DA ESPERA DE 20 DIAS
Nova e verdadeira interpretação da ord. liv. 3.°, tit. l.°, § 18
Eis o texto da ord. que serve de fonte á espera de 20 dias:
" Quando alguma pessoa for citada
no lugar, onde ha de ser ouvida, ou en% seu Termo, e lhe for - assinado certo termo, a que appareça, ao qual o citado não apparecer, nem o que o fez citar, e depois de passado o termo, vier o que citou, a fuizo, para fazer apregoar o citado, e proceder contra elle, ou vier apparecer o citado para pedir, que o absolvam da instância, seja a citação havida por circumducta, enão proce-dam per ella.
E quando for citado per Carta fora do lugar e Termo, onde ha de ser
ouvido, não será o termo circumducto, até serem passados vinte dias depois de ser assinado. E se cada huma das partes vier requerer sua Justiça dentro nos termos, que lhe foram assinados, será ouvida."
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A epigraphe desta ord. inscreve-se: Das citações,
e como hão de ser feitas. Trata seu § 18, como se
vê, da circumducção da citação.
Duas regras dominam a matéria da circumducção da citação:
à) Si comparece o auctor, compareça ou não o
réo, não fica circumducta a citação.
b) Si não comparece o auctor, compareça ou não
o réo, fica circumducta a citação.
Sobre estas duas regras não ha duvida alguma no foro.
A segunda, quanto ao caso de só comparecer o réo, está na ord. liv. 3.°, tit. 14, princ.; e, quanto ao caso de ambas as partes não comparecerem no prazo assignado no acto da citação (ordinariamente a primeira audiência), está naquella ord. liv. 3.°, tit. 1.°, § 18, cujo dispositivo contem duas partes: a primeira, e m que o legislador philippino estabelece a regra de ficar circum-ducta a citação, e a segunda, e m que estabelece a excepção a essa regra.
Eis a regra contida na primeira parte :• " Quando alguma pessoa for
cita-da no lugar, onde ha de ser ouvicita-da, ou em seu Termo, e lhe for assinado certo termo, a que appareça, ao qual o citado não apt>arecer, nem o que o fez citar, e depois de passado o termo, vier o que citou, a fuizo, para fazer apregoar o citado, e proceder contra elle, ou vier apparecer o citado para pedir, que o absolvam da instância, seja a citação havida por circumducta, e não procedam per ella!'
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Os termos e m que ahi se expressa a ord. deixam b e m claro que, dado o não comparecimento de ambas as partes, fica a citação circumducta ipso jure, isto é, só ex vi legis: " ao qual o citado não apparecer, nem
o que o fez citar, e depois de passaao o termo, vier o que citou, a fuizo, para fazer apregoar o citado, e proceder contra elle, seja a citação havida por
cir-cumducta, e não procedam per ella."
Eis a excepção contida na segunda parte^ êstabe-cendo, e m favor do auctor, a não circumducção:
"E quando for citado per Carta fora do lugar e Termo, onde ha de
ser ouvido, não será o termo circum-ducto, até serem passados vinte dias depois de ser assinado. E se cada huma das partes vier requerer sua Jus-tiça dentro nos termos, que lhe foram assinados, será ouvida.'"
Nesta segunda parte do dispositivo legal, na ex-cepção, a regra da circumducção, é que está o assento da questão da espera de vinte dias.
A regra rege o caso mais freqüente da citação feita dentro do território da jurisdicção do juizo da causa. A excepção rege o caso menos freqüente da citação feita fora desse território, por via de precatória. A regra prescreve a circumducção, até m e s m o ipso jure. A excepção restringe-a, quanto ao tempo, com a espera de 20 dias, porquanto, como claramente de seus termos se vê, veda a circumducção no caso de ter sido a cita-ção feita por carta, isto é, por carta precatória ou sim-plesmente— por precatória, emquanto não forem pas-sados os 20 dias, de que faz menção.
Conseguintemente, é estabelecida e m favor do auctor, único beneficiado pela não circumducção, e não
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e m favor do réo, c o m o tem, por lamentável equivoco» entendido a torrente dos praxistas.
A circumducção, a que a ord. obsta pela conces-são da espera de 20 dias, é que seria favorável ao réo. U m a leitura attenta das palavras da lei bastará para pôr e m evidencia o engano, e m que têm cahido os in-terpretes, e para pôr e m relevo a procedência da inter-pretação contraria que dou ao texto legal. E, si fôr consultado o seu espirito, virá elle confirmar o que diz a lettra. C o m effeito, as palavras da ord. dizem posi-tivamente o contrario do que lhes tem attribuido a in-terpretação até aqui seguida no foro. Por outro lado, o fundamento da excepção é a distancia que vai do logar do foro da causa ao logar onde é citado o réo por precatória.
E esta distancia pôde, e m dados casos, ser tão grande, que, s e m aquella espera, nunca poderia o au-ctor iniciar a sua acção: decahiria sempre, logo e m começo, pela circumducção da citação, ex vi da impos-sibilidade material de comparecer á primeira audiência do juizo deprecante.
Para obviar a esse embaraço, a lei o favorece c o m a espera de 20 dias. E m resumo, temos:
Regra affirmativa da circumducção: — Si não com-parece o auctor, compareça ou não o réo, fica circum-ducta a citação.
Excepção a esta regra: — N ã o fica circumducta a citação, si foi feita por precatória e ainda não são pas-sados 20 dias.
Ahi vê-se, de u m só golpe e c o m vista de con-juncto, qual a espécie, que faz objecto da ord. liv. 3.°, tit. 1.°, § 18, e qual o alcance e o limite do seu dispo-sitivo.
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H 9
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A regra estatue a circumducção. A excepção li-mita-a, só permittindo tal circumducção, depois de pas-sados 20 dias.
* * *
E' corrente no foro que, feita a citação por pre-catória, ainda que se trate de distancia minima, trans-ponivel e m horas ou minutos, esta ord. obriga o auctor a cruzar os braços, perder seu tempo, sem poder pro-mover os termos do feito, até que sejam passados os 20 dias. Ainda mais, e o que é peior: exige a praxe que esse prazo, que a lei concede para dentro delle •ser transposta a distancia entre o juizo deprecado e o deprecante, se comece a contar (ahi v e m u m absurdo) depois de já transposta essa distancia, justamente quan-do tal prazo já se tornou desnecessário.
Tenho visto muitas vezes exigir-se que o auctor assigne e m audiência, ao réo citado por precatória, o prazo de dez dias para a contestação e mais o de 20 desta ord., como si, para vencer a dita distancia, pre-cisasse o réo de 30 dias mais do que precisa o auctor. Tudo isto se faz e m observância da citada ord. e, en-tretanto, como demonstro, é a mais flagrante de suas violações. E não é por obscuridade. Ella é clara até o fim, pois termina dizendo:
" E se cada huma das partes vier requerer sua fustiça dentro nos termos, que lhe foram assinados, será ouvida",
palavras que fulminam a interpretação corrente.
Mas qual será a razão de ter feito tão brilhante carreira essa interpretação tradicional, que ouso com-bater, contraria á lettra e ao espirito da lei?
E' u m phenomeno interessante de psychologia, que por toda a parte se tem observado mais de u m a vez, nos diversos ramos dos conhecimentos humanos.
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Das palavras finaes da ord.—"E se cada huma das
partes vier requerer..." infere-se que ella admitte cada
u m a das partes a allegar o seu direito e m juizo, antes de decorridos os 20 dias. 0 auctor será ouvido, accu-sando a citação, propondo a acção e proseguindo nella, m e s m o á revelia do réo. Este será ouvido, oppondo excepção, apresentando defesa, etc, assignando prazos ao auctor, si este não comparecer.
Feita a citação por precatória, qualquer das par-tes pôde comparecer no juizo deprecante, á primeira audiência ou a qualquer outra, anterior ao decurso dos 20 dias a contar daquelle e m que a citação seria accu-sada, si feita dentro do território da jurisdicção do juiz da causa, e deverá ser ouvida, compareça ou não a outra parte. O que a ord. procurou evitar, estabele-cendo a espera de 20 dias, é que se dê a circumducção da citação, antes de passado esse prazo razoável para a devolução da precatória.
* *
Na sua excellente Theoria do processo civil e
commercial, § 93, nota 4, ensina o dr. João Monteiro
que a espera de 20 dias é toda e m beneficio do réo, attenta a circumstancia de não estar no logar do foro da demanda, pelo que, accrescenta, deve o auctor, logo que é devolvida, c o m a citação, a precatória, accusal-a na primeira audiência, ficando o réo esperado os vinte dias, si não accudiu desde logo.
O erudito mestre, de saudosa memória, cai no en-gano c o m m u m , levado pela força da torrente dos nossos praxitas. E por este lamentável engano, até hoje des-percebido, têm-se annullado milhares de processos. Essa interpretação da ord., posto que admittida geralmente por todos, envolve o absurdo de suppôr-se que o tempo sufficiente para a precatória voltar ao juizo deprecante
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não é igualmente sufficiente para o réo comparecer pe-rante este m e s m o juizo. Coisa admirável, pois a ord. é tão- clara... E clara termina com aquellas palavras ine-quívocas : " E se cada huma das partes vier requerer
sua Justiça dentro nos termos, que lhe foram assi-nados, será ouvida", disposição sabia que, ao
contra-rio do que se lhe attribúe, permitte correr o feito, antes de passados os 20 dias, corrigindo, desfarte, o defeito que teria essa espera nos casos, não raros, de ser pe-quena a distancia, que separa o juizo deprecante dó deprecado, distancia ás vezes transponivel e m u m dia e até e m u m a hora.
* *
Parece que a interpretação corrente logrou intro-duzir-se, mercê de u m a confusão fácil de dar-se. A ord. citada usa, mais de u m a vez, da expressão termo
nado. Assim, na sua primeira parte: " e lhe for assi-nado certo termo, a que appareça", e na segunda:
u
não será o termo circumducto, até serem passados vinte dias depois de ser assinado''
E, como o modo mais c o m m u m de assignar termo ou prazo é e m audiência, tem-se confundido aquella ex-pressão termo assignado com esta outra — termo
assi-gnado em audiência. O gênero com a espécie. A
ord. se refere ao termo assignado na precatória, e não a termo assignado e m audiência.
Ella presuppõe u m a distancia que, na média, deve ser vencida e m 20 dias (isto para Portugal), o que in-dubitavelmente exclúe a idéia de assignação de prazo e m audiência, assignação que presuppõe o compareci-mento da parte, porque não pode ser feita ex-officio, mas a requerimento. Si a parte comparece, é que a distancia, razão de ser da lei, já desappareceu: a pre-catória já deve ter sido devolvida e achar-se no juizo
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deprecante, e o tempo para isso necessário, — 20 dias, segundo presume a lei, é o bastante para que o réo tenha comparecido também no m e s m o juizo. Cai tudo, pois, no regimen c o m m u m , e a assignação, em audiên-cia, de u m prazo aliás já decorrido, é inteiramente sem razão de ser. A lei não pôde conceder prazo para se fazer u m a coisa que já está feita e não ha mister de repetição.
E é por isso que Ribas, consolidando a m e s m a ord., diz expressamente, escapando-lhe embora o alcance da distincção:
"Si o auctor ou o réo não com-parecer no T E R M O ASSIGNADO N A PRECATÓ-RIA..." (Consolidação do processo civil, art. 213).
O termo assignado na precatória, ao qual se re-fere a ord., é para o comparecimento de ambas as partes, o auctor para accusar a citação e propor a acção, e o réo para vel-o fazer, ao passo que o termo assignado e m audiência, com o qual se confunde geral-mente aquelle, é só para o comparecimento do réo, afim de contestar a acção. A confusão de que venho de falar leva ao absurdo de se punir o auctor com a circumducção da citação, pelo facto de não haver com parecido no termo assignado ao réo para a contestação. *
* *
Antigamente, dado o caso de só comparecer o auctor e ser o réo chamado de longe á Casa da Sup-plicação, ou á Relação do Porto, a lei concedia ao m e s m o réo, só neste caso, u m a espera, não de 20 dias, como e m todos os casos, indistinctamente, concedem hoje os praxistas, mas apenas de 3 dias, — o s 3 dias chamados de Corte.
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"Se o réo, diz a ord. liv. 3.°, tit. 15,
princ, sendo citado por qualquer aução
pessoal, ou real, ou de qualquer quali-dade que seja, for revel e nunca appa-recer emfuizo, per si, nem por seu Pro-curador ao termo, que lhe for assinado, e mais trez dias, que será esperado, se for citado per Carta para a Corte; ou para a Casa do Porto..."
Mas nem esta pequena concessão que, diga-se de passagem, a ord. soube tão claramente significar ser e m favor do réo, nem esta pequena concessão lhe faz hoje a lei, porque foi abolida pelo § 3.° do art. 27 da lei n. 2033 de 20 de setembro de 1871, que dispõe:
"Ficam abolidos os dias denomi-nados de corte, de que trata a Ord. liv. 3.°, tit. l.°"
0 legislador que aboliu a espera de três dias, não deixaria de abolir a de vinte, si esta estivesse na ord., como, e m virtude daquelle phenomeno da psychologia jurídica, se tem entendido na doutrina dos praxistas e na jurisprudência dos juizes e tribunaes.
* * *
E, quando fosse verdadeira a interpretação que combato, ainda assim deveria ser hoje abandonada, porque, neste presupposto, a alludida ord. estaria indu-bitavelmente revogada pelo regulamento n. 737 de 25 de novembro de 1850, tomado e m seu conjuncto, calca-do no principio da economia de tempo, e especial-mente e m seu art. 57, que dispõe:
" Accusada a primeira citação em audiência, se não comparecer a parte citada por si ou por seu procurador, seguirá a causa á sua revelia até final"
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Buscando satisfazer sabiamente as necessidades de nosso tempo, o legislador de 1850, já no titulo único do código commercial, art. 22, recommendava brevidade no processo e declarava "não sei necessário guardar
estrictamente todas as fôrmas ordinárias, prescriptas para os processos civis, sendo unicamente
indispen-sável que se guardem as fórmulas e termos essen-ciaes para que as partes possam allegar o seu di-reito e produzir as suas provas"
Aquelle regulamento n. 737 realizou depois, em 25 de novembro de 1850, o pensamento fecundo e pro-gressista contido nessa recommendação feita e m 1 de julho do m e s m o anno de 1850, alliviando o processo das antigas fôrmas pesadas e morosas, tornadas incom-patíveis com as condições da vida moderna.
* *
Este presupposto de veracidade na interpretação que considero contraria á lettra e ao espirito do texto da ord. liv. 3.°, tit. 1.°, § 18, tem o mérito de offerecer, no regulamento citado, u m a solução conveniente para o uso daquelles, a quem a minha humilde interpretação não lograr convencer.
Quanto a mim, emquanto não fôr convencido de erro pelos competentes, que. felizmente muitos ha entre nós, adoptarei.as seguintes conclusões:
1.a
A espera de 20 dias da ord. liv. 3.°, tit. 1.°, § 18, foi estabelecida em favor do auctor, e não e m favor do réo.
2.a
Esta ord. só poderá ser violada por falta dessa espera, si a citação fôr julgada circumducta, antes de passados os 20 dias que ella concede ao auctor, no caso de precatória.
— i55 — 3.a
Até serem passados estes 20 dias, pôde o auctor, muito legitimamente, accusar a " citação inicial, propor a acção e proseguir e m seus termos ulteriores, c o m o nos casos de citação independente de precatória. A espera é u m favor de que elle não é obrigado a gosar, quando já não é mais necessário, m a s até prejudicial, visto ter vencido a distancia que lhe serviu de funda-mento. E' direito seu desistir de toda a espera, o que pôde acontecer quando a distancia fôr tão pequena que permitta seu comparecimento no juizo deprecante dentro do prazo assignado na precatória, isto é, na primeira audiência, c o m o desistir de parte da espera, o que acon-tecerá quando esse prazo não baste, m a s não seja pre-ciso consumir toda a espera.
4.a
Annullar-se o processo pelo facto de ter sido a acção iniciada antes de passados os 20 dias, c o m o se tem feito milhares de vezes, é violar flagrantemente a m e s m a ord. que se invoca para decretar a nullidade: é punir o auctor e favorecer o réo, por não ter o pri-meiro usado de u m a faculdade que a lei lhe concedera. 5.a
A ord. e m questão continua e m vigor entre nós, c o m o disposição subsidiaria, ex vi do art. 743 do regu-lamento n. 737 de 1850, garantindo o auctor contra a difficuldade das grandes distancias, maiores, aliás, e m nosso paiz do que e m Portugal. Ella é sabia e perfei-tamente adaptada ao nosso meio de enorme extensão territorial. Innumeros casos de grandes distancias ha, e m que, s e m a previdente medida da espera, ficaria o auctor na singular situação de não poder iniciar o pro-cesso, por não lhe ser possível accusar a citação inicial na primeira audiência.
156 -6.a
Pôde o auctor, nos casos de pequenas distancias, que torne desnecessária a espera, abrir m ã o desta, no todo ou e m parte; comparecer no juizo deprecante, accusar a citação, propor a acção e promover seus termos, com ou sem a presença do réo, a quem aquella espera não visa beneficiar, n e m a sua falta prejudica. 7.a
A se dar a ord. a interpretação costumada, estaria ella revogada pelo regulamento n. 737.
Oxalá que a interpretação, que ora lhe dou, mereça a approvação dos nossos doutos mestres de praxe e dos nossos doutos juizes, singulares e collectivos.
Assim chegaremos a não ter mais processos annul-lados por u m fundamento, que não está na lei e que a offende profundamente, contrariando de modo directo o seu pensamento e intuito.
Será u m a arma de menos no arsenal da chicana. U m flagello de menos para os litigantes de boa fé.