivemos a emergência de uma pregação voltada à população, destinada ao povo. Devido às heresias, o controle à pregação popular tornaram-se prioridade para a Igreja. Para isso, as legislações eclesiásticas e pontifícias previram, organizaram e reforçaram a pregação dada aos cristãos.

Exemplo disso foi o Papa Inocêncio III (1198-1216) que no IV Concílio de Latrão de 1215 com o décimo cânone De praedicatoribus instituendis reforçou como a Igreja deveria aumentar a eficácia da pregação para combater as heresias. Inocêncio III foi autor de vários sermões e encorajou a pregação no âmbito das missões destinadas a evangelizar o nordeste da Europa, além da luta contra a heresia cátara. Seu grande objetivo era o de combater os desvios

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Também temos no século XIII os carmelitas (Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo), reconhecidos em 1247, e os agostinhos (eremitas de Santo Agostinho), formados pela reunião de diversos grupos eremíticos em 1243 e em 1256. Jacques LE GOFF. In: Jacques BERLIOZ. Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994, p. 229.

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Francisco de Assis propôs a criação de uma comunidade que seria caracterizada por um ideal de vivência pobre, com ausência de propriedade, sem provisões, sem dinheiro, com a recusa de cargos e de poder, pregando a pobreza, pedindo esmolas quando necessário, cuidando dos leprosos, sem local fixo, mas vivendo numa fraternidade, universalmente pobre em bens materiais. Assim, a primitiva fraternitas criada por ele transformou a pobreza em virtude e ideal de vida, dando um novo impulso a sociedade cristã, que tanto aspirava por novas formas de religiosidade no século XIII, principalmente por uma participação efetiva na vida religiosa. Luis Alberto DE BONI. De Abelardo a Lutero: Estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

heréticos, bem como o de confirmar a fé católica. Assim, a legislação eclesiástica empenhou-se em controlar, organizar e reforçar a pregação dada ao povo.

A formação da Ordem Franciscana constituiu-se em uma história extremamente complexa, que se iniciou com a intentio de Francisco de Assis (1182-1226). Antes de iniciarmos a análise sobre a pregação nos documentos Regulae e Testamentum, precisamos nos reportar ao início da vida de Francisco, já que a Regra Franciscana era o resultado de uma experiência de vida vivida pelo pobre de Assis, caracterizada por uma existência pobre e pela imitação da vida de Cristo. Este projeto de vida foi gestado aos poucos durante anos em diversos Capítulos dos Frades.

Em 1206 Francisco teve o primeiro chamado, contraiu núpcias com a domina paupertas e tomou a decisão de restaurar igrejas velhas locais, rompeu com o pai rico mercador e com a vida de fartura, abraçando a pobreza como o modelo ideal de vida tão em voga na sua época3. Depois disso, reuniu um grupo de seguidores em 1208 e 1209, junto com os quais formou uma Fraternitas, na qual pretendiam viver seguindo somente o Evangelho e pregando a pobreza. Esta primeira Fraternidade logo atraiu a atenção de todos. Era um período em que o limite entre ser herético ou santo era bastante tênue e exigia uma maior averiguação por parte da Santa Sé4. Além disso, no início qualquer um podia ser franciscano, independente da idade, condição social, cultura e não havia grande preparação para entrar na Fraternidade e pregar em nome dela. Contudo, em 12095 Francisco e seus companheiros foram pedir ao Papa a aprovação para continuar a sua empreitada. O Papa Inocêncio III (1198-1216) com algumas hesitações garantiu o direito de existência dos Frades Menores no seio da catolicidade. Assim, Francisco foi enquadrado e recebeu autorização para pregar a humildade evangélica em todos os lugares. O regulae propositum consistia em viver comunitariamente (não individualmente) na obediência, na pobreza e na castidade. Assim, em 1209 a fraternitas era a forma institucional identificada e não havia a idéia de uma “ordem” religiosa. Com a evolução histórica desta comunidade, foi necessária a redação da Regra, pois já não era mais uma pequena comunidade. De fraternidade à Ordem, tivemos uma natural evolução institucional, por isso a necessidade de se estabelecer um perfil jurídico do grupo que contava cada vez mais com um número maior de fiéis, enfim, fazia-se necessário uma norma que regesfazia-se a vida de itinerância e apostolicidade dos frades.

Em 1210 temos a formulação de uma proto-regra que, segundo os contemporâneos a ela era composta por simples frases evangélicas, mas infelizmente este documento foi perdido. O

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Nachman FALBEL. Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: EDUSP: FAPESP: Perspectiva, 1995.

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Para Sabatier, o século XIII foi por excelência o século dos santos e dos heréticos. Neste período, a Igreja era muito poderosa, mas ao mesmo tempo era também ameaçada. Paul SABATIER. Vida de São Francisco. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco: Instituto Franciscano de Antropologia, 2006, p. 22.

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As pesquisas mais recentes apontam para 1209 como o ano em que Francisco junto com seus companheiros foram pedir a aprovação verbal do Papa Inocêncio III e não mais o ano de 1210.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

texto da primeira “Regra” foi escrito para seus primeiros companheiros e sabemos através de várias fontes como a Legenda trium sociorum, os Fioretti, Tomás de Celano (primeiro biográfo do pobre de Assis), entre outros, que esta regra era curta e simples, compunha-se essencialmente de algumas passagens do Evangelho e poucas palavras, em suma, era um texto bem singelo e não comportava nenhum aspecto jurídico.

No ano de 1221, Francisco redigiu uma nova Regra, a Regula non bullata, que não foi aprovada pela Cúria Pontifícia. Francisco contou com o auxílio do frade Cesário de Espira na redação do texto. Esta regra era composta de vinte e três capítulos aos quais se mesclavam trechos do Novo Testamento. A nova Regra era rígida, o que caracterizaria uma oposição à simplicidade da Regra de 1210; também dava um sentido mais preciso e mais justificado, preservando a fisionomia primitiva da fraternidade. Contudo, criou-se um problema: a falta de rigor necessário a um documento legislativo inevitavelmente interditava-lhe a aprovação por parte da Cúria Romana.

Em 1223, Francisco redigiu a “terceira” regra, desta vez com o apoio do Cardeal Hugolino6. Esta Regra foi aprovada pelo Papa Honório III por meio da bula Solet annuere em 29 de novembro de 1223. A Regula bullata, recebeu retoques e ficou muito diferente da idéia inicial de Fraternitas e foi aprovada rapidamente pela Igreja. Desta vez a regra possuía um aspecto mais jurídico do que as anteriores e a maior parte das citações evangélicas havia sido suprimida, bem como passagens líricas que foram substituídas por fórmulas jurídicas; não se insistia mais na necessidade do trabalho manual e nem se proibia que os frades tivessem livros. A Regra de 1221 tinha vinte e três capítulos enquanto a Regra de 1223 contava apenas com doze capítulos.

No ano de 1226, o estado delicado de saúde provocou o retorno de Francisco a Assis onde faleceu em 3 de Outubro, depois de ter ditado o seu Testamentum, elaboração delicada de final de vida, também imprescindível para a compreensão de sua trajetória. O Testamento era um legado deixado por Francisco para a posteridade, por isso é necessário vê-lo como um gênero.

Na época de Francisco, a sociedade burguesa emergente dispunha de uma abundância material relativa. Não era incomum, a existência de pessoas ou grupos que desejassem uma despojação total de bens. Neste contexto, Francisco de Assis despojou-se totalmente de suas vestes, com um desprendimento espiritual, com uma vontade concreta de viver realmente a

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Desde 1217, a Ordem dos Frades Menores contaram com um protetor, o cardeal Hugolino de Óstia que mais tarde se tornou o Papa Gregório IX. Além de auxiliar o texto de 1223, ele canonizou São Francisco em 1228 e “ajudou” na difusão da Ordem Franciscana pela Europa.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

pobreza7. Assim, o histórico do Franciscanismo demonstra sua espontaneidade inicial. Conforme Desbonnets8, de princípio a fraternitas era uma comunidade formada por um grupo de leigos, mais tarde, entraram clérigos que ajudaram a redigir as primeiras regras desta comunidade e também contribuíram para mudar o aspecto original. No início, o grupo era heterogêneo em sua composição. Francisco de Assis pensava em estar e pregar no meio dos que não possuíam status, dos que não tinham posição social, embora alguns membros do grupo fossem originários da nobreza ou burguesia. Devido aos embates da época e do aumento considerável de fiéis foi preciso redigir uma regra, para delimitar as normas deste grupo. A formalização dos comportamentos tornou-se inevitável devido aos avanços do discurso pregador. Segundo Grado Merlo tanto as regras como o Testamento são documentos essenciais na qual está traçado o código genético do franciscanismo. Estes documentos representam um conjunto de informações que foram discutidas pelos frades em diversos Capítulos por muitos anos. Enfim, falar de pregação Franciscana significa dizer que Francisco fundou um novo discurso quando colocou a pobreza e a mendicância na ordem do dia. Assim, desde o início a pregação era um dos objetivos dos frades, ligada a experiência deles nas missões realizadas anteriormente à escrita dos documentos.

Explica-se talvez o crescimento rápido da Ordem Franciscana devido à pregação discursiva ser tão simples e popular, porque os franciscanos utilizavam-se da linguagem comum para expor o Evangelho, o que atraia as massas urbanas. O pobre de Assis era leigo e não sabia direito o latim e nem situar passagens bíblicas corretamente, por isso ele era auxiliado por vários companheiros na hora de fundamentar suas regras. Certamente, São Francisco não sabia que a sua Ordem cresceria tão rápido e atingiria dimensões tão grandes. Porém, ao institucionalizar a Ordem, a fraternidade acabou sofrendo metamorfoses9, resultando numa instituição eclesiástica.

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Segundo Mollat, a idéia de viver entre os pobres não foi inventada por Francisco, isto já fazia parte de uma tradição na cristandade ocidental. Porém, Francisco resignificou o viver a pobreza entre os pobres por meio da criação de uma fraternitas. Michel MOLLAT. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 115. Para André Vauchez, de fato, Francisco de Assis seguia uma tradição cristã e sintetizava as aspirações dos movimentos religiosos anteriores. Mas, mantendo uma fidelidade total à Igreja Romana. Segundo este autor, a originalidade fundamental reside na vontade de levar uma vida pobre e errante, a exemplo de Cristo, numa recusa a posse de bens não só pessoais, mas igualmente comunitários. Francisco teria uma concepção original e coerente de vida, difícil de ser levada à prática, porém coerente com a cultura do seu tempo. De uma forma original, Francisco de Assis propõe uma mensagem espiritual acessível a todos, através de uma fraternitas. Assim, a nova Ordem Mendicante cresceu rapidamente na Itália e se espalhou por toda a Europa. André VAUCHEZ. A espiritualidade da Idade Média Ocidental: século VIII-XIII. Lisboa: Estampa, 1995, p. 142 e 143.

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Theophile DESBONNETS. Da intuição à instituição. Rio de Janeiro: CEFEPAL, Vozes, 1987, p. 27.

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No capítulo II intitulado “Expansão da Ordem e metamorfoses do franciscanismo” Grado Merlo analisa com consistência as mudanças ocorridas na Ordem, desde a Fraternitas até a pos mortem do Frei Francisco. Grado Giovanni MERLO. Em nome de São Francisco. História dos Frades Menores e do franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes; FFB, 2005. Numa pesquisa mais antiga, Grado Merlo analisou as metamorfoses no capítulo “Le metamorfosi del francescanesimo”, in: VÁRIOS AUTORES. Francesco d’Assisi e il primo secolo di storia francescana. Torino: Einaudi, 1997, p. 17.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

A missão franciscana se dava basicamente na pregação e na cura dos enfermos; pregar, evangelizar, “converter” e curar os enfermos era o principal objetivo das missões. O papado envolvido no combate as heresias fazia um esforço para convencer os poderes (paróquias) de diversos lugares afim de facilitar a aceitação dos franciscanos em territórios da Alemanha, Inglaterra, sul da França, por toda a Itália e na península Ibérica. Houve uma expansão geográfica da Ordem por toda a Europa. A pregação voltada para a população era feita de acordo com a língua local, porém, a pregação dirigida ao clero em latim. No entanto, havia diferenças de conteúdos e técnicas de expressão. A regra franciscana tinha um capítulo que definia como os irmãos deveriam se comportar frente às missões realizadas entre os infiéis e sarracenos, porém fazia uma série de advertências, como por exemplo, em primeiro lugar os frades deveriam “dar a Paz” em qualquer lugar que chegassem, clara alusão ao sermão da montanha descrito por Mateus e Lucas. Aqui, a paz e a penitência seriam o sinônimo de salvação. Além disso, os frades deveriam ser amáveis, pacíficos, modestos, mansos e humildes; também, falar a todos com honestidade, e principalmente não julgar os outros, não litigar e nem degladiar com palavras.

A preocupação com a tarefa evangelizadora está presente na Regula sine bulla, na qual foram estabelecida as condições da pregação e como os irmãos deviam pregar a proposta de pobreza e simplicidade cristã pelo mundo; para isso precisavam ter permissão do ministro geral da Ordem que estava sob o controle da Santa Sé. A pregação é um dos pontos básicos da Regra. Ela é assim exposta segundo a Regula non bullata

Nenhum dos irmãos pregue contra a forma e a doutrina da santa Igreja nem sem a permissão de seu ministro. O ministro, porém, tome cuidado de não a conceder indiscriminadamente. No entanto, todos os irmãos podem pregar pelas obras. [...] a todos os meus irmãos que pregam, oram ou trabalham, sejam clérigos ou leigos, que tratem de se humilhar em tudo [...] E estejamos firmemente convencidos de que não temos coisa própria nossa senão os nossos vícios e pecados. Antes nos devemos regozijar “quando cairmos em diversas provações” (Tg 1,2) e sofrermos neste mundo na alma e no corpo toda sorte de angústias e tribulações, por causa da vida eterna.10

10 Ildefonso SILVEIRA & Orlando dos REIS. (Org.) São Francisco de Assis. Escritos e biografias de São Francisco

de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. 4 ed. Petrópolis: Vozes, CEFEPAL do Brasil,1986, p. 154. O texto no original está em latim: Nullus frater praedicet contra formam et institutionem sanctae ecclesiae et nisi concessum sibi fuerit a ministro suo. Et caveat sibi minister, ne alicui indiscrete concedat. Omnes tamen fratres operibus praedicent. [...]omnes fratres meos praedicatores, oratores, laboratores, tam clericos quam laicos, ut studeant se humiliare in omnibus, Et firmiter sciamus, quia non pertinent ad nos nisi vitia et peccata. Et magis debemus gaudere, cum in tentationes varias incideremus (cfr. Jac l,2) et cum sustineremus quascumque animae vel corporis angustias aut tribulationes in hoc mundo propter vitam aeternam.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

Na Regula bullata, a obediência e a supervisão do Ministro Geral continuavam a ser ressaltadas, provavelmente devido ao problema das heresias

Não preguem os irmãos na diocese de algum bispo que lho tenha proibido. E nenhum dos irmãos se atreva, de modo algum, a pregar ao povo sem ter sido examinado e aprovado pelo ministro geral desta fraternidade e por ele admitido ao ofício da pregação. Também admoesto e exorto os mesmos irmãos a que, nos sermões que fazem, seja a sua linguagem ponderada e piedosa (cf. Sl 11, 7 e 17, 31), para utilidade e edificação do povo, ao qual anunciem os vícios e as virtudes, o castigo e a glória, com brevidade, porque o Senhor, na terra, usou de palavra breve (cf. Rm 9, 28).11

Enfim, temos na Regra todo um conjunto de normas pelas quais os frades deveriam seguir, deveriam pedir autorização para as missões, para a pregação, o conteúdo da pregação deveria ser examinado e aprovado. O ato de pregar não poderia ser aleatório e sem conteúdo pré-estabelecido. Nesse passo, verificamos que o espontaneismo inicial caminhou para um necessário formalismo, ou seja, uma equalização de posturas e propósitos do discurso dos irmãos.

No Testamentum não aparece nenhuma nova informação sobre a questão da pregação, porém o Testamento é um gênero quase auto-biográfico de Frei Francisco e no nono parágrafo fica claro que a obediência ao ministro Geral da Ordem dos Frades Menores era necessária

Foi assim que o Senhor me concedeu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência: como estivesse em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para os leprosos. E o senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia com eles. [...] E quero firmemente obedecer ao ministro geral desta fraternidade e ao guardião que lhe aprouver dar-me. E de tal modo quero estar como prisioneiro em suas mãos que fora da obediência a ele ou contra sua vontade eu não possa ir a parte alguma nem empreender nada, porque ele é o meu senhor. 12

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Idem, p. 137. Em latim: Fratres non praedicent in episcopatu alicuius episcopi, cum ab eo illis fuerit contradictum. Et nullus fratrum populo penitus audeat praedicare, nisi a mi-nistro generali huius fraternitatis fuerit examinatus et approbatus, et ab eo officium sibi praedicationis concessum. Moneo quoque et exhortor eosdem fratres, ut in praedicatione, quam faciunt, sint examinata et casta eorum eloquia (cfr. Ps 11,7; 17,31), ad utilitatem et aedificationem populi, anuntiando eis vitia et virtutes, poenam et gloriam cum brevitate sermonis; quia verbum abbreviatum fecit Dominus super terram (cfr. Rom 9, 28).

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Idem, p.169. Original em latim: Dominus ita dedit mihi fratri Francisco incipere faciendi poenitentiam: quia cum essem in peccatis nimis mihi videbatur amarum videre leprosos. Et ipse Dominus conduxit me inter illos et feci misericordiam cum illis. [...] Et firmiter volo obedire ministro generali huius fraternitatis et alio guardiano, quem

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

Neste passo verificamos que, para além do reconhecimento da normatização do discurso, Francisco já percebera que a hierarquização era o destino inequívoco da ordem.

Ao pregar, os frades anunciavam a proposta de pobreza e simplicidade trazendo novas possibilidades de testemunho cristão para a população das cidades no século XIII, mas a pregação franciscana não era autonôma, e sim, monitorada pela Santa Sé.

Havia dois tipos de pregação: uma voltada para o clero que era dada em latim e a outra voltada para o povo em língua local. Naturalmente, se os públicos eram diversos, havia diferenças de conteúdos e de técnicas de expressão. Por isso, o serviço de pregação não podia ser exercido por qualquer frade, mas apenas por aqueles aos quais fora formalmente atribuída tal função, aptos ou condizentes com o discurso autorizado.

Francisco propôs um modo de vida e viveu a sua proposta. A Igreja da Baixa Idade Média, por sua vez, absorveu o pensamento franciscano. Diferentemente de Pedro Valdo, São Francisco foi uma experiência bem sucedida, principalmente após a sua morte, quando a Igreja internacionalizou a sua santidade e a sua popularidade no Ocidente Medieval.

O discurso usado pelo pobre de Assis impôs-se pela sua eficácia. Foram reconhecidas a sua habilidade de falar, de vestir (a vestimenta pobre chamava a atenção em público por onde os frades passavam, era um fator identificador do grupo), de pregar e de escrever. Sempre quando pensamos em pobreza, a primeira imagem que vem em nossas mentes é a figura de São Francisco de Assis ou o pobre de Assis. Ele não foi o primeiro a renunciar a riqueza, dar aos pobres e viver mendicidade. Contudo, a imagem dele perpetua esta idéia no imaginário coletivo até os dias atuais.

Francisco deu um novo significado a pobreza, transformou-a em virtude a todos os cristãos, resignificou algo que já vinha da tradição cristã, porém instituiu um novo valor ao ser pobre, ao viver a pobreza itinerante e ao imitar a vida de Cristo. Assim, instalou-se uma nova tradição que penetrou em todas as camadas sociais da Baixa Idade Média, pois os frades vinham de diferentes classes sociais, desde o camponês até o letrado da Universidade de Paris.

Em suma, falar em discurso franciscano significa dizer que Francisco fundou um novo discurso quando colocou a pobreza e a mendicância na ordem do dia. Ao analisar as diversas hagiografias ou crônicas do século XIII, percebemos que aquela imagem de Francisco foi uma imagem construída pela Igreja Católica e pela literatura franciscana, e é muito difícil se desvincular dela enquanto historiadores. Assim, antes havia um discurso que podia criticar a

sibi placuerit mihi dare. Et ita volo esse captus in manibus suis, ut non possim ire vel facere ultra obedientiam et voluntatem suam, quia dominus meus est.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

riqueza da Igreja, apesar de que Francisco nunca se propôs a isso, agora esse discurso foi absorvido por ela e coube aos franciscanos o papel salvífico para aquela sociedade em crise.

BIBLIOGRAFIA

Fontes Primárias

Edição bilíngüe das fontes franciscanas, disponíveis no site: http://www.procasp.org.br, site oficial da Província dos Capuchinhos de São Paulo, acessado em 29.06.2008.

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Referências

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