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Reserva de Desenvolvimento Sustentável: Manejo Integrado dos Recursos Naturais e Gestão Participativa

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Reserva de Desenvolvimento

Sustentável: Manejo Integrado

dos Recursos Naturais e Gestão

Participativa

Helder L. Queiroz e Nelissa Peralta

Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá

Avenida Brasil, 197. Juruá, Caixa-Postal 38. CEP 6970-000. Tefe, AM. E-mail: helder@mamiraua.org.br

Introdução

As unidades de conservação de uso sustentado têm assumido um papel funda-mental na conservação da biodiversidade na Amazônia. Em 1996, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), uma nova categoria de unidade de conser-vação, foi criada no Estado do Amazonas e foi posteriormente incorporada ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) em 2000. Este tipo de Unidade de Conservação tem como objetivo básico promover a conservação da biodiversidade e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução social, a melhoria dos modos e da qualidade de vida por meio da exploração racional e sustentada dos recursos naturais por parte das popula-ções tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente desenvolvido por estas populações (SNUC, 2000). Esta categoria de Unidade de Conservação foi criada a partir de um mo-delo implantado no início dos anos 90, baseado na co-gestão de uma Unidade de Conservação, a então Estação Ecológica Mamirauá, celebrada entre o governo do Estado do Amazonas e a organização não-governamental Sociedade Civil Mamirauá. Com o objetivo de traçar um perfil desta categoria de Unidade de Conservação, o presente capítulo visa apresentar os processos através dos quais este modelo de conservação da biodiversidade se consolidou, além de identificar suas principais características.

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O modelo RDS de conservação da biodiversidade: um breve

histórico

As Unidades de Conservação são espaços territoriais (com sua biodiversidade, seus respectivos recursos ambientais, suas águas jurisdicionais etc.) que possuem características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Público, com objetivos de conservação e com limites bem definidos, operando sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção e diferentes categorias de manejo (IBAMA, MMA, 2002). Existem várias catego-rias de Unidades de Conservação que estão regulamentadas no Sistema Na-cional

de Unidade de Conservação (SNUC, Lei No 9.985). O artigo 7° do SNUC

categoriza estes espaços territoriais em dois grupos principais com características específicas: as unidades de proteção integral e as unidades de uso sustentado. O objetivo básico das unidades de uso sustentado é compatibilizar a conservação da natureza com o uso de parcela de seus recursos naturais (SNUC, 2000). As Reser-vas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) fazem parte deste grupo de unidades de conservação. Esta categoria foi inicialmente proposta pela Sociedade Civil Mamirauá ao Governo do Estado do Amazonas em 1995 (Ribeiro, 1994) e criada pela Assembléia Legislativa do mesmo Estado no ano seguinte (Amazonas, 1996). A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá foi a primeira Unidade de Conservação desta categoria implementada no Brasil. Sua criação é resultado direto de uma solicitação encaminhada em 1985 pelo biólogo José Márcio Ayres e pelo fotógrafo Luis Cláudio Marigo ao Governo Federal (na época o órgão responsável era a SEMA – Secretaria Especial de Meio Ambiente), para a criação de uma área de cerca de 200.000 hectares para a proteção do primata uacari-branco (Cacajao calvus calvus Geoffroy), que na época já constava na lista das espécies ameaçadas de extinção oficial do Brasil, bem como da IUCN (International Union for the Conservation of Nature).

Atendendo à proposta do biólogo, a SEMA criou a Estação Ecológica Mamirauá em 1986, e a mesma foi transferida para a administração do governo do Estado do Amazonas, que a recebeu por meio do decreto nº 12.836 de 9 de março de 1990, em que a Unidade foi expandida até a sua superfície e limites definitivos. A nova unidade estadual passou a ser limitada pelos rios Solimões e Japurá e pelo canal Uati-Paraná, num total de 1.124.000 ha.

A Estação Ecológica é uma categoria de manejo de Unidades de Conservação de proteção integral, que proíbe a permanência de populações residentes. As restrições desta categoria de manejo mostravam-se inviáveis em face da realidade de ocupação tradicional da área. Com a elaboração do Plano de Manejo e a publicação da nova proposta criada pelo grupo de pesquisadores da Sociedade Civil Mamirauá, e após várias negociações políticas visando viabilizar as propos-tas de anteprojeto de lei elaboradas em 1994 e 1995, a Unidade de Conservação

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foi re-categorizada no nível estadual, passando à categoria de Reserva de Desen-volvimento Sustentável.

O grupo de pesquisadores1 percebeu que sem a participação da população

lo-cal, tanto no manejo dos recursos, como na gestão da área, a unidade de conser-vação não seria viável no longo prazo. Por este motivo, segundo a proposta da época, as populações continuariam a ter direito de residir na área e utilizar os recursos naturais locais, desde que cumprissem com as normas do plano de ma-nejo e acatassem o sistema de zoneamento a ser elaborado para a unidade. Além deste importante aspecto, existiu outra característica igualmente fundamental: a abordagem da gestão e manejo da Reserva de Desenvolvimento Sustentável teria como base a combinação do conhecimento científico com o conhecimento tradi-cional. Um forte programa de pesquisas foi implantado tanto para prover subsí-dios localmente para a regulamentação das normas do plano de manejo quanto também como base para influenciar políticas públicas nos níveis regional e na-cional. As principais características do modelo de RDS que se criava era então o manejo participativo aliado à pesquisa científica que o subsidia.

O modelo nascente foi proposto para Unidades de Conservação de relevante importância biológica, mas com presença continuada de populações tradicio-nais. Central no conceito de RDS era desde o seu início a idéia da gestão participativa dos recursos naturais, assim como as técnicas de manejo destes re-cursos. O modelo, conforme se consolidou com o passar dos anos, não pretende substituir nem ignorar as urgentes necessidades de criação e implementação de Unidades de Conservação nas categorias de proteção integral. A importância destas unidades é reconhecida pelo modelo que considera que esta estratégia pode e deve ser adotada onde e sempre que cabível dentro do contexto regional.

Em 2000, observou-se por fim a consolidação do modelo quando o Congresso Nacional incluiu no seu Sistema Nacional de Unidades de Conservação a nova categoria “Reserva de Desenvolvimento Sustentável” (criada no nível do Estado do Amazonas apenas quatro anos antes). Este foi um reconhecimento da poten-cialidade deste modelo de conservação como uma solução viável para alguns contextos bem específicos no âmbito das relações das populações tradicionais e as necessidades de conservação da biodiversidade.

A gestão da Unidade de Conservação em Mamirauá foi concedida à Sociedade Civil Mamirauá por meio de um convênio celebrado entre esta organização, logo após a criação da Estação Ecológica, em 1991. O governo do Estado do Amazo-nas, na época por meio da antiga Secretaria Estadual de Ciências, Tecnologia e Meio Ambiente (SECTAM) e hoje através do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), compreendeu a importância de apostar em regimes

alterna-1. O grupo contava com uma combinação de cientistas sociais (como as antropólogas Débora Lima e Ana Rita Alves) e biólogos (como o próprio Márcio Ayres e outros como Richard Bodmer e Helder Queiroz).

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tivos de co-gestão naquele início da década de 1990. A co-gestão teve continui-dade quando a categoria de manejo foi alterada em 1996, e foi renovada oficial-mente em fins de 2003.

A necessidade de perpetuação da conservação da área levou a Sociedade Civil Mamirauá (SCM) a tentar estabelecer estruturas institucionais de longo prazo, com o objetivo de incrementar suas capacidades institucional e administrativa buscando maior segurança para gerenciar as áreas protegidas com sucesso. Além disso, a necessidade de ampliação dos trabalhos para outras áreas, o interesse do governo em transformar as Reservas em um laboratório nacional de pesquisa aplicada e a necessidade de apresentar contrapartida do governo aos apoiadores privados contribuíram para a criação do Instituto de Desenvolvimento Sustentá-vel Mamirauá (IDSM) em 1999. O IDSM é desde 2001 uma das unidades de pesquisa do Ministério da Ciência e Tecnologia, o MCT. A instituição foi criada como uma organização social (OS), que é definida como “uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde”2. O IDSM é uma organização gerida sob

as regras do direito privado, embora mantenha características de instituição pú-blica obedecendo aos critérios de controle de gastos e a auditorias internas e externas. A instituição tem um contrato de gestão com o governo federal, com metas e indicadores preestabelecidos. Os resultados destes trabalhos são avalia-dos semestralmente por uma comissão de avaliação do MCT composta por mem-bros de várias instituições do governo. O IDSM objetiva não apenas promover a conservação da Reserva Mamirauá por meio do uso participativo e sustentado dos recursos naturais, mas também produzir conhecimento para subsidiar a ges-tão participativa com base científica de áreas protegidas e recursos naturais na Amazônia.

A Reserva Mamirauá e suas principais características

A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM) (correspon-dente à Categoria VI no sistema de classificação da IUCN) está situada na região do Médio Solimões, na confluência dos rios Solimões e Japurá, entre as Bacias do Rio Solimões e do Rio Negro. Sua porção mais a leste fica nas proximidades da cidade de Tefé, no Estado do Amazonas. Esta é a maior reserva existente dedicada exclusivamente a proteger a várzea amazônica. Como é considerada uma área alagada de importância internacional, ela é inscrita como um dos sítios brasileiros da Convenção Ramsar das Nações Unidas, que protege áreas alagáveis em todo o mundo. A RDS Amanã liga a RDS Mamirauá ao Parque Nacional do Jaú e estão próximas a outras oito unidades de conservação federais ou estaduais.

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As três unidades contíguas formam um bloco de floresta tropical oficialmente protegido com cerca de 6.500.000 ha, o embrião do Corredor Central da Amazô-nia (MMA/PPG7), da Reserva da Biosfera da AmazôAmazô-nia Central (MAB/Unesco) e Sítio Natural do Patrimônio Mundial (Unesco/IUCN). A Figura 1 abaixo mos-tra a localização destas Unidades de Conservação.

Figura 1. Mapa de localização das Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (em azul) e Amanã (em verde).

Características ambientais

Provavelmente a principal característica ambiental da região do médio Solimões é a grande variação no nível das águas dos rios ao longo dos meses. O alagamento sazonal do Rio Solimões causa uma elevação do nível d’água de 10 a 12 metros da estação seca para a cheia anualmente. Esta incrível dinâmica da água é causada pelas chuvas nas cabeceiras dos rios da região associadas ao degelo anual do verão andino. Quando a alagação do ano é excepcionalmente alta, virtualmente toda a reserva, ou mais de um milhão de hectares, fica submersa.

A enchente traz consigo uma gigantesca quantidade de sedimentos das encos-tas dos Andes, uma enorme concentração de nutrientes associados às argilas em suspensão. Este é o principal causador da enorme produtividade das várzeas

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ama-zônicas, observada tanto nos sistemas aquáticos quanto terrestres. Estas alaga-ções, com a conseqüente deposição anual destes sedimentos, definem a geomorfologia da várzea, a sua fauna e flora, a sua biogeografia e mesmo os seus padrões de ocupação humana.

A geomorfologia característica de Mamirauá permite a ocorrência de um grande número de ambientes aquáticos dentro da reserva. Estes variam desde o hábitat de água aberta dos rios e braços de rios (ou paranãs), dos canais e lagos até outros ambientes não-perenes, como os baixios com campos alagados ou as florestas alagadas e, mesmo, ambientes de muito curta existência como o hábitat das poças d’água nas praias de areia ou nas de lama, onde uma dinâmica toda própria de comunidades de espécies se estabelece, desenvolve e morre num pe-ríodo de poucas semanas.

As diferenças no tempo de alagamento, que são devidas às variações do relevo da várzea, levam num longo prazo ao desenvolvimento de tipos de vegetação de floresta diferenciados, que ocorrem apenas neste tipo de ecossistema e que possu-em uma estrutura e uma composição bpossu-em distintas: são os chavascais e as restingas (alta e baixa), como são conhecidos localmente.

A fauna encontrada nestes ambientes de Mamirauá apresenta um alto grau de endemismo. As difíceis condições criadas pelas enchentes prolongadas a cada ano por um lado limita o número de espécies que conseguem sobreviver a tão dramá-ticas condições, mas por outro lado propicia o surgimento de adaptações únicas que podem definir ao longo do tempo especiações e endemismos neste ambiente. Há, também, grupos taxonômicos particularmente distintos, como os peixes, que apresentam uma fauna mais diversa que nas áreas circundantes. A presença de importantes espécies de vertebrados ameaçados de extinção também é um fator relevante na fauna de Mamirauá.

Boa parte destas espécies é explorada pelas populações amazônicas em muitos locais, mas em Mamirauá elas continuam existindo em níveis satisfatórios. Neste sentido, a Reserva cumpre um papel de berçário para vários recursos naturais que lá nascem e amadurecem antes de partir para aqueles pontos externos onde serão captados. As várzeas de Mamirauá funcionam também como um grande depósito de nutrientes, que são exportados às regiões vizinhas por meio das mais distintas formas de carreamento.

A ocupação humana

A ocupação humana atual de Mamirauá data do início deste século. Anterior-mente, a área era habitada por vários grupos indígenas, dentre os quais predomi-navam os Omágua (Medina, 1988 apud Plano de Manejo, 1996, p.102). No presente, as comunidades indígenas que ainda habitam a área têm alto grau de miscigenação (Plano de Manejo, p.35).

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A população humana da Reserva Mamirauá é composta principalmente por ribeirinhos ou caboclos. O principal estudo sobre a população local foi desenvol-vido pela antropóloga Débora Lima-Ayres que categorizou o termo caboclo como:

“O pequeno produtor familiar que vive na região amazônica da exploração dos recursos das flo-restas. Seu conhecimento sobre a floresta, seus hábitos alimentares e seus padrões de moradia distinguem os caboclos dos produtores que mi-graram mais recentemente.” (Lima-Ayres, 1992,

p.12).

A região onde hoje se encontra a Reserva Mamirauá foi muito influenciada pela economia da borracha, que tinha como alicerce um sistema de aviamento3

consolidado na época do auge daquela produção. Nos anos 60, houve a decadên-cia deste sistema de aviamento, acelerando o processo de urbanização na região. O declínio da produção da borracha deu origem a vários assentamentos na região onde hoje existe a Reserva Mamirauá. Muitos desses assentamentos foram funda-dos por trabalhadores que abandonaram as regiões de extração da borracha, a oeste do Médio Solimões. Houve também uma reestruturação social dos assenta-mentos, ação promovida pela Igreja Católica, seguindo o modelo de comunida-des de base (Plano de Manejo, p.35). Cada uma comunida-destas comunidacomunida-des possui uma liderança política eleita pelos moradores. Conjuntos de comunidades se organi-zam na área em Setores, que são unidades políticas, e cada um destes setores possui um coordenador. A área focal4 da Reserva possui 63 assentamentos que

estão agrupados politicamente em oito Setores. Os Setores são, portanto, um conjunto de assentamentos localizados próximos uns dos outros, que tomam de-cisões conjuntas sobre o manejo dos recursos e sobre questões políticas locais. Cada setor tem seu coordenador, que organiza e facilita as reuniões, distribui informações e contribui com a pauta das reuniões.

A maioria das comunidades da Reserva Mamirauá localiza-se nas margens dos rios Japurá e Solimões. Estudos antropológicos (Lima-Ayres, 1992 e Alencar, 1994) demonstram que a sazonalidade ambiental na várzea do Mamirauá produz um padrão de ocupação humana caracterizado pela mobilidade e pela curta dura-ção. De acordo com Lima e Alencar (1993), este padrão de grande mobilidade é provocado pelas constantes modificações geomorfológicas do leito do rio,

pro-3. O principal produto de troca do sistema de aviamento era a borracha produzida pelos seringueiros e entregue aos seringalistas (donos dos seringais). Estes dois elos da cadeia (seringueiros e seringalistas) possuíam uma relação de patrão e cliente, mediada por uma dívida obtida através do recebimento de produtos manufaturados no crédito. Durante esta época, os seringueiros eram forçados a pagar suas dívidas com borracha.

4. A Reserva divide-se em duas áreas principais: uma área focal com 260.000 hectares, onde foram concentra-dos os trabalhos de pesquisa e extensão nos primeiros 10 anos, e uma área subsidiária, para onde algumas atividades estão sendo replicadas.

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vocando a formação de praias ou, ao contrário, a queda do barranco em frente às comunidades. Desta forma, a dinâmica das águas interfere fortemente no padrão e distribuição de assentamentos na região.

O Modelo RDS de conservação da biodiversidade

Como já foi descrito, o “Modelo RDS” está fundamentado na permanência e participação das populações locais e na formação e manutenção de uma forte base científica. Estes dois pilares fundamentais, quando atuam concomitantemente, criam as condições necessárias para a consolidação de normas de manejo social-mente aceitas e baseadas nas premissas de conservação da biodiversidade. Isso se concretiza na elaboração e aprovação de normas de uso dos recursos naturais e de um sistema de zoneamento, apreciado e votado pela população e seus represen-tantes. Conseqüentemente, o zoneamento elaborado − e submetido à aprovação local − tem que contemplar a necessidade tanto de zonas onde se admite o uso sustentado dos recursos naturais, quanto de zonas de completa preservação de todos os componentes da biodiversidade. O sistema de zoneamento e as normas de uso da área terminam por ser apropriados pelas populações locais, pois estas foram consultadas e participaram não apenas da coleta das informações iniciais, como também na elaboração das normas e regulamentos e, inclusive, na fase de negociação. O processo de discussão e aprovação é longo o suficiente para per-mitir uma boa aceitação dos conceitos e a apropriação dos resultados aprovados pelo voto.

Assim, o manejo integrado e participativo da Unidade de Conservação é con-solidado em um Plano de Manejo, que contém tanto as normas de uso quanto o zoneamento da área. Mas a existência de um Plano de Manejo cientificamente embasado e bem apropriado pela população local não é uma garantia de efetividade na conservação da Unidade. A garantia de um envolvimento duradouro e a for-mação de um compromisso claro entre as populações locais e as ações de conser-vação só se atinge por meio do estabelecimento de uma clara relação entre a conservação dos recursos naturais e a melhoria da qualidade de vida. Esta melhoria pode ser percebida na evolução da geração de renda destas populações, mas tam-bém em fatores relacionados ou decorrentes de ações de educação e saúde das comunidades, ações de extensão para aperfeiçoamento da produção local e para o melhoramento tecnológico. Estes são fatores que também produzem melhores níveis de vida para a população local. Uma vez estabelecida esta relação, decorre conseqüentemente a redução da pressão antrópica sobre o meio ambiente e sobre aquelas espécies sobre as quais estava anteriormente concentrado todo o impacto da ação humana. A redução desta pressão, sua regulamentação e seu confinamento àquelas zonas de uso sustentado resultarão em melhores níveis de conservação da biodiversidade, que são o objetivo final de uma RDS.

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Os componentes do modelo: gestão participativa

A participação comunitária na gestão da RDS acontece em vários aspectos: através da agregação do conhecimento tradicional ao conhecimento científico, por meio do envolvimento das comunidades em todas as etapas de execução das atividades e, também, na determinação a priori (independente da existência de um marco legal mais claro e incisivo) de que a população tradicional local tem prioridade na apropriação dos recursos naturais (ou ao acesso a eles) e na parti-ção dos benefícios gerados pela biodiversidade. Adicionalmente, este envolvimento também se observa por meio do poder de decisão que as comunidades possuem sobre a gestão dos seus recursos. Todo este processo participativo é baseado num sistema de capacitação e fortalecimento de lideranças locais, que é realizado atra-vés de oficinas de cidadania, cursos de capacitação de liderança e de intercâmbi-os com outras áreas e instituições para partilha de experiências.

A gestão participativa da RDS é feita através de fóruns de comunitários e lide-ranças, onde são tomadas as principais decisões referentes ao manejo dos recursos naturais. Na Figura 2 observa-se a evolução na participação e representatividade das Assembléias Gerais de Mamirauá.

0 20 40 60 80 100 120 140 160 1993 1994 1995 1996 1998 1999 2000 2001 2002 2003

Figura 2. Evolução do envolvimento e participação das comunidades na gestão participativa, exemplificado pelo número de lideranças comunitárias representando assentamentos (comunidades, vilas e sítios) da área focal da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá nas Assembléias Gerais Anuais de 1993 a 2003 (Fonte: Isabel Souza).

O fórum máximo para tomada de decisão na Unidade de Conservação é a Assembléia Geral de Usuários da Reserva Mamirauá, que acontece uma vez ao ano. As assembléias são parte de uma estrutura representativa com lideranças eleitas pelas comunidades. Antes das assembléias, cada grupo de comunidades, ou Setores, propõe uma pauta de tópicos relevantes que é transmitida previamen-te às comunidades. Assim, cada comunidade discupreviamen-te inpreviamen-ternamenpreviamen-te os assuntos da

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pauta e elege um representante como porta-voz destas decisões. Estes represen-tantes eleitos das 63 comunidades se reúnem anualmente na Assembléia, onde interagem com outras instituições locais para discutir os avanços, retrocessos e novas estratégias na implantação do Plano de Manejo. Os encaminhamentos e decisões são feitos inteiramente pelas lideranças e somente elas detêm o direito de voto.

Além disso, outros fóruns para tomada de decisão também são articulados em Mamirauá. As reuniões de Setor, por exemplo, reúnem grupos de comunidades onde são tomadas as decisões referentes ao manejo dos recursos especificamente daquele Setor. Cada comunidade possui sua estrutura de organização política para a tomada de decisão. Por vezes esta estrutura é formalizada através de uma associação de moradores (com presidente, tesoureiro, secretário etc.) e, outras vezes, esta estrutura é informal. As comunidades ribeirinhas da Reserva Mamirauá estão organizadas com base em laços de parentesco e, assim, muitas das decisões tomadas estão intimamente ligadas com estes interesses familiares.

As estruturas existentes para propiciar a participação intensa das comunidades nas tomadas de decisão são garantidas dentro da própria formulação do modelo. Há uma intensa negociação, que ocorre em diferentes níveis, no sentido de compatibilizar as expectativas de comunitários e técnicos e pesquisadores no manejo das áreas. Há casos concretos em que as posições adotadas pelas comu-nidades, contrárias às dos técnicos, prevaleceram ao fim da negociação. Entre-tanto, a garantia de proteção à biodiversidade sempre orienta todas as ações e negociações na RDS.

Os componentes do modelo: pesquisa científica

A gestão participativa das Unidades de Conservação na Amazônia deve ser estruturada sobre forte embasamento científico, para que sejam produzidos sub-sídios consistentes que avaliem as estratégias de zoneamento e uso dos compo-nentes da biodiversidade. O uso de bases pouco científicas, somente apoiadas em Planos de Manejo pouco rigorosos, ou somente apoiados em uma série de levan-tamentos rápidos, não consegue gerar estratégias capazes de oferecer resultados significativos para a conservação da biodiversidade.

Apesar de o modelo estabelecer que a manutenção (e regulamentação) dos meios de sobrevivência das populações locais sejam um importante instrumento para a conservação da Unidade e sua biodiversidade, o objetivo que permeia a criação das próprias Unidades é conservação da biodiversidade da área e a manu-tenção de seus processos ecológicos e evolutivos. Tais processos são relevantes não só ao nível local, mas também regional e internacionalmente, na manutenção das pessoas, seus modos de vida, na reprodução dos recursos naturais explorados

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em outros locais e, ainda, no oferecimento de vários outros serviços ambientais. Sendo assim, as normas de uso e o sistema de zoneamento destas áreas devem estar fundamentalmente baseados em estudos científicos que considerem da me-lhor forma possível os aspectos de manutenção e reprodução dos principais com-ponentes da biodiversidade, a resiliência natural dos hábitats presentes e outras formas de recuperação dos ambientes naturais. Assim, aumentam-se as garantias de conservação da biodiversidade local como um todo e por um longo prazo. Obviamente, aliando o uso tradicional e o saber ancestral das populações locais ao conhecimento científico, haverá uma maior probabilidade de que as Unidades de Conservação de uso sustentado alcancem resultados mais positivos para a conservação da biodiversidade.

Antes da transformação da Estação Ecológica Mamirauá em Reserva de De-senvolvimento Sustentável Mamirauá, a Sociedade Civil Mamirauá produziu uma ampla gama de estudos científicos para servirem de base na elaboração cuidado-sa de seu Plano de Manejo. Este programa de pesquicuidado-sas dirigido ao Plano de Manejo durou cerca de três anos, o que foi considerado o tempo mínimo neces-sário para a obtenção de conhecimento suficiente para a primeira proposição de manejo, oferecida para discussão às populações, em 1995, e finalmente aprovada e sancionada pelo governo estadual, em 1996. Na Tabela 1 encontram-se as prin-cipais linhas de pesquisa adotadas entre 1992 e 1995 para subsidiar a elaboração do Plano de Manejo.

Tabela 1. Principais Linhas de Pesquisa para elaboração do Plano de Manejo da RDS Mamirauá (1992-1995). á u a r i m a M S D R a d o j e n a M e d o n a l P o d o ã ç a r o b a l e a r a p a s i u q s e p e d s a h n i l s i a p i c n i r P a f l a e d a d i s r e v i d e d s o t n e m a t n a v e L a t e b e d a d i s r e v i d e d s o t n e m a t n a v e L s i a r u t a n s o s r u c e r s i a p i c n i r p s o d a i g o l o i b a d s o d u t s E s o c i m ô n o c e -o i c ó s s o t n e m a t n a v e L s o s r u c e r s o d e o ç a p s e o d l a n o i c i d a r t o s u o d s o d u t s E s o s r u c e r s o d l e v á t n e t s u s o s u e d s a d a u q e d a s a m r o f e d o ã ç a g i t s e v n I u o / e o t n e m a t n a v e L a d i v e d e d a d il a u q a d o ã ç o m o r p a a r a p s a d a i r p o r p a s a i g o l o n c e t e d o d u t s E

Os componentes do modelo: sistema de zoneamento

O sistema de zoneamento foi elaborado principalmente em função da distri-buição do uso dos recursos pesqueiros, que são o principal recurso natural explo-rado pela população local. O sistema proposto à apreciação e voto das lideranças em 1995 partiu de duas principais fontes. A primeira delas foi o resultado de

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várias pesquisas que tiveram, dentre seus objetivos, determinar preliminarmente a distribuição espacial da ocorrência das principais espécies de recursos na Área Focal, bem como a distribuição espacial das atividades de uso destas espécies realizadas pelas populações locais. Este conjunto de estudos gerou uma série de mapas da Área Focal de Mamirauá onde foram registradas estas distribuições. A segunda fonte de informações foi uma releitura, e nova interpretação, dada a um sistema de categorização de lagos originalmente proposto pela Prelazia de Tefé (Igreja Católica) aos comunitários da região nos anos 70, que lançou as primeiras sementes do movimento de base pela preservação de lagos.

Este sistema anterior de ordenamento espacial dividia os lagos da região em três categorias principais: lagos de preservação (ou procriação), lagos de subsis-tência e lagos de comercialização. Haviam outras categorias menos relevantes e, também, outras categorias mistas resultantes da fusão de duas dessas categorias principais. As funções de manejo dessas três categorias principais estavam estabelecidas pelo próprio nome de cada uma delas. Entretanto seu significado prático diferia sensivelmente. Os lagos de comercialização e de subsistência ser-viam ao propósito de uso para pesca por parte das comunidades ribeirinhas (com exclusividade de acesso), para venda do pescado ou para a manutenção das co-munidades, respectivamente. Os lagos de preservação destinavam-se à formação de uma reserva de pescado, não utilizada costumeiramente, mas a ser utilizada no futuro ou em face a qualquer dificuldade maior a ser enfrentada pela comuni-dade (Queiroz, 1999; Queiroz e Sardinha, 1999). Este sistema, com todos os méritos de seu pioneirismo, não possuía muito embasamento na biologia dos recursos pesqueiros. A princípio, o então Projeto Mamirauá propôs algumas pe-quenas modificações e adaptações ao sistema de ordenamento dos lagos criados pela Igreja Católica, além de um sistema de zoneamento compatível com as cate-gorias de manejo dos lagos. Neste ponto foram propostas três catecate-gorias princi-pais de zonas de manejo: a zona de uso sustentável, a zona de proteção total e a zona de assentamentos permanentes.

A zona de proteção total foi criada para proteger os recursos genéticos da Reserva, agindo como uma fonte de estoque para as zonas adjacentes, onde o uso sustentado de recursos é permitido. Nesta zona não são permitidas quaisquer atividades humanas além daquelas de fiscalização e controle. Na zona de uso sustentável os recursos estão disponíveis para os moradores da Reserva, mas o uso destes recursos deve ser ordenado e regulado pelas normas do Plano de Ma-nejo. Nas zonas de assentamento, estão localizadas as comunidades e são permi-tidas modificações mais intensas do meio, necessárias para a manutenção do modo de vida da população local, como a agricultura. Num segundo momento as zonas de assentamento permanente foram absorvidas na zona de uso sustentado, uma vez que os assentamentos também estão sob a regulação das normas do Plano de Manejo. Além dessas três zonas existem também as zonas de manejo

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especial que são áreas que regulam a proteção de um recurso específico dentro das zonas de uso sustentável ou em suas adjacências (SCM, 1996).

As pesquisas científicas para estabelecimento dos subsídios ao zoneamento da área tiveram como ponto de partida o uso tradicional dos recursos locais. Foi importante identificar, em conjunto com os moradores, como as comunidades historicamente dividiam seu espaço e utilizavam seus recursos, de modo a elabo-rar um sistema de uso correspondente que integrasse estes interesses locais com o conhecimento científico gerado pelas pesquisas biológicas sobre as principais espécies. Este sistema tradicional foi representado através da aplicação de técni-cas de mapeamento participativo dos recursos realizado pelas comunidades lo-cais, o que serviu também para identificar as áreas de sobreposição de uso e áreas potenciais de conflitos (e, claro, aquelas de conflitos correntes). Nestas áreas conflituosas um processo de intensa negociação foi levado a cabo com o objetivo de integrar os diversos interesses locais e produzir um sistema de uso que fosse realmente apropriado pelas populações moradoras da área.

Os componentes do modelo: as normas de uso dos recursos

As mesmas pesquisas biológicas que geraram as informações a respeito das distribuições espaciais da ocorrência do recurso e de seu uso, também fornece-ram importantes informações sobre melhores práticas de uso ou de adequação desse uso. Tais informações foram baseadas nas características biológicas das espécies estudadas, especialmente em aspectos relevantes da dinâmica populacional, tais como o recrutamento, seja por natalidade ou por migração, e a mortalidade, seja natural ou induzida pelo uso. Portanto, aspectos importantes como a repro-dução do recurso e sua capacidade de regeneração ou resiliência foram sempre considerados, quando conhecidos. Estes foram aspectos fundamentais para gerar recomendações de manejo para espécies-chave tais como pirarucus, tambaquis e peixes miúdos (categoria local de migradores que engloba principalmente os peixes das famílias Curimatidae e Prochilodontidae), jacarés, peixes-boi, e espé-cies de árvores de importância madeireira. Estudos mais ligados a processos de uso das espécies, e não a elas próprias, também foram fundamentais para o esta-belecimento de raios de ação das comunidades da região, tal foi o caso dos pri-meiros estudos sobre a caça e daqueles sobre os sistemas agrícolas e agrossilviculturais desenvolvidos em Mamirauá. Estes estudos também investiga-ram as tecnologias empregadas na utilização da biodiversidade e estimainvestiga-ram, sempre que possível, o seu impacto ambiental de maneira mais geral.

As normas de uso decorrentes foram sugeridas pelos pesquisadores e ofereci-das para debate e negociação com as lideranças locais. Estas normas estabelece-ram restrições ao uso, seja pela limitação do esforço, criando ou reforçando estações de uso já existentes, com períodos de pousio ou de proibição, localmente

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conhecidos como “defeso”, seja pela limitação da produção, criando ou reforçan-do tamanhos mínimos de captura, diâmetros mínimos de abate, limitanreforçan-do o sexo que pode ser removido, criando limitações ao emprego de aparelhos de pesca ou de outras tecnologias de produção etc. Todas estas normas visavam um uso sus-tentável do ponto de vista ecológico, partindo do princípio que um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, só pode ser removido quando já teve a oportunidade de produzir uma descendência que pelo menos o substitua.

É relevante dizer que o Plano de Manejo também dispõe sobre espécies que eram (ou ainda são) protegidas pela legislação vigente, e cujo uso era (ou ainda é) estritamente proibido. Este tipo de recomendação ou regulação foi desenvolvi-do a partir da constatação de que tais espécies estavam efetivamente sendesenvolvi-do utili-zadas pela população local, e que não havia (como realmente ainda não há) pos-sibilidade do poder público garantir o cumprimento da lei, por diversos motivos alheios à presente discussão. Portanto, uma forma eficiente de avançar na prote-ção local destas espécies seria admitir que seu uso é corrente, o que não supõe sua “legalização”, e a orientação para a adoção de práticas menos danosas à espécie. Este foi o caso do uso de jacarés ou de peixes-boi, protegidos legalmente mas continuamente utilizados pelas populações locais de Mamirauá no período da elaboração do Plano de Manejo. Tais regulamentos foram cuidadosamente discu-tidos com as lideranças, de modo que fosse claramente compreendido que aquela não era uma tentativa de legalização local do uso daquelas espécies por parte do Projeto Mamirauá, algo impossível pelos princípios legais que regem a União e, também, inadequado por causa da concordância de que há realmente a necessidade de proteger algumas dessas espécies. As normas de uso para estas espécies tenta-vam, naquele contexto, diminuir o impacto do uso sobre a reprodução das espécies, e sua capacidade de resistir à pressão antropogênica exercida sobre elas.

Tanto o sistema de zoneamento como as normas de uso a serem respeitadas dentro das zonas de uso sustentável foram aprovados por meio de votação nos fóruns locais e posteriormente ratificados pelo órgão ambiental governamental (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas, IPAAM) para serem considera-dos oficiais.

Os componentes do modelo: alternativas econômicas

Embora o Plano de Manejo da RDS Mamirauá, o seu sistema de zoneamento e as várias normas de uso tenham sido baseados no formato de uso tradicional dos recursos pelas comunidades locais, em alguns casos novas normas de uso e de acesso foram implementadas. Tanto as normas de uso quanto o sistema de zoneamento provocaram assim restrições (de acesso e de uso dos recursos) que poderiam causar mudanças socioeconômicas bastante relevantes nas comunida-des locais. O impacto do acatamento comunida-dessas normas chegou a ser estimado em alguns casos.

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Como medidas compensatórias às restrições de uso determinadas no Plano de Manejo, foram criadas propostas de alternativas econômicas com base nos resul-tados das pesquisas científicas e no monitoramento do uso dos recursos naturais. As “alternativas econômicas”, como são chamadas em Mamirauá, são atividades produtivas tradicionais ou não-tradicionais, de baixo impacto ambiental, de cará-ter compensatório, que foram implementadas com vários objetivos. Os princi-pais deles foram (a) valorizar os produtos da biodiversidade local no mercado, (b) agregar valor a estes produtos e a produtos similares produzidos localmente, (c) impedir a diminuição da geração de renda local, tipicamente baixa, em decor-rência do acatamento das normas de manejo, (d) promover uma correlação direta entre geração de renda e conservação, com amplas implicações educativas e de-monstrativas, e (e) sempre que possível, aumentar a geração de renda por meio de mecanismos não impactantes, ajudando a aperfeiçoar a qualidade de vida lo-cal. As alternativas econômicas têm como diferencial o uso de novas práticas de produção aliando o uso tradicional às atuais técnicas de manejo, a diversificação do número de espécies exploradas (diluindo a pressão de uso), a comercialização dos produtos em novos mercados, o gerenciamento contábil e acesso dos peque-nos produtores a financiamentos e carteiras de crédito.

Estas iniciativas envolvem necessariamente atividades complexas, como a or-ganização de grupos de produtores, a capacitação de recursos humanos dentre os produtores, a implantação de infra-estrutura adequada à produção e o desenvol-vimento de sistemas de informações sobre o mercado visando à comercialização dos produtos desenvolvidos (Viana e Damasceno, 2004). As alternativas micas visam principalmente avanços em três principais âmbitos: o âmbito econô-mico, como o aumento da renda; o âmbito sociopolítico, como a criação de sistemas de gestão de recursos naturais que integrem o acesso aos recursos com a participação da população na sua proteção; e o âmbito ecológico, como a busca de melhores níveis de conservação dos recursos naturais renováveis envolvidos na produção.

Em alguns casos, estas “alternativas econômicas” representam uma adaptação ou reestruturação de atividades tradicionalmente já desenvolvidas, como a pesca, a exploração madeireira, o artesanato e a agricultura. Em outros casos, são introduzidas novas atividades econômicas, como o ecoturismo ou a exploração de produtos florestais não-madeireiros. Os sistemas de manejo de recursos natu-rais implantados foram desenvolvidos a partir de práticas tradicionais aliadas às técnicas de mínimo impacto baseadas em pesquisa científica. Um sistema de monitoramento foi construído e é utilizado para avaliar a eficácia dos modelos e práticas de manejo da biodiversidade.

Uma das grandes inovações dos programas de alternativas econômicas criados em Mamirauá é a criação de uma correlação direta entre conservação e geração de benefícios econômicos. Esta ligação é parte de uma estratégia de conservação

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mais ampla incluindo muitas outras ações, como os sistemas de fiscalização e controle, o fortalecimento político de grupos locais e suas lideranças e as ativida-de ativida-de educação ambiental e ativida-de apoio à saúativida-de comunitária.

A promoção de uma correlação clara entre a conservação e a geração de renda tem sido a abordagem principal através da qual o modelo de conservação de Mamirauá tem sido aplicado. Um exemplo disso é o ordenamento do acesso aos benefícios econômicos provenientes da conservação da biodiversidade. A im-plantação das alternativas econômicas provocou discussões sobre a regulamenta-ção do acesso aos recursos. No manejo dos recursos de pesca, por exemplo, a exploração comercial hoje é feita através de uma associação e cada membro desta tem direito a uma cota anual. Esta cota é determinada pelo desempenho do asso-ciado em relação a alguns critérios predeterminados pela própria associação, como sua participação nos cursos e encontros promovidos pela associação, sua partici-pação no sistema voluntário de vigilância e sua obediência às normas do Plano de Manejo em geral. Embora cada membro da associação tenha direito a uma cota mínima para comercialização, a possibilidade de aumento desta cota encoraja os pescadores a apoiar as iniciativas de conservação.

Um outro exemplo foi o efeito similar produzido pelo programa de ecoturismo, segundo o qual os lucros obtidos são divididos entre as sete comunidades locais envolvidas com esta atividade. O acesso destas comunidades a estes recursos monetários também sofreu uma regulamentação. Os benefícios econômicos dire-tos, como prestação de serviços na Pousada, pertencem àqueles que respeitam as normas do Plano de Manejo. Além disso, cada comunidade recebe parte dos lucros de acordo com seu desempenho no manejo sustentável daquela parte da reserva e no nível de participação nas ações de conservação. É importante notar que as próprias comunidades locais elaboram, regulamentam e acompanham o sistema de acesso aos recursos naturais, e/ou aos benefícios econômicos deriva-dos destes. A geração de benefícios econômicos através do uso sustentável deriva-dos recursos tem catalisado mais apoio local e promovido melhores níveis de conser-vação (o que, por sua vez, deve gerar mais benefícios econômicos) que muitas ações tradicionais de proteção da biodiversidade, e se apresenta como uma das principais estratégias para a conservação da Amazônia hoje.

As alternativas econômicas já consolidadas nas comunidades da RDS Mamirauá são o manejo da pesca comercial, o manejo de recursos madeireiros, o ecoturismo, o artesanato e a agricultura familiar. Junto a estas, outras alternativas estão em fase de consolidação, como o manejo de recursos florestais não madeireiros. Outras encontram-se hoje (2004) em fase de implantação, como o manejo de quelônios, ou em fase de estudos visando os testes-piloto, como o manejo de peixes ornamentais ou o manejo de jacarés.

Para exemplificar de modo mais concreto e detalhado, a seguir as ações de três dos programas de alternativas econômicas de Mamirauá.

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Manejo da pesca

O recurso pesqueiro é a principal fonte de renda para as comunidades da Re-serva Mamirauá. A conRe-servação deste recurso através de seu manejo sustentável é, portanto, fundamental tanto para a subsistência da população humana e persis-tência das populações de peixes quanto para a manutenção da sua comercialização e perpetuação de uma cadeia econômica importante.

O Programa de Manejo de Pesca tem cinco componentes principais: a organi-zação comunitária, a capacitação da população local, a pesquisa, o monitoramento e a comercialização do pescado. A organização comunitária é essencial para o desenvolvimento do manejo dos recursos pesqueiros tanto como incentivo para o manejo através das reuniões e intercâmbios entre as comunidades como através da assessoria às associações comunitárias, seu registro e documentação etc. Além disso, um outro aspecto essencial na implantação deste componente do manejo é o mapeamento participativo dos recursos para detecção de conflitos, conheci-mento dos modos de uso tradicional dos recursos pesqueiros e implantação do sistema de zoneamento. A capacitação também é parte fundamental do Progra-ma, principalmente em processamento e tecnologia de pesca e manejo de esto-ques. A pesquisa e o monitoramento são essenciais para indicar as cotas de produ-ção e os níveis ou parâmetros populacionais dos peixes explorados, e para avaliar o estado de conservação daquelas espécies. Além dessa aplicação, a pesquisa ci-entífica gera as informações sobre a biologia e a ecologia das espécies que são levadas em conta quando da elaboração de normas para seu manejo. Este papel subsidiário da pesquisa científica no manejo dos recursos naturais é fundamental para manter o sistema em bom funcionamento no longo prazo.

Construído sobre os componentes citados acima, o Programa de Manejo de Pesca que teve início em 1998, em um dos setores da reserva, o Setor Jarauá. Mas desde então esta iniciativa tem se multiplicado e, em 2004, existem cinco asso-ciações que realizam a pesca manejada (do pirarucu e de outras 10 espécies de peixes). Essas associações aglutinam hoje aproximadamente 300 pescadores, sendo que três delas estão localizadas na RDS Mamirauá, uma na RDS Amanã e uma na sede do município de Maraã, envolvendo pescadores comerciais não-moradores das reservas, mas dentro de sua zona de influência.

Este programa tem como principais objetivos a promoção da conservação dos recursos pesqueiros existentes em Mamirauá por meio da organização e diversi-ficação do sistema de produção pesqueira local, formando uma estrutura produ-tiva organizada em associações de pesca, capacitando os pescadores locais, ga-rantindo a qualidade da produção, incentivando regionalmente a pesca artesanal sustentável e promovendo a melhoria da qualidade de vida das comunidades ribeirinhas ligadas ao programa.

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Para a implantação das atividades foi essencial que os pescadores estivessem organizados em associações e treinados em técnicas básicas de pesca manejada, técnicas de processamento de pescado e de gerenciamento de organizações de produtores. Esta organização e capacitação fortaleceram enormemente as asso-ciações trabalhadas. Uma das principais exigências para integrar o Programa de Manejo de Pesca foi a de que o pescador teria que respeitar as normas estabelecidas no Plano de Manejo e na Legislação de Pesca vigente, bem como as portarias do IBAMA.

Em 1996, uma portaria da gerência estadual do IBAMA do Amazonas proibiu a comercialização do pirarucu no estado, pois havia evidências que os estoques da espécie estavam diminuindo a cada ano. Esta proibição estadual vigente des-de então tem a duração anual des-de seis meses, e se complementa com a proibição anual da pesca nos outros seis meses, válida para toda a região amazônica. Na prática a decisão tornou ilegal a pesca da espécie no Amazonas pelos últimos oito anos consecutivos. O principal impacto desta decisão recaiu sobre os pescadores que tinham o pirarucu como espécie-chave na composição de sua base de gera-ção de renda.

Este impasse na vida dos pescadores de Mamirauá foi resolvido inicialmente pela implementação do manejo de pesca na reserva: os pescadores locais apresen-taram uma proposta no primeiro ano de operação (1999) para um sistema de rodízio em 31 dos 133 lagos existentes na zona de uso sustentável do Setor Jarauá, na parte nordeste da área focal da Reserva Mamirauá. Neste rodízio, os pirarucus seriam pescados num sistema de cotas, durante dois meses ao ano, seguindo-se as orientações do Plano de Manejo. A proposta foi aprovada pelo IBAMA, que estabeleceu uma cota inicial de três toneladas a serem retiradas daquele Setor. Desde então as cotas anuais são calculadas através de estimativas conservadoras para o número de pirarucus adultos existentes na área do Setor, calculadas através de uma técnica de contagem visual dos estoques desenvolvida pelos pescadores locais e pesquisadores do IDSM. As propostas de cota são aprovadas e homologa-das anualmente pelo IBAMA. Estas cotas crescem a cada ano, à medida que os estoques se recuperam vertiginosamente da situação inicial de sobrepesca.

O levantamento dos estoques é essencial para obter-se a licença do IBAMA para a comercialização do pescado. Este levantamento foi realizado através de uma técnica que utiliza o conhecimento dos próprios pescadores5, que através da

visão e audição, conseguem estimar com grande precisão o número de pirarucus em um determinado local.

5. O pirarucu precisa respirar na superfície em intervalos regulares e alguns pescadores observaram que cada indivíduo tem seu próprio modo de fazer isso. Para diferenciar os indivíduos, são observados: o barulho que os peixes fazem quando vêm à superfície, a cor e a forma de suas nadadeiras e o padrão deixado na superfície da água quando estes submergem. Com estas características individuais em mente, os pescadores conseguem iden-tificar cada indivíduo. A técnica foi testada e publicada por Leandro Castello, que comparou a estimativa dos pescadores com suas próprias contagens através de métodos de captura e marcação.

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A renovação da autorização para a pesca manejada é feita anualmente e medi-ante a submissão de relatórios ao IBAMA-Amazonas. Os resultados dos últimos anos indicam que o sistema de manejo do pirarucu está produzindo excelentes resultados e não apenas em relação à recuperação dos estoques, mas também com respeito ao aumento da renda dos pescadores e a sua organização comunitária.

0 50 100 150 200 250 300 350 400 60 -70 70 -80 80 -90 90 -100 100 -110 110 -120 120 -130 130 -140 140 -150 150 -160 160 -170 170 -180 180 -190 190 -200 200 -210 210 -220 220 -230 230 -240 1998 1999 2000 2001 2002 2003 P irarucus pescados classes de tamanho (cm)

Figura 3. Evolução do número e tamanho dos pirarucus pescados por uma das associações de pescadores da RDS Mamirauá participantes do Programa de Manejo de Pesca, realizado anualmente entre outubro e dezembro desde 1999 (fonte: João Paulo Viana e Guillermo Estupiñan).

Desde o primeiro ano de operações até os dias de hoje muitos desenvolvimen-tos se registraram. Houve um aumento do número de pescadores participantes, um enorme aumento da produção, um aumento no número de espécies explora-das (o que indica que os pescadores estão diminuindo a pressão de pesca sobre as espécies que eram preferencialmente exploradas), um bom aumento no valor médio de mercado do pirarucu, aumento do faturamento bruto e da renda média por pescador participante no programa durante os períodos de funcionamento do Programa de Manejo de Pesca.

Manejo florestal

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A exploração de madeira é uma das atividades tradicionais dos povos de vár-zea, principalmente durante a época da cheia, e a população tradicional de Mamirauá não é uma exceção. Mas até a implantação do Programa de Manejo

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Florestal Comunitário na RDSM a atividade tinha sido realizada de forma ilegal, assim como em outras regiões da Amazônia. Até recentemente, a legalização do manejo florestal comunitário não era prevista na legislação. Entretanto, o Decre-to 2.788, de 28 de setembro de 1998 criou o manejo comunitário simplificado.

Na Reserva Mamirauá está sendo implantada a primeira experiência deste tipo em área de várzea da Amazônia brasileira. O objetivo da experiência é promover a conservação dos recursos madeireiros por meio de seu aproveitamento de for-ma sustentável, contribuindo para a melhoria da renda das populações locais. O manejo florestal comunitário na RDS Mamirauá também é realizado por asso-ciações comunitárias de moradores. As comunidades se organizam em associa-ções para explorar os recursos madeireiros existentes nas suas áreas de uso. Em-bora esta organização seja espontânea, alguns de seus aspectos legais tiveram que ser induzidos e catalisados pelo grupo responsável pelos trabalhos e condução do processo. Os comunitários interessados receberam treinamento e assistência téc-nica e desde então participam ativamente do planejamento, execução e monitoramento do manejo florestal.

Através de um mapeamento participativo são determinadas as áreas de explo-ração de cada comunidade. Esta área é então dividida em 25 partes (ou talhões) e a cada ano explora-se cada uma dessas áreas, que permanecerá em repouso até que todos os talhões tenham sido explorados, o que se dará dentro de um ciclo de 25 anos, tempo suficiente para a renovação da floresta.

Há um intenso processo de capacitação envolvido também neste programa, que trabalha a constituição legal, formalização e documentação das associações, as técnicas de inventário florestal nas áreas de uso das comunidades, as técnicas de derrubada de baixo impacto nos talhões etc. O processo de comercialização também é atentamente acompanhado, e as primeiras experiências de “balcão de negócios”, reunião de potenciais compradores e estabelecimento do contato dire-to entre produdire-tores e compradores foram muidire-to bem-sucedidas.

A produção de madeira manejada na área focal da Reserva Mamirauá ainda é baixa quando comparada com a antiga produção de madeira ilegal, interrompida pela ação do grupo de Mamirauá na década anterior. Apesar disso este número é crescente, e começa a envolver comunidades e produtores da área subsidiária, numa iniciativa que conta com o apoio do Governo do Estado do Amazonas (SDS).

O Programa possui características ímpares, além do seu pioneirismo no Esta-do e além de seu pioneirismo na várzea. Várias premissas que são aEsta-dotadas a

priori visam focalizar a conservação das espécies e o incremento da qualidade de

vida das populações tradicionais locais. Estas preocupações são estabelecidas desde os primeiros estágios do trabalho, de modo a minimizar ao máximo os impactos cultural e ambiental envolvidos na exploração de madeira.

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De acordo com Pires (2004), ainda na fase de delimitação da área de uso da comunidade para exploração madeireira, sempre que possível são utilizados li-mites culturalmente definidos pelos participantes. Concomitantemente, são con-siderados sempre que possível os contextos ambientais, como os limites naturais das áreas de exploração (canos, igarapés, lagos etc.), a delimitação de talhões, a identificação cuidadosa das espécies madeireiras presentes ou predominantes na área e a seleção de indivíduos a serem derrubados no sistema de rodízio. Todas as informações pertinentes à exploração de cada associação são anualmente delimi-tadas por um plano de manejo específico, submetido ao IBAMA e ao IPAAM para obtenção das licenças necessárias para execução da exploração.

Até o momento já existem 16 planos de manejo aprovados na área focal da Reserva Mamirauá. As áreas de manejo são pequenas e com baixa intensidade de exploração, o que garante a minimização dos impactos. A obtenção de licenças específicas permite que o produto alcance valores de mercado muito superiores àqueles proporcionados pela extração não-manejada. Esta última encontra-se praticamente extinta da área focal da RDSM nos últimos anos, como pode ser visto na Figura 4, abaixo.

0 1000 2000 3000 4000 5000 6000 7000 8000 9000 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 ano toras derrubadas

Figura 4. Declínio da produção anual de toras de madeira não-manejada (ilegal) na Área Focal da Reserva Mamirauá desde 1993 (Fonte: Andréa Pires e Marlon Menezes).

Ecoturismo

O ecoturismo é entendido pelos pesquisadores e extensionistas que trabalham em Mamirauá como “uma atividade que utiliza, de forma sustentável, o patrimônio

natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consci-ência ambientalista através da interpretação do ambiente, promovendo o

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bem-estar das populações envolvidas”. A atividade é desenvolvida na Reserva Mamirauá

desde 1998 e seu principal objetivo é promover a conservação dos recursos natu-rais servindo como fonte de renda alternativa para as populações moradoras da unidade de conservação.

Para atingir tais objetivos, o Programa de Ecoturismo tem desenvolvido vári-as ações estratégicvári-as, como o planejamento turístico e os estudos de viabilidade, realizados nos primeiros anos do programa, a implantação de infra-estrutura tu-rística de mínimo impacto, envolvimento da população local e geração de bene-fícios socioeconômicos para esta população. Ações complementares são também desenvolvidas, como a promoção da capacitação e organização da associação local, o desenvolvimento do produto turístico oferecido e da exploração otimizada dos nichos existentes, dentro de uma estratégia de marketing responsável, e a minimização e monitoramento dos impactos gerados pela atividade, tanto do ponto de vista ambiental quanto social.

São sete as comunidades de Mamirauá e redondezas envolvidas com este pro-grama de ecoturismo, por serem elas os assentamentos localizados na Zona Es-pecial de Ecoturismo identificada pelo Plano de Manejo em 1996. As populações destas sete comunidades exercem naturalmente uma variedade de atividades eco-nômicas como a pesca, a agricultura familiar e a extração de madeira, dependen-do da estação dependen-do ano. Esta produção dependen-doméstica é voltada tanto para o consumo quanto para venda no mercado. O ecoturismo não foi idealizado para substituir estas atividades produtivas tradicionais, mas sim para ser uma fonte de renda extra para a população local, ampliando a base de geração de renda e reduzindo a dependência às espécies tradicionalmente exploradas, visando à redução da pressão humana sobre o ambiente daquela zona específica.

Antes que se levantassem muitas expectativas locais e um maior investimento na atividade turística fosse realizado, foi elaborado um estudo de viabilidade, analisando a possibilidade real de se desenvolver o produto. Na ocasião foram identificados atrativos, seus diferenciais e sua posição competitiva no mercado amazônico. Além disso, o estudo de viabilidade também teve o papel de identifi-car o público-alvo e o segmento de mercado onde o produto poderia ser inserido. Foram abordados vários aspectos de demanda e oferta turística, chegando-se ao desenho do tipo de produto a ser oferecido. Um plano de negócios foi elaborado para guiar a gestão administrativo-financeira do projeto. Com o resultado favo-rável do estudo de viabilidade, verificou-se e confirmou-se o interesse das comu-nidades locais e investiu-se na implantação da infra-estrutura turística de pequena escala e mínimo impacto.

A hospedagem dos ecoturistas é hoje feita na Pousada Flutuante Uacari que se encontra no interior da Reserva. Os serviços oferecidos na Pousada são de alta qualidade, segundo uma pesquisa realizada com os próprios visitantes, e os

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prestadores dos serviços hoteleiros, assim como os condutores de visitantes, são moradores da Reserva que foram treinados extensivamente pelos membros do programa e pela associação de moradores locais criada para atender às necessida-des da atividade, a AAGEMAM (Associação de Guias e Auxiliares de Ecoturismo do Mamirauá).

Os atrativos turísticos naturais, culturais e científicos oferecidos pela reserva e pelos pesquisadores que lá atuam combinam-se proporcionando ao visitante uma experiência diversificada. Mas o forte atrativo da área é sua vida selvagem abun-dante, resultado de 14 anos de conservação. Além disso, o contato com a cultura local também é importante e as visitas às comunidades ribeirinhas que utilizam e manejam seus recursos naturais de forma sustentável também fazem parte da experiência.

Em Mamirauá, as visitas às comunidades foram elaboradas utilizando metodologias participativas em reuniões que tinham como objetivo identificar os atrativos existentes em cada comunidade, segundo sua própria visão de atratividade, e estabelecer regras de conduta para os turistas durante estas visitas. As quatro comunidades normalmente visitadas desenvolveram calendários anuais das atividades tradicionais que seriam atrativas, como a colheita da mandioca, fabricação da farinha, as festas dos padroeiros etc. Com o objetivo de possuir maior grau de controle sobre a visita e minimizar seus impactos negativos, as comunidades escolheram pessoas dentre seus membros que seriam os responsáveis pelas visitas, decidindo o quê e como mostrar suas atrações e também orientando a conduta do turista dentro da comunidade.

A idéia de que o ecoturismo pode promover a conservação, mostrando às comunidades locais a importância da área natural para a geração de renda através desta atividade econômica, é bastante difundida. Acredita-se que a destinação e conservação de uma determinada área para atividades de ecoturismo devem agir como incentivo para o manejo adequado dos recursos que nela se encontram (Brandon, 1995). Em Mamirauá, os benefícios econômicos gerados ao longo de sua implantação foram significativos o bastante para demonstrar a importância da conservação do local. Assim, foi observado nos últimos anos um aumento considerável das populações de recursos-chave na Zona de Manejo Especial de Ecoturismo (IDSM, 2001). A geração de benefícios econômicos diretos em curto prazo se mostrou uma ótima oportunidade para fixar benefícios econô-micos no local, evitar a dispersão da receita do ecoturismo e também promover uma correlação rápida e clara entre a conservação de recursos e a geração de renda. Além disso, a associação entre a operação turística e outras atividades econômicas locais também foi essencial no sentido de manter as atividades tradicionais e distribuir benefícios econômicos. As duas atividades que mostra-ram maior sinergia com o ecoturismo fomostra-ram a produção e venda de artesanato e a produção de alimentos.

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Desde o ano de 2002, o empreendimento produz excedentes que são divididos entre as sete comunidades envolvidas na reserva, que formam o Setor Mamirauá e que estão ligadas à zona de manejo. Metade dos excedentes é aplicada em benefício das comunidades e de seus moradores, enquanto que a outra metade custeia o sistema de fiscalização do Setor. No primeiro ano de divisão dos exce-dentes, as sete comunidades do setor decidiram dividi-lo em partes iguais entre elas. A partir de 2003, as comunidades elaboraram normas de conduta, que são utilizadas como critérios de avaliação para determinar o valor total que cada comunidade deverá receber. Foi eleita uma comissão com membros de todas as comunidades, responsável por avaliar o desempenho de cada uma delas em rela-ção às normas de conduta previamente estabelecidas. De acordo com o total de recursos atribuído a cada comunidade, cada uma elabora um projeto de desen-volvimento comunitário para aplicar o recurso. Estes projetos são analisados, aprovados e monitorados pela comissão de avaliação.

A principal instituição local parceira do programa de ecoturismo é a Associa-ção de Guias e Auxiliares de Ecoturismo do Mamirauá (AAGEMAM). O proces-so de criação e conproces-solidação da asproces-sociação durou cerca de três anos. Seus asproces-so- asso-ciados levaram algum tempo para discutir quais seriam os principais objetivos da associação, para elaborar seu estatuto e para formalizar sua organização e docu-mentar os associados. A associação iniciou com cerca de 15 pessoas e hoje conta com cerca de 40 associados. A AAGEMAM tornou-se um dos principais atores na tomada de decisão sobre a gestão da Pousada e sobre a divisão dos excedentes da atividade. Ela é gerida por uma diretoria que, por sua vez é supervisionada por um conselho fiscal.

As decisões referentes à atividade de ecoturismo são discutidas com as comu-nidades do Setor Mamirauá, mas a AAGEMAM também se tornou um importan-te inimportan-terlocutor, veiculando os inimportan-teresses dos associados, não apenas em questões referentes ao ecoturismo, mas em relação à conservação e ao uso dos recursos naturais do local.

Com forte base comunitária, boa posição no mercado e bons resultados finan-ceiros, o ecoturismo desenvolvido em Mamirauá tem grande possibilidade de continuar crescendo e atingir seus objetivos de conservar os recursos naturais da área natural e também oferecer uma alternativa econômica aos moradores da área (Figura 5). Para isso a atividade deve vencer seus principais desafios, que são implantar a gestão comunitária do empreendimento, atingir a sustentabilidade da qualidade dos serviços e produtos e viabilizar a continuidade das atividades produtivas tradicionais para evitar a total dependência local ao mercado interna-cional de ecoturismo.

Inúmeras intervenções realizadas junto às populações tradicionais de Mamirauá têm sido de importância fundamental no estabelecimento deste modelo de uso

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sustentado, envolvimento político e de gestão compartilhada. Uma das mais im-portantes foi o estabelecimento de um fundo de microcrédito em 2000, que ajuda a financiar as contrapartidas destes e de outros programas de alternativas econô-micas que foram implementados ou que estão em vias de implementação em Mamirauá. 0 10.000 20.000 30.000 40.000 50.000 1998 1999 2000 2001 2002 2003 0 100 200 300 400 500 600 R eais n ú mero de visitantes benefícios-excedentes benefícios-pagamentos visitantes

Figura 5 – Evolução do número anual de ecoturistas recebidos na Pousada Uacari, em Mamirauá, e a geração de renda da atividade transferido às comunidades locais (pagamentos são transferências diretas relativas à prestação de serviços e à compra de produtos locais, enquanto excedentes são aplicados em projetos comunitários ou em fiscalização, veja texto).

Resultados integrados das ações desenvolvidas

A combinação de um sistema de zoneamento baseado em pesquisa científica e conhecimento local e de uma gestão participativa, aliada e de fortes programas de extensão, com a implantação de alternativas econômicas, gerou no médio pra-zo um conjunto de resultados significativos em relação à conservação da biodiversidade e à melhoria dos níveis de vida da população local.

Durante o período de 1998 até 2003, o sistema de monitoramento realizado pelos pesquisadores de Mamirauá detectou a grande recuperação das populações de recursos naturais que se encontravam em declínio nos 10 anos anteriores. Uma grande diminuição das taxas anuais de transformação de hábitat (reduzidas para cerca de 0%) foi também observada. Aparentemente foi interrompida a conversão de ambientes florestados para outros tipos de uso na Reserva. O que se observa é que são usados como sítios de exploração e plantio somente áreas de uso antigas, capoeiras, e mesmo, no caso de plantio, áreas não florestadas, como as praias de lama, que não eram utilizadas até que a atuação dos extensionistas de

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Mamirauá introduzisse localmente este novo conceito. No mesmo período tam-bém foi observado o ressurgimento de várias espécies de vertebrados antes rara-mente avistadas (como felinos, sirênios, quelônios etc.). Estas espécies possuem em comum a baixa taxa reprodutiva, os longos períodos de maturação dos ani-mais e uma grande vulnerabilidade à pressão exercida pelos humanos. São espé-cies especialmente sensíveis, cuja recuperação nos sugere que as medidas de pro-teção adotadas estejam sendo bem-sucedidas.

Observando os avanços alcançados por uma perspectiva ou dimensão humana ao longo de mais de uma década de ações e interferências de manejo em Mamirauá, nota-se uma grande transformação estrutural. Houve um incremento generaliza-do da renda generaliza-domiciliar nas comunidades-alvo generaliza-dos trabalhos de alternativas eco-nômicas. Este incremento foi, em média, de 107% nos últimos oito anos, já descontadas as taxas inflacionárias. O acompanhamento da geração da renda está sempre analisado em relação à variação do custo de uma “cesta básica” regional, que permite a indexação dos parâmetros econômicos locais. Outros avanços im-portantes na qualidade de vida da população local foram o fortalecimento de mais de 40 escolas rurais, que atendem à população da área focal de Mamirauá, e a diminuição das taxas de poliparasitismo intestinal (redução de 29,3% em ape-nas três anos). Um indicador de qualidade de vida que tem adquirido grande importância nos trabalhos de Mamirauá tem sido a taxa de mortalidade infantil local. Esta taxa também apresentou uma diminuição drástica desde que os traba-lhos em Mamirauá se iniciaram. Em meados da década anterior as taxas anuais de mortalidade infantil estavam em torno de 86 óbitos por cada 1.000 crianças nas-cidas vivas na Área Focal de Mamirauá, e esta taxa encontra-se agora em 31/ 1.000, pouco abaixo do patamar nacional, demonstrando uma queda de mais de 58% em apenas oito anos (IDSM, 2003).

É essencial considerarmos que a abordagem multidisciplinar utilizada em Mamirauá é fundamental para que se alcançassem estes avanços. A existência de uma equipe de pesquisadores e extensionistas com variada formação, distintas abordagens e experiências, proporciona o ambiente adequado à busca e efetiva solução de conflitos ambientais sociais os mais variados. A dinâmica de discussões internas, a diversidade de pontos de vista e de caminhos alternativos disponíveis pode garantir a boa condução do processo de gestão participativa, mesmo quando o SNUC ainda não havia sido aprovado e que as ações visando à formação do Conselho Deliberativo da unidade de conservação nem sequer haviam-se iniciado. A visão multidisciplinar, e não exclusivamente biológica, também tem sido fundamental no envolvimento da população local em processos pouco atraentes, como o de fiscalização e controle, e não apenas naqueles processos participativos de geração de renda. Certamente os níveis de proteção e conservação da biodiversidade hoje observados não seriam verdade sem que a população local fosse adequadamente envolvida, esclarecida e organizada, transformando-se num

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parceiro efetivo das ações desenvolvidas.

A dimensão humana impregnada nos trabalhos de conservação da biodiversidade desenvolvidos em Mamirauá nos últimos 14 anos exemplifica de forma bastante enfática que o sucesso das intervenções ambientalistas na Amazô-nia brasileira visando à conservação in situ está definitivamente dependente da capacidade de se identificar e envolver eficientemente as populações humanas diretamente ligadas ao local a ser conservado. São os moradores da área, são os grupos que possuem laços culturais e econômicos com a área, são os agentes econômicos externos que interagem de alguma forma com a área. A unidade de conservação não pode ser vista como uma “ilha de proteção”, alheia à dinâmica humana que ocorre no seu interior ou em suas bordas, em sua zona de amorteci-mento, ou, mesmo, em sua zona de influência mais extensa. Se estes fatores humanos não forem considerados intrinsecamente no planejamento de conserva-ção in situ das áreas amazônicas e do restante de sua biodiversidade, as probabi-lidades de sucesso serão sensivelmente reduzidas.

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Mamirauá

Marcos Amend - Fotos 1, 2, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 Luis Claudio Marigo - Fotos 3 (Saimiri sciureus),

4, 12 (Marise Reis discutindo mapa), 13, 14 (fiscais voluntários), 15, 16, 17 e 18

Referências

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