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Simpósio Temático Forças Armadas e Política: continuidades e mudanças

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Academic year: 2021

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Simpósio Temático “Forças Armadas e Política: continuidades e mudanças”

SOB O SIGNO DO NOVO: O MOVIMENTO DOS MARINHEIROS DE 19101

José Miguel Arias Neto

Professor Adjunto. Departamento de História- Universidade Estadual de Londrina. Pesquisador associado ao NEE- Núcleo de Estudos Estratégicos/UNICAMP e ao LEI- Laboratório de Estudos sobre Intolerância/USP

Teria sido o movimento dos marinheiros de 1910 uma revolta? Os contemporâneos assim o entenderam, principalmente porque, em meio aos próprios acontecimentos teriam se convencido de que o movimento não era político. Em grande parte, esta compreensão resultou da ênfase dada, tanto pelo governo Hermes da Fonseca, quanto pela oposição civilista e pela imprensa, à revolta como manifestação ou protesto contra os castigos corporais existentes na Armada e pela sua extinção. Em outras palavras, a reivindicação, aparentemente principal dos marinheiros - o fim dos castigos corporais - comprovaria o caráter não político do movimento. A conotação dada ao termo

revolta era sinônimo de insubordinação ou rebelião.

Para responder a questão proposta, se faz necessário retomar um evento, um acontecimento aparentemente pequeno, mas que pode contribuir para uma melhor compreensão do significado do movimento de 1910. Na manhã do dia 23 de novembro, quando se dirigia para parlamentar com os revoltosos, o deputado José Carlos de Carvalho interceptou a lancha que vinha do São Paulo e trazia um manifesto endereçado ao presidente da República. O documento tinha o seguinte teor:

“Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1910. Ilmo. e Exmo. Sr. presidente da República Brasileira, Cumpre-nos, comunicar a V.Excia. como Chefe da Nação Brasileira: Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira, a falta de proteção que a Pátria nos dá; e até então não nos chegou; rompemos o negro véu, que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo .Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os Oficiais, os quais, tem sido os causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da Pátria, mandamos esta honrada mensagem para que V.

1

Versão modificada de parte da Tese de Doutoramento intitulada: Em busca da cidadania: praças da Armada

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Excia. faça os Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilita, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha Brasileira; bem assim como: retirar os oficiais incompetentes e indignos de servir a Nação Brasileira. Reformar o Código Imoral e Vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes; aumentar o soldo pelos últimos planos do ilustre Senador José Carlos de Carvalho, educar os marinheiros que não tem competência para vestir a orgulhosa farda, mandar por em vigor a tabela de serviço diário, que a acompanha. Tem V.Excia. o prazo de 12 horas, para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria aniquilada. Bordo do Encouraçado São Paulo, em 22 de novembro de 1910. Nota: Não poderá ser interrompida a ida e volta do mensageiro.- Marinheiros."i

Constitui este documento, verdadeiro desafio para o historiador. Embora seja mencionado pela maioria dos autores que tratam da revolta, não foi por nenhum deles analisado integralmenteii. O comandante Pereira da Cunha foi o primeiro a publicá-lo em 1949, como prova da ignorância dos marinheirosiii. Já Edmar Morel considera o manifesto como fruto de grande preparação, sinal de que a revolta havia sido planejadaiv. Marcos Antonio da Silva, entende, a partir da leitura do documento, que os marinheiros se definiram “como um grupo capaz de uma

ação voltada para seus próprios interesses, dialogando com o poder num plano de barganha que a força sobre seu controle permitia”v. Por sua vez, Hélio Leôncio Martins, menciona o manifesto com duas finalidades: para comprovar que a revolta havia sido planejada pelo grupo de marinheiros especialistas - o documento foi redigido pelo telegrafista Ricardo de Freitas - e que as exigências feitas eram vagasvi. Álvaro Pereira do Nascimento, analisando 1910, como parte de um processo de revoltas que já vinha ocorrendo contra os castigos físicos, julga que “o discurso desses

marinheiros revela um nível de conscientização não alcançado pelos seus camaradas anteriormente”vii.É fundamental compreender porque este documento não foi analisado pelos comentaristas da revolta. Talvez a própria história, ou o desenrolar dos acontecimentos possa contribuir para esclarecer este aspecto. Qual foi o destino dado ao documento por José Carlos de Carvalho?

Sabe-se que o deputado o recebeu das mãos dos marinheiros. Em seu relato ao Congresso, no entanto, sequer menciona o fato e muito menos o conteúdo do documento. Ao contrário Carvalho construiu a visão de uma revolta de alucinados. É possível supor, portanto, que o governo ao ter conhecimento do manifesto decidiu não revelá-lo ao Congresso e ao público. Após o relato de José Carlos de Carvalho e da eliminação das suspeitas de que a oposição tramara um golpe de Estado, a discussão entre os parlamentares centrou-se no como desmobilizar os

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marinheiros: se através de uma anistia ou de uma reação militar. Enquanto o executivo planejava a reação militar, o Congresso só aparentemente negociava.

Neste processo, o legislativo fora mais desprestigiado que o executivo, pois se tornou quase dominante a interpretação da anistia como resultado da covardia dos parlamentares, a que terminou se submetendo o presidente Hermes da Fonseca. Foi esta seqüência de acontecimentos que passou a ser descrita como sendo a revolta de novembro. Houve, portanto, um ocultamento do

manifesto encaminhado pelos revoltosos, que resultou na exclusão das reivindicações apresentadas

pelos marinheiros dos debates políticos em 1910. A historiografia e a memória da revolta seguindo, posteriormente, a mesma seqüência dos acontecimentos, terminaram por considerar o manifesto como documento secundário, marginal. Este ocultamento pode e deve, contudo, ser visto como um ato político, deliberado pelo governo e, portanto, como evento histórico e político, parte integrante dos acontecimentos da revolta de 1910. Talvez analisando os termos do manifesto, seja possível levantar algumas hipóteses que possam esclarecer este acontecimento. Em primeiro lugar, o documento se apresenta na forma de comunicado, de honrosa mensagem, de um

ultimatum. O sujeito da mensagem é um coletivo que se define como marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos. Este enunciado é bastante significativo pois exprime uma condição e

um credo político que necessitavam ser explicitados. Julgavam os redatores, portanto, que o estatuto de cidadãos dos marinheiros não era reconhecido, e isto torna-se evidente no decorrer do manifesto. Por outro lado, a enunciação do credo republicano não era trivial, como se poderia imaginar à primeira vista. De fato, o movimento restaurador representava, para muitos, uma poderosa força política, uma ameaça à estabilidade do novo regime. Mesmo que fosse muito mais uma imagem, esta era suficientemente poderosa para mobilizar os defensores da Repúblicaviii. Em 1910, poucos contestariam a idéia de que os restauradores eram responsáveis, ou estavam envolvidos, pelos maiores movimentos que haviam abalado o novo regime: a Revolução Federalista, a Revolta da Armada contra Floriano, o movimento de Canudos e mesmo a Revolta da Vacina.

A revolta da Armada contra Floriano fora derrotada, dezessete anos antes, porque grande parte da população, o Exército e mesmo governos estrangeiros - em especial após a publicação do manifesto de Saldanha da Gama - haviam sido convencidos de que se tratava de um movimento

restaurador. Em outras palavras, enunciar o credo republicano no documento que expressaria as

reivindicações da classe, objetivava tornar claro a posição política de adesão ao regime por parte dos revoltosos, o que não seria em si auto evidente. Em segundo lugar, o enunciado "achando-se

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plano encetado pelos revoltosos: tratar-se-ia de uma rebelião de todas as guarnições da Armada. Em 1911, o ministro Marques de Leão, explicando em seu relatório porque não havia sido possível uma reação militar, observava: "foram (...) precisas cerca de 48 horas para que se pudesse dispor de

menos de uma dúzia de torpedos, nem todos previamente regulados(...) esse reduzido número não poderia ser elevado ao suficiente para o simples municiamento sequer da Divisão de destroyers, por motivos que tristes mas poderosas razões mandam calar"ix.

Nesta passagem, aparentemente enigmática o ministro parece admitir que toda a estrutura hierárquica da Marinha havia sido desfeita no momento da revolta: com exceção dos oficiais combatentes, que se propunham à uma reação armada, as demais classes da armada tornaram-se suspeitas ao governo. Além de constatar a indiferença de sargentos e maquinistas em relação à sorte dos oficiais, a pesquisa de Hélio Leôncio Martins revelou que os telegrafistas e os foguistas eram francamente favoráveis aos revoltosos e, também, que o presidente do Lloyd Brasileiro colocara os foguistas da Marinha mercante à disposição do governo para guarnecer os destróieresx. Foi toda a Marinha, como organismo de Estado, que simplesmente desapareceu. O Estado perdeu o controle sobre parte fundamental do mecanismo que garantia o monopólio da violência interna e o principal elemento de defesa externa, em um momento conturbado da vida política nacional. A partir das 22:30 da noite de 22 de novembro de 1910, só existia a esquadra rebelde, tendo os marinheiros a posse das mais poderosas e destrutivas máquinas de guerra até então fabricadas pelo homem. É necessário ainda destacar um outro aspecto acerca desta passagem. A informação de que os oficiais estariam aprisionados a bordo, indica um sentido de não violência na revolta. À primeira vista poderia causar um certo estranhamento falar de não violência quando os canhões dos encouraçados rebeldes ameaçavam o Rio de Janeiro. Porém, como demonstraram Engels e Hannah Arendt, a violência é instrumental, ou seja, necessita de implementosxi e raramente aparece em seu estado

puro pois, "como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que

almejaxii. Ela é escorada e restringida pelo poder - habilidade humana para agir em concertoxiii ou, em outras palavras, "o poder resulta da capacidade humana, não somente de agir ou de fazer algo,

como de unir-se a outros e atuar em concordância com eles"xiv.

Este, talvez, seja o fato mais espetacular da revolta - a manifestação de um poder - que aparece nas palavras e nas ações dos marinheiros, evento novo, sem precedentes na história da Marinha. Imprevisto e inesperado. Fato anterior à posse dos navios, baseado na experiência do fazer-se. Fundado na associação quotidiana, reverteu-se na decisão de empreender um movimento por uma causa comum, na formação dos comitês de organização - uma república onde os homens se encontram, se reconhecem como livres e iguais e constroem a si e a seu espaço político. Fato

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que, possivelmente derive da experiência do abolicionismo e das associações dos homens do mar. Herança, da tradicional repugnância pelo serviço militar e da resistência ao recrutamento e ao sorteio, da prática do recurso ao habeas-corpus, direito novo, criado pela República. É esse poder que, instrumentalizado pelo vigorxv dos encouraçados, enuncia a ruptura do poder de governo,

exercido em sua forma derivativa pelo oficial de Marinha. A exclusão que começou a ser operada após a revolta de novembro, demonstra que o desarmamento dos navios não era suficiente -

exatamente porque eles eram apenas instrumentos - para neutralizar o poder dos marinheiros. Isto

explica porque nos dias que se seguiram à anistia, a situação foi considerada insustentável pelos oficiais: eles se descobriram destituídos de autoridade. Disto resultou o trauma e o ressentimento dos oficiais da Marinha que ecoam através do tempo: 1910 aparece como o signo do novo pois os marinheiros demonstraram que a obediência nada mais é do que "a manifestação externa de apoio e

do consentimento"xvi e que os oficiais deveriam reconstituir em outras bases o princípio da autoridade o que, certamente, é mais penoso e difícil do que reconstruir uma esquadra destruída. O

movimento de dezembro, possui uma conexão com o de novembro, na medida em que serviu de justificativa para a violência que se desencadeou sobre os anistiados: o massacre dos prisioneiros

na ilha das Cobras e do Satélite, os fuzilamentosxvii, que o governo procurou ocultar, o conselho de investigação e o infindável processo dos indiciados.

Se é possível supor uma experiência daqueles homens, anterior a seu ingresso na Marinha, é pertinente imaginar, também, que sua vivência militar lhes tenha propiciado o conhecimento de novas estratégias, aprendidas juntamente com o discurso republicano. A tomada dos navios e a sua utilização como instrumento e representação de poder, pode ser vista como resultado da experiência de um momento histórico determinado, pois diversas vezes oficiais e marinheiros utilizaram aquelas máquinas de guerra para tentar promover mudanças políticas: no Brasil em 1891 e 1893, no Chile em 1892, na Rússia em 1905, para mencionar apenas os mais conhecidos. Os comitês aparentemente escolheram um momento considerado favorável à eclosão da revolta: aguardaram a chegada dos navios; o governo parecia frágil, quer porque o resultado das eleições demonstrara que as oligarquias do país estavam divididas, ou ao menos produziram esta impressão; a intervenção de militares da Armada e do Exército em Manaus e a dualidade de assembléias no Rio de Janeiro conturbavam o cenário político nacional. Aparentemente o novo governo se iniciava em uma situação de fragilidade. Assim, a deflagração do movimento revoltoso parece ter resultado da escolha estratégica de um momento em que a possibilidade de vitória se afigurava como real. Em outras palavras, não é possível explicar a revolta como explosão descontrolada de "marinheiros alucinados", como afirmam alguns de seus intérpretes. Ao contrário, pesquisas posteriores demonstraram que vinha sendo preparada há, pelo menos, um ano.

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Não parece ter sido, entretanto, somente a experiência militar dos superiores que os marinheiros incorporaram à sua experiência. O manifesto parece ser, também quanto a isto, esclarecedor. Os marinheiros reivindicavam que o Estado os tratasse como cidadãos fardados em

defesa da Pátria, proporcionando-lhes proteção, estendendo-lhes os direitos sagrados prometidos

pela República, acabando com a desordem e reconhecendo-lhes a plenitude da cidadania, isto é, o direito de reivindicar: a retirada dos oficiais incompetentes, a reformulação do código imoral e vergonhoso extinguindo a chibata, o bolo e outros castigos semelhantes, o aumento dos soldos, a educação de seus companheiros mais carentes e a reformar das escalas de trabalho.

Nenhuma destas reivindicações funda, em si, um direito novo. O que se desejava, eram

reformas que fortaleceriam a Armada, da qual os marinheiros consideravam-se integrantes. Essas reformas, ao cabo, incrementariam o poder do Estado, tornando mais eficaz seu instrumento de

exercício da violência e de defesa externa. Nada estaria, portanto, mais distante de reivindicações operárias do que este movimento reformista no qual não se pode ver nenhuma revolução seja no sentido de mudança do regime ou de transformação da sociedade. Tratar-se-ia, portanto, de uma

intervenção salvadora : o documento demonstra ainda que os marinheiros, ou, ao menos o comitês

responsáveis pelos termos do manifesto, partilhavam com os oficiais a mesma representação da Armada como espelho da nação republicana.

O manifesto dos revoltosos revela a divisão da "classe": os autores do documento reivindicatório reconheciam a existência de um grupo de praças que necessitava ser educado e treinado para melhor desempenhar suas atribuições militares. Neste sentido, não parece possível caracterizar a revolta como movimento popular contra a chibata. Contudo, a desestruturação na hierarquia militar se processou paralelamente a um movimento contrário de reforço da mesma. Este movimento representou uma tentativa de "solucionar" o problema da composição das guarnições, advindo com a implantação do trabalho livre: de um lado o Estado não tinha condições de concorrer no mercado de mão-de-obra, por razões econômicas e culturais - a tradicional repugnância ao serviço militar -, de outro, excluídos e ex-escravos passaram a ingressar na Armada. Este processo iniciou-se em meados dos anos setenta do século XIX, quando parcela das classes dominantes se preparava para a substituição do trabalho escravo. À nova lei do recrutamento seguiu-se a de regulamentação do Artigo 80, que reforçou o poder de punir dos comandantes.

Este movimento prosseguiu na República, com a elaboração do novo código disciplinar, que terminou por eliminar qualquer correspondência entre delito e pena, transformando os comandantes em juízes e executores das punições dentro de todo o sistema militar. Ou seja, ao longo dos trinta e seis anos que separam a lei do recrutamento da revolta de 1910, as transformações

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no regime disciplinar da Armada, traduziram-se no incremento do arbítrio dos comandantes. Se as praças incorporaram à sua experiência - e tudo indica que sim - estratégias, táticas e valores dos oficiais, este processo ocorreu no interior de um sistema em que o arbítrio dos superiores acentuou as relações de dependência pessoal. Isto terminou por esgarçar as redes hierárquicas e disciplinares, atomizando, cada vez mais, as relações entre comandantes e subordinados. Esta atomização se manifestou no universo político através da formação das clientelas :

Após a primeira década republicana, o processo de "regeneração nacional" implicou, também, na modernização das Forças Armadas. A "restauração" da Marinha, se processou dentro deste movimento regenerador. Os programas navais de 1904 e 1906 não obedeceram a imperativos tecnológicos relacionados à uma estratégia defensiva, mas sim à uma ofensiva do Estado republicano, no sentido de realinhar-se dentro do "conserto das nações civilizadas", ou dito de outro modo, de definir uma posição hegemônica na América do Sul, dentro do novo contexto imperialista.

O Estado tomou para si também, a tarefa de formar o pessoal através da implantação das escolas profissionais, cujo projeto datava de 1905. De um lado, procurou-se estimular o ingresso na Armada, garantindo formação e melhores soldos aos futuros especialistas. De outro, estes deveriam permanecer pelo maior tempo possível vinculados à força, até vinte ou vinte cinco anos, conforme o regulamento de 1908. Contudo, estes homens ingressavam em uma estrutura que se definia segundo critérios de dependência pessoal, mantida através de um sistema de suplícios.

Deste modo, a satisfação das reivindicações dos marinheiros - recomposição das estruturas hierárquicas, reforma dos códigos disciplinares com a eliminação dos castigos corporais e do arbítrio, educação generalizada, lazer propiciado a partir regulamentação do tempo de trabalho e a eliminação dos oficiais incompetentes -, representaria o primeiro passo na criação de uma carreira

profissional para os marinheiros..

Os relatórios de Furtado de Mendonça e o do ministro Marques de Leão demonstram o quanto a administração naval compreendeu o sentido do movimento dos marinheiros. Fundamentados na experiência da revolta, ambos propuseram reformas na Armada. Na segunda parte de seu relatório, o chefe do estado maior apresentava uma proposta de reforma geral da Marinha, que começaria pelo próprio ministério e chegaria ao redimensionamento dos espaços internos dos navios, visando dotá-los de maior habitabilidade para oficiais e praças, sem que perdessem seu valor de combate. Estado maior, escolas de oficiais e praças, serviço de saúde, tudo deveria ser mudado, tudo deveria ser reformulado segundo uma política de defesa interna e externa, desenvolvida em consonância

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Marques de Leão, por sua vez, parecia concordar com os termos do manifesto dos marinheiros, estabelecendo com estes um "diálogo" bastante peculiar. Os revoltosos haviam "rompido o negro

véu" que os encobria aos olhos do povo e o ministro concluía que a "nação fora iludida por uma miragem"xix, ao supor que a formação de uma esquadra respeitável bastaria à uma boa organização naval.

Os fatos haviam desfeito esta ilusão, demonstrando a necessidade de "regeneração" da Armada. Em seu modo de entender, era fundamental a reforma completa da estrutura organizacional - o ministério, as escolas, as carreiras de oficiais e praças, que deveriam ser fundadas no mérito e não no tempo de serviçoxx. Marques de Leão também escreveu a Clóvis Beviláqua, solicitando que elaborasse projeto de novos códigos e processos disciplinares e penais que não apenas eliminassem

"as penas corporais onde a infamação se combina com a tortura", e o "arbítrio dos comandantes sobre seus comandados"xxi, mas também estabelecessem "as garantias republicanas que

solenemente adotamos"xxii.Para o ministro Marques de Leão, estas reformas constituir-se-iam

apenas no ponto de partida para a "regeneração" da Armada. A sua implantação dependeria de uma transformação na mentalidade e nos costumes: "Convencido de que os nossos males se originam de

descabidos preconceitos, mantendo artificialmente hábitos em antagonismo com o estado de nossa época, propus providências que, implicando numa transformação de costumes, exigem principalmente a boa vontade e o concurso de todos para a regeneração da Marinha."xxiii

Na medida em que se anunciavam como cidadãos, os marinheiros falavam de um lugar que estava sendo construído, através do livre ir e vir, do pensar e de se associar, ou seja, de um exercício

de construção de sua própria liberdade e cidadania, ou seja, os marinheiros constituíam-se como sujeitos de direitos. Este enunciar demonstra, então, uma concepção outra de cidadania e de

liberdade que não aquela fundada no direito de propriedade, mas no de igualdade política, ou seja, é porque se consideravam cidadãos que se atribuíam o direito de reivindicar.

Neste movimento em que se auto apresentam como livres e iguais para denunciar e transformar uma situação de desigualdade, os marinheiros exigem o reconhecimento de sua cidadania pelo outro, neste caso, o conjunto da sociedade. Em outras palavras, o primeiro passo para a vitória do movimento seria impor este reconhecimento pelo Estado, o principal interlocutor dos revoltosos. É por isso que a revolta começou a ser destruída quando o Manifesto foi ocultado; de fato, sua apresentação ao Congresso e à opinião pública poderia ter provocado um outro curso de

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início ao fim da revolta: ocultou o manifesto, desviou o debate para a questão da anistia, promoveu as exclusões e os massacres, ocultando-os da opinião pública e da história.

Ora, é exatamente o poder e a força da revolta e a novidade que ela enuncia - a efetivação da República - que é ocultado pelos analistas que procuraram justificar a violência da repressão

desencadeada pelo Estado, e por aqueles que viram a revolta sob a categoria pré-política da compaixão pelos miseráveis.

É pertinente, contudo, retomar os termos de Hannah Arendt quando afirma que somente onde o "pathos da novidade se fizer presente, e onde a novidade estiver relacionada com a idéia de

liberdade, é que temos o direito de falar em revolução"xxiv. A revolução se consolidaria, segundo a

autora, com a criação de uma Constituição. O que dizer de um movimento que manifestava o desejo

de consolidação da Constituição? Podemos supor, portanto, que o movimento de 1910 é um

momento da longa e incompleta revolução republicana brasileira.

i

Serviço de Documentação da Marinha, 97/5134, lata 159.

ii

Estão relacionadas aqui as principais obras que tratam diretamente da revolta, excluindo-se os testemunhos contemporâneos e aquelas de caráter geral, como as historias militares ou da Primeira República: Um oficial da Armada. Política versus Marinha. Rio de Janeiro: Garnier, 1911. PAULO, Benedito. ( Adão Manuel Pereira Nunes). A revolta de João Cândido. Porto Alegre: Independência, 1943. CUNHA, H. P. A revolta na esquadra brasileira em novembro e dezembro de 1910. Separata da Revista Marítima Brasileira. Rio de Janeiro, Imprensa Naval, 1953 ( A primeira publicação data de 1949). MOREL, Edmar. A revolta da chibata. 4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986 ( a primeira edição é de 1958). FILHO, Mário Maestri. 1910: A revolta dos

marinheiros - uma saga negra. São Paulo: Global, 1982. SILVA, Marcos Antônio da. Contra a chibata: marinheiros brasileiros em 1910. São Paulo: Brasiliense, 1982. MARTINS, Hélio Leôncio. A revolta dos marinheiros de 1910. São Paulo/ Rio de Janeiro: Editora Nacional/ Serviço de Documentação Geral da

Marinha, 1988. NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Marinheiros em revolta: recrutamento e disciplina na

Marinha de Guerra (1880 - 1910). Dissertação de Mestrado. Departamento de História. IFCH-UNICAMP,

1997.

iii

“(....) enviaram os insubmissos a seguinte mensagem, aqui transcrita ipsis litteris, com todos os seus erros...”. CUNHA, H. P. Op. p.76.

iv

MOREL, Edmar. Op. Cit., p.85.

v

SILVA, Marcos A . Op. Cit., p.45.

vi

MARTINS, Hélio Leôncio. Op. Cit., p.75.

vii

NASCIMENTO, Álvaro P. do. Op. Cit., p. 109.

viii

JANOTTI, Maria de L. M. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986.

ix

Relatório do Ministério da Marinha,1911, p. 9.

x

MARTINS, Hélio L. Op. Cit, p. 61-2.

xi

ENGELS, F. O papel da violência na História. In MARX, K; ENGELS, F.; LENIN, V.I. Escritos militares. São Paulo: Global, 1981,, p. 151-60. ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p.13.

xii

ARENDT, Hannah. Op. Cit., p.41.

xiii

Idem, p. 36.

xiv

Apud. HABERMAS, J. O conceito de poder em Hannah Arendt. In FREITAG , B. & ROUANET, S. P.

(10)

xv

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Op. Cit., p. 37.

xvi

Idem, p.39. xvii

Depoimento de João Cândido a Hélio Silva. Transcrição, p. 14.

xviii

Idem, p. 24-5.

xix

Mensagem Presidencial. 15/12/1910. A expressão foi reproduzida também no relatório de 1911.

xx

Relatório doMinistério da Marinha.1911, p. 22-75.

xxi

Carta do ministro Marques de Leão à Clóvis Beviláqua em 29/04/191, p. 31. Serviço de Documentação da Marinha, 97/ 5134, lata 159.

xxii

Idem, p. 5.

xxiii

Relatório do Ministério da Marinha, 1911, p. 74.

xxiv

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