UMA
UMA PUBPUBLICLICAÇÃO AÇÃO DO DeDO Departpartamenamento dto dee Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina - UFMG e
Medicina - UFMG e da Residência de da Residência de PsiquiatriaPsiquiatria do Hospital das Clínicas - UFMG
do Hospital das Clínicas - UFMG Editor Geral
Editor Geral
Maurício Viotti Daker Maurício Viotti Daker
Diretor Executivo
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Geraldo Brasileiro Filho Geraldo Brasileiro Filho
Comissão Editorial
Comissão Editorial
Alfred Kraus
Alfred Kraus••Antônio Márcio Ribeiro TeixeiraAntônio Márcio Ribeiro Teixeira••BettyBetty
Liseta de Castro Pires
Liseta de Castro Pires ••Carlos Roberto HojaijCarlos Roberto Hojaij •• CarolCarol
Sonenreich
Sonenreich••Cassio Machado de Campos BottinoCassio Machado de Campos Bottino••CletoCleto
Brasileiro Pontes
Brasileiro Pontes••Erikson Felipe FurtadoErikson Felipe Furtado••Irismar ReisIrismar Reis
de Oliveira
de Oliveira••Delcir Antônio da CostaDelcir Antônio da Costa••Eduardo AntônioEduardo Antônio
de Queiroz
de Queiroz•• Eduardo IacoponiEduardo Iacoponi••Fábio Lopes RochaFábio Lopes Rocha ••
Flávio Kapczinski
Flávio Kapczinski ••Francisco Baptista Assumpção Jr.Francisco Baptista Assumpção Jr. ••
Francisco Lotufo Neto
Francisco Lotufo Neto••Hélio Durães de AlkminHélio Durães de Alkmin••HelioHelio
Elkis
Elkis •• Henrique Schützer Del NeroHenrique Schützer Del Nero •• Jarbas Jarbas MoacirMoacir
Portela
Portela •• Jerson Jerson LaksLaks •• John John Christian Christian GillinGillin •• Jorge Jorge
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Paprocki•• José José Alberto Alberto Del Del PortoPorto•• José José Raimundo daRaimundo da
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Silva Lippi •• Luis Guilherme StrebLuis Guilherme Streb •• Michael Schmidt-Michael
Schmidt-Degenhard
Degenhard••Marco Antônio MarcolinMarco Antônio Marcolin••Maria ElizabethMaria Elizabeth
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Uchôa Demichelli •• Mário Rodrigues Louzã NetoMário Rodrigues Louzã Neto ••
Miguel Chalub
Miguel Chalub••Miguel Roberto JorgeMiguel Roberto Jorge••Osvaldo PereiraOsvaldo Pereira
de Almeida
de Almeida •• Othon Coelho Bastos FilhoOthon Coelho Bastos Filho •• PauloPaulo
Dalgalarrondo
Dalgalarrondo••Paulo MattosPaulo Mattos••Pedro Antônio SchmidtPedro Antônio Schmidt
do Prado Lima
do Prado Lima •• Pedro Gabriel DelgadoPedro Gabriel Delgado •• RicardoRicardo
Alberto Moreno
Alberto Moreno •• Roberto PiedadeRoberto Piedade •• Ronaldo SimõesRonaldo Simões
Coelho
Coelho••Sérgio Paulo RigonattiSérgio Paulo Rigonatti••Saulo CastelSaulo Castel••SylvioSylvio
de Magalhães Velloso
de Magalhães Velloso •• Talvane Martins de MoraesTalvane Martins de Moraes ••
Tatiana Tcherbakowsky Nunes de Mourão Tatiana Tcherbakowsky Nunes de Mourão
Editora
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Cooperativa Editora e de Cultura Médica Ltda (Coopmed) Cooperativa Editora e de Cultura Médica Ltda (Coopmed)
Capa, projeto gráfico, composição eletrônica e produção
Capa, projeto gráfico, composição eletrônica e produção
Folium Comunicação Ltda Folium Comunicação Ltda
Periodicidade:
Periodicidade:semestralsemestral
Tiragem:
Tiragem:5.000 exemplares5.000 exemplares
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Casos Clínicos em Psiquiatria Casos Clínicos em Psiquiatria Av. Alfredo Balena, 190 Av. Alfredo Balena, 190
30130-100 - Belo Horizonte - MG - Brasil 30130-100 - Belo Horizonte - MG - Brasil Fone: (31)
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Capa:
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Montagem de auto-retrato de Vincent van Gogh com Montagem de auto-retrato de Vincent van Gogh com retrato de seu psiquatra Dr. Gachet.
retrato de seu psiquatra Dr. Gachet.
Casos Clínicos
Casos Clínicos
em
em
Psiquiatria
Psiquiatria
Sumário
Sumário
Editorial
Editorial
...1...1Auto-relato
Auto-relato
Quinze delírios...2 Quinze delírios...2Artigos Originais
Artigos Originais
Síndrome de Kleine-Levin: consideraciones diagnósticas y Síndrome de Kleine-Levin: consideraciones diagnósticas y
terapéuticas...10 terapéuticas...10
Pilar Sierra San Miguel, Lorenzo Livianos Aldana, Luis Rojo Moreno
Pilar Sierra San Miguel, Lorenzo Livianos Aldana, Luis Rojo Moreno
Discinesia tardia com
Discinesia tardia com predomínio de predomínio de distoniadistonia...13...13
Guilherme Assumpção Dias
Guilherme Assumpção Dias
Ataxia prolongada associada à intoxicação por lít
Ataxia prolongada associada à intoxicação por lítioio...18...18
Yara Azevedo, Cíntia de Azevedo Marques, Eduardo Iacoponi
Yara Azevedo, Cíntia de Azevedo Marques, Eduardo Iacoponi
Cortical atrophy during treatment with lithium in therapeutic levels, Cortical atrophy during treatment with lithium in therapeutic levels, perphenazine, and paroxetine: case report and literature review...21 perphenazine, and paroxetine: case report and literature review...21
Luiz Renato Gazzola
Luiz Renato Gazzola
Caso Literário
Caso Literário
Sales Sales...29...29 Machado de Assis Machado de AssisPatografia
Patografia
Patografia de VPatografia de Vincent van Gincent van Goghogh...32...32
Andrés Heerlein
Andrés Heerlein
Caso Histórico
Caso Histórico
Freud e o uso de cocaína: história e verdade...42 Freud e o uso de cocaína: história e verdade...42
José Antônio Zago
José Antônio Zago
Descrição Clássica/Homenagem
Descrição Clássica/Homenagem
Heinroth e a melancolia: descrição, ordenação e conceito...48 Heinroth e a melancolia: descrição, ordenação e conceito...48
Michael Schmidt-Degen
Michael Schmidt-Degenhard hard
Seguimento
Seguimento
...53...53Index CCP
Index CCP
...54...54Normas de Publicação
Normas de Publicação
...55...55Publicar uma revista de
Publicar uma revista de Casos Clínicos em PsiquiatriaCasos Clínicos em Psiquiatriaé umaé uma
iniciativa inspirada. Achamos que devemos nos empenhar para seu
iniciativa inspirada. Achamos que devemos nos empenhar para seu
êxito. O estudo do caso constituiu sempre a base, o ponto de partida e
êxito. O estudo do caso constituiu sempre a base, o ponto de partida e
o campo de desenvolvimento da atividade médica: conhecimento dos
o campo de desenvolvimento da atividade médica: conhecimento dos
fatos, fo
fatos, formulação rmulação da nosoloda nosologia, elaborgia, elaboração das ação das teorias, teorias, etiologias, etiologias, desen-
desen-volvimento dos tratamentos, ensino profissional. Na
volvimento dos tratamentos, ensino profissional. Na Introdução àIntrodução à Psiquiatria Clínica
Psiquiatria Clínica (1990) Kraepelin explica sua intenção: oferece(1990) Kraepelin explica sua intenção: oferece
sob forma de aulas escritas as
sob forma de aulas escritas as apresentaçõapresentações de casos clínicos es de casos clínicos realizadosrealizados
com seus alunos. O caso observado, descrito, sendo selecionados os
com seus alunos. O caso observado, descrito, sendo selecionados os
aspectos significativos para conceber um quadro clínico, um
aspectos significativos para conceber um quadro clínico, um
diagnósti-co. É na medida em que analisa os casos que Kraepelin formula e
co. É na medida em que analisa os casos que Kraepelin formula e
clas-sifica as doenças. Podemos seguir, com a leitura destas aulas, o
sifica as doenças. Podemos seguir, com a leitura destas aulas, o
nasci-mento das entidades psiquiátricas, conforme Kraepelin.
mento das entidades psiquiátricas, conforme Kraepelin.
Para identificar as alterações, lançar hipóteses etiológicas,
Para identificar as alterações, lançar hipóteses etiológicas,
tentati-vas de entender, explicar, a apresentação do caso clínico é
vas de entender, explicar, a apresentação do caso clínico é
procedimen-to clássico e, devido a sua
to clássico e, devido a sua importância, publicar em livros e revistas osimportância, publicar em livros e revistas os
casos também era procedimento clássico. Indagações, pesquisas de
casos também era procedimento clássico. Indagações, pesquisas de
labo-ratório, hipóteses foram sugeridas e debatidas em
ratório, hipóteses foram sugeridas e debatidas em torno do caso clínico.torno do caso clínico.
Sem falar do seu uso para exemplificar, classificar, argumentar a favor
Sem falar do seu uso para exemplificar, classificar, argumentar a favor
de teorias, de
de teorias, de propostas terapêuticapropostas terapêuticas. Nomes de s. Nomes de certos casos tornaram-certos casos
tornaram-se emblemáticos: Ellen West, Suzan Urban. O caso Elliot (retomado
se emblemáticos: Ellen West, Suzan Urban. O caso Elliot (retomado
por Dama
por Damasio em 1994, pasio em 1994, para ilustrar ra ilustrar suas teses) suas teses) aparece aparece em vários em vários estu-
estu-dos neurológicos, neurocirúrgico
dos neurológicos, neurocirúrgicos. O s. O ensino da medicina ensino da medicina interna usouinterna usou
muitas vezes a publicação de
muitas vezes a publicação de casos em revistas e mesmo em tratados decasos em revistas e mesmo em tratados de
muitos tomos.
muitos tomos.
Como exemplo, argumento, o caso clínico continua instrumento
Como exemplo, argumento, o caso clínico continua instrumento
precioso. M
precioso. Muitas revistauitas revistas lhe dedicam ses lhe dedicam seções especiais. ções especiais. Na psiquiatria Na psiquiatria oo
espaço que lhe é dedicado é evidentemente pequeno. Não se trata aqui
espaço que lhe é dedicado é evidentemente pequeno. Não se trata aqui
de uma "pesquisa", mas examinando alguns números de revistas
de uma "pesquisa", mas examinando alguns números de revistas
psi-quiátricas recentes, é óbvio: nos cinco primeiros números do ano 2000,
quiátricas recentes, é óbvio: nos cinco primeiros números do ano 2000,
o
oBritish Journal of PsychiatryBritish Journal of Psychiatrynão inclui nenhum artigo dedicadonão inclui nenhum artigo dedicado
a "caso clínico". Nem o número de abril de 2000 dos
a "caso clínico". Nem o número de abril de 2000 dos Archives Archives of of General Psychiatry
General Psychiatry. O. O American Journal of Psychiatry American Journal of Psychiatry, em cada, em cada
um dos números 7 e 8 deste ano, inclui um artigo de
um dos números 7 e 8 deste ano, inclui um artigo de "clinical case"clinical case conference"
conference", um relacionado com terapia cognitivo-comportamental,, um relacionado com terapia cognitivo-comportamental,
outro observando características de duas irmãs gêmeas.
outro observando características de duas irmãs gêmeas.
A
Avaliosa revistvaliosa revistaa Arquivos de Neuropsiquiatria Arquivos de Neuropsiquiatria(SP) dedica às(SP) dedica às
apresentações de caso uma seção de proporções pouco comuns: no
apresentações de caso uma seção de proporções pouco comuns: no
núme-ro de junho de 2000, 60 do total de 200 páginas, e no númenúme-ro de
ro de junho de 2000, 60 do total de 200 páginas, e no número de
setem-bro 70 entre o total de 200 páginas. Trata-se de casos neurológicos.
bro 70 entre o total de 200 páginas. Trata-se de casos neurológicos.
Nas revistas psiquiátricas predominam (ou são exclusivos) artigos
Nas revistas psiquiátricas predominam (ou são exclusivos) artigos
dedicados à epidemiologia e pesquisas básicas, com amplo uso de
dedicados à epidemiologia e pesquisas básicas, com amplo uso de
esta-tísticas, quantificação. Não podemos afirmar que isto
tísticas, quantificação. Não podemos afirmar que isto represente o inte-represente o
inte-resse dos estudiosos, mas é claro que
resse dos estudiosos, mas é claro que as revistas exigem tal orientação,as revistas exigem tal orientação,
e para os autores publicar se tornou quase uma questão de
e para os autores publicar se tornou quase uma questão de sobrevivên-
sobrevivên-cia na carreira.
cia na carreira.
A
A quantificação, quantificação, considerada considerada critério critério de de cientificidade, cientificidade, pareceparece
pouco aplicável no "caso particular", embora o "caso único" seja r
pouco aplicável no "caso particular", embora o "caso único" seja reco-
eco-mendado como abordagem alternativa (Hersen M, p. 73-105) entre os
mendado como abordagem alternativa (Hersen M, p. 73-105) entre os
métodos de Pesquisa em Psiquiatria (LKG Hsu,
métodos de Pesquisa em Psiquiatria (LKG Hsu, Research inResearch in Psychiatry, New York
Psychiatry, New York: Plenum Medical Book Company, 1992).: Plenum Medical Book Company, 1992).
Os módulos, o isolamento de
Os módulos, o isolamento de elementos mínimos, (moléculas, neu-elementos mínimos, (moléculas,
neu-rotransmi
rotransmissores, receptores) são parte importante ssores, receptores) são parte importante das pesquisas das pesquisas atuais.atuais.
Claro que a apresentação do caso leva a um nível complexo de estudo,
Claro que a apresentação do caso leva a um nível complexo de estudo,
pouco com
pouco compatível com patível com a abstraa abstratização tização estatística estatística que os que os elementos elementos ou asou as
funções isoladas constituem. O relacionamento com os outros, as
funções isoladas constituem. O relacionamento com os outros, as
con-dutas da pessoa, objetos da psiquiatria, não podem ser
dutas da pessoa, objetos da psiquiatria, não podem ser limitadas a regis-limitadas a
regis-tros quantitativos. Para pesquisá-los precisamos de
tros quantitativos. Para pesquisá-los precisamos de conceitos e métodosconceitos e métodos
que não são os praticados na
que não são os praticados na maioria dos estudos publicados.maioria dos estudos publicados.
Não consideramos que uma revista de casos clínicos pretenda
Não consideramos que uma revista de casos clínicos pretenda
cor-rigir as omissões de outras publicações. Mas com certeza, ela
rigir as omissões de outras publicações. Mas com certeza, ela nos evocanos evoca
a "complementaridade", da qual as ciências humanas e as
a "complementaridade", da qual as ciências humanas e as da naturezada natureza
tanto falam.
tanto falam.
Publishing a magazine for
Publishing a magazine for Clinical Cases in PschiatryClinical Cases in Pschiatry is anis an
inspired enterprise. We think that we should strive for its success. The
inspired enterprise. We think that we should strive for its success. The
case study is the basis, starting point and the development field of
case study is the basis, starting point and the development field of
med-ical work: knowledge of facts,
ical work: knowledge of facts, formulation of nosology, theory elabora-formulation of nosology, theory
elabora-tion, etiology, treatment development and technical teaching. In his
tion, etiology, treatment development and technical teaching. In his Introdução à Psiquiatria Clínica
Introdução à Psiquiatria Clínica (1990) Kraepelin tells us his(1990) Kraepelin tells us his
intention: offer the presentation of clinical cases carried on with his
intention: offer the presentation of clinical cases carried on with his
students as written lessons. The cases are observed, described and the
students as written lessons. The cases are observed, described and the
main aspects are selected to form a clinical
main aspects are selected to form a clinical nosological picture, a diag-nosological picture, a
diag-nosis. While Kraepelin analyzes the cases, he formulates and classifies
nosis. While Kraepelin analyzes the cases, he formulates and classifies
the diseases. The reading of those lessons has allowed us to follow the
the diseases. The reading of those lessons has allowed us to follow the
birth of psychiatric entities as
birth of psychiatric entities as Kraepelin.Kraepelin.
It’s a classical procedure the understanding trials and
It’s a classical procedure the understanding trials and
explana-tions of clinical cases, to identify
tions of clinical cases, to identify their alterations and to start etiolog-their alterations and to start
etiolog-ical hypothesis. Due to its importance, publishing books and
ical hypothesis. Due to its importance, publishing books and
maga-zines with cases was
zines with cases was also a classical procedure. Questions, laboratori-also a classical procedure. Questions,
laboratori-al researches, hypothesis were suggested and argued based upon
al researches, hypothesis were suggested and argued based upon
clini-cal cases, besides its uses
cal cases, besides its uses to exemplify, classify and argument in to exemplify, classify and argument in favorfavor
of theory and of therapeutical proposals. The names of some cases
of theory and of therapeutical proposals. The names of some cases
become emblematic: Ellen West, Susan Urban. The Elliot’s case (as
become emblematic: Ellen West, Susan Urban. The Elliot’s case (as
described by Damasio in 1994 to enrich his thesis) appears in many
described by Damasio in 1994 to enrich his thesis) appears in many
neurological and neurosurgery studies. The internal medicine took
neurological and neurosurgery studies. The internal medicine took
advantage of published cases in magazines and even in tome books
advantage of published cases in magazines and even in tome books
many times.
many times.
As an
As an exemplification, as an exemplification, as an argument the argument the clinical case clinical case is still is still aa
precious instrument. Many
precious instrument. Many magazines have special magazines have special section dedicatedsection dedicated
to them. In psychiatry the space dedicated to them is evidently small.
to them. In psychiatry the space dedicated to them is evidently small.
This is not a "research" but if we observe few recent editions of
This is not a "research" but if we observe few recent editions of
psy-chiatric magazines, we will find that in the year 2000 the first five
chiatric magazines, we will find that in the year 2000 the first five
edi-tions of
tions of British Journal of PsychiatryBritish Journal of Psychiatry have no clinical case. It hap-have no clinical case. It
hap- pens
pens even even in in the the April April 2000 2000 edition edition of of Archives Archives of of GeneralGeneral Psychiatry
Psychiatry. The 7th and 8th editions of the. The 7th and 8th editions of the American American Journal Journal of of Psychiatry
Psychiatry of this year include one clinical case conference relatedof this year include one clinical case conference related
with cognitive behavioral therapy and another showing the
with cognitive behavioral therapy and another showing the
characte-ristics of twin sisters.
ristics of twin sisters.
The very important magazine
The very important magazine Arquivos Arquivos de de NeuropsiquiatriaNeuropsiquiatria
(SP) dedicates an unusual large section to the presentation of cases: in
(SP) dedicates an unusual large section to the presentation of cases: in
the June edition, 60 out of a total of 200 pages, and in the September
the June edition, 60 out of a total of 200 pages, and in the September
edition, 70 out of a total of 200 pages. They are neurological cases.
edition, 70 out of a total of 200 pages. They are neurological cases.
In psychiatric magazines, articles about epidemiology and basic
In psychiatric magazines, articles about epidemiology and basic
resear
research predominate (or are exclusive), creating a wide ch predominate (or are exclusive), creating a wide use of statisti-use of
statisti-cal and quantifications methods. We cannot affirm that this
cal and quantifications methods. We cannot affirm that this representsrepresents
the interest of the scholars but it is clear that magazines have such
the interest of the scholars but it is clear that magazines have such
ori-entation, and for the authors, publishing is almost a survival problem
entation, and for the authors, publishing is almost a survival problem
in their career.
in their career.
The quantification as a scientific standard is not applicable in the
The quantification as a scientific standard is not applicable in the
"particular case” although the "single
"particular case” although the "single case" is recommended as alter-case" is recommended as
alter-native approach among methods from research in Psychiatry (LKG
native approach among methods from research in Psychiatry (LKG
Hsu,
Hsu, Research in Psychiatry, New YorkResearch in Psychiatry, New York, Plenum Medical Book, Plenum Medical Book
Company
Company, , 1992)1992)
The modules, the isolation of minimum elements (molecules,
The modules, the isolation of minimum elements (molecules,
neu-rotransm
rotransmitters, receptors) are important part itters, receptors) are important part of nowadays of nowadays researresearch. Itch. It
is known that the explanation of the case leads to a complex level of
is known that the explanation of the case leads to a complex level of
study that is not compatible with the abstractive statistical data
study that is not compatible with the abstractive statistical data
formed
formed by by elements elements or or the the single single functions. functions. The The relationship, relationship, thethe
behavior of people, subject of psychiatry cannot be limited as
behavior of people, subject of psychiatry cannot be limited as
quantita-tive records. To research them, we need to have concepts and methods
tive records. To research them, we need to have concepts and methods
that are not used in the majority of the published studies.
that are not used in the majority of the published studies.
We do not assume that a magazine for clinical cases will fulfill all
We do not assume that a magazine for clinical cases will fulfill all
the omissions of other publications. But certainly we can call the idea
the omissions of other publications. But certainly we can call the idea
of "complementary", which is now widely spread by social and
of "complementary", which is now widely spread by social and
natu-ral sciences.
ral sciences.
Editorial
Luiz Ferri Barros
Luiz Ferri Barros
Na verdade não sou um bom contador de delírios. Isto
Na verdade não sou um bom contador de delírios. Isto
por-que segue-se às minhas crises maníacas uma amnésia a respeito
que segue-se às minhas crises maníacas uma amnésia a respeito
das crises que vivi.
das crises que vivi.
Apenas com muita concentração e muito esforço de
Apenas com muita concentração e muito esforço de
memó-ria, fui capaz de reunir aqui lampejos de lembranças para relatar
ria, fui capaz de reunir aqui lampejos de lembranças para relatar
alguns momentos esparsos das grandes fantasias delirantes e
alguns momentos esparsos das grandes fantasias delirantes e
alu-cinatórias que já vivi.
cinatórias que já vivi.
Antes de relatá-los, no entanto, acho importante dizer como
Antes de relatá-los, no entanto, acho importante dizer como
o delírio se estabelece. Ele não chega sem avisos.
o delírio se estabelece. Ele não chega sem avisos.
As crises são precedidas por uma grande inquietação. Ocorre
As crises são precedidas por uma grande inquietação. Ocorre
intensa agitação motora e insônia durante dois ou três dias. Não
intensa agitação motora e insônia durante dois ou três dias. Não
sei onde ficar, nenhuma posição me acomoda.
sei onde ficar, nenhuma posição me acomoda.
Depois, vem aos poucos de início e em seguida velozmente,
Depois, vem aos poucos de início e em seguida velozmente,
tomando conta de tudo, uma incontrolável euforia. A euforia é
tomando conta de tudo, uma incontrolável euforia. A euforia é
uma sensação de bem estar, de poder, de plenitude. De força
uma sensação de bem estar, de poder, de plenitude. De força
perante o mundo. A euforia faz com que no meio de toda a
perante o mundo. A euforia faz com que no meio de toda a
des-graça e sofrimento que é a loucura, ainda assim o mundo se
graça e sofrimento que é a loucura, ainda assim o mundo se
apre-sente com inigualável grandiosidade e beleza.
sente com inigualável grandiosidade e beleza.
Com a euforia, o pensamento dispara e fica fora de controle.
Com a euforia, o pensamento dispara e fica fora de controle.
É quando se perde o nexo e idéias disparatadas começam a nos
É quando se perde o nexo e idéias disparatadas começam a nos
ocorrer. Mantém-se concentração absoluta num assunto ou
ocorrer. Mantém-se concentração absoluta num assunto ou
dis-persão total de pensamentos com a
persão total de pensamentos com a mente correndo solta entre osmente correndo solta entre os
mais variados contextos. Ocorre o que Schreber muito bem
mais variados contextos. Ocorre o que Schreber muito bem
defi-niu como “coação a pensar”.
niu como “coação a pensar”. “A essência da coação a pensar con-“A essência da coação a pensar
con-siste no fato de que o homem é forçado a pensar
siste no fato de que o homem é forçado a pensar
ininterruptamen-te”
te”e em grande velocidade.e em grande velocidade.
Daí o pensamento começa cada vez mais a afastar-se da
Daí o pensamento começa cada vez mais a afastar-se da
rea-lidade, criando uma nova realidade delirante em que se acredita
lidade, criando uma nova realidade delirante em que se acredita
firmemente. Às vezes, esta realidade delirante não nos atinge por
firmemente. Às vezes, esta realidade delirante não nos atinge por
completo, justapondo-se à realidade de fato. Então, algumas
completo, justapondo-se à realidade de fato. Então, algumas
coi-sas são interpretadas pela parte sadia de nosso cérebro, outras
sas são interpretadas pela parte sadia de nosso cérebro, outras
pela parte que está em delírio. Às vezes o delírio nos domina por
pela parte que está em delírio. Às vezes o delírio nos domina por
completo. É quando perdemos a noção de nossos atos.
completo. É quando perdemos a noção de nossos atos.
Quando se entra em delírio, encasquetando-se que uma
Quando se entra em delírio, encasquetando-se que uma
determinada coisa irreal está acontecendo, não é possível
determinada coisa irreal está acontecendo, não é possível
com-preender que os outros não percebam a mesma realidade. O
preender que os outros não percebam a mesma realidade. O
mesmo ocorre quando se alucina, ouvindo vozes ou
mesmo ocorre quando se alucina, ouvindo vozes ou
enxergando-se coisas inexistentes.
se coisas inexistentes.
1 1
-De repente, uma manhã, achei que iria ser preso
De repente, uma manhã, achei que iria ser preso
imediata-mente. Mas eu não achava
mente. Mas eu não achava que era só a polícia que estava que era só a polícia que estava atrás deatrás de
mim e nem que eu seria apenas preso.
mim e nem que eu seria apenas preso.
Delirei que o próprio governador do Estado estava me
Delirei que o próprio governador do Estado estava me
per-seguindo por minhas idéias políticas e que eu seria metralhado,
seguindo por minhas idéias políticas e que eu seria metralhado,
minha família também seria morta a tiros e minha casa seria
minha família também seria morta a tiros e minha casa seria
des-truída por bombas.
truída por bombas.
Então, alucinado, telefonei para o amigo com quem eu havia
Então, alucinado, telefonei para o amigo com quem eu havia
comprado maconha em sociedade e disse para ele:
comprado maconha em sociedade e disse para ele:
_
_ ““O governador está atrás de mim. Eu vou O governador está atrás de mim. Eu vou embora daqui paraembora daqui para
ele não matar minha família
ele não matar minha família.”.”
Meu amigo falou-me para eu ficar em casa porque ele ia me
Meu amigo falou-me para eu ficar em casa porque ele ia me
levar um médico. Eu disse que não, de jeito nenhum, porque
levar um médico. Eu disse que não, de jeito nenhum, porque
todos seríamos mortos. Desliguei o telefone, corri até a cômoda
todos seríamos mortos. Desliguei o telefone, corri até a cômoda
onde guardava a maconha, peguei o pacote, joguei na privada e
onde guardava a maconha, peguei o pacote, joguei na privada e
dei descarga.
dei descarga.
Depois saí correndo, descendo a escada na embalada,
Depois saí correndo, descendo a escada na embalada,
fugin-do de
do de casa. Mônica casa. Mônica tentou me tentou me segurarsegurar, eu , eu não deixei. não deixei. Eu Eu acha-
acha-va que se saísse sozinho eu seria metralhado na rua e desta forma
va que se saísse sozinho eu seria metralhado na rua e desta forma
pouparia Mônica e as crianças.
pouparia Mônica e as crianças.
Mônica tentou segurar-me de todo o jeito e quando saí
Mônica tentou segurar-me de todo o jeito e quando saí
cor-rendo pelo quintal e fui para a rua, ela saiu atrás de mim. Eu
rendo pelo quintal e fui para a rua, ela saiu atrás de mim. Eu
gri-tava:
tava:
_
_ ““Vai pra dentro. Fique em casaVai pra dentro. Fique em casa.”.”
E ela:
E ela:
_
_ ““O que foi? O que está acontecendo?”O que foi? O que está acontecendo?”
_
_ ““Fique em casa. Vai para dentroFique em casa. Vai para dentro.”.”
Para mim era uma questão de vida ou morte. Se ela viesse
Para mim era uma questão de vida ou morte. Se ela viesse
atrás de mim, seria
atrás de mim, seria metralhada também. Isto não metralhada também. Isto não podia acontecer.podia acontecer.
Ela não podia morrer. O problema era apenas meu. Então eu
Ela não podia morrer. O problema era apenas meu. Então eu
gri-tei de novo pra ela, na frente dos vizinhos que já tinham saído à
tei de novo pra ela, na frente dos vizinhos que já tinham saído à
rua, para saber o que estava acontecendo:
rua, para saber o que estava acontecendo:
_
_ ““Não venha atrás de mim. Eu não gosto de você. Deixe-meNão venha atrás de mim. Eu não gosto de você. Deixe-me
em paz. Eu tenho outra mulher. Eu tenho outra mulher, você
em paz. Eu tenho outra mulher. Eu tenho outra mulher, você
não entende?”
não entende?”
Ela chocou-se e se paralisou. Imediatamente uma vizinha
Ela chocou-se e se paralisou. Imediatamente uma vizinha
abraçou-a e ela acabou ficando parada, estupefata.
abraçou-a e ela acabou ficando parada, estupefata.
Eu corri dez, quinze quarteirões, ou mais. Quando minha
Eu corri dez, quinze quarteirões, ou mais. Quando minha
força acabou, fiquei andando ao léu, sem
força acabou, fiquei andando ao léu, sem saber mais onde estava.saber mais onde estava.
Daí Mônica chegou de carro com meu cunhado, desesperada, e
Daí Mônica chegou de carro com meu cunhado, desesperada, e
eles me puseram dentro do carro. Eu gritava alucinado:
eles me puseram dentro do carro. Eu gritava alucinado:
_
_ ““ Deixem-me des Deixem-me descercer. Eu vou . Eu vou me matarme matar. Eu quer. Eu quero morrer o morrer sozi-
sozi-nho. Eles vão me pegar. Você não pode morrer comigo
nho. Eles vão me pegar. Você não pode morrer comigo
Mônica, você precisa cuidar das crianças.”
Mônica, você precisa cuidar das crianças.”
Mônica tinha chamado meu pai e ao chegarmos em casa ele
Mônica tinha chamado meu pai e ao chegarmos em casa ele
já
já estava estava me me esperando esperando para para levar-me levar-me ao ao médico médico da da família família -
- Auto-relato
Auto-relato
QUINZE DELÍRIOS
QUINZE DELÍRIOS
FIFTEEN DELUSIONS
FIFTEEN DELUSIONS
Mestre e doutorando em Filosofia da Educação pela Mestre e doutorando em Filosofia da Educação pela USPUSP
Presidente do Projeto Fênix - Associação Nacional Pró-Saúde Presidente do Projeto Fênix - Associação Nacional Pró-Saúde Mental
Mental
Extrato do livro Anjo Carteir
Extrato do livro Anjo Carteiro - Ao - ACorrespondCorrespondência da Psicose. Editora Imago,ência da Psicose. Editora Imago,
Rio de Janeiro, 1996, ps.297/324 (edição esgotada; no prelo segunda edição pelo
Rio de Janeiro, 1996, ps.297/324 (edição esgotada; no prelo segunda edição pelo
Projeto Fênix - Associação Nacional Pró-Saúde Mental;
Projeto Fênix - Associação Nacional Pró-Saúde Mental; reproduzreproduzido com autori-ido com
autori-Endereço para
Endereço para correspondência:correspondência: Projeto Fênix
Projeto Fênix T
Travessa Dornelas França, ravessa Dornelas França, 59 - Pompéia59 - Pompéia 05023-000 - São Paulo- SP 05023-000 - São Paulo- SP 0800 10 9636 0800 10 9636 E-mail: lfbarros@fenix.org.br E-mail: lfbarros@fenix.org.br
Quinze delírios
Quinze delírios
naquele tempo eu não tinha psiquiatra. Levei dez dias para sair
naquele tempo eu não tinha psiquiatra. Levei dez dias para sair
do delírio.
do delírio.
Naquele tempo eu e Mônica nos amávamos muito e ela, logo
Naquele tempo eu e Mônica nos amávamos muito e ela, logo
depois do choque, percebeu rápido que eu apenas dissera “
depois do choque, percebeu rápido que eu apenas dissera “EuEu
tenho outra mulher
tenho outra mulher ” para impedir que ela me seguisse. Então,” para impedir que ela me seguisse. Então,
desvencilhando-se da vizinha, tomou providências para me
desvencilhando-se da vizinha, tomou providências para me
acu-dir. Com o passar do tempo o nosso amor sucumbiu às asperezas
dir. Com o passar do tempo o nosso amor sucumbiu às asperezas
da vida, até mesmo por causa das constantes situações de
da vida, até mesmo por causa das constantes situações de
xeque-mate em que eu a colocava nos meus delírios e depressões. Um
mate em que eu a colocava nos meus delírios e depressões. Um
dia, muitos anos depois, ela chegou-se a mim e perguntou:
dia, muitos anos depois, ela chegou-se a mim e perguntou:
_
_ ““ Luiz, daquela Luiz, daquela vez que vez que você saiu você saiu correndo de correndo de casa, lembra-secasa, lembra-se,,
era mesmo verdade que você tinha outra mulher?”
era mesmo verdade que você tinha outra mulher?”
Não era verdade e ela sempre soube disto, mas ao relatar o
Não era verdade e ela sempre soube disto, mas ao relatar o
caso à sua mãe, esta a manteve em eterna dúvida.
caso à sua mãe, esta a manteve em eterna dúvida. 2
2
-Na praia, tive um delírio místico, religioso, em que eu me
Na praia, tive um delírio místico, religioso, em que eu me
jul-gava um profeta. Eu estava em estado de beatitude e juljul-gava que
gava um profeta. Eu estava em estado de beatitude e julgava que
todas as coisas aconteciam porque eu as fazia acontecer.
todas as coisas aconteciam porque eu as fazia acontecer.
Se uma folha de árvore caísse ao vento era porque eu estava
Se uma folha de árvore caísse ao vento era porque eu estava
olhando para ela e ordenando-lhe que caísse. Se uma pessoa
olhando para ela e ordenando-lhe que caísse. Se uma pessoa
andasse era porque eu queria que andasse e assim por diante...
andasse era porque eu queria que andasse e assim por diante...
Logo depois entrei a estrebuchar. Pensei ter tido uma
Logo depois entrei a estrebuchar. Pensei ter tido uma
convul-são. Muitos anos depois, meu irmão médico, que estava comigo
são. Muitos anos depois, meu irmão médico, que estava comigo
na ocasião, disse que na verdade tive uma crise histérica. Eu
na ocasião, disse que na verdade tive uma crise histérica. Eu
bal-buciava sons ininteligíveis e para mim, dentro de mim, eu estava
buciava sons ininteligíveis e para mim, dentro de mim, eu estava
falando com Deus em uma linguagem arcaica. Durante muito
falando com Deus em uma linguagem arcaica. Durante muito
tempo eu julguei ter tido um contato com Deus, até que o tempo
tempo eu julguei ter tido um contato com Deus, até que o tempo
passou e essa impressão se dissipou.
passou e essa impressão se dissipou.
Acredito, no entanto, que muitas das experiências místicas,
Acredito, no entanto, que muitas das experiências místicas,
sobrenaturais, possam ser fruto de delírios e alucinações do
sobrenaturais, possam ser fruto de delírios e alucinações doentias.entias.
Assim como acredito que as religiões todas nada mais são do que
Assim como acredito que as religiões todas nada mais são do que
uma resposta que o homem criou para sua maior dor psicológica:
uma resposta que o homem criou para sua maior dor psicológica:
a solidão perante o destino e o universo.
a solidão perante o destino e o universo. 3 3
-Houve uma ocasião em que passei dias brigando com um
Houve uma ocasião em que passei dias brigando com um
computador inexistente. Eu me alimentava muito mal. O
computador inexistente. Eu me alimentava muito mal. O
compu-tador se comunicava comigo em
tador se comunicava comigo em linguagem binária e eu assim res-linguagem binária e eu assim
res-pondia a ele dentro de meu cérebro. A uma determinada altura,
pondia a ele dentro de meu cérebro. A uma determinada altura,
a briga se tornou uma livre associação de palavras. As palavras me
a briga se tornou uma livre associação de palavras. As palavras me
ocorriam em duplas, uma seguindo-se à outra em uma
ocorriam em duplas, uma seguindo-se à outra em uma
velocida-de impressionante. Eu estava em Barra do Una e um dia meu
de impressionante. Eu estava em Barra do Una e um dia meu
irmão médico levou-me até o outro irmão, psicólogo, em
irmão médico levou-me até o outro irmão, psicólogo, em Guaecá.Guaecá.
Eu me alimentava muito mal. Não sei como foi, comecei o jogo
Eu me alimentava muito mal. Não sei como foi, comecei o jogo
de livre associação de palavras com meu irmão psicólogo. Eu
de livre associação de palavras com meu irmão psicólogo. Eu
dizia uma palavra, ele dizia outra. Para mim, cada palavra devia
dizia uma palavra, ele dizia outra. Para mim, cada palavra devia
vencer a anterior, ser mais forte, dominá-la. E assim ficamos
vencer a anterior, ser mais forte, dominá-la. E assim ficamos
longo tempo. A uma determinada altura cheguei à palavra “
longo tempo. A uma determinada altura cheguei à palavra “leiteleite””
e ele, sem me propor outra palavra, fixou-se na palavra “
e ele, sem me propor outra palavra, fixou-se na palavra “leiteleite”.”.
Eu propunha outras palavras e ele repetia: “
Eu propunha outras palavras e ele repetia: “leiteleite”. Acabei tam-”. Acabei
tam-bém por me fixar na palavra leite e dizia: “
bém por me fixar na palavra leite e dizia: “leite, leite, leiteleite, leite, leite.” Ele.” Ele
me dizia: “
me dizia: “ Isto, Luiz: Isto, Luiz: leiteleite.” Levantei-me da praia e, com ele ao.” Levantei-me da praia e, com ele ao
meu lado, fui até dentro
meu lado, fui até dentro de casa na cozinha, onde encontrei leite.de casa na cozinha, onde encontrei leite.
Bebi mais de um litro de leite enquanto meu irmão dizia: “
Bebi mais de um litro de leite enquanto meu irmão dizia: “ Isto, Isto,
Luiz: leite,
Luiz: leite, leite, leiteleite, leite.” (Ele havia encontrado uma forma de me.” (Ele havia encontrado uma forma de me
alimentar).
alimentar).
4 4
-Em meu trabalho eu usava uma calculadora HP 38C,
Em meu trabalho eu usava uma calculadora HP 38C,
consi-derada na época a melhor calculadora financeira existente e às
derada na época a melhor calculadora financeira existente e às
vezes eu costumava carregá-la na cintura.
vezes eu costumava carregá-la na cintura.
Um dia cismei que minha calculadora era capaz de fazer
Um dia cismei que minha calculadora era capaz de fazer
tudo. Não ela sozinha, naturalmente. Julguei que ela estivesse
tudo. Não ela sozinha, naturalmente. Julguei que ela estivesse
acoplada por radiotransmissão a uma central de computação
acoplada por radiotransmissão a uma central de computação
mundial, de espionagem estatal. Ela era um elo do
mundial, de espionagem estatal. Ela era um elo do Grande IrmãoGrande Irmão
de Orwell em 1984.
de Orwell em 1984.
Primeiro falei com minha chefe, no alto escalão de uma
Primeiro falei com minha chefe, no alto escalão de uma
Secretaria de Estado:
Secretaria de Estado:
_
_ “Sabe, eu tenho participado de “Sabe, eu tenho participado de reuniões sigilosas e se algumareuniões sigilosas e se alguma
informação importante vazar, a culpa não é minha, é de
informação importante vazar, a culpa não é minha, é de
minha calculadora.”
minha calculadora.”
Ela era psicóloga, por coincidência, e logo percebeu que eu
Ela era psicóloga, por coincidência, e logo percebeu que eu
estava delirando. T
estava delirando. Telefonou para minha mulher e ela veio melefonou para minha mulher e ela veio me bus-e
bus-car no escritório, tendo já marcado hora no meu psiquiatra. Eu
car no escritório, tendo já marcado hora no meu psiquiatra. Eu
fui com ela ao médico e chegando lá, mostrei-lhe a calculadora.
fui com ela ao médico e chegando lá, mostrei-lhe a calculadora.
Que ele cuidasse dela porque ela é que era perigosa, estava
Que ele cuidasse dela porque ela é que era perigosa, estava
desa- justada; não eu.
justada; não eu.
Depois saímos do médico e enquanto Mônica dirigia, na
Depois saímos do médico e enquanto Mônica dirigia, na
Avenida Paulista, eu encaixei a calculadora no lugar do cinzeiro
Avenida Paulista, eu encaixei a calculadora no lugar do cinzeiro
do carro e lhe disse:
do carro e lhe disse:
_
_ “Pode largar do volante, de tudo isto de controle mecânico do“Pode largar do volante, de tudo isto de controle mecânico do
carro que é obsoleto e desnecessário. Já programei a
carro que é obsoleto e desnecessário. Já programei a
calcu-ladora e em conexão com as centrais eletrônicas ela vai levar
ladora e em conexão com as centrais eletrônicas ela vai levar
nosso carro até em casa.”
nosso carro até em casa.” 5 5
-Um delírio que me perseguia sempre, em várias crises
Um delírio que me perseguia sempre, em várias crises
subse-qüentes, era o delírio da espionagem eletrônica. Para mim todos
qüentes, era o delírio da espionagem eletrônica. Para mim todos
os aparelhos eletrônicos, em especial os rádios e as televisões,
os aparelhos eletrônicos, em especial os rádios e as televisões,
estavam conectados entre si mandando informações para uma
estavam conectados entre si mandando informações para uma
central nacional, às vezes mundial, de computação. Lá eu era
central nacional, às vezes mundial, de computação. Lá eu era
observado pelos senhores do mundo, como
observado pelos senhores do mundo, como se eu fosse espionadose eu fosse espionado
pelo
pelo Grande IrmãoGrande Irmão de Orwell. Quando eu estava na rua, ou àsde Orwell. Quando eu estava na rua, ou às
vezes à janela de minha casa, onde não havia aparelhos
vezes à janela de minha casa, onde não havia aparelhos
eletrôni-cos, eu estava sendo filmado a grandes altitudes por aviões ou
cos, eu estava sendo filmado a grandes altitudes por aviões ou
satélites espiões que eu não via, mas tinha certeza que estavam lá.
satélites espiões que eu não via, mas tinha certeza que estavam lá.
Nas televisões eu sempre via um botão qualquer ou uma luz
Nas televisões eu sempre via um botão qualquer ou uma luz
que me filmavam. Então, a central de televisão podia me ver e
que me filmavam. Então, a central de televisão podia me ver e
escutar, da mesma forma que eu via e escutava o programa que
escutar, da mesma forma que eu via e escutava o programa que
estavam passando.
estavam passando.
Assim, durante dias, eu falava com o rádio ou a televisão,
Assim, durante dias, eu falava com o rádio ou a televisão,
conversando ou com a emissora ou com os participantes do
conversando ou com a emissora ou com os participantes do
pro-grama.
grama.
Já
Já fiquei fiquei conversando, conversando, por por este este método método delirante, delirante, com com asas
grandes estrelas nacionais e internacionais de TV e também com
grandes estrelas nacionais e internacionais de TV e também com
Tatcher, Bush, Gorbatchov...
Naqueles momentos, então, que o entrevistado, ou o ator,
Naqueles momentos, então, que o entrevistado, ou o ator,
olha para a câmera e fala para os telespectadores, ah, eles estavam
olha para a câmera e fala para os telespectadores, ah, eles estavam
falando diretamente para mim... Eles me olhavam no olho.
falando diretamente para mim... Eles me olhavam no olho. Então,Então,
eu também olhava no olho deles e respondia.
eu também olhava no olho deles e respondia.
De noite, em meu quarto, eu achava
De noite, em meu quarto, eu achava que havia câmaras de fil-que havia câmaras de
fil-magem escondidas, filmando o meu sexo com Mônica.
magem escondidas, filmando o meu sexo com Mônica. 6
6
-De tarde, na praia, apareceu-me um relógio
De tarde, na praia, apareceu-me um relógio em visão. A visãoem visão. A visão
me acompanhou o tempo todo. Não importa o que eu fizesse,
me acompanhou o tempo todo. Não importa o que eu fizesse,
para onde olhasse, o relógio
para onde olhasse, o relógio __sempre com a hora certasempre com a hora certa __apare-
apare-cia no fundo.
cia no fundo.
Então, à noite, no apartamento de praia que meu irmão
Então, à noite, no apartamento de praia que meu irmão
alu-gava, veio-me a explicação da visão: “
gava, veio-me a explicação da visão: “Vou morrer à meia-noite.Vou morrer à meia-noite.” E” E
fiquei com a idéia fixa de que ia morrer à meia noite. Mas não
fiquei com a idéia fixa de que ia morrer à meia noite. Mas não
disse para ninguém.
disse para ninguém.
Às dez horas, por aí, Mônica, eu e as crianças saímos do
Às dez horas, por aí, Mônica, eu e as crianças saímos do
apar-tamento e fomos para o rancho que tínhamos em Barra do Una
tamento e fomos para o rancho que tínhamos em Barra do Una
antes de construir nossa casa. Arrumamos as camas e nos
antes de construir nossa casa. Arrumamos as camas e nos
deita-mos para dormir. A visão do relógio e a certeza de
mos para dormir. A visão do relógio e a certeza de morrer à meia-morrer à
meia-noite não me abandonavam, no entanto.
noite não me abandonavam, no entanto.
Daí pensei:
Daí pensei:
_
_ ““Eu sou como Matraga, chegou minha hora e minha vez.Eu sou como Matraga, chegou minha hora e minha vez.
Como ele, não vou esperar meu destino passivamente: vou
Como ele, não vou esperar meu destino passivamente: vou
enfrentá-lo.
enfrentá-lo.””
Saí do rancho e fui para a rua onde fiquei andando, pronto
Saí do rancho e fui para a rua onde fiquei andando, pronto
para brigar pela vida com quem viesse me desafiar. A rua estava
para brigar pela vida com quem viesse me desafiar. A rua estava
vazia e eu não sabia de onde v
vazia e eu não sabia de onde viria o inimigo. Eram onze e meia emiria o inimigo. Eram onze e meia em
meu “relógio-visão” quando pensei diferente:
meu “relógio-visão” quando pensei diferente:
_
_ ““ Se querem me matar Se querem me matar, vão ter de vir à minha toca. Me pegar , vão ter de vir à minha toca. Me pegar
no meu lugar.
no meu lugar.””
Voltei para o rancho, afastei a cama das crianças e a da
Voltei para o rancho, afastei a cama das crianças e a da
Mônica e deitei-me num acolchoado bem em frente da porta.
Mônica e deitei-me num acolchoado bem em frente da porta.
Antes de deitar, no entanto, peguei um facão de cozinha e
Antes de deitar, no entanto, peguei um facão de cozinha e
segu-rei-o na mão direita, firme, pronto para dar o golpe se alguém
rei-o na mão direita, firme, pronto para dar o golpe se alguém
invadisse o lar de minha família.
invadisse o lar de minha família.
De manhã cedo, Mônica encontrou-me dormindo no chão
De manhã cedo, Mônica encontrou-me dormindo no chão
com a faca do lado.
com a faca do lado.
Enquanto eu esperava a meia-noite, dormi... E não morri.
Enquanto eu esperava a meia-noite, dormi... E não morri. 7
7
-Fui a um churrasco no interior, na casa de um tio meu. Eu
Fui a um churrasco no interior, na casa de um tio meu. Eu
estava de bermuda curta, camiseta leve e um par de chinelos.
estava de bermuda curta, camiseta leve e um par de chinelos.
Chegando lá havia aquela festa toda, todo mundo animado,
Chegando lá havia aquela festa toda, todo mundo animado,
fes-teiros mesmo, e eu me senti muito m
teiros mesmo, e eu me senti muito mal porque todos estavam ves-al porque todos estavam
ves-tidos muito bem, traje esporte fino e só eu de bermudas e
tidos muito bem, traje esporte fino e só eu de bermudas e
chine-lo.
lo.
Como acontecia em outras crises, eu havia emagrecido em
Como acontecia em outras crises, eu havia emagrecido em
poucos dias mais de dez quilos.
poucos dias mais de dez quilos.
Percebi que as pessoas me evitavam na festa e às vezes
Percebi que as pessoas me evitavam na festa e às vezes
olha-vam para mim de soslaio. É claro que me olhaolha-vam de soslaio e
vam para mim de soslaio. É claro que me olhavam de soslaio e
evitavam vir falar comigo porque eu estava em delírio. Devia estar
evitavam vir falar comigo porque eu estava em delírio. Devia estar
muito estranho. Mas eu achei que estavam me evitando porque
muito estranho. Mas eu achei que estavam me evitando porque
eu estava com AIDS. Percebendo minha magreza, olhando
eu estava com AIDS. Percebendo minha magreza, olhando
minhas pernas finas, logo concluí que de fato eu estava com
minhas pernas finas, logo concluí que de fato eu estava com
AIDS.
AIDS.
Chamei a Mônica para irmos embora. Enquanto ela e as
Chamei a Mônica para irmos embora. Enquanto ela e as
crianças almoçavam rapidamente fui para fora da casa, esperá-los
crianças almoçavam rapidamente fui para fora da casa, esperá-los
na rua. Minha tia quis me levar de volta
na rua. Minha tia quis me levar de volta para a festa, me dar comi-para a festa, me dar
comi-da e tal e eu nacomi-da. Queria ir embora pra casa, deitar na minha
da e tal e eu nada. Queria ir embora pra casa, deitar na minha
cama.
cama.
Quando Mônica veio com as crianças, pegamos o carro e
Quando Mônica veio com as crianças, pegamos o carro e
fomos embora. Havíamos andado uns vinte quilômetros talvez,
fomos embora. Havíamos andado uns vinte quilômetros talvez,
sem falarmos nada um ao outro, quando cheguei-me ao ouvido
sem falarmos nada um ao outro, quando cheguei-me ao ouvido
dela e falei baixinho:
dela e falei baixinho:
_
_ “Eu estou com AIDS.”“Eu estou com AIDS.”
Ela me respondeu:
Ela me respondeu:
_
_ “Fique quieto. Não fale uma palavra!”“Fique quieto. Não fale uma palavra!”
Dirigiu até um retorno que havia na pista,
Dirigiu até um retorno que havia na pista, onde pode parar oonde pode parar o
carro num lugar seguro. Mandou as crianças brincarem num
carro num lugar seguro. Mandou as crianças brincarem num
canto da praça e sentou-se comigo no meio de um gramado.
canto da praça e sentou-se comigo no meio de um gramado.
Disse-me, então:
Disse-me, então:
_
_ “Fala Luiz. O que está acontecendo?”“Fala Luiz. O que está acontecendo?”
_
_ “Eu estou com AIDS, Mônica. “Eu estou com AIDS, Mônica. Peguei AIDS.”Peguei AIDS.”
_
_ “Você fez alguma coisa para achar que tenha pego AIDS?“Você fez alguma coisa para achar que tenha pego AIDS?
Você saiu com alguém, fez alguma coisa assim?”
Você saiu com alguém, fez alguma coisa assim?”
_
_ “Não. Eu juro que não fiz nada. Mas veja minha magreza.“Não. Eu juro que não fiz nada. Mas veja minha magreza.
Veja como as pessoas me evitaram na festa...”
Veja como as pessoas me evitaram na festa...”
_
_ “Você está magro porque está em crise, isto sempre acontece.“Você está magro porque está em crise, isto sempre acontece.
Quanto às pessoas, foi você quem as evitou. Você quis vir
Quanto às pessoas, foi você quem as evitou. Você quis vir
embora, não quis falar com ninguém.”
embora, não quis falar com ninguém.”
_
_ “Eu estou com AIDS!”“Eu estou com AIDS!”
_
_ “E como você pegou?”“E como você pegou?”
_
_ “Pelos mosquitos, você sabe. Pela picada “Pelos mosquitos, você sabe. Pela picada dos pernilongos.”dos pernilongos.”
_
_ “Luiz, AIDS não se pega assim, você sabe disso. Agora, vou“Luiz, AIDS não se pega assim, você sabe disso. Agora, vou
lhe falar uma coisa e
lhe falar uma coisa e você preste muita atenção senão eu vouvocê preste muita atenção senão eu vou
ficar muito br
ficar muito brava com vava com você. Nós esocê. Nós estamos no mtamos no meio da estrada.eio da estrada.
Faltam duas horas pra chegar em casa. Nós vamos entrar no
Faltam duas horas pra chegar em casa. Nós vamos entrar no
carro e ir embora pra
carro e ir embora pra casa. Lá nós conversaremos com calma.casa. Lá nós conversaremos com calma.
Mas, por
Mas, por favorfavor, ouça , ouça o que o que estou lhe estou lhe dizendo; isto dizendo; isto é uma é uma coisacoisa
muito séria: você não vai falar
muito séria: você não vai falar mais neste assunto até chegar-mais neste assunto até
chegar-mos em casa. Nós techegar-mos dois filhos pequenos que não podem
mos em casa. Nós temos dois filhos pequenos que não podem
ficar pensando que o pai deles está com AIDS ap
ficar pensando que o pai deles está com AIDS apenas porqueenas porque
você está delirando. Entendeu?”
você está delirando. Entendeu?”
_
_ “Entendi.”“Entendi.”
_
_ “Então vamos embora. Vou chamar as crianças.”“Então vamos embora. Vou chamar as crianças.”
Viemos para São Paulo sem conversar uma palavra sequer
Viemos para São Paulo sem conversar uma palavra sequer
durante a viagem. Passei quase uma semana obcecado pela idéia
durante a viagem. Passei quase uma semana obcecado pela idéia
de AIDS e pernilongos. Às noites, eu ficava acordado com uma
de AIDS e pernilongos. Às noites, eu ficava acordado com uma
toalha de rosto na mão matando pernilongos no quarto das
toalha de rosto na mão matando pernilongos no quarto das
crian-ças.
ças.
Minha obsessão era evitar o contágio das crianças e para
Minha obsessão era evitar o contágio das crianças e para
mim, em meu delírio, as formas
mim, em meu delírio, as formas de contágio foram se multiplican-de contágio foram se
multiplican-do. Ao fim de alguns dias eu tinha separado para meu uso
do. Ao fim de alguns dias eu tinha separado para meu uso
exclu-sivo copos, louças e talheres e não deixava ninguém usá-los além
sivo copos, louças e talheres e não deixava ninguém usá-los além
de mim.
de mim.
Estranhamente, o sexo, a própria forma de contágio da
Estranhamente, o sexo, a própria forma de contágio da
AIDS, não me incomodava. Eu não achava que a Mônica, minha
AIDS, não me incomodava. Eu não achava que a Mônica, minha
parceira sexual, estivesse com AIDS. Apenas eu estava. Tinha
parceira sexual, estivesse com AIDS. Apenas eu estava. Tinha
pego dos pernilongos.
Quinze delírios
Daí ela teve de pegar os livros que tínhamos em casa sobre AIDS e me fazer reler, explicando-me como se pegava a doença, como se eu nunca tivesse sabido. Depois me disse:
_ “Se você está tão preocupado, vá fazer um exame de sangue. Mas eu lhe proponho outro teste. Você sabe que eu não estou
com AIDS. E que sou uma pessoa consciente, lúcida, que não quero pegar AIDS. Pois você também não tem, e para você ter certeza disso eu lhe ofereço o meu corpo. Venha deitar comigo.”
8
-De uma das vezes em que estive internado, lembro-me de estar amarrado na cama num dos quartos do Bezerra de Menezes e pensar que estava enterrado vivo numa espécie de catacumba que eu imaginava ser vizinha do cemitério do Araçá.
Neste dia eu fiquei, talvez, amarrado das dez horas da manhã até quatro da tarde. O delírio evoluiu. Após algum tempo eu não estava mais enterrado vivo. Eu era um morto sem condições de ser enterrado.
A catacumba onde eu estava era uma espécie de purgatório com objetivos de purificação. Era um lugar intermediário entre o Hospital das Clínicas e o Cemitério do Araçá para onde eram mandados os mortos de graves doenças infecciosas. Havia um pessoal burocrata que decidia quem podia ser enterrado, e quem podia subia pelo elevador até o cemitério. Quem não podia, con-tinuava amarrado. (Não havia elevador no local).
Meu corpo estava numa estranha transmutação e de repente eu não era mais eu. Perdi todas as esperanças de ser solto pois eu era, afinal, o vírus da AIDS que tinha sido isolado naquele estra-nho lugar para ser estudado pelos médicos. Eu era um vírus e tinha sido capturado. Meu corpo todo tinha sido envolto por uma película plástica para que não contaminasse ninguém. Após um tempo, perdi as esperanças de ser solto e parei de gritar. Foi quando, um tempo depois, fui solto da cama.
Andei até a sala de televisão sem ver ninguém e fiquei senta-do num senta-dos bancos de madeira que havia no local. Os bancos estavam postos em L, como devem estar até hoje, e assim pare-ciam delimitar um espaço máximo de ação de cerca de dez metros quadrados. Daí eu vi ao meu lado, sentado, assistindo televisão, um companheiro paciente. Era um preto gordo, já um senhor, bonacheirão, com um gorro enfiado na cabeça. Eu não sabia que ele estava vendo televisão. Nem sabia que ali havia televisão - eu não a via, pendurada alta na parede. Para mim, eu continuava preso para toda a eternidade naquele quadrado delimitado pelos bancos e o preto era o meu vigia.
9
-O haldol, assim como outros neurolépticos, causa efeitos colaterais, comumente chamados de “impregnação” e que consis-tem basicamente numa crescente robotização dos movimentos por uma rigidez muscular que se espalha pelo corpo todo. Para deter a impregnação usam-se outros remédios junto com os neu-rolépticos.
Neste delírio, após ser medicado em São Paulo, fui para a praia com Mônica e as crianças e também com meu irmão médi-co e sua família.
Desta vez tive a maior impregnação de haldol de todas as minhas crises. Aliás, mesmo em minhas internações, nunca vi nin-guém tão impregnado quanto eu fiquei. O akineton não foi sufi-ciente para deter a impregnação.
Primeiro meu corpo ficou todo rígido e eu só me movimen-tava muito lentamente, com o andar estranho dos robôs.
Depois, uma tarde, fui acometido por um repuxamento mus-cular na nuca e no pescoço e eu ficava com o rosto de lado, com a musculatura toda estirada. Meu maxilar se travou e o trismo não permitia que eu abrisse a boca.
Minha cunhada deitou-me numa esteira de taboa e me fez massagens. Assim fiquei sabendo que massagens não adiantam nada para isto.
Meu irmão me pegou pelo braço, pôs-me no carro e levou-me até a farmácia em Boissucanga. No caminho, havia enorlevou-mes máquinas de terraplanagem que abriam naquele tempo o novo leito da Rio-Santos.
Durante todo o percurso, eu achava que seríamos esmagados por aquelas máquinas imensas. Estava certo que elas estavam ali apenas para nos perseguir, triturando-nos entre suas pás e estei-ras. Os barreiros que havia no caminho tinham sido feitos de pro-pósito pelas máquinas para nos fazer atolar. Depois elas viriam e nos esmagariam enquanto estivéssemos atolados.
Em Boissucanga, na farmácia, na calçada do lado de fora, lembro-me de uma mulher índia com um facão na mão que olha-va para mim desconfiada. Eu tinha medo que ela me atacasse com o facão.
De fato, como eu estava, com a cabeça estirada de lado, o maxilar teso, repuxando músculos faciais e andando feito robô -acho que ela estava me estranhando. Lembro-me até hoje de seu olhar fixo e seu facão enorme seguro pelo braço direito, em posi-ção de alerta.
Na realidade, ela estava mesmo preparada para me atacar, tanto que meu irmão me puxou para dentro da farmácia, dizen-do-me:
_ “Cuidado com a índia. Você não vê o facão dela e que ela está pronta para atacar? Ela está com medo de você. Fique comi- go. Não vá mais lá.”
Daí meu irmão me fez beber meio vidrinho de Fenergan e poucos minutos depois, como por milagre, toda minha muscu-latura se relaxou e eu me livrei da impregnação. O delírio com as máquinas de terraplanagem, no entanto, continuou e eu vivi na volta até Barra do Una o mesmo terror de que elas iriam nos triturar.
10
-Uma noite, na praia, fiquei de meia noite até sete horas da manhã condicionando um bagre num balde de água.
Eu estava certo de estar progredindo em meu intento que era o seguinte: cada vez que eu batesse no balde três vezes “toc, toc, toc,” o bagre viria até a superfície falar comigo. Então eu batia
com um pau no balde “toc, toc, toc” e em seguida jogava comida de peixe na água.
De manhã cedo, vendo-me na faina com o balde, depois de eu explicar o que estava fazendo, meu irmão me disse: “ Agora é hora de escovar os dentes, olha a pasta para o bagre.” E eu, acredi-tando mesmo no que fazia, peguei um pouco de pasta de dente e “toc, toc, toc,” joguei nágua para ele.
Nesta manhã meu irmão me trouxe para São Paulo para medicar-me e eu só concordei em vir depois que ensinei o pedrei-ro de minha obra a tomar conta do bagre.
Foi assim: eu fui com ele até o rio, soltei o bagre na margem e ele logo sumiu na água funda. Eu disse para o Armando:
_ “Você não se preocupe. Ele está logo num buraco ali. De tarde você vem até aqui e bate com este pauzinho na beira. Vai fazer toc, toc, toc. Daí ele vem e você dá comida pra ele. Vê se cuida bem do meu bagre enquanto eu estiver em São Paulo.”
11
-Estava em transcurso uma revolução separatista. São Paulo novamente lutava contra o Brasil. (Hoje acho engraçada esta ver-são, pois, como paulista, nunca aceitei a expressão “revolução separatista” e sim “revolução constitucionalista”). Sou paulista ferrenho. Desci a serra, com Mônica e as crianças, para Barra do Una. Minha missão era no litoral.
À noite, antes de deitar, angustiado, eu disse à Mônica senta-do na cama, dentro senta-do rancho:
_ “Se eu morrer, você diz ao Governador que eu morri por São Paulo?” Ela disse que sim. Eu insisti:
_ “Você promete?” Ela prometeu. Dormi.
Acordei com Mônica vestindo o biquini. Ela estava defronte à janela aberta, de costas para a cama, amarrando o sutiã do biquini. Eu comecei a chorar. Eu era um covarde. Minha mulher precisava ficar mostrando os peitos para o inimigo, pela janela, para que não bombardeassem o meu rancho. (A praia era deser-ta e entre o rancho e a praia havia uma touceira de bambu; Mônica não estava se exibindo, apenas estava à vontade, como o local permitia).
Saí para levar meus filhos para a praia. Grudei o menor deles para atravessar o rio. (Entre meu terreno e a praia existe o Rio Una. Havia chovido muito e o rio estava com grande correnteza). Logo percebi que o inimigo, para me capturar, havia lançado mão de um interessante ardil: ele baixara o nível do mar para o rio cor-rer ligeiro e eu me atrapalhar na correnteza. Vocês acham que isto é impossível porque não conhecem a astúcia e os recursos de meu inimigo: ele fazia isto com gigantescas bombas hidráulicas na barra do rio, onde o rio encontra o mar, escondido por trás da restinga de areia. Pus o menino no barquinho e saí remando em diagonal à correnteza. Dei risada. Era a força bruta deles contra a minha habilidade. Deixei o menino na praia e vim buscar o outro, do lado de cá do rio. (O barco era pequeno; o rio estava forte: não dava pra levar os dois ao mesmo tempo). No meio do rio o barco começou a afundar. Logo percebi o que houve. O
ini-migo tirara a tampa do barco com sensores remotos. Percebi a tempo que o barco estava destampado e voltei a tampá-lo. Sorri comigo mesmo. Eram os sensores remotos deles contra minha percepção e rapidez. Mudei de lugar no barco e controlei o nível d’água. Remei com vigor e cheguei à margem de casa, muito abai-xo de meu terreno, devido à correnteza. Meu filho chorava, gri-tando do lado de lá do rio, na praia:
_ “Paiê, Paiê, vem me buscar...”
_ “Já vai, meu filho. Não sai daí. Não tenha medo, eu já vou voltar.” (Entre nós havia um rio de 40 m de largura, corren-do em grande correnteza).
Os vizinhos vieram me ajudar a esvaziar o barco. Eles esta-vam de óculos escuros: eram inimigos. Deixei-os fazer força sozi-nhos para esvaziar o barco, não sou besta, vou deixá-los cansados. Eles esvaziaram o barco e levaram-no até em frente a minha casa, no lugar de atravessar de novo. (Perderam a tampa do barco mas eu sabia que era espionagem, roubaram a minha tampa).
_ “Paiê, Paiê, me tira daqui...”
_ “Espera, espera. Não saia do lugar!”
Corri até o rancho. Encontrei uma tampa de lata de spray e peguei a faca. Cortei um pedaço do plástico para ajustar no local, arranquei o pedaço com o dente - meu inimigo me olhando, vendo onde eu ia falhar para ele atacar - tapei o buraco do barco e atravessei de novo o rio.
Peguei meu filho e voltei para casa. Falei para a Mônica: _ “ Não dá pra ir à praia hoje. Os inimigos estão todos por aí.
Fizeram uma correnteza no rio que você precisa ver. Quase me pegaram.”
12
-Logo após a publicação de Memórias do Delírio, de minha autoria, uma série de artigos e resenhas sobre o livro foram publi-cados pela imprensa. Para a resenha da revista Veja eu fui entre-vistado. A reportagem que a revista publicou, com uma foto minha, ainda que de costas, deu-me uma sensação incrível de des-conforto pela grande exposição a que eu me submetia e principal-mente pelo fato de que considerei a matéria muito crua e dura, ainda que desse grande destaque ao livro. Logo comecei a deses-tabilizar-me. E em poucos dias eu estava em delírio.
Semanas antes havia sido publicada uma resenha em Curitiba. Por um erro de composição do jornal, a matéria que saiu sob o título da resenha e ao lado de uma reprodução da capa do livro era uma notícia sobre o Cartel de Medellin. No dia seguinte é que o jornal publicou corretamente a resenha. Mas fiquei com este fato na cabeça e quando a reportagem da Veja me desestabilizou passei a achar que o jornal de Curitiba estava me mandando uma mensagem cifrada. Que como eu falava mal da maconha no livro eu seria alvo dos traficantes do Cartel.
Passei uns quinze dias sendo perseguido pelo Cartel de Medellin. Para cada instante eu esperava um ataque. Minha famí-lia, como de hábito, de início lutou contra minha convicção deli-rante, mas, a partir do momento em que ficou claro que eu esta-va com o delírio estabelecido, em seguida entrou no jogo. Não me contrariavam e apenas diziam que para que os traficantes