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Consciência sindical e a classe para si

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Academic year: 2021

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Consciência sindical e a

“classe para si”

Rodrigo Vides Vieira

“A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, no final, esta é sua única

definição.” (E. P. Thompson)

Navegar pelas comunidades de professores nas redes sociais é se deparar, constantemente, com uma afirmação categórica: o professorado é uma classe desunida!

Na maioria dos casos (veja bem que não são em todos) a asserção resulta de conquistas não alcançadas por um d e t e r m i n a d o g r u p o e q u e t e n t a m c r e d i t a r a o u t r o a responsabilidade pelas mesmas, daí a se usar, indistintamente, os conceitos classe e consciência. O uso indiscriminado destes instrumentos de análise mais confundem a categoria dos professores do que os auxiliam.

Desta forma, cabe-nos compreender os conceitos de classe social e consciência de classe, único caminho para nos afastarmos de interpretações confusas que fazem da “classe social” sujeito na oração aguardando seu predicado quando na verdade ela é verbo de ação.

Essa tal de classe social

Seguindo a linha de raciocínio de E. P. Thompson[1], classe social e conciência de classe são conceitos diferentes. Conforme o autor, a classe social não surge numa hora determinada em um lugar específico ela é um fenômeno histórico que acontece através de um processo, ou seja, é um fazer-se de agentes coletivos em relação com os meios de produção material e não-material. Sendo assim, devemos apreender o fato de que sendo a classe social é um fenômeno histórico e enquanto tal

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ela é fluída e nos escapa se tentarmos lhe imobilizar no espaço e no tempo.

A classe é resultado da articulação da identidade de interesses entre os homens, devido às experiências comuns, contra outros homens que defendem interesses que lhes opõem, se fizermos uma análise bastante superficial contastaremos que entre o professorado paulista existem dezenas de vontades individuais em conflito e, como bem nos esclarece Engels[2], esta pluralidade de ideias só pode nos levar a resultados muito diferentes daquele que desejamos. Em contrapartida, aqueles que nos opõem estão muito bem organizados e possuem um objetivo claro para manter a organização da formação social do Estado.

Neste ponto é importante ter em mente que quando se fala de classes sociais muitos são impelidos a considerar uma análise social através do conceito de modo de produção, habilmente desenvolvido por Karl Marx, no entanto, este modelo tende a ser dicotômico ao considerar a existência de duas classes: a burguesia e o proletariado. Como percebeu o filósofo alemão nenhuma sociedade histórica apresentará um modo de produção em sua forma pura, no conflito estrito entre os possuídores dos meios de produção e os desprovidos dos meios de produção; a sociedade se apresentará como uma combinação de elementos de modos de produção anteriores ou de elementos que antecipam transformações do modo de produzir e a esta presença de vários m o d o s d e p r o d u ç ã o é q u e c h a m a m o s f o r m a ç ã o s o c i a l , encontraremos, assim, uma pluralidade de grupos no seio das classes.

Norberto Bobbio[3] quando trata da classe social nos diz que a existência das classes se baseiam nas posições diversas que os homens ocupam no processo produtivo em relação com os antagonismos que se situam em nível político. O momento de agregação mediante a organização política de interesses é o momento constitutivo da classe, desta maneira, em Marx e Engels[4] encontraremos que os individuos só se constituem uma

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classe quando estão comprometidos na luta comum contra outra classe, o que gera uma luta política e o reconhecimento de interesses comuns. Hoje reconhecemos o opressor, mas será que nós nos reconhecemos como oprimidos? Levantamos a bandeira de interesses comuns ou estamos em um nível de simples oposição ao governo? Marx[5] nos revela que os camponeses franceses não adquiriram a consciência de classe que é fruto da identidade de interesses políticos, pois, as condições de produção os isolavam uns dos outros e os punham em contato quase familiar com o patrão. Será que não vivenciamos algo similar hoje em dia na educação?

Uma tira da Mafalda do cartunista argentino Quino amplamente divulgada nestas comunidades de professores faz uma provocação interessante: se sofremos juntos por que não lutamos juntos? De certo que voltamos ao princípio, como lutar juntos se as vontades são diversas? Como lutar juntos se a grande maioria desacredita em sua unidade sindical? Como lutar juntos se a grande maioria esconde-se atrás de migalhas conquistadas? Como diz Lênin[6], “só pode exortar os outros à ação aquele se lança na ação”, a simplicidade da frase, talvez, possa encobrir sua profundidade prática.

Consciência de quem sou

O tipo de exortação que os professores fazem aliando frase de efeito à ideia imatura de classe soacial gera as confusões na categoria, pois ela simplesmente engessa os agentes coletivos, assim a classe social se torna uma “coisa” que podemos mensurar e qualificar e dela deduzir uma consciência coletiva e esta dedução é sempre frágil. Se da identidade de interesses políticos nasce a “consciência de classe” nem sempre ela é capaz de expressar as reivindicações das mesmas quando multiplicada. Para podermos analisar a “consciência de classe”, que é a forma como as experiências dos agentes são tratadas, tomamos como instrumento operacional as formulações de Marx de “classe para si” e “classe em si”.

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Tendo como pressuposto que uma classe elevou sua luta para o campo político e os interesses comuns entre os indivíduos se revelaram desta identidade floresce a “consciência de classe”. Uma “classe social” dotada de consciência é uma “classe para si” se a consciência não emergir a classe continua uma “classe em si” ou seja, incapaz de expressar seus interesses políticos. A mudança de uma “classe em si” para uma “classe para si” não é necessária, como nós vivenciamos a identidade no processo produtivo não é um fator determinante para garantir a consciência de classe.

Norberto Bobbio[7] é incisivo ao afirmar que a grande fábrica capitalista oferece maiores condições para florescer a conciência de classe. Dado que a penetração das ideias da classe dominante são em menor grau, conforme Poulantzas[8], o ambiente escolar tem um papel ideológico de organizar a hegemonia do Estado, desta forma, a penetração das ideias da classe dominante serão em maior grau e isto, ao nosso ver, dificulta a condução da coletividade de professores à “classe para si”.

Aos professores não cabe somente se autoclassificar “classe” é preciso encontrar o seu lugar na história. A análise grosseira e superficial que podemos fazer é que o momento não nos permite identificar estes agentes coletivos como uma “classe social”, o desmonte sindical que vem sendo operado pelo governo do Estado de São Paulo nos últimos vinte anos inibiu o fazer-se dos professores. Possuímos hoje uma coletividade em torno de um sindicato, de direção pelega, lutando uma luta estreita, porém com um leque imenso de reivindicações que vão desde o plano econômico até a política sem se aprofundar em nenhuma das instâncias. Lênin[9] já nos alertava para os limites da “consciência sindicalista” que nada mais era do que uma “consciência burguesa”, dado que ela não avança para uma luta política, paira somente na luta econômica que visa vender por um melhor preço a mercadoria força de trabalho. É isto que vive o professor no Estado de São Paulo atualmente, busca que

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o Estado e a burguesia reconheçam o valor de sua mercadoria, a luta política nos aparece a anos-luz de distância.

Reconhecer que a consciência do professor é burguesa não é tarefa fácil, porém uma etapa importante no fazer-se da classe o que não podemos é relacionar a categoria dos professores neste momento com uma “classe social”, pois não o somos! Afirmar pelas redes sociais tal relação é dar condições para o surgimento de oportunistas que vem suprir a fragilidade da consciência com teorias substitutivas, seja o partido, seja o sindicato ou seja o teórico, ele nada mais fará do que desvendar a consciência não como ela é, mas como deveria ser e esta falsificação serve somente aos interesses da classe dominante. Devemos reconhecer o nosso lugar na história, pois só assim encontraremos a vitória a curto prazo na esfera econômica e, quem sabe, a longo prazo, enquanto representantes de classe social, na esfera política. Este posicionamento vai de encontro ao pensamento de Karl Marx[10], a saber, “a doutrina materialista segundo a qual os homens são produto das circunstâncias e da educação esquece que são precisamente os homens que modificam as circunstâncias e que o educador necessita, por sua vez, de ser educado”. O filósofo coloca a nós a responsabilidade de mudar a realidade e, o que parece ser uma obra faraônica e nos causa medo, nada mais é do que a prática revolucionária, deste modo, podemos concluir, assim como o fez Marx, que cabe a nós transformar o mundo!

[1] THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, 1: a árvore da liberdade. 6. ed. São Paulo: Paz & Terra, 2011. [2] ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos filosóficos. 2. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1974. [3] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasilia: Editora Universidade de

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Brasilia, 1998.

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Hucitec, 1984.

[5] MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: MARX, Karl. A revolução antes da revolução, II. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

[6] LÊNIN, V. I. Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento. In: LÉNINE, V. I. Obras escolhidas, 1. Lisboa: Edições Avante!, 1981.

[7] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 1998.

[8] POULANTZAS, Nicos. Aparelhos de Estado e aparelhos ideológicos.

[9] LÊNIN, V. I. Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento. In: LÉNINE, V. I. Obras escolhidas, 1. Lisboa: Edições Avante!, 1981

[10] MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos filosóficos. 2. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1974.

O que é a pequena burguesia?

Alvaro Bianchi

As noções de pequena-burguesia e classe média necessitam um tratamento teórico mais detalhado. Para a sociologia de inspiração weberiana as classes sociais são definidas tomando

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em consideração as oportunidades de vida permitidas pela posse de bens (WEBER, 2004, v. 2, p. 176). Este conceito se afirmou fortemente no senso comum, para o qual classe é igual a renda o u p a t r i m ô n i o . P a r a M a r x e E n g e l s , e n t r e t a n t o , a s determinações das classes sociais não se encontram primeiramente no “mercado de bens ou trabalho”, elas estão na esfera da produção de riquezas.

Nunca é demais lembrar que Marx escreveu no século XIX quando o processo de superação das antigas formas sociais feudais ainda não havia chegado a seu final, particularmente na Alemanha sua terra natal. Trabalhando com o material empírico fornecido pelo desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra, na qual a grande indústria se encontrava em processo de generalização, pôde antecipar tendências que apenas assomavam no continente europeu. Foi essa perspectiva europeia e oitocentista, que fez com que Marx concebesse o surgimento da pequena burguesia no contexto da transição do feudalismo ao capitalismo.

Na historiografia marxista tornou-se muito conhecido o debate entre Maurice Dobb e Paul Sweezy a respeito dessa transição. Considerando o modo de produção feudal de maneira estática, Sweezy argumentou que a transição havia tido como “agente motor” os enclaves urbanos e a expansão do comércio de longa distância entre estes, a qual teria dissolvido a economia rural feudal (SWEEZY, 1977, p. 41-43). Dobb, por sua vez, acreditava que as forças dinâmicas da transição deveriam ser p r o c u r a d a s n o i n t e r i o r d a e c o n o m i a a g r á r i a , c u j o desenvolvimento teria provocado a diferenciação do campesinato e a emergência do pequeno produtor (DOBB, 1977, p. 60-62). Como argumentou John Merrington (1977), o feudalismo na Europa ocidental não era uma economia simplesmente rural e sim uma na qual a economia agrária encontrava-se fortemente imbricada com a produção e as trocas urbanas. Essa concepção mais abrangente e plástica da economia feudal é a que parece predominar no pensamento de Marx, o qual tende a ver a transição ao

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capitalismo como uma complexa trama de processos que se verificavam tanto no âmbito da economia rural como na vida urbana.

A pequena burguesia como ator social

O uso de variadas expressões para designar os pequenos comerciantes e os pequenos produtores independentes rurais e urbanos atestam essa visão abrangente e plástica. Marx e Engels utilizam três palavras diferentes em alemão, as quais com frequência são traduzidas unicamente e de maneira imprecisa por pequena burguesia: Kleinbürgerschaft, Mittelstand e Pfahlbürgerschaft. Apenas Kleinbürgerschaft tem o sentido exato de pequena burguesia. Mittelstand significa exatamente os estratos médios da sociedade e remete evidentemente aos Stände, os estamentos sociais do antigo regime predominantes ainda em muitas regiões da Alemanha na primeira metade do século XIX. A terceira expressão, Pfahlbürgerschaft, é usada pouquíssimas vezes e literalmente significa “burguesia de paliçada”, ou seja, os habitantes que residiam entre os muros do castelo medieval a paliçada que o circundava, os quais, geralmente, viviam do comércio. O burguês de paliçada era um pequeno comerciante na Idade Média. Esta era uma forma social da Europa do Leste e do Norte, e por essa razão foi utilizada por Marx e Engels geralmente com referência ao contexto alemão. Quando fazem referência ao processo geral de transformação das corporações medievais esses autores utilizam as palavras Kleinbürgerschaft e Mittelstand.

Em A ideologia alemã esses autores utilizam a noção de pequena-burguesia (Kleinbürgerschaft) a qual se distingue da grande burguesia (die große Bourgeoisie ou großbürgerlich). O nascimento dessa pequena burguesia teria ocorrido no interior das corporações medievais, ou seja, no desenvolvimento e na posterior decomposição das formas sociais tipicamente feudais, particularmente as corporações de ofício. Assim,

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“O comércio e a manufatura criaram a grande burguesia (die große Bourgeoisie), enquanto nas corporações concentrava-se a pequena burguesia [die Kleinbürgerschaft], que então já não dominava mais nas cidades como antes, mas tinha de se curvar ao domínio dos grandes comerciantes e manufatureiros. Daí a decadência das corporações, tão logo entraram em contato com a manufatura.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 57)

Esta origem da pequena burguesia no interior das corporações de ofício teria estabelecido uma importante distinção espacial. A burguesia nascente, proveniente do desenvolvimento do comércio encontraria seu lugar nas “cidades marítimas”, as q u a i s “ t o r n a r a m - s e e m c e r t a m e d i d a a b u r g u e s a d a s e civilizadas”. Por sua vez, “a maioria da pequena burguesia [die größte Kleinbürgerei]” teria se concentrado “nas cidades fabris [den Fabrikstädten]” (MARX; ENGELS, 2007, p. 59). Marx e Engels consideravam que neste o estágio as novas relações sociais nascentes se desenvolviam sob o solo das forças produtivas e culturais previamente existentes. O velho coexistia com o novo; novas formas sociais se revelavam ao mesmo tempo que as antigas ainda existiam.

O Manifesto comunista não é tão claro a respeito da origem da burguesia e da pequena burguesia. A noção de pequeno burguês [der Kleinbürger] parece ser utilizada para nomear os pequenos comerciantes que, na periferia do sistema feudal, mas a ele integrados, deram origem a uma nova burguesia. Assim, o “servo, em plena servidão, conseguia tornar-se membro da c o m u n a , d a m e s m a f o r m a q u e o p e q u e n o b u r g u ê s [ d e r Kleinbürger], sob o jugo do absolutismo feudal, elevava-se à categoria de burguês” (MARX; ENGELS, 1998, p. 50). Mas nesse texto, quando fizeram referencia aos artesãos que no processo de dissolução das corporações deram lugar ao pequeno burguês, a noção utilizada não foi a de Kleinbürger mas a de Mittelstand, uma noção ausente em A ideologia alemã. Era, assim, exposto sinteticamente o processo de dissolução das corporações, de transformação da oficina em manufatura e de

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substituição dos mestres das corporações pela pequena burguesia: “A camada média industrial [den industriellen Mittelstand] suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina” (MARX; ENGELS, 1998, p. 41).[1]

Em outras passagens essas camadas médias assumem um sentido mais amplo e passam a incorporar “pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses” (MARX; ENGELS, 1998, p. 49). O que parece sobressair dessas diferentes noções é que, geralmente Marx diferenciava a pequena burguesia da classe dos camponeses e que ambas fariam parte, juntamente com outros contingentes sociais, das camadas ou estratos médios da sociedade. É o que dá a entender também uma passagem escrita poucos anos mais tarde, em A luta de classes na França, na qual fez referência aos “estratos intermediários da sociedade burguesa, a pequena burguesia e a classe camponesa [die mittleren Schichten der bürgerlichen Gesellschaft, Kleinbürgertum und Bauernklasse]” (MARX, 2012, p. 48). Essa tensão entre os conceitos de Kleinbürgerschaft e Mittelstand revela as múltiplas origens que Marx e Engels atribuíam às novas relações sociais tipicamente capitalistas. Estas teriam se constituído por meio de uma complexa confluência histórica de formas sociais que se encontravam tanto dentro da vida social tipicamente feudal, como fora desta ou à sua margem. Em muitos casos, como nos importantes centros comerciais da Alemanha e do Norte da Itália, a pequena burguesia comercial e industrial possuíam origens bastante distintas. Em outros, uma origem comum as unia imediatamente. Esse processo se desenvolveu ao longo de séculos de maneira espacialmente diferenciada. As imagens mitológicas da Idade Média como idade das trevas, construída pela historiografia b u r g u e s a d o f i n a l d o s é c u l o X I X , s ã o u m a b a r r e i r a epistemológica que impede o reconhecimento da intensa dinâmica social existente nos centros urbanos da Baixa Idade Média e

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das profundas mudanças provocadas pela revolução agrícola na Inglaterra do século XVI.[2] Em O Capital as várias formas de desenvolvimento da indústrias moderna são tratadas de maneira nuançada, demonstrando a inexistência de uma única via de desenvolvimento econômico e social.

Liquidação e resilência

Embora as diversas e complexas origens sociais essas camadas médias ou estratos intermediários se caracterizam sempre, no texto de Marx, pela posse ou o controle de pequenas parcelas dos meios de produção e pela exploração da própria força de trabalho, daquela dos membros do grupo familiar ou de um pequeno número de trabalhadores associados. O destina da pequena burguesia está fortemente associado às transformações sociais decorrentes dos processos de centralização e concentração do capital, as quais representariam uma ameaça crescente sobre a pequena burguesia: “A supremacia industrial e política da burguesia ameaça à pequena burguesia das cidades [Pfahlbürgerschaft] de destruição certa – de um lado, pela concentração dos capitais, de outro, pelo desenvolvimento de um proletariado revolucionário” (MARX; ENGELS, 1998, p. 65)[3] Analisando os processos sociais que se verificavam tanto na Inglaterra como na Europa continental, Marx e Engels acreditaram que o desenvolvimento de novas relações sociais empurraria os membros das camadas médias em direção ao contingente social do proletariado:

“As camadas inferiores da classe média de outrora, os pequenos industriais, pequenos comerciantes e pessoas que possuem rendas [rentiers], artesãos e camponeses [Die bisherigen kleinen Mittelstände, die kleinen Industriellen, Kaufleute und Rentiers, die Handwerker und Bauern], caem nas fileiras do proletariado: uns porque seus pequenos capitais, não lhes permitindo empregar os processos da grande indústria, sucumbiram na concorrência com os grandes capitalistas, outros porque sua habilidade profissional é

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depreciada pelos novos métodos de produção.” (MARX; ENGELS, 1998, p. 47)

Mas o resultado desse processo histórico foi mais desigual do que estes autores previram. Nos países capitalistas centrais o desenvolvimento da indústria moderna praticamente liquidou os pequenos industriais e os artesãos, camadas sociais que se tornaram cada vez mais residuais. Mas o mesmo não pode ser dito dos camponeses e dos pequenos comerciantes, grupos sociais que revelaram em alguns países uma resiliência muito superior à esperada.

Referências bibliográficas

BRENNER, Robert. Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe. Past & Present, n. 70, p. 30-75, 1976.

DOBB, Maurice. Uma réplica. In: HILTON, Rodney et al. A transição do feudalismo para o capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 57-66.

MARX, Karl. As lutas de classes na França: de 1848 a 1850. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.

______. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MERRINGTON, John. A cidade e o campo na transição para o capitalismo. In: HILTON, Rodney et al. A transição do feudalismo para o capitalismno. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 171-196.

SWEEZY, Paul. Uma crítica. In: HILTON, Rodney et al. A transição do feudalismo para o capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 33-56.

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WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 2004.

[1] Sempre que julgamos necessário para tornar mais preciso o texto modificamos a tradução citada.

[2] O reconhecimento dos efeitos dessa revolução agrícola no desenvolvimento do capitalismo industrial é a base da inovadora abordagem de Robert Brenner (1976) que revolucionou os estudos sobre a transição do feudalismo para o capitalismo. [3] Como Marx deixará claro em O capital, tratam-se de dois processos e não apenas um: a centralização dos capitais, resultado da competição entre diversos capitalistas, e a concentração de capitais, resultado da expropriação da força de trabalho. Esta distinção entre concentração e centralização não se encontrava ainda desenvolvida em 1848, quando Marx e Engels redigem o Manifesto comunista.

Eleições, individualismo e

classes sociais

Wagner Miquéias F. Damasceno

A eleição burguesa é um terreno desfavorável para os

trabalhadores, e é assim, especialmente, por quatro motivos: 1) por tentar dar uma saída política que não ponha em questão a integralidade do capitalismo – em nosso caso, sempre

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respeitando os marcos do regime democrático burguês; 2) por incitar sempre uma ideologia de cunho individualista; 3) pela ideia de igualdade de cada voto e 4) pelo financiamento

privado das candidaturas burguesas. Duas falas ajudam a

ilustrar o primeiro ponto. A primeira delas foi proferida por Dilma Roussef, logo após a vitória eleitoral no segundo turno deste ano: “Minhas amigas e meus amigos, toda eleição tem que ser vista como uma forma pacífica e segura de mudança de um país. Toda eleição é uma forma de mudança, principalmente para nós que vivemos numa das maiores democracias do mundo”

(DISCURSO, 2014). A segunda fala também é recente e vem de um analista do El País TV sobre a conjuntura política espanhola e o papel do Podemos, partido que quer ser o porta voz dos

indignados que ocuparam a praça Puerta del Sol em Madrid, na Espanha, em 2011: “Se o espetacular crescimento do Podemos responde à magnitude da ira cidadã, imaginem essa ira cidadã sem o Podemos? Imaginem essa ira descontrolada, solta, nas ruas? Os que criticam muito o Podemos deveriam começar por reconhecer o valor que tem a contribuição do Podemos à

condução de toda essa ira dentro das margens da democracia” (GABILONDO, 2014).

Após junho de 2013 registrar as maiores manifestações

populares da história brasileira, foi prudente da parte do PT qualificar as eleições como a forma segura e democrática de se fazer mudanças. Vale lembrar que o próprio Tribunal Superior Eleitoral lançou, ainda no início de 2014, uma campanha

denominada “Vem pra urna”; nas palavras do então presidente do TSE e Ministro do Superior Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello: “A época não enseja o minimalismo judicial, mas a atuação da justiça eleitoral, e também caminharemos para uma propaganda institucional cujo mote será: ‘Não vem pra rua, vem pra urna!’” (TSE, 2014).

A segunda fala é uma sóbria análise feita por um destacado órgão da mídia burguesa espanhola, El País, e expõe as

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ira popular sem um partido capaz de conduzi-la para dentro dos marcos da democracia?

As duas falas buscam canalizar os anseios populares para dentro da democracia burguesa, tentando retirar as massas da principal arena política, as ruas. De um lado há a candidata, reeleita, do PT, representando um governo da burguesia de caráter frente populista. Do outro, há um jovem partido de viés reformista que não assume em seu programa o firme combate ao capitalismo, mas apenas a algumas de suas consequências (PODEMOS, 2014). Ambos representam instrumentos que a

burguesia utiliza em diferentes situações em que é preciso ceder alguns anéis, “para não perder os dedos”.

O outro aspecto das eleições diz respeito à ideologia burguesa de cunho individualista que nos instrui a ver em cada

candidatura um projeto individual, e não um projeto de classe ou frações de classe. Assim, no geral, vemos Marina Silva e não a burguesia ruralista e financeira; vemos Aécio e Dilma, e não empreiteiros, ruralistas e banqueiros. O mesmo acontece com os candidatos da esquerda socialista, afinal, não são os metalúrgicos, peões e professores, mas o Zé Maria que se apresenta. No entanto, diferentemente das candidaturas da burguesia que se beneficiam ocultando seu conteúdo de classe, as candidaturas da esquerda socialista são prejudicadas por terem que reverter a lógica eleitoral e revelar seu conteúdo de classe. Em outras palavras, trazem consigo uma ideologia cujo conteúdo coletivo é enquadrado em formas individualistas. Em decorrência, torna-se quase inescapável que a empatia com este ou aquele candidato oriente a escolha do eleitor. Nesse sentido, embora Marina “andasse com más companhias”,

acreditou-se que “se ela fosse firme e continuasse sendo quem era, faria um bom governo”. A pressão do voto útil também expressou essa “metodologia individualista” ao fazer com que muitos acabassem decidindo por aquela que lutava durante a juventude e não por aquele que sempre fora um bon vivant.

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E nisso há, também, uma lógica formal rasteira: A é igual a A, ou seja, assim como o PT deve ser admitido como o mesmo (dos anos de 1980 a 2014), Dilma também deveria ser vista como a mesma (do VAR-Palmares à cabeça da Frente Popular).

Como observara Trotsky, “o axioma A é igual a A aparece por um lado como o ponto de partida de todo o nosso conhecimento é, por outro, como o ponto de partida de todos os seus erros”. Afinal, a lei da identidade tem duas faces, ou seja, é

verdadeira e falsa (NOVACK, 2005).

A lógica formal impede de vermos a contradição nascer no seio de algo. Nas palavras de Novack, a lógica formal “a toda

pergunta responde com um sim categórico ou um não

incondicional. Entre a verdade e a mentira não há pontos intermediários, não há transições aos escalões que as

conectem” (2005, p. 43). Em nosso caso, a lógica formal impede que compreendamos que o maior partido de esquerda brasileiro tenha se degenerado e tornado um partido da burguesia. Essa lógica também impede que compreendamos a passagem da jovem guerrilheira, adepta de ações isoladas da classe, à presidente de um partido da burguesia, o PT.

Na política, esse método orientado por uma ideologia

individualista e anti-dialético gera problemas. Afinal, embora o reacionário Jair Bolsonaro apoiasse o PSDB, o PRB, seu

partido, era aliado da Dilma do PT. E, embora, Aécio do PSDB fosse apoiado pelo homofóbico Marco Feliciano, Dilma do PT, por sua vez, era apoiada pelo PRB do Bispo Crivella, sobrinho do Bispo Edir Macedo. Aliás, no quis diz respeito à bancada religiosa, é importante lembrar que Dilma Roussef, em julho deste ano, figurou por cerca de duas horas na inauguração do Templo de Salomão da Igreja Universal, em São Paulo, junto com outras autoridades, numa demonstração de prestígio e poder desse setor (COM, 2014).[1] O que nos leva a ajuizar que a “onda conservadora” não é uma variável independente do PT. O terceiro ponto diz respeito à ideia de igualdade propalada

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nas democracias burguesas. Nas sociedades capitalistas a igualdade é sempre abstrata, isto é, não é real. A noção de igualdade entre todos os indivíduos é um ardil ideológico que tenta mascarar a desigualdade concreta entre as classes

sociais e os indivíduos que as compõem. Afinal, que tipo de igualdade poderia advir de uma sociedade dividida em classes sociais?!

À guisa de exemplo, no primeiro semestre de 2014, o TSE (2014a) produziu uma odiosa campanha que foi veiculada nas rádios brasileiras com o fito de incentivar sertanejos e

ribeirinhos a participarem das eleições, afirmando que o voto deles possuía o mesmo peso que o do Zezé di Camargo, agro-empresário, cuja fortuna estimada é da ordem de centenas de milhões de reais (cf. 1º LEILÃO, 2014).

É evidente que cada voto (unidade) possui, formalmente, o mesmo valor contábil e isso, a princípio, colocaria os

trabalhadores em vantagem, já que são em maior número do que os burgueses. Entretanto, a sociedade não é uma simples união de indivíduos, mas é composta por classes sociais que, por sua vez, ocupam distintos papéis na produção.

A ideologia de cunho individualista nos orienta a

desconsiderar as relações sociais e os compromissos que os candidatos contraem com empresários, banqueiros e ruralistas, fazendo com que impere uma persistente ideia de que são apenas pessoas competindo por um cargo político. Tomados

individualmente, os burgueses são numericamente inferiores aos trabalhadores, entretanto, a burguesia constitui-se numa

poderosa classe que é capaz de dar existência e abrangência a seus candidatos, inundando as cidades com materiais de seus candidatos, pondo-os nos programas de rádio e televisão pelo país e pagando centenas – às vezes milhares – de cabos

eleitorais.

Um agro-empresário como Zezé di Camargo possui recursos

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político que assegure seus interesses, suas propriedades e seus investimentos, que, por sua vez, se chocam com as necessidades e interesses de sertanejos e ribeirinhos, por terra, trabalho, direitos sociais e preservação do meio ambiente.

O financiamento privado nas campanhas políticas assegura que a oferta de candidatos da burguesia seja ampla e forte o

suficiente para suplantar qualquer candidatura da classe trabalhadora. Seus vultuosos recursos e influência social

(através de seus postos de comando, seus aparelhos ideológicos etc.) proporcionam uma espécie de compra de votos no atacado, afinal, uma classe numericamente pequena não pode depender de votos individuais, por isso, tem que ir para o atacado. Por mais que a compra de voto no varejo (aqueles crimes de compra de voto por cinquenta reais, ou por alguma outra coisa de pouca monta) seja proibida, o que decide as eleições, o que garante milhares – e até milhões de votos – é legalizado, na forma do financiamento das campanhas pelas empresas.

Se as eleições fossem um campeonato de futebol, os

patrocinadores que estampariam os uniformes do PSDB e do PT seriam os mesmos: banqueiros, empreiteiros, industriais e latifundiários! Isso fez com que a burguesia tivesse vencido as eleições, de fato, com um turno de antecipação, pois, embora PSDB e PT se digladiassem na finalíssima do 2º turno, os dois partidos já estavam em seus “bolsos” (cf. TRÊS, 2014). Referências bibliográficas

1º LEILÃO É o Amor movimenta R$ 4, 928 milhões. Globo Rural On-line, 12 out. 2011. Disponível em: http://glo.bo/1xAD1OM COM a presença de Dilma, Templo de Salomão é inaugurado em São Paulo. R7, 31 jul. 2014. Disponível em: http://bit.ly/1kv2nIV DISCURSO de Dilma Rousseff após ser reeleita Presidente do Brasil. 2014. Disponível em:

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GABILONDO, Iñaki. Se imaginan? La Voz de Iñaki. 3 nov. 2014. Disponível em: http://bit.ly/1tacZKL

NOVACK, George. Introdução à lógica marxista. São Paulo: Sundermann, 2005.

PODEMOS. Documento final del programa colaborativo. 2014. Disponível em: http://bit.ly/1n3SF0y

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http://bit.ly/1zXRmTO

TSE. Vem pra urna: campanha do TSE incentiva jovens a votar nas Eleições 2014. 2014. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=Un9M8jgQYHQ

TSE. Justiça eleitoral realiza campanha para incentivar o voto de sertanejos e ribeirinhos. 2014a. Disponível em:

http://bit.ly/1xl67jI

[1] Com direito à execução do hino do Estado de Israel num templo religioso

O conceito de trabalho

produtivo em Marx

André Coutinho Augustin Um dos conceitos centrais que Marx usa para explicar o modo de produção capitalista é o de trabalho produtivo. No entanto, ele também é alvo de grandes polêmicas entre os marxistas.

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Para entender o que é trabalho produtivo para Marx é preciso antes deixar claro que esse é um conceito criado para explicar o que é trabalho produtivo no capitalismo, ou seja, é um conceito que possui um caráter social e histórico. Quando o processo de trabalho é analisado “em abstrato, independente de suas formas históricas, como processo do homem com a natureza” [1], pode parecer que o trabalho produtivo é aquele que produz valores de uso. Essa é a visão inicialmente apresentada no capítulo V do livro I d’O Capital:

“Para representar seu trabalho em mercadorias, ele tem de representá-lo, sobretudo, em valores de uso, em coisas que sirvam para satisfazer as necessidades de alguma espécie. É, portanto, um valor de uso particular, um artigo determinado, que o capitalista faz o trabalhador produzir. A produção de valores de uso ou bens não muda sua natureza geral por se realizar para o capitalista e sob seu controle. Por isso, o processo de trabalho deve ser considerado de início independente de qualquer forma social determinada. [2]

[…]

Considerando-se o processo inteiro de trabalho do ponto de vista de seu resultado, então aparecem ambos, meio e objeto de trabalho, como meios de produção, e o trabalho mesmo como trabalho produtivo.” [3]

Mas logo após esse trecho, o leitor é alertado, em uma nota de rodapé, que “essa determinação de trabalho produtivo, tal como resulta do ponto de vista do processo simples de trabalho, não b a s t a , d e m o d o a l g u m , p a r a o p r o c e s s o d e p r o d u ç ã o capitalista”. Ou seja, embora a produção de valores de uso seja necessária para que um trabalho seja considerado produtivo, ela não é suficiente para classificar um trabalho como tal no capitalismo. O assunto é retomado no capítulo XIV (Mais-valia absoluta e relativa) do mesmo livro. Quando se considera a produção capitalista,

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“o conceito de trabalhador produtivo se estreita. A produção capitalista não é apenas a produção de mercadorias, é essencialmente a produção de mais-valia. O trabalhador produz não para si, mas para o capital. Não basta, portanto, que produza em geral. Ele tem que produzir mais-valia. Apenas é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista ou serve à autovalorização do capital.” [4]

É sabido que a mercadoria é uma unidade dialética entre valor (que se manifesta como valor de troca) e valor de uso. Embora em formas não capitalistas de organização social o objetivo da produção possa ser a criação de valores de uso, uma das características principais do capitalismo é que a produção é voltada para a criação de valor[5]. E é importante lembrar que o valor de uso da mercadoria força de trabalho nesse sistema é justamente criar valor. Portanto, a definição de trabalho produtivo não está relacionada ao trabalho concreto (que produz valor de uso), mas ao trabalho abstrato, pois é o trabalho abstrato que cria valor e, consequentemente, pode criar mais-valia. Ou seja, produtivo é aquele trabalho que é produtivo do ponto de vista do capital, pois o valoriza. São duas coisas diferentes que não devem ser confundidas:

“Sólo la estrechez mental burguesa, que considera las formas de producción capitalistas como formas absolutas – y, por lo tanto, como formas de producción eternas – puede confundir el problema de qué es el trabajo productivo desde el punto de vista del capital con el problema de cuál trabajo es productivo en general”.[6]

Isso significa que não é possível criar outra definição de trabalho produtivo, baseada no trabalho concreto? Não, significa apenas que essa não é a definição de Marx. Pode ser útil para algum autor, com outras preocupações, criar uma definição baseada no conteúdo material do trabalho. Mas é preciso ter claro que seria um conceito diferente, baseado em

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outra concepção teórica e outros objetivos. Nas palavras de Rubin,

“não perguntamos se a definição de Marx sobre trabalho produtivo, baseada na análise da forma social do trabalho, é correta, ou se são corretas as definições convencionais dos t r a t a d o s d e E c o n o m i a P o l í t i c a , b a s e a d a s n a “indispensabilidade”, na “utilidade”, no “caráter material” do trabalho, ou em seu papel no consumo pessoal e produtivo. […] Afirmamos apenas que a concepção de Marx é diferente dessas concepções convencionais, e não está compreendida nas mesmas”. [7]

No mesmo parágrafo citado anteriormente, em que diz que “apenas é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista ou serve à autovalorização do capital”, Marx cita um exemplo que deixa claro que seu critério não é baseado no trabalho concreto, ou seja, o importante não é o resultado material da produção:

“Se for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção material, então um mestre-escola é um trabalhador produtivo se ele não apenas trabalha a cabeça das crianças, mas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário. O fato de que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensinar, em vez de numa fábrica de salsichas, não altera nada na relação. O conceito de trabalho produtivo, portanto, não encerra de modo algum apenas uma relação entre atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também uma relação de produção especificamente social formada historicamente, a qual marca o trabalhador como meio direto de valorização do capital”. [8]

Nem todo professor é produtivo: um professor de uma escola pública faz o mesmo trabalho concreto que um professor de uma escola privada. O trabalho do primeiro, entretanto, não valoriza o capital, enquanto o segundo o faz. Portanto, o

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professor da escola pública é improdutivo, enquanto o professor da escola privada é produtivo[9].

Um dos motivos que leva a interpretações equivocadas sobre o trabalho produtivo é a confusão que se faz em relação ao conceito de capital industrial. Para Marx, capital industrial é aquele que passa pelo processo D – M {MP; FT} …P… M’ – D’. Ou seja, é o capital investido por um capitalista na compra das mercadorias força de trabalho (capital variável) e meios de produção (capital constante). Após essa primeira etapa, de circulação, acontece o processo de produção, no qual uma nova mercadoria, M’, é produzida. M’ é levada ao mercado, entrando na esfera da circulação, e é vendida por D’ [10]. Nesse processo, o trabalho transfere o valor do capital constante para a nova mercadoria, reproduz o valor do capital variável e, além disso, produz um mais-valor, a diferença entre D’ e D, que é apropriado pelo capitalista. Qualquer capital que passe por esse processo, é chamado de capital industrial:

“As duas formas que o valor-capital adota dentro de suas fases de circulação são as de capital monetário e capital-mercadoria; sua forma correspondente à fase de produção é a de capital produtivo. O capital que no transcurso do seu ciclo global adota e volta a abandonar essas formas, e em cada uma cumpre a função que lhe corresponde, é o capital industrial – industrial, aqui, no sentido de que abarca todo ramo de produção capitalista.” [11]

Marx deixa claro que o capital industrial não se restringe ao sentido estrito de indústria (setor secundário), mas a todos os setores que produzem de forma capitalista, podendo ser também agricultura e serviços. E diz que é produtivo aquele trabalhado empregado pelo capital industrial na produção, ou seja, aquele trabalho que se converte diretamente em capital variável: “a diferença entre o trabalho produtivo e o improdutivo consiste tão somente no fato de o trabalhado trocar-se por dinheiro como dinheiro ou por dinheiro como

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capital”[12]. Portanto, todo trabalho que se converte em capital variável durante a produção de mercadorias agrícolas, industriais ou de serviços e, com isso, valoriza o capital é trabalho produtivo. A diferença dos serviços é que o seu consumo acontece ao mesmo tempo que a produção. Ou seja, o ciclo D – M {MP;FT} …P… M’ – D’ se transforma em D – M {MP; FT} …P – D’. Mas isso não altera o modo como se valoriza o capital, como explica Marx usando o exemplo dos transportes:

“Existem, porém, ramos autônomos da indústria, nos quais o produto do processo de produção não é um novo produto material, não é uma mercadoria. Entre eles, economicamente importante é apenas a indústria da comunicação[13], seja ela indústria de transportes de mercadorias e pessoas propriamente dita, seja ela apenas transmissão de informações, envio de cartas, telegramas etc. […] O efeito útil só é consumível durante o processo de produção; ele não existe como uma coisa distinta desse processo […] Mas o valor de troca desse efeito útil é determinado, como o das demais mercadorias, pelo valor dos elementos de produção consumidos para obtê-lo (FT e MP) somados à mais-valia, criada pelo mais-trabalho dos trabalhadores empregados na indústria do transporte.”[14]

O caso dos transportes pode gerar algumas confusões, afinal, foi dito que o trabalho produtivo é usado na produção. Mas o transporte não faz parte da circulação? A resposta para essa dúvida pode ser encontrada no livro II d’O Capital, que trata do processo de circulação do capital, mais especificamente no capítulo VI, sobre os custos de circulação. Nesse capítulo, Marx divide os custos de circulação em dois grupos. No primeiro, estão incluídos os “custos puros de circulação” como, por exemplo, os custos envolvidos na compra e na venda de mercadorias. Essa etapa não cria valor, apenas muda a forma do capital. É onde o capital-mercadoria se transforma em capital monetário, permanecendo com o mesmo valor. Portanto, o trabalho efetuado na compra e na venda é improdutivo. Se esse

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processo é realizado pelo mesmo capitalista responsável pela produção ou por outro capitalista, isso não altera o caráter improdutivo do trabalho ali empregado.

O capitalista responsável pelos custos puros de circulação pode ter lucro, mas isso não significa que está sendo gerada mais-valia. Na verdade, ele está se apropriando de uma parte da mais-valia gerada na produção. Em outras palavras, “o tempo empregado nisso é um custo de circulação que nada agrega aos valores convertidos. É o custo necessário para transpô-los da forma-mercadoria para a forma-dinheiro” [15]. Isso não significa que esse trabalho não ajude, indiretamente, a valorizar o capital:

“O capital comercial não cria, portanto, nem valor nem mais-valia, isto é, não diretamente. À medida que contribui para encurtar o tempo de circulação, pode ajudar a aumentar indiretamente a mais-valia produzida pelo capitalista industrial. À medida que ajuda a ampliar o mercado e medeia a divisão do trabalho entre os capitais, portanto capacita o capital a trabalhar em escala mais ampla, sua função promove a produtividade do capital industrial e sua acumulação. À medida que encurta o tempo de circulação, eleva a proporção de mais-valia para o capital adiantado, portanto a taxa de lucro. À medida que reduz a parte do capital confinada na esfera da circulação, faz aumentar a parte do capital diretamente empregada na produção”.[16]

O segundo custo puro de circulação citado por Marx é a c o n t a b i l i d a d e , i n c l u i n d o n ã o a p e n a s o t r a b a l h o n a contabilidade, mas também “caneta, tinta, papel, escrivaninha, custos de escritório” [17]. O trabalho na contabilidade é tão improdutivo quanto o na compra e venda, com a diferença que o segundo é necessário em qualquer forma de produção de mercadorias, enquanto o primeiro ganha importância quando a produção “perde seu caráter puramente individual; é, portanto, mais necessária na produção capitalista do que na produção

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dispersa do empreendimento artesão e camponês, mais necessária na produção comunitária do que na capitalista”[18]. Embora Marx diga explicitamente que o trabalho na contabilidade é improdutivo, não fica claro se ele está se referindo a todo trabalho contábil ou apenas aquele referente à circulação. Rubin, que diz que essa passagem d’O Capital se caracteriza por sua “extrema obscuridade”, considera que se o trabalho de contabilidade estiver relacionado à produção é produtivo: “o trabalho do contador só é improdutivo quando realiza a metamorfose formal do valor – a transferência do direito de propriedade do produto, o ato de compra e venda em sua forma ideal” [19]. Já para Singer, “está claro que, na concepção de Marx, a contabilidade é, em si mesma, improdutiva” [20], embora necessária. Isso se aplicaria a todo trabalho de contabilidade, não apenas à contabilidade na circulação, como diz Rubin. Para resolver essa questão, é necessário analisar o conceito de trabalhador coletivo de Marx, que será apresentado mais adiante.

O último custo puro de circulação citado é o dinheiro, pois “essas mercadorias que funcionam como dinheiro não entram no consumo individual nem no produtivo. São trabalho social fixado numa forma em que serve como mera máquina de circulação” [21]. Logo, o trabalho gasto na produção e na constante reposição do dinheiro é improdutivo.

Os três custos de circulação expostos até agora (os custos puros de circulação), relacionados à mera mudança na forma do valor, não entram no valor da mercadoria. Mas esse não é o caso do segundo grupo de custos de circulação, onde estão incluídos os custos de conservação e de transporte. Esse segundo grupo é formado por atividades que, embora estejam dentro da circulação, são processos de produção: “indústria dos transportes, armazenamento e distribuição das mercadorias – numa forma em que podem ser distribuídas – devem ser considerados como processos de produção que persistem dentro do processo de circulação”[22].

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A função pura da circulação é transferir o direito de propriedade de uma pessoa para a outra. “É uma transição ideal ou formal, não real” [23]. Já o transporte e a conservação das mercadorias são uma “função real”, fazem parte da produção. Isso não significa que os dois tipos de função não possam ser feitos pela mesma empresa ou até pela mesma pessoa: “o trabalho do vendedor numa loja serve à função real de conservação, desempacotamento, empacotamento, transporte, etc., e às funções formais de compra e venda” [24]. Rubin ressalta que o critério não é que as “funções reais” produzam modificações nos bens materiais e as “funções formais” não. Ele dá o exemplo do circo, onde o palhaço, apesar de não produzir modificações em bens materiais, é um trabalhador produtivo, pois é empregado pelo capital em fase de produção, enquanto o bilheteiro do mesmo circo é improdutivo, pois está em uma atividade da circulação, “contribui apenas para transferir o ‘direito de assistir espetáculo’, o direito de gozar as pilhérias do palhaço, de uma pessoa (empresário) para outra (o público)”[25].

Assim, só é produtivo aquele trabalhador que atua na produção, incluindo os processos de produção que acontecem no interior da circulação. Mas todos os trabalhadores envolvidos na produção são produtivos? Alguns autores consideram que só são produtivos aqueles que agem diretamente alterando o valor de uso da mercadoria, os demais seriam improdutivos. Um exemplo d e s s a p o l ê m i c a é o j á c i t a d o c a s o d o t r a b a l h o n a contabilidade. O conceito de trabalhador coletivo apresentado por Marx deixa mais clara essa questão:

“com o desenvolvimento da subsunção real do trabalho ao capital ou do modo de produção especificamente capitalista, não é o operário industrial, mas uma crescente capacidade de trabalho socialmente combinada que se converte no agente (Funktionär) real do processo de trabalho total, e como as diversas capacidades de trabalho que cooperam e formam a máquina produtiva total participam de maneira muito diferente

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no processo imediato da formação de mercadorias, ou melhor, dos produto – este trabalha mais com as mãos, aquele trabalha mais com a cabeça, um como diretor (manager), engenheiro (ergineer), técnico etc, outro, como capataz (overloocker), um outro como operário manual direto, ou inclusive como simples ajudante –, temos que mais e mais funções da capacidade de trabalho se incluem no conceito imediato de trabalho produtivo, e seus agentes no conceito de trabalhadores produtivos, diretamente explorados pelo capital e subordinados em geral a seu processo de valorização e produção. Se se considera o trabalhador coletivo, de que a oficina consiste, sua atividade combinada se realiza materialmente (materialiter) e de maneira direta num produto total que, ao mesmo tempo, é um volume total de mercadorias;

é absolutamente indiferente que a função de tal ou qual trabalhador – simples elo desse trabalho coletivo – esteja mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto.”[26]

Considerando o trabalhador coletivo, portanto, não importa se o trabalho é manual ou não, se age diretamente mudando o valor de uso da mercadoria ou não. Participando do processo de produção e gerando mais-valia, será trabalho produtivo.

E os produtores que trabalham com seus próprios meios de produção, os camponeses e os artesãos? Seriam produtivos ou improdutivos? A resposta de Marx é: nem um nem outro, já que sua produção não participa do modo capitalista de produção. Se o trabalho produtivo se troca como “dinheiro como capital” e o trabalho improdutivo se troca por “dinheiro como dinheiro”, camponeses e artesãos não se enquadram em nenhuma das duas possibilidades, pois eles não vendem trabalho, vendem mercadorias.

Referências bibliográficas

MARX, Karl (1974). Teorías sobre la plusvalía. Buenos Aires: Cartago, v. 1.

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_______ (1983a). O capital: Crítica da Economia Política. O processo de produção do capital. São Paulo: Abril Cultural, v. 1, tomo 1.

_______ (1984). O capital: Crítica da Economia Política. O processo de produção do capital. São Paulo: Abril Cultural, v. 1, tomo 2.

_______ (1983b). O capital: Crítica da Economia Política. O processo de circulação do capital. São Paulo: Abril Cultural, v. 2.

_______ (1986). O capital: Crítica da Economia Política. O processo de global da produção capitalista. São Paulo: Nova Cultural, v. 3, tomo 1.

_______ (1978). O capital. Capítulo VI (inédito). São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas.

RUBIN, Isaak Illich (1980). A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense.

SINGER, Paul (1981). Trabalho produtivo e excedente. Revista de Economia Política, v. 1, n. 1, p. 101-131, janeiro/março.

[1] MARX, 1984, p. 105. [2] Id., 1983a, p. 149 [3] Ibid., p. 151.

[4] Id., 1984, p. 105. Em todas as citações, os grifos em itálico são originais dos autores e os em negrito são meus. [5] Isso não significa que não se produza valores de uso. Pelo contrário, a produção de valores de uso é uma condição prévia para a produção de valor: “nenhuma coisa pode ser valor, sem ser objeto de uso. Sendo inútil, do mesmo modo é inútil o trabalho nela contido, não conta como trabalho e não constitui

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qualquer valor.” (MARX, 1983a, p. 49). [6] Id., 1974, p. 332.

[7] RUBIN, 1980, p. 293. [8] MARX, 1984, p. 105-106.

[9] “De lo que se ha dicho se sigue que la designación del trabajo como trabajo productivo nada tiene que ver con el contenido determinado del trabajo, su utilidad especial, o el valor de uso particular que se manifiesta. El mismo tipo de trabajo puede ser productivo o improductivo”. (MARX, 1974, p. 339).

[10] No nível de abstração do livro II, supõe-se que as mercadorias são vendidas por seus valores. E mesmo se os preços divergirem dos valores, em nada se altera a análise do que é trabalho produtivo ou capital industrial.

[11] MARX, 1983b, p. 41. [12] Id., 1978, p. 79.

[13] Marx não nega que existam outros ramos na mesma situação. Apenas diz que, na sua época, eles não eram importantes. Isso não impede que outros ramos, que adquiriram importância nesses últimos 150 anos, estejam incluídos no mesmo caso da indústria de comunicação. [14] Id., 1983b, p. 42-43. [15] Ibid., p. 97. [16] Id., 1986, p. 211-212. [17] Id., 1983b, p. 98. [18] Ibid., p. 99.

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[20] SINGER, 1981, p. 102. [21] MARX, op. cit., p. 99. [22] Id., 1986, p. 203.

[23] RUBIN, op. cit., p. 289. [24] Ibid., p. 289.

[25] Ibid., p. 188.

[26] MARX, 1978, p. 71-72.

O feitiço do camarote

Ruy Braga

(publicado originalmente no blog da Boitempo)

Em sua teoria da acumulação do capital, M a r x r e c o r r e u a u m “ c o n f l i t o fáustico” para ilustrar a posição do capitalista no interior da estrutura social. Apesar da posse do dinheiro assegurar-lhe vasto poder e prestígio, este não poderia dispor livremente de seu capital como renda:

“Enquanto o capitalista clássico estigmatizava o consumo individual como pecado contra sua função e como uma ‘abstinência’ da acumulação, o capitalista moderno está em condições de conceber a acumulação como ‘renúncia’ ao seu impulso de fruição. ‘Vivem-lhe duas almas, ah! No seio,/Querem trilhar em tudo opostas sendas’ (Goethe)” (Marx, O capital, p.

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668-9).

As leis coercitivas da concorrência simplesmente o obrigavam a transformar parte do valor não pago à classe trabalhadora em meios de produção e salários. Entre o desejo de consumir e a necessidade de reinvestir, o velho mestre do socialismo científico argumentou que a sociedade moderna transformava todos, sem exceção, em servos de um poder alheio e irracional, isto é, a pulsão da acumulação.

Mesmo descontando a simplificação do argumento, ou seja, todos os proprietários são considerados capitalistas industriais, o mais-valor é sempre realizado em sua globalidade e o crédito e o comércio exterior não existem, Marx argumentou que a capitalização seria impossível sem que a burguesia sacrificasse parte de sua liberdade em benefício do reinvestimento. Em termos sociológicos, foi Max Weber quem mais longe chegou nesta vereda ao afirmar que a ascese protestante teria representado um fator-chave na formação do fundo originário de investimento. Em suma, conforme o argumento clássico, a sociedade moderna, ao menos em suas origens remotas, dependeu de certa moderação dos gastos improdutivos.

É bem sabido que Weber e Marx deixaram de identificar resíduos deste comportamento racional entre os burgueses de sua própria época. Este associou, por exemplo, o circuito D-D’, isto é, a valorização do dinheiro pelo movimento do próprio dinheiro, ao coroamento do fetichismo do capital. Uma sociedade balizada por esta irracionalidade fatalmente degradaria seu padrão civilizacional em benefício da universalização da barbárie. A história do século XX em seu interminável calvário de crises, de guerras e de holocaustos, deu-lhe total razão.

Como a crise econômica mundial não nos deixa esquecer, o ciclo da globalização financeira livrou o capitalista até mesmo da memória daquele dilema “fáustico”. Afinal, a acumulação é hoje em dia predominantemente orientada para a compra e a venda de…

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dinheiro! Porque se preocupar com a longa desaceleração econômica que insiste em deprimir a economia mundial se é possível seguir lucrando por meio do financiamento da dívida dos Estados, da privatização do patrimônio público, da especulação financeira ou da imposição de pacotes fiscais de “austeridade” aos trabalhadores?

Se a ascese capitalista não é mais necessária à acumulação e os Estados garantirão os lucros e as rendas financeiras dos dominantes, o que resta a burguesia fazer? A resposta é simples: cair na farra enquanto o resto da sociedade vive da mão para a boca. Aliás, uma reportagem recente publicada pela revista Veja São Paulo sobre os “reis do camarote” da noite paulistana ilustrou à perfeição a natureza parasitária, perdulária, iletrada e patética da burguesia tupiniquim.

O personagem principal da matéria, Alexander de Almeida, é retratado como um incorrigível bon vivant sempre disposto a gastar 50 mil reais em uma única noitada. Quando ficamos sabendo que este senhor é proprietário de um escritório de recuperação de carros cujos clientes são bancos, percebemos a condição de acólito do capital financeiro cuja fortuna acumula-se em razão da desgraça dos devedores.

Evidentemente, o comportamento deste pateta não teria tido maiores consequências não fosse a desfaçatez pornográfica de sua impostura: um vídeo com os “dez mandamentos do rei do camarote” produzido pela “Vejinha” tornou-se viral na internet, escancarando a arrogância cínica e oca dos proprietários de capital:

“Eu gosto mais de tomar vodca, mas a champanhe ‘são’ ‘stats’. (…). Quando a pessoa tá na pista ela é mais um. Agora quando fica no camarote, ela acaba em evidência. O camarote é uma questão de ‘stats’. (…). A conta você sabe como é, né? Ela pode variar de R$ 5 mil até o infinito” (Alexander de Almeida).

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Levando-se em conta o atual recorde de 45% de famílias trabalhadoras endividadas com os bancos, não é de se espantar que tantos tenham se sentido afrontados pelos “mandamentos” deste presbítero da igreja do rentismo. Além disso, não deixa de ser trágico que, em um país onde as lideranças petistas batalham diuturnamente pela conciliação de classes em benefício de super-lucros financeiros, a tarefa histórica de despertar e estimular o ódio contra os capitalistas e seus capachos tenha sido reservada à revista Veja.

Marx e a aposta estratégica

no proletariado

Valério Arcary

“A descoberta do ‘crédito gratuito’ e do ‘Banco do povo’, baseado nele, são as últimas ‘façanhas’ econômicas de Proudhon. (…)Não há dúvida que o crédito, como ocorreu na Inglaterra no princípio do século XVIII, e como voltou a acontecer nesse mesmo país no princípio do XIX, contribuiu para que as riquezas passassem das mãos de uma classe para as de outra (…) Mas é uma fantasia genuinamente pequeno burguesa considerar que o capital que produz juros seja a forma principal do capital, e tratar de converter uma aplicação particular do crédito – una suposta abolição do juro – na base da transformação da sociedade.” [1].

Após a morte de Proudhon em 1865, Marx foi convidado a escrever algo como um epitáfio para o público alemão e, em uma célebre carta, resumiu as suas diferenças históricas. As linhas que comentam a proposta proudhoniana de abolição dos juros e do banco do povo (ideias ainda presentes na polêmica

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da esquerda) são interessantes. Vale a pena observar que Marx não se opõe a essas propostas, e considera até que elas podem ser úteis à luta do proletariado, mas insiste em destacar que elas, se contrapostas a uma estratégia de luta pelo poder como via de transformação da sociedade, seriam uma fantasia. Estas palavras pesam até hoje como uma advertencia contra as ilusões gradualistas.

As conclusões de Marx sobre a transição pós-capitalista, inspiradas nas análises históricas das revoluções francesas de 1789, 1830, 1848 e, sobretudo, da Comuna de Paris de 1871, indicam que a luta pelo controle do poder político e, portanto, do Estado, precederia a luta pela socialização do capital. Este projeto estratégico contrariava tanto as perspectivas gradualistas dos proudonianos, quanto as substitucionistas dos blanquistas. Marx não se identificava nem com o reformismo, nem com o insurrecionalismo, as duas correntes dominantes no socialismo francês de meados do século XIX. Por outro lado tampouco tinha acordo com o programa maximalista antipolítico do anarquista russo Bakhunin. E não estava disposto a ceder diante das concepções reformistas de socialismo de Estado de Lassale, a liderança mais importante do movimento operário alemão dos anos sessenta e setenta do XIX.

No seu tempo, meados do XIX, essa previsão foi uma definição programática central: a necessidade de uma revolução política contra o governo, e de uma revolução social contra o capital, protagonizada pelas massas assalariadas como um sujeito consciente. Por várias razões.

Primeiro porque descartava a possibilidade de uma passagem gradualista ao socialismo, ou seja, uma transição histórico-social sem revolução política. Se a transição histórica do feudalismo ao capitalismo tinha exigido revoluções políticas nacionais, era mais do que provável que uma transição histórica ao socialismo, imensamente mais difícil, porque dirigida contra todas as classes proprietárias, colocaria a

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necessidade de uma revolução internacional. Afinal, os desafios de qualquer mudança econômica social devem ser proporcionais aos seus obstáculos. A contrarrevolução burguesa sendo mais poderosa, e os objetivos da revolução socialista sendo mais grandiosos, seria ingênuo não prever uma época de combates terríveis. O que não significava erradicar a hipótese de que uma revolução política e social triunfante em um Estado mais poderoso poderia favorecer rupturas revolucionárias com menor resistência da classe dominante em Estados vizinhos mais frágeis.

Segundo porque desconsiderava, também, a iniciativa revolucionária de uma organização de conspiradores sem as massas organizadas. Ou seja, a perspectiva de uma insurreição política em que um partido armado substituiria o papel dos organismos de frente única dos trabalhadores. Marx não acreditava na possibilidade de mudar a sociedade sem que os assalariados estivessem mobilizados em trono de um programa contra a propriedade privada. O substitucionismo dos revolucionários blanquistas não era a sua aposta estratégica. Terceiro porque tampouco acreditava no projeto de uma revolução política nacional contra o Estado. A revolução socialista em qualquer nação deveria ser a alavanca da revolução europeia, ou não seria possível vencer. Esta aposta estratégica internacionalista exigia o deslocamento do Estado do capital, mas, simultaneamente, a construção de um Estado de novo tipo, o que o separava irremediavelmente de Bakhunin. O Estado revolucionário, principal instrumento ao serviço da luta mundial contra o capitalismo, deveria ser, também, uma arma para a regulação econômica contra o mercado. Sem um programa anticapitalista qualquer projeto igualitarista estaria condenado a fracassar.

Quarto e, por último, porque o marxismo nunca confundiu estatização da propriedade com socialização do capital. O estatismo da concepção de Lassale foi condenado em um ensaio redigido por Marx depois do Congresso de unificação da sua

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tendência com a lassaleana em Gotha.

Estas diferenças sumariamente expostas, o mais interessante é destacar que existia um acordo estratégico entre as quatro grandes correntes político-ideológicas que rivalizaram com o marxismo a influência sobre o movimento operário nascente. Um acordo sobre o papel chave do proletariado na luta contra o capitalismo.

O caminho percorrido pela luta de classes do século XX foi uma confirmação dos prognósticos programáticos elaborados por Marx e Engels. Não houve uma só experiência de gradualismo que tenha ameaçado a dominação capitalista. Todos os processos revolucionários conduzidos por exércitos-partidos substitucionistas resultaram, desde o início, em regimes burocraticamente deformados, que acabaram, miseravelmente, sendo os instrumentos da restauração capitalista.

Mas a história do século XX foi também, em certa medida, surpreendente. Não porque haja ocorrido algum avanço na direção da socialização do capital por iniciativa de qualquer governo burguês. Não ocorreu a nenhum governo burguês normal, evidentemente, ir além de estatizações que eram úteis à gestão do Estado ao serviço do bom andamento dos negócios privados. Estatizações com indemnizações, por suposto, no maior respeito à propriedade privada. O reformismo não avançou em lugar algum em direção ao socialismo. Todos os governos burgueses “anômalos”, ou seja, de colaboração de classes, em que partidos de base operária e programa socialista participaram, de Millerand na França no início do século XX, até o de Lula no Brasil no início do XXI, demonstraram-se, também, impotentes diante das pressões capitalistas. O barateamento do crédito do governo Dilma, uma proposta de inspiração proudoniana, não significou qualquer turbulência, muito ao contrário: foi saudada pela mais importante representação dos interesses dos industriais brasileiros, a Fiesp.

Referências

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