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Mulheres Chefes de Família: a complexidade e ambigüidade da questão *

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Mulheres Chefes de Família: a complexidade e ambigüidade da questão

* Mary Alves Mendes

UFPE

Palavras-Chave: chefia domiciliar feminina, pobreza, relações de gênero.

Introdução

O crescimento freqüente da presença feminina na esfera do trabalho1 traz também à tona uma situação cada vez mais constante na atualidade que é a mudança de gênero na manutenção da família. No Brasil, segundo dados do censo do IBGE (2000), as famílias chefiadas por mulheres representam 24,9% dos domicílios brasileiros. O nordeste é a região brasileira que apresenta a maior proporção de domicílios chefiados por mulheres, com 25,9%, acompanhado da região sudeste com 25,6%. Segundo Berquó (2001), as chefias femininas crescem no país como um todo, é um fenômeno tipicamente urbano, a maioria é do tipo monoparental, destacam-se as mulheres mais jovens, separadas, negras, mais pobres e com baixo grau de escolaridade. A grande concentração da chefia feminina encontra-se nas camadas pobres (Castro, 1990, 1982; Goldani, 1994), visto que a própria condição de pobreza, e muitas vezes miséria, conduz as mulheres ao mercado de trabalho em situações que vão desde o compartilhar a manutenção da casa com o companheiro, até responsabilizar-se sozinha pelo domicilio.

Mas será que a participação das mulheres no mercado de trabalho, acompanhado do crescimento da chefia domiciliar está diretamente relacionada a uma questão de emancipação feminina? As camadas sociais de onde provém essas mulheres chefes de família tornam-se um dos indicadores importantes para o desvelamento de parte dessa questão que é diversificada e plural em seus meandros e desdobramentos e, portanto complexa em seu entendimento. A relação trabalho e emancipação feminina parecem

* Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em

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convergir mais nas camadas médias do que nas camadas populares, nesta o elemento motivador e primordial do ingresso ao trabalho é, na maioria das vezes, a luta pela sobrevivência. As mulheres das camadas mais pobres, além de possuírem um baixo nível educacional e qualificação, estão inseridas em grande parte no mercado informal, em péssimas condições de trabalho e salários. Já as mulheres provenientes das camadas médias e altas são geralmente melhor instruídas e qualificadas para enfrentar as novas exigências do mercado2. Elas colocam-se em bons postos de trabalhos, recebem melhores salários, e o ingresso se dá muito mais por uma questão de independência, autonomia ou poder de consumo, do que por questões de pobreza e sobrevivência3.

Partindo do fato de que as mulheres não se constituem como um grupo homogêneo e universal, pelo contrário, são heterogêneas e estão situadas em contextos diversos e condições distintas, é que se pode afirmar que o próprio entendimento da questão “mulheres chefes de família” deve considerar também uma diversidade de categorias, visto que ela perpassa outras dimensões além de gênero, como classe, raça/etnia e idade/geração (Macêdo, 2001). Somando-se a essas, outras variáveis se apresentam como esclarecedoras da questão, são aquelas que dizem respeito ao próprio entendimento do termo “chefia feminina”. Geralmente este é associado à negação da chefia masculina, seja pela ausência do parceiro no domicílio, seja pela condição de viúvas, mães solteiras, ou separadas com dependentes (Carvalho, 1998). Mas esse tipo de entendimento é limitado, pois desconsidera não só a diversidade de modelos familiares presentes nas sociedades atuais4, mas a diversidade de chefia (tipo e quantidade) que as mesmas podem absorver5.

1 O ingresso feminino no mercado de trabalho está associado a uma diversidade de questões que incluem o

processo de urbanização, industrialização, consumo, emancipação feminina, e pobreza.

2 Sobre as exigências e requisições do atual mercado de trabalho em relação ao trabalhador ver Pochmann

(2001). O autor coloca como novo requisito profissional indispensável ao ingresso e permanência no mercado de trabalho o aumento do nível educacional do trabalhador.

3 Amartya Sen (2000) afirma que a melhoria da condição de agente das mulheres pode gerar mudanças

importantes na sociedade. O ganho de poder das mulheres é central no processo de desenvolvimento do mundo. Esse ganho de poder se dá através das atitudes da sociedade para proporcionar educação e oportunidades de emprego às mulheres.

4A exemplo dos novos arranjos familiares cita-se as unidades domésticas que contém casais monoparentais,

homossexuais (femininos e masculinos), e os solteiros. Sobre novos arranjos familiares e seus processos adaptativos ver Castells (1999), Giddens (1999), Goldani (1994), Butto (1998).

5 Quando se trata de organização familiar que possui diversos núcleos e diferentes gerações co-habitando num

mesmo domicílio a chefia domiciliar pode fugir ao tradicional, tanto em relação ao encarregado da chefia familiar, como em relação ao número de chefes dessa organização.

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Outras questões se colocam ainda como fundamentais para o entendimento da “chefia”, são aquelas relacionadas à necessidade de delimitação das categorias consideradas na análise (Carvalho, 1998), como por exemplo, a referência que se toma para falar de chefia é o grupo doméstico ou a família6? Que modelos de família são considerados? A chefia deve estar sempre relacionada à provisão econômica, ou diz respeito também à autoridade? Ocorre chefia feminina com a presença masculina no domicílio?

Diante da significância que essa questão representa nas mudanças que vem ocorrendo, não só em termos da família, mas da sociedade em geral, e como tal comportando categorias diversas e plurais, o referido texto tem por objetivo explorar a condição da chefia feminina, analisando as relações de gênero que são constituídas, remodeladas e conservadas sob a condição dessa chefia, como também as posturas femininas mediante a responsabilidade e multiplicidade de papéis. Além da ocorrência da manutenção financeira feminina, outro aspecto a ser destacado é a ambigüidade percebida nos relatos das mulheres chefes de família, onde podem ser observadas posturas femininas mais tradicionais, como também posturas consideradas mais revolucionárias.

Toma-se como referência os dados de uma pesquisa qualitativa, em nível de mestrado, realizada com mulheres líderes comunitárias que moram em áreas ZEIS, da cidade do Recife-PE e que representam suas comunidades junto ao PREZEIS, um Programa Municipal de Regularização e Urbanização dessas áreas7.

Mulheres Chefes de Família das áreas ZEIS do Recife.

Delimitando as categorias, toma-se como parâmetro de análise o grupo doméstico, considera-se tanto a provisão econômica como as relações de poder, e norteia-se pela tipologia exposta por Carvalho (1998)8 sobre chefia domiciliar feminina, que se enquadra

6 Grupo doméstico ou Household refere-se ao grupo de residência e consumação. Este pode conter parentes,

não parentes e agregados. Família tem um sentido mais amplo, pode englobar grupo doméstico, mas não se restringe somente a este. Para maiores detalhes ver Segalen (1993).

7 As áreas ZEIS-Zonas Especiais de Interesse Social são consideradas áreas faveladas, que são assistidas pelo

PREZEIS-Programa de Regularização das ZEIS, um programa municipal de assistência a essas áreas carentes de infra-estrutura básica e de legalização. É um modelo de gestão participativa, criado com a finalidade de regularizar e urbanizar essas áreas através da participação conjunta da prefeitura e setores da sociedade civil (URB, membros do movimento popular e ONGs) nos processos decisórios.

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em três tipos: a) aquela que se define pela ausência do parceiro sem necessariamente acontecer a manutenção feminina; b) aquela em que há a ausência masculina e a manutenção feminina, c) aquela em que há a manutenção feminina, não implicando necessariamente a ausência masculina.

A última alternativa, acima, foi a predominante (67,86%) na pesquisa realizada com mulheres moradoras de favelas na cidade do Recife, seguida da alternativa “b” com 32,14%. As 28 representantes comunitárias entrevistadas situavam-se no intervalo dos 25 aos 60 anos, destacando-se o intervalo de 40 a 50 anos, corroborando a afirmação de estudiosos a respeito do ingresso das mulheres mais idosas no mercado de trabalho (Bruschini, 2000; Scott, 2000). O nível de escolaridade oscilava entre o primário e ginásio. A maioria era casada9 e mantenedoras de seus domicílios10. A situação de exclusão dos companheiros do mercado de trabalho e o baixo poder aquisitivo desses, as levaram a cobrir as necessidades domiciliares dentro de um vasto leque de opções que lhes eram apresentadas em termos de serviços informais, na maioria das vezes, muito precários, tanto no que se refere às condições de trabalho, como aos próprios ganhos.

Os dados analisados não dizem respeito a uma pesquisa específica sobre chefia domiciliar feminina. Essa foi percebida frente aos depoimentos sobre a vida familiar das entrevistadas numa pesquisa (Mendes, 2000) cujo objetivo era verificar a influência da participação de mulheres líderes comunitárias nos movimentos reivindicativos de bairros, enquanto espaços de poder e alterações das relações de gênero na esfera pública e doméstica. Foram os depoimentos dessas mulheres sobre questões relacionadas aos seus ganhos e ocupação dos maridos, que motivaram essa análise sobre chefia domiciliar feminina.

9 A vida conjugal das 28 entrevistadas está assim definida: 19 são casadas com filhos (67,86%), 07 separadas

com filhos (25%), 02 solteiras sem filhos (7,14%). O grupo doméstico do qual fazem parte essas mulheres têm a composição bastante variada: 13 famílias são compostas de (casal e filhos, 46.43%); 04 (casal, filhos, netos, genro ou nora, 14.29%); 01 (casal, filhos, irmão da mulher, 3.57%); 01 (casal, filhos, mãe da mulher, irmãos da mulher, cunhados da mulher, 3.57%); 04 (mãe e filhos, 14,29%); 02 (mãe, filhos, neto, nora ou genro, 7.14%); 01 (mãe, filha, avó, 3.57%); 02 (irmãos, 7.14%).

10 Apesar das mulheres aqui pesquisadas estarem inseridas em três categorias conjugais (casadas, separadas e

solteiras), não se pretende analisar a chefia domiciliar de forma fragmentada. O objetivo é fazer uma análise geral tomando como parâmetro o grupo predominante que é o grupo das mulheres casadas.

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O ganho das referidas representantes, que provinha da ajuda de custo fornecida pelo PREZEIS e de outras atividades que executavam no mercado informal11 acabava por caracterizá-las como mantenedoras financeiras dos seus domicílios, visto que esses eram os mais freqüentes e maiores do domicílio. Essa situação de prevalência salarial feminina era confirmada pela ocupação incerta dos maridos, que na maioria se ocupavam de fazer “bicos”. Os que não se enquadravam nesta condição estavam literalmente parados e eram sustentados integralmente por suas companheiras. Percebeu-se, que esta situação estática dos companheiros em relação ao trabalho, deixava as mulheres constrangidas diante do público em geral. Quando interrogadas sobre a ocupação dos maridos, justificavam a permanência diária dos mesmos em casa, relacionando-a ao precário estado de saúde e atribuindo-lhe o qualitativo de homem inutilizado. Tal justificativa mostra não só a importância do trabalho como “substrato da identidade masculina” (Sarti,1996:66), mas o estabelecimento tradicional da divisão sexual do trabalho na esfera doméstica, onde ao homem cabe o trabalho fora de casa, o espaço da rua, e à mulher cabe o trabalho no interior da casa e a permanência nesta (Sarti, 1996; Romanelli, 1995; Roazzi,1995).

“Ah! minha filha desde que ele caiu doente tá inutilizado, não é mais homem de verdade, de pegar no batente não. E ele era tão trabalhador quando era bom, só tu vendo visse?”.

“Mulher ele tá parado agora, você sabe que as coisa tá difícil e quando a gente é pobre é pior. Ele vai procurar mais não tem emprego não, aí ele fica fazendo uma coisinha aqui e outra ali e vai levando. Tem um homem aí que prometeu de colocar ele na construção, vamo ver né?”.

A condição de desempregados dos maridos e a situação conjugal das líderes comunitárias acabaram caracterizando como predominante a mencionada chefia do tipo “manutenção feminina com a presença do parceiro no domicílio”. Esse tipo de chefia é apontada, em boa parte das pesquisas que abordam a questão, como a menos freqüente

11Com o propósito de viabilizar a participação dos representantes comunitários nas freqüentes atividades e

reuniões, o PREZEIS lhes pagava uma ajuda de custo de R$ 100, 58 (cem reais e cinqüenta e oito centavos). Mas a maioria das representantes não tinha somente a ajuda de custo do PREZEIS como renda. Entre o grupo entrevistado, as atividades que exerciam para o complemento da renda familiar eram bem diversificadas, indo desde agentes de saúde, educadoras de rua, empregadas domésticas, secretárias de centro paroquial e centro evangélico, vendedoras de jogos da sorte, até mãe de santo.

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(Scott, 2000; Macêdo, 1999; Castro, 1990). Todavia, os referidos dados, aqui encontrados, acabam convergindo com as afirmações de Bruschini (2000), que diz ser o novo contingente de trabalhadoras composto de mulheres casadas12.

Essa chefia feminina do tipo “manutenção feminina com a presença do parceiro no domicilio”, é difícil de ser percebida no que diz respeito às relações de gênero, visto que o peso da tradição acaba dificultando e encobrindo as alterações de papéis e poder de decisão dentro do domicílio, principalmente quando uma das atribuições centralmente considerada definidora da figura masculina, a de provedor da família, está sendo ocupada pela figura feminina. Há que se considerar que as mulheres, muitas vezes, são colaboradoras na ocultação da real situação de mudanças dos papéis na família, pois mesmo na condição de provedora econômica, elas procuram formas de não assumir essa provisão, nem em casa e nem na rua, com o intuito de não constranger o parceiro pela inversão da posição de papéis. Bourdieu (1999), diria que tais atitudes se justificam pela eficiência presente nas estruturas de dominação, que tendem a naturalizar as práticas dessa construção histórica e cultural que é a dominação masculina, tornando os que estão sob o seu jugo prisioneiros sem se sentirem e sem se saberem prisioneiros. Percebe-se que ao tomar tais posturas, essas mulheres tentam adaptar e remediar a nova situação por elas experienciada às normas tradicionais de códigos morais que delegam aos homens atitudes consideradas de chefes da família, quais sejam, a autoridade sobre os membros da família, a obediência e o respeito da família a ele, o usufruto das regalias cotidianas no domicílio e poder de decisão no interior da casa (Sarti, 1996).

Quando perguntadas sobre a chefia da casa, observou-se posições diferentes entre as entrevistadas. Embora a maioria se assumisse como chefes, alegando manterem a casa e ditarem as regras, colocando-se, assim, como sujeitos da mudança, muitas atribuíam ao companheiro a chefia da casa, embora reconhecendo serem elas as responsáveis pela manutenção financeira do domicílio, configurando-se como agentes da permanência. Os depoimentos que revelam posturas mais tradicionais provavelmente estão associados a uma

12 Montali (1998) também faz referência, em seu estudo, à crescente participação nos primeiros anos da

década de 90 da mulher-cônjuge na renda familiar. Comenta ainda que nos rearranjos analisados elas passam a assumir parcela maior na composição da renda familiar, caracterizando por conseqüência uma redução do

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forte internalização do processo de socialização, que define culturalmente os papéis sexuais e suas posturas. As trajetórias e experiências de vida dessas mulheres se configuram como fortes indicadores, não só da maior ou menor absorção desses valores sócio-culturais (Macêdo, 2001), mas das atitudes e posturas por elas tomadas.

“Olhe, eu sou a chefe, hoje ele depende de mim, a despesa maior da casa fica nas minhas costas, hoje eu ganho muito mais do que ele. Com essa história do meu envolvimento com a política terminei assumindo um cargo e uma boa remuneração que me dá o direito de fazer e desfazer aqui em casa. Agora por conta dessa situação nós não vivemos bem, mas eu prefiro assim.” “Mulher, acho que o chefe da casa é ele, tá certo que eu é que boto o dinheiro, mas sabe como é, o homem é que termina mesmo mandando na mulher e na casa, não tem jeito não, isso vem de muito tempo. (...) se eu for decidir tudo aqui em casa é só pra gente arengar todo dia, aí eu deixo como ta, é melhor né?”

Observou-se que mesmo aquelas mulheres que se assumiam como chefes, mantiam cotidianamente perante o companheiro uma certa preocupação de não deixar às claras tal condição, amenizando a situação através de alguns artifícios como: conceder uma espécie de mesada ao companheiro, satisfazer alguns dos seus vícios de consumo (cigarro, comida, objetos de lazer), esforçar-se para manter o reabastecimento da casa, no sentido de amenizar o constrangimento do parceiro pela carência material.

“eu tô preocupada porque ele comprou um carretazinha financiada e tá chegando o dia de pagar a prestação e ele não vai ter, e eu vou me virar pra botar esse dinheiro na mão dele. Mais vai ser osso, não sei como vai ser. Ele é muito orgulhoso, não quer receber meu dinheiro, mas eu dou um jeito (risos)”.

“eu vou lá no bolso da calça dele e coloco o dinheiro. É muito ruim um homem sem dinheiro mulher, né mesmo? Não ter dinheiro nem pro cigarro, tá doido!”

Mas quando perguntadas sobre quem decidia as coisas em casa, a resposta da grande maioria indicava ser o casal, outras afirmaram ser delas a palavra final, o que demonstra, nas duas situações, a ocorrência de alterações na posição da mulher no lar, se peso do chefe na renda familiar, um maior partilhamento dos componentes da família na manutenção do grupo familiar e a negação do modelo de família estruturado com base no modelo do “chefe provedor”.

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comparada a uma situação de dependência de outrora, em que somente ao marido cabiam as decisões.

“Aqui nós concordamos em tudo, às vezes eu cedo, as vezes ele cede, mas é tudo de acordo”.

“Às vezes a gente fica birrando porque um quer uma coisa e o outro quer outra, a gente discute e eu deixo pra lá, depois com jeitinho eu convenço ele e termina eu ganhando”.

Mediante essas questões que dizem respeito à responsabilidade pela chefia da casa e decisões em casa, observa-se que está incrustado no próprio termo chefia, o peso da tradição que remete a valores machistas, ou seja, ao homem cabe-lhe melhor a chefia porque esta diz respeito a uma autoridade e responsabilidade mais ampla, indo além do âmbito domiciliar para englobar a família e o espaço público. Quando se trata das decisões no domicílio, o equivalente é a mulher, visto que se trata da responsabilidade e autoridade sobre a casa, tradicionalmente extensão das tarefas femininas.

Outra constatação, diz respeito à execução das tarefas domésticas. Essas mulheres, que trabalham fora e mantém os seus domicílios, continuam sendo responsáveis pelos serviços domésticos, cuidados com a casa, e com os filhos (Antunes, 2001; Sen, 2000; Macêdo, 2001). Apesar delas terem assumido atribuições consideradas tradicionalmente masculinas, o mesmo não ocorre em relação aos homens, que na maioria das vezes não as substitui no âmbito do doméstico, e quando o faz é parcialmente, alegando que determinados serviços não podem e não devem ser feitos por homens. Sendo assim, a administração da casa e filhos continua ainda sob a responsabilidade da mulher, o que faz com que a sua carga de trabalho seja não só duplicada (Strey,1997), mas quadruplicada, exercendo a um só tempo papéis distintos que requerem eles próprios suas atividades específicas, quais sejam, o de líder comunitária, trabalhadoras avulsas, dona de casa, mãe e esposa13.

13 Esse quádruplo papel feminino a que se refere aqui é uma forma de chamar a atenção para as distintas

atividades ocupadas pelas mulheres e que muitas vezes estão englobadas em uma ou duas categorias. As mulheres ocupam atividades distintas como dona de casa, mãe, e esposa. Por exemplo, quando se fala da função de dona de casa, está se falando da execução das tarefas domésticas relacionadas à arrumação e limpeza da casa, compra e preparo da alimentos; a função de mãe diz respeito ao processo geral de gestação, cuidado e assistência geral aos filhos (alimentação, vestimentas, saúde, escola, lazer); a função de esposa está

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Responsáveis pelas tarefas domésticas, elas costumam dividi-las com as filhas, o que nem sempre ocorre em relação aos filhos (Sarti, 1996; Macedo 2001). Sobre esse ponto os depoimentos se apresentam equilibrados entre falas que contrariam a tradicional divisão sexual do trabalho e falas que reforçam as práticas e pensamentos tradicionais da definição de papéis.

“Meu menino me ajuda muito, ele faz de tudo, a única coisa que eu não deixo ele fazer é lavar roupa, porque aí não dá certo né? Isso fica mais pra mulher. E mesmo assim eu tenho medo dos coleginhas dele ver e ficar gozando, enchendo o saco dele, sabe como é que é”.

“Aqui em casa não tem essa não, ele tem que fazer também as coisas de casa. Por que tem que ser só a mulher? Aonde é que tá escrito isso? Ele se dana, mas eu digo assim: rapaz tua mão não vai cair não só porque tu vai lavar esses pratos visse?”

Considerações Finais

Posições consideradas revolucionárias e tradicionais estão presentes nas atitudes e posturas das mulheres chefes de família das camadas pobres, quer seja em relação ao poder de decisão em casa, quer seja em relação às atividades domésticas. As posturas consideradas mais tradicionais ou conservadoras não devem ser entendidas taxativamente como formas de aceitação, contradição ou submissão feminina. Elas podem ser vistas como estratégias pela qual as mulheres processam o caminho da mudança, ou seja, sem transformações radicais e rupturas. Mesmo inscritas num quadro de mudanças discretas e de lampejos de conservadorismo, foi possível perceber nessas mulheres a emergência de elementos que as tornaram mais autônomas, decididas, e com a auto-estima melhorada. No geral, observou-se a existência de alterações nas relações de poder. Ao tempo em que procuram no trabalho o sustento da família, essas mulheres vão adquirindo também a sua relacionada ao tempo despendido com o cuidar da aparência, a atenção dispensada ao marido na rotina diária da casa, companhia a este nas saídas públicas, disposição para a prática das relações sexuais. Alguns depoimentos mostraram que é obrigação da mulher manter relações sexuais com seus maridos, que este está no direito dele de exigir essas relações, que não pode ficar sem tê-las e se assim for lhe é permitido a busca de relações sexuais fora de casa. Outros depoimentos mostraram a reclamação de algumas mulheres mediante a exigência dos maridos em tê-las sempre disponíveis e bem preparadas para as relações sexuais.

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fresta de independência e liberdade através da sociabilidade constituída no ambiente de trabalho.

Os relatos das Representantes Comunitárias mostraram que a posição de chefes ocupada por elas, no tocante à situação financeira, não se configura igualmente em termos de autoridade e poder absoluto de decisão no lar, ao contrário, essa chefia, muitas vezes não reconhecida e admitida é vivida pelas mulheres chefes de família casadas, de forma muito mais conciliadora, solidária e integrativa do que de imposições e embates, não só no que diz respeito aos companheiros, mas ao restante dos membros do grupo doméstico.

É preciso também levar em consideração que não há um modelo puro de chefia, como não há um modelo único de família, de classe ou de sociedade. O que se tem são emaranhados de situações que devem ser analisadas dentro do seu contexto. Talvez se deva considerar ainda que a chefia feminina, de um modo geral, não significa substituição da autoridade masculina pela autoridade feminina. Na verdade, ela se entremeia nessa autoridade masculina de forma sutil e habilidosa como um trabalho silencioso que nem sempre põe à amostra o sujeito feminino como responsável pelos processos decisórios, mas ele existe e é fundamental para o remodelamento cotidiano de papéis e conseqüentemente das relações de gênero.

“A gente tem que ter cabeça visse? Não adianta eu querer ser a tal e depois não dá em nada, é melhor ir com jeito que você consegue tudo e termina fazendo o que quer. Ôxe menina eu sei como é visse? (risos)”.

As mudanças ocorridas na família através das mulheres parecem não se caracterizarem essencialmente por mudanças bruscas e posturas radicais, ao contrário, parecem se estabelecerem paulatinamente, ao tempo que concomitantemente vão conservando alguns elementos e implantando novos. Elementos esses que, em geral, acabam sendo significativos tanto para o redimensionamento dos papéis na unidade domiciliar, como para a manutenção de posturas tradicionais. Essa convivência, nem sempre harmoniosa, do velho com o novo pode muitas vezes significar sacrifícios para as mulheres, através das posturas de retração e da sobrecarga de tarefas, mas pode significar estratégias de empoderamento que vão se estabelecendo em longo prazo.

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Como bem formulou Scott (1991), relações de gênero são fundamentalmente relações de poder. Muitas vezes o que pode parecer obediência e conformação são de fato estratégias utilizadas dentro de um quadro de correlações de forças diferentes, descontínuas, e que se dão através da produção social do discurso (Foucault, 1995). A questão “Mulheres Chefes de Família” mostra-se complexa, tanto no que diz respeito ao seu entendimento como ao seu estabelecimento, pois engloba várias questões subjacentes, como poder econômico, poder de decisão, modelo familiar e relações de gênero. Como diz Scott (2000), esse suposto fenômeno da chefia é “recheada de particularidades bem identificáveis, mas extraordinariamente diversificada na sua ocorrência” (p.2).

A chefia feminina se consubstancia como um avanço da trajetória das mulheres na sociedade, particularmente pela sua saída do domínio exclusivamente doméstico e seu ingresso no mercado de trabalho, mas ao lado dessa questão mais geral da independência e emancipação feminina não se pode desconsiderar outras questões que estão relacionadas às trajetórias e experiências vivenciadas pelas mulheres. O contexto sócio-econômico e político em que estão inseridas, e que as fazem ingressar no mercado de trabalho, se torna fundamental para sabê-las enquanto um processo de emancipação, ou de exploração.

A situação de pobreza e miséria é um dos fatores que faz vir à tona a chefia feminina no tocante à provisão financeira feminina, o que não necessariamente está associada a uma questão de emancipação ou autonomia feminina, embora não signifique dizer que esta não esteja presente nesses casos. As mulheres provenientes das camadas mais pobres, por exemplo, moradoras de favelas, são na maioria motivadas a ingressarem no mercado de trabalho pela precária situação financeira vivida, por questões de sobrevivência, o que pode, em segundo plano, conduzi-las a autonomia e posturas emancipatórias. Todavia, há que se considerar a diversidade mesmo dentro do contexto da situação de pobreza. Embora as mulheres chefes de família aqui analisadas sejam moradoras de favelas, o que já lhes atesta um elevado grau de pobreza e baixo nível de escolaridade, elas possuem uma particularidade que talvez as diferencie de outras mulheres chefes de família também provenientes de favelas. Trata-se da condição de líderes comunitárias por elas vividas nos movimentos sociais cuja sociabilidade, em si, já favorece

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a emergência de elementos que vão torná-las mais conscientes da sua condição e papel na sociedade, e também mais autônomas e decididas.

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