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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE UFF FACULDADE DE DIREITO BACHARELADO EM DIREITO ROSÁLIA TAVARES BRAGA TELLES RIBEIRO

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF FACULDADE DE DIREITO

BACHARELADO EM DIREITO

ROSÁLIA TAVARES BRAGA TELLES RIBEIRO

A RELATIVIZAÇÃO DO VÍNCULO PATERNO DE FILIAÇÃO NA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL CASEIRA

Orientadora: Profa. Dra. Fernanda Pontes Pimentel

NITERÓI 2019

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A relativização do vínculo paterno de filiação

na inseminação artificial caseira

Rosália Tavares Braga Telles Ribeiro1

RESUMO

O objetivo desse artigo é discutir a possibilidade de relativização do vínculo paterno de filiação na hipótese de inseminação artificial caseira (autoinseminação), quando o doador e receptora do material genético pactuarem expressamente que a criança seria registrada apenas pela mãe, autonomamente ou com seu(sua) cônjuge ou companheiro(a). Discutiremos tal hipótese à luz da legislação, jurisprudência e costumes brasileiros. Nos valeremos também da analogia com institutos do próprio Direito brasileiro que reconhecem a possiblidade de quebra desse vínculo de filiação, como ocorre no caso da doação de anônima de sêmen para inseminação artificial realizada com apoio da medicina. Trata-se de pesquisa bibliográfica, realizada a partir do levantamento de referências teóricas já publicadas, como livros e artigos científicos, entre outros. Dessa forma, a partir da compilação dos trabalhos de estudiosos do direito de família, esperamos levar a cabo um trabalho de pesquisa que, costurado e modelado à luz das nossas convicções, possa provocar nos leitores os saudáveis questionamentos que conduzem à transformação do Direito.

Palavras-Chave: Direito de Família; Filiação; Inseminação Artificial; Paternidade;

Autonomia da Vontade.

ABSTRACT

The objective of this article is to discuss the possibility of relativization of the paternity bond in the hypothesis of home artificial insemination (autoinsemination), when the donor and receiver of the genetic material expressly agree that the child would be registered only by the mother, either autonomously or with her spouse or partner. We will discuss this hypothesis in the light of Brazilian law, jurisprudence and customs. We will also use the analogy with institutes of Brazilian law that recognize the possibility of breaking this bond of affiliation, as occurs in the case of anonymous donation of semen for artificial insemination performed with medical support. It is a bibliographical research, carried out based on the survey of theoretical references already published, such as books and scientific articles, among others. Thus, from the compilation of the works of scholars of family law, we hope to carry out a research work that, tailored and modeled in the light of our convictions, can provoke in readers the healthy questions that lead to the transformation of Law.

Key words: Family Law; Affiliation; Artificial insemination; Paternity; Will Autonomy.

Data de apresentação e aprovação: 18 de julho de 2019.

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1 INTRODUÇÃO

O comportamento social é, em certa medida, balizado pelo Direito, e pelos padrões éticos e morais aceitos por cada grupo. Esse balizamento, contudo, está longe de ser um limitador rígido para as condutas dos indivíduos que compõem esses grupos – razão pela qual surgem incessantemente novas práticas sociais, que se incorporarão paulatinamente ao Direito, à Ética e à Moral, passando assim a compor novos critérios delineadores do comportamento. Assim, pode-se dizer que o Direito, em geral, regula os fatos a posteriori, tratando das questões já existentes no mundo dos fatos.

O Direito brasileiro, preponderantemente, baseia-se na Civil Law, tradição jurídica que encontra fundamento em farto arcabouço normativo. Ainda que a Common Law, baseada principalmente em precedentes judiciais, venha ganhando força no Direito brasileiro, essa tradição jurídica ainda não ofuscou a predominância do Civil Law no nosso país (CASAGRANDE, 2015, n.p).

O privilégio concedido às normas legais, em seu sentido amplo, exigiria frenético esforço normativo para que o Direito pudesse refletir, com algum grau de proximidade, as frequentes modificações sociais e comportamentais. Por óbvio os órgãos legislativos não dão conta de acompanhar tais demandas, o que faz com que existam lacunas legislativas no nosso ordenamento jurídico. Deixa o Direito, portanto, ainda que temporariamente, de regular diversas relações, sejam elas interpessoais ou coletivas.

O direito de família é especialmente impactado por esse retardo na atuação legislativa, pois esse ramo do Direito abarca boa parte dessas questões comportamentais. Luiz Edson Fachin2 (1999a apud FARIAS; ROSENVALD, 2010, p.3) observa:

(...) inegável que a família, como realidade sociológica, apresenta, na sua evolução histórica, desde a família patriarcal romana até a família nuclear da sociedade Industrial contemporânea, íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais.

Um dos aspectos do direito de família que vem sofrendo alterações significativas ao longo das últimas décadas é a filiação. Esse vínculo é, talvez, o mais forte entre as pessoas. A conexão estruturante que sustenta o desenvolvimento dos indivíduos.

A ideia de filiação vem sendo alterada na esteira das modificações do comportamento social. Hoje o vínculo de filiação não decorre apenas da concepção e gestação de uma criança por um casal composto por um homem e uma mulher.

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A ciência trouxe reflexos também para o Direito, possibilitando a existência de famílias com as mais diversas configurações. Se no passado a concepção era viável apenas por método natural, através da relação sexual entre um homem e uma mulher férteis, agora são diversas as possibilidades de procriação.

A reprodução assistida pôs fim à necessidade do contato sexual para a ocorrência da concepção, que pode ser dar das mais variadas formas. Atualmente é possível, inclusive, que a fecundação seja conduzida artificialmente por médicos, em laboratório, e que somente após a existência do embrião ele seja implantado no corpo da mulher.

Em decorrência da extrema maleabilidade do comportamento social hodierno e dos exponenciais avanços da ciência, coexistem hoje uma pluralidade de arranjos familiares. Consequentemente, são diversas as possibilidades de estabelecimento de vínculos de filiação. As famílias atuais vão desde a mais tradicional configuração, com pai e mãe, casados e com filhos biológicos gerados pelo método natural, até a família monoparental composta por uma mulher solteira que decide abraçar a maternidade em um voo solo. Passando pelas famílias homoafetivas, pelas famílias compostas por filhos gerados a partir de material genético fornecido por terceiros, e até por aquelas cujos filhos foram gestados por substituição na barrida de outras mulheres. Isso sem citar a realidade da multiparentalidade, reconhecida pelos tribunais brasileiros em prestígio à coexistência dos vínculos socioafetivos e biológicos (TARTUCE, 2018, p. 1.161).

Assim, a filiação não é mais vista como um vínculo essencialmente biológico. Ao contrário, o aspecto tido atualmente como mais importante no vínculo de filiação é o afeto. Nunca a máxima popular de que “pai é quem cria” foi tão verdadeira, e tão aceita.

Seja no processo de reprodução assistida heteróloga, em que o material genético utilizado na inseminação artificial in vitro é doado por outra pessoa (doador de sêmen ou de óvulos), seja no reconhecimento da paternidade socioafetiva ou no processo de adoção, preponderam as figuras do afeto e da vontade de assumir o vínculo de filiação (AGLANTZAKIS, 2010, p. 147). E uma vez estabelecido tal vínculo, incide sobre ele o preceito constitucional da igualdade entre os filhos, não havendo que se falar em qualquer tipo de distinção por força da existência ou não do liame biológico.

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2 A TRANSFORMAÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O DIREITO DAS FAMÍLIAS

A ideia de família que predominou até o final do século passado estava associada fundamentalmente ao casamento formal ou à consanguinidade. Do ponto de vista jurídico, a família, stricto sensu, compreende os consanguíneos em linha reta e os colaterais sucessíveis até o quarto grau (MADALENO, 2018, p. 81).

Mas família pode ser conceituada de diversas outras formas. Em sentido amplo, abrange parentes em linha reta e colateral, de graus próximos e distantes. Segundo Rolf Madaleno (2018, p.81), “ao tempo em que a economia doméstica estava concentrada no meio rural (...), a família já foi mais ampla e (...) envolvia todas as pessoas ligadas pelo vínculo de sangue e oriundas de um tronco ancestral comum”. Em sentido mais restrito, a família restringe-se ao grupo formado pelos pais e seus filhos.

O Código Civil de 1916 pautava-se no conceito de família matrimonializada (FACHIN, 1999b, p. 124), “só existindo legal e socialmente quando oriunda do casamento válido e eficaz, sendo que qualquer outro arranjo familiar existente era socialmente marginalizado” (MADALENO, 2018, p. 81).

As mudanças sociais trouxeram novas leituras para esse termo. A ideia de família deixou de basear-se em vínculos matrimoniais ou consanguíneos para sustentar-se sobre outros pilares. O afeto passou a prevalecer sobre os laços biológicos, e família hoje é, virtualmente, aquilo que se quiser que ela seja: mono ou multiparental, biológica ou socioafetiva, hetero ou homoafetiva. Um único indivíduo pode constituir uma família unipessoal (PEREIRA, 2004, p. 121), ou um casal sem qualquer relação de afeto pode firmar um “contrato de geração de filho”, instituindo um arranjo de coparentalidade (PEREIRA, 2017, n.p) que deixa latente a importância da autonomia da vontade no direito de família.

De acordo com a Constituição Federal, a família é a base da sociedade e tem proteção especial do Estado.3 Diante dos modelos diversificados de família, ocorrência incontestável no mundo dos fatos, é preciso que o Direito estenda essa proteção para alcançar cada entidade que assim se considere. A ausência de padronização não pode implicar ausência de proteção.

Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p. 117) ressalta que a Constituição Federal de 1988 expandiu o conceito de família, dispondo sobre a união estável e a família monoparental:

O princípio da pluralidade das formas de família, embora seja um preceito ético universal no Brasil, teve seu marco histórico na Constituição da República de 1988,

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que trouxe inovações ao romper com o modelo familiar fundado unicamente no casamento, ao dispor sobre outras formas de família: união estável e família monoparental.

Mas Paulo Luiz Netto Lôbo4 (2002 apud PEREIRA, 2004, p. 118) complementa que a enumeração dos tipos de família contida na norma constitucional é meramente exemplificativa, e remete-se aos princípios constitucionais para concluir que “a exclusão não está na Constituição, mas na interpretação.” Afirma o autor que, embora não tenha nominado todas as entidades de família existentes, a Constituição de 1988 „chancelou-lhes (sic) proteção ao suprimir a locução “constituída pelo casamento”, presente nas Constituições de 1967 e de 1969‟ (LÔBO, 2002 apud PEREIRA, 2004, p.118).

Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 19) “o direito de família constitui o ramo do direito civil que disciplina as relações entre as pessoas unidas pelo matrimônio, pela união estável ou pelo parentesco, bem como os institutos complementares da tutela e da curatela”.

Já Maria Berenice Dias (2015, p. 34) alega que é difícil definir o direito de família, pois ele tem espectro cada vez mais abrangente. Assim, ao invés de defini-lo acaba por enumerar os “vários institutos que regulam não só as relações entre pais e filhos, mas também entre cônjuges e conviventes, ou seja, a relação das pessoas ligadas por um vínculo de consanguinidade, afinidade ou afetividade”.

O direito de família é regulado principalmente pelo Código Civil brasileiro, instituído pela Lei nº 10.406/02. A referida Lei foi aprovada após vinte e seis anos de tramitação no Congresso Nacional, com sucessivas idas e vindas ao Senado e à Câmara dos Deputados, ao longo dos quais sofreu “progressiva e incessante atualização” (REALE5

, 2005 apud MADALENO, 2018, p. 41). O longo período de tramitação do Código Civil nas casas legislativas fez com que entrasse em vigor com alguma defasagem, pois deixou de refletir muitas das modificações sociais, legais e científicas ocorridas ao longo desse tempo. Um exemplo é o tema da fertilização assistida, que não foi devidamente tratado no atual Código Civil (MADALENO, 2018, p. 41).

As normas do direito de família, assim como as de qualquer outro ramo do Direito, submetem-se à interpretação à luz das normas constitucionais, como bem afirmam Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. xxxvi) na apresentação de sua obra sobre direito das famílias. Para os autores, não basta interpretar o direito civil de acordo com a Constituição

4 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Revista Brasileira do Direito de Família, Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, n. 12, p. 44, jan./ mar. 2002.

5 REALE, Miguel e MARTINS-COSTA, Judith (Coord.). História do novo Código Civil. São Paulo: RT, 2005. v. 1, p. 25.

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– é preciso reconstruir os princípios do direito de família a partir do espírito garantista e solidário da carta constitucional.

Assim, o direito de família é balizado não apenas pelos princípios gerais do Direito, mas também pelos princípios específicos do direito de família, que cuidam de conferir às normas legais a melhor interpretação, e também de preencher as lacunas que a legislação não tratou de evitar.

3 A FILIAÇÃO NOS NOVOS MODELOS DE FAMÍLIA

3.1 BREVE HISTÓRICO

A Constituição Federal de 1988 alterou de forma estrutural o ordenamento jurídico brasileiro, do qual é a norma fundamental. Um dos aspectos do direito de família que foi modificado em sua essência pelos novos preceitos constitucionais diz respeito à filiação.

Antes da entrada em vigor da atual Constituição, as normas vigentes faziam distinção entre os filhos nascidos dentro do casamento e os nascidos fora dele. O filho nascido na constância do casamento era presumidamente do marido, ainda que biologicamente fosse filho de outro homem. A inexistência de técnica científica que permitisse confirmar a paternidade biológica sustentava a verdade jurídica de que “pai é o marido da mãe” (DIAS, 2015, p. 386).

Até então, os filhos eram categorizados. Os filhos legítimos eram os nascidos na constância do casamento; filhos legitimados, equiparados aos legítimos, eram os nascidos ou concebidos antes do casamento, por pessoas que supervenientemente vinham a casar-se; filhos naturais eram os nascidos de pessoas sem impedimento para casar; filhos adulterinos eram os tidos fora do casamento, frutos do adultério; filhos incestuosos eram os nascidos de pessoas impossibilitadas de se casarem entre si, por terem vínculo de parentesco próximo (LIRA, 1999, p. 86).

Os filhos nascidos fora do casamento carregavam um estigma social. O filho adulterino e o filho incestuoso não podiam nem mesmo ser reconhecidos como filhos, por determinação expressa do art. 358 do Código Civil.6 “Os filhos incestuosos (...) eram verdadeiros párias. Para sua proteção as únicas vias possíveis eram o testamento, e a eventualidade da putatividade no casamento” (LIRA, 1999, p. 90). Eram frutos da conduta

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ilícita do genitor ou da genitora e, nesses casos, os filhos é que eram penalizados pela ilicitude cometida pelo pai ou pela mãe (DIAS, 2015, p. 387).

Nesse sentido o matrimônio, enquanto instituição, recebia maior proteção jurídica do que o vínculo de filiação em si. Segundo afirma Maria Berenice Dias (2015, p. 387), “o nascimento de filho fora do casamento colocava-o em uma situação marginalizada para garantir a paz social do lar formado pelo casamento do pai. Prevaleciam os interesses da instituição matrimônio”.

Segundo Luiz Edson Fachin (1999b, p. 123-124), a Lei nº 3.071 de 1916, que instituiu o ora revogado Código Civil de 1916, “ao associar ao casamento a noção de legitimidade da filiação, disciplinou restrições impostas aos filhos havidos de relações extramatrimoniais. A família do Código era a família matrimonializada”. Nesse sentido, o art. 229 da referida lei determinava, ipsis litteris, que “criando a família legítima, o casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos”.

Diversas alterações legislativas ocorreram ao longo do tempo até que fosse possível o reconhecimento dos filhos tidos fora do casamento. Ainda assim, havia distinção entre os direitos sucessórios desses filhos e os daqueles nascidos na constância da união.

A Lei nº 6.515/77, a Lei do Divórcio, teve papel relevante na questão da filiação por permitir o reconhecimento dos filhos adulterinos na vigência do casamento, e, principalmente, por garantir aos filhos incestuosos os efeitos civis do casamento, ainda que o vínculo matrimonial fosse anulado (BARBOZA, 1999, p. 136-137).

Somente com o advento da promulgação da Constituição Federal de 1988 é que os filhos passaram a ter condição de igualdade, não importando sua origem. Nesse sentido, Maria Berenice Dias (2015, p. 388) aponta:

A proibição de reconhecimento dos filhos ilegítimos foi alvo de progressivos abrandamentos, e só foi derrubada pela Constituição Federal que proibiu tratamento discriminatório quanto à filiação, o que ensejou a revogação do dispositivo do Código Civil que vedava o reconhecimento dos filhos espúrios.

O Código Civil de 1916, contudo, vigorou por mais alguns anos até que fosse revogado pela Lei nº 10.406, que instituiu o Código Civil de 2002. Foi necessário, então, adequar a Lei de 1916 para que refletisse os novos preceitos constitucionais. Assim, a Lei nº 7.841/89 cuidou de eliminar da legislação brasileira os resquícios da diferenciação entre os filhos, revogando o art. 358 do Código Civil de 1916 (CARBONERA, 1999, p. 486).

Assim, podemos afirmar que a partir de 1989 a lei brasileira concedeu a todos os filhos os mesmos direitos, vedando qualquer distinção entre eles em razão de sua origem.

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3.2 FILIAÇÃO E SEU ALCANCE ATUAL: A PREPONDERÂNCIA DO AFETO

A Constituição de 1988 pôs fim à desigualdade entre os filhos nascidos na constância do casamento e os nascidos fora dele. Mas esses já não eram os únicos aspectos de diferenciação entre os filhos. A tradicional filiação biológica, cujos laços eram estabelecidos a partir da concepção pelos processos naturais, abriu espaço para outras possibilidades de filiação baseadas não apenas na genética, mas também – e principalmente – no afeto.

Silvana Carbonera (1999, p.486) ressalta a importância do afeto no direito de família: Quando a presença do afeto nas relações de família era presumida, sua relevância jurídica consistia em ser tomado como existente, não dando margem para muita discussão. Porém, a partir do momento em que sua presença se tornou essencial para dar visibilidade jurídica a relações familiais, o afeto tomou outro sentido e passou a ocupar maior espaço no Direito de Família (CARBONERA, 1999, p. 486).

Silvio Rodrigues compreende filiação como sendo a relação de parentesco em primeiro grau e em linha reta, ligando uma pessoa àquelas que a geraram ou que a receberam como se a tivessem gerado (RODRIGUES7, 2002 apud FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 542). Como se aduz das palavras do autor, gerar o filho não é condição exigida para o estabelecimento da filiação.

Até poucas décadas atrás os filhos eram categorizados segundo as definições legais do Código Civil. Os filhos eram legítimos, legitimados, naturais, adulterinos ou incestuosos, a depender da situação civil dos seus genitores: se eram casados entre si, solteiros, casados com outrem, ou se possuíam laços de parentesco que os impedissem de se casarem um com o outro (LIRA, 1999, p. 86). Cada categoria de filho possuía um rol de direitos, que não eram equalizados. Os filhos legítimos, que tiveram a sorte de nascer no seio de uma família matrimonializada, eram titulares de todos os direitos decorrentes do vínculo de parentesco, inclusive os direitos sucessórios. Os demais filhos, a depender das circunstâncias de seu nascimento, eram titulares apenas de alguns subconjuntos daqueles direitos, podendo chegar ao limite de não terem direito algum, como ocorreu por muito tempo com os filhos incestuosos (LIRA, 1999, p. 90).

Como já ressaltado anteriormente, o matrimônio era priorizado no Código Civil de 1916, fazendo com que a questão da filiação fosse tratada à luz dessa instituição (FACHIN, 1999b, p. 123-124). Essa situação somente foi extinta, estruturalmente, do ordenamento jurídico brasileiro quando a Constituição de 1988 instituiu como preceito a vedação à distinção entre os filhos.

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A igualdade jurídica entre os filhos é um dos vieses do princípio da igualdade, quanto à sua aplicação ao direito de família. Esse princípio está presente no art. 227, § 6º da Constituição Federal.8 Sobre esse dispositivo legal Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 23-24) aduz:

O dispositivo em apreço estabelece absoluta igualdade entre todos os filhos, não admitindo mais a retrógrada distinção entre filiação legítima ou ilegítima, segundo os pais fossem casados ou não, e adotiva, que existia no Código Civil de 1916. Hoje, todos são apenas filhos, uns havidos fora do casamento, outros em sua constância, mas com iguais direitos e qualificações (Código Civil, artigos 1.596 a 1.629).

Assim, à luz dos preceitos constitucionais ora vigentes, todos os filhos são iguais e possuem os mesmos direitos, não importando as circunstâncias do seu nascimento.

Mas antes mesmo da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, e para além das contínuas mudanças comportamentais promovidas pela sociedade, um fato relevante no campo da ciência trouxe novas perspectivas para a questão da filiação: a possibilidade de concepção de um filho através de reprodução assistida.

O primeiro nascimento no Brasil de uma criança concebida através de reprodução assistida ocorreu em 1984 (MOURA; SOUZA; SCHEFFER, 2009, p. 36). Desde então as técnicas vêm se popularizando cada vez mais. No passado, a técnica voltava-se principalmente aos casais com dificuldades para conceber pelos métodos naturais, mas atualmente presta-se à formação de famílias das mais diversas configurações. Se originalmente consistia apenas em um apoio científico ao processo de fecundação do gameta feminino pelo gameta masculino do próprio casal de genitores, atualmente a técnica permite a concretização do sonho da paternidade para homens e mulheres nas mais variadas situações (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017, p. 73), sendo secundário, nesse contexto, o aspecto biológico da filiação que dela se origina.

A utilização de técnicas de reprodução assistida tem crescido sistematicamente. Estima-se que cerca de oito milhões de bebês já nasceram no mundo com a ajuda delas (SCUTTI, 2018, n.p). Os seus custos, entretanto, restringem significativamente o seu alcance social. As parcelas da sociedade que têm acesso a essas técnicas não incluem as camadas sociais mais pobres, reforçando o conceito de exclusão social. O sonho existencial da paternidade/maternidade é viável para homens e mulheres, desde que possuam recursos financeiros para pagar pelo tratamento nas clínicas de fertilização.

8 “Art. 227, § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (BRASIL, 1988, online).

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Na esfera jurídica, a reprodução assistida trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro a hipótese de presunção de paternidade socioafetiva, prevista no inciso V do art. 1.597 do atual Código Civil.9

A ideia de paternidade socioaefetiva é completamente desvinculada do aspecto biológico da filiação. Advém do convívio, do desenvolvimento do sentimento mútuo de afeto entre o filho e o pai ou a mãe socioafetivos (BARBOZA, 1999, p. 140). Quando a relação desenvolvida preenche todos os requisitos de cuidado, proteção, respeito e amor, não pode receber outro cunho que não o de filiação.

A filiação socioafetiva parte do reconhecimento jurídico da posse de estado de filho. A posse de estado de filho é a situação em que se encontram aqueles que desfrutam da situação jurídica do vínculo de filiação, ainda que esse vínculo não corresponda à verdade. Trata-se de noção baseada na teoria da aparência, cuja tutela empresta juridicidade às manifestações exteriores de uma realidade que não existe (DIAS, 2015, p. 405).

Para Luciana Aglantzakis (2010, p. 146) “a paternidade socioafetiva é a paternidade da verdade social, do vínculo afetivo em que há a certeza de uma posse de estado de filho, independentemente de verdade biológica ou fictícia”. Segundo a autora, o vínculo afetivo é preponderante em relação ao vínculo biológico:

A paternidade biológica é importante, entretanto, de maior relevo é a paternidade interpretada com a qualificadora da função social, que no Direito da Família é o afeto, e diante da teoria da aparência a paternidade socioafetiva é qualificada pelo amor que merece prevalecer em face da verdade biológica (AGLANTZAKIS, 2010, p. 147).

A filiação socioafetiva se faz presente, por exemplo, nas famílias formadas por casais homoafetivos, ou nas novas famílias formadas no segundo matrimônio de um homem ou uma mulher com filhos. E os tribunais brasileiros refletem a realidade social ao reconhecerem juridicamente a multiparentalidade. Assim dispõe o Ministro Luiz Fux na relatoria do Recurso Extraordinário 898.060/SC, que discutiu a questão do reconhecimento de múltiplos vínculos paterno-filiais:

(...) descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário. (BRASIL, 2016b, p. 17).

9 “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.” (BRASIL, 2002, online).

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Não importa como seja estabelecido o vínculo de filiação, é certo que estará acobertado pelo princípio constitucional da igualdade jurídica entre os filhos, previsto no art. 227, §6º da CF (BRASIL, 1988, online). Neste sentido, Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 543) apontam:

A liberdade de cada pessoa efetivar a filiação pode ser realizada através de mecanismos biológicos (através de relacionamentos sexuais, estáveis ou não), da adoção (por decisão judicial), da fertilização medicamente assistida, ou por meio do estabelecimento afetivo puro e simples da condição paterno-filial. Seja qual for o método escolhido, não haverá qualquer efeito diferenciado para o tratamento jurídico (pessoal e patrimonial) do filho.

Nas palavras de Pedro Lenza (2016, p. 1.467), “prioriza-se, portanto, a família socioafetiva à luz da dignidade da pessoa humana, com destaque para a função social da família, consagrando a igualdade absoluta entre os cônjuges (art. 226, § 5º) e os filhos (art. 227, § 6º)”.

4 A AUTONOMIA DA VONTADE NO ESTABELECIMENTO DO VÍNCULO DE FILIAÇÃO

O livre planejamento familiar está intimamente relacionado ao exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, dos direitos à sexualidade, ao próprio corpo, à saúde, entre outros direitos personalíssimos. “O pleno gozo de tais direitos encontra-se diretamente ligado ao exercício da autonomia privada e de seu fundamento máximo que é a liberdade” (RODRIGUES, 2013, n.p.).

O art. 226 §7º da Constituição Federal de 198810 preceitua a igualdade entre os cônjuges quanto ao planejamento familiar, com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (PEREIRA, 2004, p. 112). Para Dias (2015, p. 47), o livre planejamento familiar, previsto constitucionalmente e legalmente (art. 1.565 § 2º CC11 e Lei 9.263/96), decorre do princípio da igualdade.

Por força do direito ao livre planejamento familiar qualquer indivíduo pode abraçar a paternidade/maternidade de forma independente e autônoma, constituindo uma família

10 “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.” (BRASIL, 1988, online).

11 “Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. (...)

§ 2o O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.” (BRASIL, 1988, online)

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monoparental (MEIRELLES, 2001, p. 5). As técnicas de reprodução assistida são acessíveis também aos casais homoafetivos. A Resolução 2.168/2017 (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017, p. 73) prevê expressamente a possibilidade de pessoas solteiras ou em relacionamentos homoafetivos exercerem seus direitos reprodutivos e ao livre planejamento familiar, utilizando-se dos procedimentos de reprodução assistida. À mulher cabe, ainda, a alternativa de conceber um filho através dos meios naturais, em uma produção independente.

Maria de Fátima Freire de Sá (2003, p. 5) expande o conceito de produção

independente para abarcar as gestações decorrentes da utilização de técnicas de reprodução

assistida: “os avanços biotecnológicos propiciaram a chamada „produção independente‟, expressão esta originalmente usada para designar atitudes de mulheres que engravidavam por métodos tradicionais, mas que assumiam sozinhas os filhos”.

A família com filhos gerados a partir de técnicas de reprodução assistida é chamada “família ectogenética” (PEREIRA, 2018, n.p.). Nessa configuração familiar a autonomia da vontade está presente de forma muito ostensiva, haja vista a necessidade de empreender grandes esforços financeiros e emocionais para gerar um filho através dessas técnicas.

O autor pontua que as técnicas científicas “proporcionaram caminhos e possibilidades para a constituição de novas relações de parentesco” (PEREIRA, 2018, n.p.). As parcerias de paternidade/maternidade, em que pessoas sem vínculo conjugal ou sexual entram em acordo para gerar um filho, fazem surgir para o direito o modelo de família coparental baseado em um novo tipo de contrato: o “contrato de geração de filhos”.

Segundo Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p. 112), do art. 1.513 do Código Civil12 extrai-se o fundamento legal para recepcionar a autonomia privada como princípio fundamental do direito de família. Para o autor, o direito de família tem feições de direito privado, de maneira que a tutela do Estado quanto às relações de família não pode restringir a autonomia privada nem limitar a vontade e a liberdade dos indivíduos (PEREIRA, 2004, p. 109).

Assim, a maleabilidade do comportamento social modifica sistematicamente os modelos familiares, e consequentemente cria novas lacunas nas leis que regulam o direito de família. O direito de família, contudo, tem feições de Direito Privado, o que confere aos indivíduos autonomia para agirem conforme sua vontade. Nesse sentido, os acordos que regulem questões de família, ainda que sejam questões existenciais, deverão ter força de lei entre as partes..

12 “Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família” (BRASIL, 2002, online)

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5 A POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO DO VÍNCULO DE PATERNIDADE NA DOAÇÃO DE SÊMEN PARA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL CASEIRA

Um dos vieses do princípio da igualdade no direito de família é a igualdade entre homens e mulheres. Como afirma Marcelo Novelino13 (2008 apud PEREIRA; NETO, 2015, p. 256), a igualdade de direitos entre homens e mulheres implica que a lei não estabeleça diferenciações entre eles, a não ser que tais diferenciações tenham a finalidade de atenuar desníveis, de forma a buscar uma igualdade material.

Mas será que o direito ao livre planejamento familiar pode ser exercido de forma igualitária pelo homem e pela mulher?

No que diz respeito à concepção e a gestação de uma criança, é evidente a significativa diferença entre homens e mulheres, uma vez que o homem não é capaz de gerar em seu ventre um filho. Assim, qualquer comparação entre os direitos femininos e masculinos quanto a esse tema deve ser cuidadosamente ponderada.

Luis Roberto Barroso defende a descriminalização da interrupção da gestação durante seu primeiro trimestre. O Ministro do Supremo Tribunal Federal afirma, em seu voto-vista no supramencionado HC 124.306/RJ, que “na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não” (BRASIL, 2016a, p. 11). Segundo essa linha de raciocínio, então, é irrelevante, ou menos relevante, a opinião do homem acerca da manutenção da vida de um filho seu que esteja em gestação no ventre de uma mulher.

Deduz-se da afirmação do Ministro Barroso que, ainda que a lei permitisse a realização do aborto, o homem jamais teria o direito de decidir sobre a interrupção de uma gravidez acidental, uma vez que não é em seu ventre que a criança se desenvolve. Tornar-se-ia pai, portanto, independentemente da sua vontade.

Observe-se que o termo acidental foi destacado. Isso porque a prática do ato sexual traz sempre o risco de uma concepção, mesmo que o casal adote métodos contraceptivos. A assunção desse risco vincula os envolvidos às consequências dele advindas. Nesse sentido, a concepção acidental nada mais é do que a concretização de um risco assumido pelo casal ao praticar o ato sexual.

Assim como não é permitido ao homem decidir sobre a manutenção da gestação de seu filho, também não é viável que decida, individualmente, pela entrega da criança para

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adoção. A Lei nº 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhece a eventualidade de a gestante não querer ou não poder assumir os cuidados com o seu filho, e prevê em seu art. 19-A14 os procedimentos para que ela entregue a criança para adoção após o nascimento (MADALENO, 2018, p. 848).

É certo que o consentimento do genitor é exigido na entrega para adoção, quando existe um pai registral ou conhecido. A vontade dele, contudo, é subsidiária em relação à da mulher, pois o §5º do art. 19-A determina que, se a mãe não indicar o pai, ela terá a prerrogativa de realizar a entrega sozinha. Também nesse caso o homem não poderá, sozinho, abrir mão da sua condição de pai.

No Brasil, atualmente, a única hipótese legal em que ocorre a quebra do vínculo de paternidade biológica é no caso da doação anônima de sêmen para Reprodução Assistida (PIMENTEL, 2017, n.p), dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina em suas Resoluções acerca do tema. A Resolução 2.168/2017 (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017, p. 73), atualmente em vigor, exige o anonimato do doador como forma de proteção a qualquer vínculo com o filho gerado a partir do seu material genético. Na esfera estritamente legal, o Código Civil estabelece, no inciso V do art. 1.597,

14 “Art. 19-A. A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude.

§ 1o A gestante ou mãe será ouvida pela equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, que apresentará relatório à autoridade judiciária, considerando inclusive os eventuais efeitos do estado gestacional e puerperal.

§ 2o De posse do relatório, a autoridade judiciária poderá determinar o encaminhamento da gestante ou mãe, mediante sua expressa concordância, à rede pública de saúde e assistência social para atendimento

especializado.

§ 3o A busca à família extensa, conforme definida nos termos do parágrafo único do art. 25 desta Lei, respeitará o prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável por igual período.

§ 4o Na hipótese de não haver a indicação do genitor e de não existir outro representante da família extensa apto a receber a guarda, a autoridade judiciária competente deverá decretar a extinção do poder familiar e determinar a colocação da criança sob a guarda provisória de quem estiver habilitado a adotá-la ou de entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional.

§ 5o Após o nascimento da criança, a vontade da mãe ou de ambos os genitores, se houver pai registral ou pai indicado, deve ser manifestada na audiência a que se refere o § 1o do art. 166 desta Lei, garantido o sigilo sobre a entrega.

§ 6º Na hipótese de não comparecerem à audiência nem o genitor nem representante da família extensa para confirmar a intenção de exercer o poder familiar ou a guarda, a autoridade judiciária suspenderá o poder familiar da mãe, e a criança será colocada sob a guarda provisória de quem esteja habilitado a adotá-la. § 7o Os detentores da guarda possuem o prazo de 15 (quinze) dias para propor a ação de adoção, contado do dia seguinte à data do término do estágio de convivência.

§ 8o Na hipótese de desistência pelos genitores - manifestada em audiência ou perante a equipe

interprofissional - da entrega da criança após o nascimento, a criança será mantida com os genitores, e será determinado pela Justiça da Infância e da Juventude o acompanhamento familiar pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias.

§ 9o É garantido à mãe o direito ao sigilo sobre o nascimento, respeitado o disposto no art. 48 desta Lei. § 10. Serão cadastrados para adoção recém-nascidos e crianças acolhidas não procuradas por suas famílias no prazo de 30 (trinta) dias, contado a partir do dia do acolhimento” (BRASIL, 1990, online).

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que os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que com prévia autorização do marido, são presumidamente concebidos na constância do casamento.

Todavia, a relativização do vinculo paterno-filial pode estender-se a outras situações, com base na aplicação do principio da autonomia da vontade. Uma dessas hipóteses é a inseminação artificial caseira, ou autoinseminação, conforme discutiremos a seguir.

5.1 REPRODUÇÃO CIENTIFICAMENTE ASSISTIDA

Uma das mais relevantes mudanças no campo da ciência nas últimas décadas provocou grande impacto também nos campos social e jurídico. A reprodução assistida ampliou as possibilidades de concepção, permitindo que pessoas com problemas de fertilidade pudessem gerar filhos.

Reprodução assistida é um conceito que envolve técnicas científicas, utilizadas por médicos especializados, cujo objetivo é viabilizar uma gestação quando ela não é naturalmente viável. Nas palavras de Maria Berenice Dias (2015, p. 400):

A fecundação resultante de reprodução medicamente assistida é utilizada em substituição à concepção natural, quando a dificuldade ou impossibilidade de um ou de ambos de gerar um filho. (...) Chama-se de concepção homóloga a manipulação dos gametas masculinos e femininos do próprio casal. (...). Na inseminação heteróloga, a concepção é levada a efeito com material genético de doador anônimo (...).

As técnicas são diversas e se resumem em dois grupos: a inseminação artificial, em que a fecundação ocorre dentro do corpo da mulher, e a fertilização in vitro, em que a fecundação se dá fora do corpo da mulher. Por qualquer das técnicas é possível realizar a inseminação homóloga, quando os gametas utilizados no processo pertencem a um casal que, em livre acordo, submete-se ao procedimento, ou a inseminação heteróloga, quando são utilizados gametas de doadores (MEIRELLES, 2001, p. 2-3).

Jussara Maria Leal de Meirelles (2001, p. 3) acrescenta:

Muito embora os métodos mais conhecidos de reprodução assistida sejam a inseminação artificial e a fertilização in vitro, vale ressaltar que a expressão “reprodução assistida” não se limita somente a essas práticas de implantação artificial de gametas ou embriões humanos no aparelho reprodutor feminino, com a finalidade de facilitar a procriação.

As técnicas de reprodução assistida tornaram-se populares nas últimas décadas, trazendo a esperança da maternidade e paternidade para casais com dificuldades para engravidar. Mais recentemente, e não sem o enfrentamento de várias polêmicas e controvérsias, a reprodução assistida passou a ser utilizada para a formação de famílias de

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novas configurações, como as famílias monoparentais formadas por pessoas solteiras, ou por casais homoafetivos que se socorrem do método artificial de concepção para tornarem-se pais ou mães.

Um aspecto que se destaca no contexto da reprodução assistida é a preponderância da autonomia da vontade no processo de concepção, já que para que o resultado seja atingido é necessário que o(s) genitor(es) deliberadamente envidem esforços para tal.

No Brasil não existe lei, em sentido estrito, que regule a reprodução assistida. O Projeto de Lei nº 115/2015, que tramita na Câmara dos Deputados, visa instituir o Estatuto da Reprodução Assistida e tem o intuito de regular a matéria, porém ainda não foi aprovado (BRASIL, 2015, online).

O Código Civil brasileiro regula apenas o aspecto da presunção de paternidade na hipótese de reprodução assistida heteróloga, conforme será visto adiante. A Lei nº 11.105/2005, de Biossegurança, limitou-se a estabelecer parâmetros para utilização de embriões humanos congelados (BRASIL, 2005, online).

A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, aprovada pela UNESCO em 1997, estabelece os princípios básicos relacionados à pesquisa em genética e biologia, que acabam por balizar qualquer norma a ser produzida sobre a matéria. Não tem, contudo, obrigatoriedade de aplicação (UNESCO, 2001, p. 13).

Em sentido amplo, no entanto, o conceito de legislação abarca outros tipos de normas produzidas pelo Estado (CAVALCANTI, 2014, n.p). Nesse conceito se incluem as resoluções emanadas pelos conselhos profissionais. Assim, o Conselho Federal de Medicina edita normas que regulam o tema quanto ao seu aspecto médico e ético. Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça regula, através do Provimento nº 63/2017, as questões relativas ao registro civil dos filhos havidos por reprodução assistida (COUTO, 2015, n.p). A norma do Conselho Federal de Medicina, apesar de refletir a perspectiva da ciência, produz efeitos também na esfera jurídica, pois dispõe acerca da questão da filiação.

A primeira norma a regular a reprodução assistida foi a Resolução nº 1.358, de 19 de novembro 1992 (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 1992, p. 16053). A referida Resolução estabelecia diretrizes para a prática e fixava limites éticos a serem observados. O regulamento foi substituído, subsequentemente, pelas Resoluções nº 1.957/2010, nº 2.013/2013 e nº 2.121/2015 e, por fim, pela Resolução nº 2.168/2017, que se encontra em vigor até o presente momento. Conjuntamente com o Código de Ética da mesma entidade, a Resolução estabelece os parâmetros para a utilização da prática de Reprodução Assistida no âmbito dos serviços médicos especializados.

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5.2 A REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA E A PATERNIDADE

Ainda que se trate de norma emanada pelo conselho profissional de uma área da ciência, a Resolução nº 2.168/2017 (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017, p.73) tem reflexos na esfera do Direito. Um deles é a questão da possível discussão da paternidade de um filho gerado através da reprodução assistida heteróloga.

“A fecundação artificial heteróloga ocorre quando o marido manifesta expressamente concordância que sua mulher se submeta ao procedimento reprodutivo com a utilização de sêmen doado por terceira pessoa”, é o que afirma Maria Berenice Dias (2015, p. 402). Nessa hipótese, afasta-se a paternidade do doador e a filiação legal é estabelecida com o marido. “A manifestação do cônjuge corresponde a uma adoção antenatal, pois revela, sem possibilidade de retratação, o desejo de ser pai (...). Trata-se de presunção absoluta de paternidade socioafetiva” (DIAS, 2012, p. 402-403). Assim, não se conflitam os papéis nem as responsabilidades em relação à criança gerada: um é pai, o outro é doador.

Na mesma toada, Rolf Madaleno (2018, p. 631) pontua:

Outro fenômeno a ser considerado nesta mutação da modelagem familiar deriva das novas descobertas e dos avanços das técnicas de reprodução assistida, viabilizando que terceiros estranhos à relação possam ser biologicamente responsáveis pela geração de uma criança, sem assumirem oficialmente o papel parental de ser pai ou mãe, dando vazão à noção da filiação afetiva, que descarta a contribuição genética e valoriza a criação pelo afeto.

Os ensinamentos de ambos os autores refletem a redação vigente no inciso V do art. 1.597 do Código Civil brasileiro, segundo o qual “presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: (...) havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido” (BRASIL, 2002, online).

Raphael Rego Borges Ribeiro (2016, p. 60) ressalta ser necessária a presença da vontade procriacional na reprodução assistida:

(...) para ser juridicamente possível a concepção artificial, necessário se faz verificar a existência de vontade procriacional, consistente no “consentimento prestado com o fim de procriar” (AGUIAR15, 2005 apud RIBEIRO, 2016, p. 60), que deve ser manifestada pelas pessoas a quem se atribuirão paternidade e maternidade.

O processo de reprodução assistida por inseminação artificial heteróloga, quando realizado em clínicas médicas, envolve a realização de contratos de doação, tanto entre o(a) doador(a) do material genético e a clínica de fertilização, quanto entre a clínica de fertilização e o(a) receptor(a) do material doado (BARBOSA, 2012, p. 14).

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Ainda que alguns autores não classifiquem como contratual a relação entre a clínica médica e um casal receptor, Camilo de Lelis Colani Barbosa (2012, p. 17) aponta a importância da outorga do consentimento do homem (marido/companheiro), para evitar que posteriormente possa haver questionamentos na justiça acerca da paternidade da criança. Segundo seu entendimento a relação tem, sim, caráter contratual:

Ora, se existe a manifestação de vontades − de um lado a vontade de receber o material genético em inseminação e de outro a vontade de transmitir o mesmo material genético − e se essas vontades estão em conformidade com o ordenamento jurídico, não lhe sendo vedado, no caso em questão, e sendo destinado a criar entre as partes uma regulamentação, ou melhor, uma série de condutas visando a um objetivo, há que se ter, necessariamente, contrato. (BARBOSA, 2012, p.17)

Seu posicionamento condiz com o que ensina Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 72): O contrato é um acordo de vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir direitos. Constitui o mais expressivo modelo de negócio jurídico bilateral. A manifestação da vontade pode ser expressa ou tácita. Poderá ser tácita quando a lei não exigir que seja expressa (CC artigo 111). (...). Não havendo na lei tal exigência, vale a manifestação tácita, que se infere da conduta do agente.

Assim, as partes envolvidas não poderão, posteriormente, buscar na justiça o reconhecimento de paternidade do doador em relação à criança gerada. Isto porque o consentimento do cônjuge ou companheiro para que a mulher realize o procedimento de inseminação artificial heteróloga implica uma manifestação de vontade no sentido da concepção daquele filho na constância do casamento.

5.3 A REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA E O DIREITO À

ANCESTRALIDADE

Ainda que o vínculo de filiação seja estabelecido por critérios legais, discute-se o direito do filho gerado por reprodução assistida heteróloga de conhecer sua ancestralidade, assim como ocorre no caso da adoção.

O Estatuto da Criança e do Adolescente expressamente reconhece esse direito ao filho adotado, em seu art. 48. Não existe lei que garanta o mesmo direito ao filho gerado a partir de material genético doado, mas a Resolução nº 2.168/2017 ressalva que “em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a)” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017, p. 73).

O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, no entanto, tende a extrapolar os limites estabelecidos na norma do conselho profissional. A Min. Nancy Andrighi, ao julgar o

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REsp 807.849/RJ, reconheceu que “o direito à busca da ancestralidade é personalíssimo, e dessa forma, possui tutela jurisdicional integral e especial, nos moldes dos arts. 5º e 226 da CF/88” (BRASIL, 2010, n.p).

No mesmo sentido, a Ministra afirmou, ao julgar o REsp 833.712/RS (BRASIL, 2007):

(...) O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inc. III da CF/88, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, traz em seu bojo o direito à identidade biológica e pessoal; - Caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica. (...). (STJ, Ac.unân. 3ªT., REsp nº 833.712/RS rel. Min. Nancy Andrighi, j. 17.5.07, DJU 4.6..07, p; 357).

Observe-se que a investigação da identidade biológica não altera os vínculos de filiação, estabelecidos por parâmetros legais. O reconhecimento do vínculo biológico entre o doador e a criança gerada a partir do seu material genético não constitui vínculo de filiação, nem implica na aquisição, por qualquer das partes, de direito decorrente desse vínculo (DIAS, 2015, p. 403).

Trata-se, no caso, da ponderação entre o direito do doador ao anonimato e o direito do filho ao conhecimento da sua identidade genética. O anonimato do doador é garantido como forma de incentivo à doação, mas não deve prevalecer sobre o direito fundamental da criança ao conhecimento da sua ancestralidade.

Assim, deve ser reconhecida a possibilidade de que o fruto da reprodução assistida heteróloga proponha ação investigatória de paternidade com a finalidade de apuração da sua identidade genética, mas o acolhimento da ação não terá efeitos registrais (CAMPOS16, 2006 apud DIAS, 2015, p. 403).

A questão da exigibilidade do anonimato e do desconhecimento da identidade do doador ainda é controvertida. Essa medida visa proteger o doador, mas há situações em que essa proteção é indesejada, e a obrigatoriedade da norma acaba por trazer mais malefícios do que benefícios às partes envolvidas.

A Resolução 2.168/2017 (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017, p. 73) é expressa no sentido de exigir o anonimato do doador de material genético, mas os usuários da reprodução assistida vêm demandando ao Judiciário autorização para a realização do

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CAMPOS, Wania Andréa; FIGUEIREDO, Luciana C. Duarte de. O direito à busca da origem genética na relação familiar socioafetiva. In: PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A ética da convivência familiar: sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 358.

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procedimento com gametas de doadores conhecidos. A questão não está pacificada nos tribunais brasileiros, o que se reflete em decisões conflitantes.

A 5ª Vara Federal de Curitiba indeferiu um pedido para utilização dos óvulos doados pela irmã de um dos autores do processo judicial. A intenção deles era de que o filho fosse geneticamente parecido com um dos pais. Na decisão, a magistrada "afirmou que a norma pretende dar segurança à reprodução assistida e que a mera anuência da doadora de óvulos não gera o direito de escolha pela paciente do óvulo a ser implantado" (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2019, n.p).

A 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a seu lado, entendeu que a lei que rege o planejamento familiar, Lei nº 9.263/96, não impede que os pais conheçam os doadores de gametas, e vice-versa, em caso de inseminação artificial. Por essa razão, o órgão deu provimento à apelação de um casal para que o procedimento fosse feito a partir de espermatozoides doados pelo cunhado da mulher (CONJUR, 2017, n.p).

Eduardo de Oliveira Leite17 (1995 apud SOUZA, 2018, p. 52-53) defende o anonimato do doador de sêmen como condição para exclusão do vínculo de filiação entre doador e criança:

(...) a doação de gametas não gera ao seu autor nenhuma consequência parental relativamente à criança daí advinda. A doação é abandono a outrem, sem arrependimento sem possibilidade de retorno. É medida de generosidade, medida filantrópica. Essa consideração é o fundamento da exclusão de qualquer vínculo de filiação entre doador e a criança oriunda da procriação. É, igualmente, a justificação do princípio do anonimato.

Gisele Braz de Souza (2018, p. 53) concorda que o anonimato é necessário, na medida em que o doador, que não faz parte do projeto familiar, age com altruísmo e sem receber qualquer remuneração, de forma que “a única coisa que pode ser considerado como bônus para o doador é que a sua privacidade não seja violada”.

As ponderações de Eduardo de Oliveira Leite e de Gisele Braz de Souza quanto ao anonimato do doador, contudo, somente procederiam se fosse desejo dele manter-se anônimo, o que não necessariamente ocorre em todos os casos. Citem-se os julgados supramencionados, em que as partes autoras recorreram à justiça demandando que a inseminação artificial fosse realizada utilizando-se material genético doado por parentes de um dos genitores.

A rigor, para evitar o estabelecimento do vínculo de filiação entre o filho nascido por reprodução assistida heteróloga e o doador do material genético, não seria necessário manter o

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LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificia e o direito: aspectos médicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 145.

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anonimato desse último. Basta que a questão fosse regulada contratualmente, como bem afirma Camilo de Lelis Colani Barbosa (2012, p. 17).

Assim como na entrega para adoção, em que a gestante – acompanhada ou não do pai do recém-nascido – consente em abrir mão da maternidade da criança, também na doação de material genético o consentimento manifestado contratualmente deve prevalecer, em respeito aos princípios da autonomia da vontade e da boa-fé objetiva. Nesse sentido, afirma Anderson Schreiber: “Nas relações existenciais de família, também se deve admitir a aplicação da boa-fé objetiva, como mecanismo de controle dos atos de autonomia privada (...)” (SCHREIBER, 2005, p. 19).

5.4 A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL CASEIRA: AUTO INSEMINAÇÃO

A utilização de técnicas de reprodução assistida é acessível não apenas às mulheres casadas ou em união estável, em que seus maridos ou companheiros darão autorização para a realização do procedimento médico, assumindo, consequentemente, a perfilhação da criança. O procedimento pode ser realizado por pessoas solteiras, ou em relacionamentos homoafetivos, situações nas quais o filho gerado não terá um pai ou mãe registral.

Ocorre que, conforme apontado no início desse estudo, a sociedade está sempre um passo adiante do Direito. Este, por sua vez, não dá conta de regular, com a desejada agilidade, os novos comportamentos sociais que surgem com frequência cada vez maior.

Assim, vem se popularizando um procedimento de inseminação artificial que foge ao escopo regulado pelo Conselho Federal de Medicina. Trata-se da autoinseminação, ou inseminação artificial caseira, em que o sêmen do homem (doador) é coletado em um frasco esterilizado e imediatamente transferido para o corpo da mulher através da vagina, com o auxílio de uma seringa ou outro instrumento, como um cateter (ANVISA, 2018, n.p).

O procedimento, realizado pelas próprias pessoas envolvidas sem qualquer intervenção médica, se apresenta como uma alternativa ao procedimento realizado pelas clínicas de fertilização. O principal atrativo do método caseiro é o custo, irrelevante quando comparado aos altíssimos custos envolvidos no processo de reprodução assistida realizado em clínicas especializadas, que são impeditivos para a maior parte da população.

A fertilização caseira é popular entre os casais homoafetivos femininos e mulheres solteiras, para as quais a concepção por meios naturais não constitua uma alternativa viável. A técnica depende da fertilidade da mulher, pois não há qualquer intervenção médica para suprir um eventual problema nesse sentido.

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A ANVISA se manifestou sobre a técnica caseira através de seu portal na internet. A notícia alerta para os riscos do procedimento, e informa que a instituição não tem qualquer poder de fiscalização pois os procedimentos não são realizados por um serviço de saúde: “Como são atividades feitas fora de um serviço de Saúde e o sêmen utilizado não provém de um banco de espermas, as vigilâncias sanitárias e a Anvisa não têm poder de fiscalização” (ANVISA, 2018, n.p).

Ainda que a situação em análise não seja acobertada pela Resolução nº 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, não se pode afirmar tratar-se de situação ilícita, pois não está proibida pelo direito. A Constituição Federal apregoa, em seu art. 5º inciso II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (BRASIL, 1988, online), de maneira que a inexistência de norma proibitiva garante a licitude da prática.

Em termos práticos, a coibição da prática de inseminação caseira deixaria descoberta uma significativa fatia da sociedade que, a despeito de ter direito ao livre planejamento familiar, não possui condições econômicas de arcar com esses serviços.

A técnica caseira ainda é cercada de polêmicas, e são apontados riscos à saúde da mulher e do feto, decorrentes do desconhecimento sobre as condições de saúde do doador, conforme informado no sítio eletrônico da ANVISA (2018, n.p). Ainda assim, muitas mulheres assumem esses riscos em busca da realização do sonho da maternidade.

Um aspecto também muito discutido quanto a essa prática é a possibilidade eventual de que filhos de um mesmo doador, desconhecendo seus laços de sangue, venham a se conhecer e a conceber um filho. Isso porque não há controle da quantidade de filhos nascidos de um mesmo doador em uma determinada área demográfica.

É certo, porém, que a amplitude dos riscos supracitados foge aos limites da discussão da inseminação caseira, uma vez que na concepção natural, através da prática sexual, a mulher também está sujeita a eles.

Os riscos são mitigados quando a reprodução assistida ocorre em uma clínica médica. A Resolução nº 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina cuida dessas questões ao determinar que as clínicas, centros ou serviços que realizam a reprodução assistida sejam responsáveis pelo controle de doenças infectocontagiosas, e ao restringir a utilização de material genético de um mesmo doador em um determinado espaço geográfico, quando da ocorrência de gestações bem sucedidas (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017, p.73).

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Outra importante questão é a identidade do doador. Na inseminação caseira o contato entre doador e receptora é realizado diretamente, pois não existe a figura da clínica de reprodução assistida intermediando esse contato. Assim, o anonimato do doador é impossível.

Entretanto, para que a doação do sêmen se concretize as partes envolvidas passam por um ritual, que vai desde o primeiro contato entre pessoas que, na maioria das vezes, nem mesmo se conheciam, até a decisão final, de ambas as partes, de que aquele doador se encaixa no perfil desejado pela receptora. Ao longo desse processo as partes amadurecem diversos assuntos, dentre os quais o estabelecimento do vínculo de filiação (BBC, 2017, n.p).

Rodrigo da Cunha Pereira (2018, n.p) aponta que essas parcerias de paternidade/maternidade configuram um arranjo de coparentalidade, e conduzem o mundo jurídico à elaboração de uma nova espécie de pactos, os “contratos de geração de filhos”:

É claro que essas cláusulas contratuais poderão ser relativizadas, ou mesmo modificadas em razão de uma realidade fora do planejado ou acidentes de percurso. Não descaracteriza a coparentalidade se os parceiros fizerem “inseminação caseira”, ou mesmo tiverem relação sexual com o único fim da procriação. Essas parcerias de paternidade/maternidade se apresentam, também, como uma alternativa à geração de filhos de pai de doador anônimo e às chamadas “produções independentes”.

O autor não nos deixa esquecer de que a realidade social nos apresenta diversos modelos familiares, uma vez que as pessoas são livres para seguir os caminhos do seu desejo e constituir a família como bem entenderem (PEREIRA, 2017, n.p):

Não há mais filhos ou famílias ilegítimas desde a Constituição da República de 1988. (...) Novas estruturas parentais e conjugais estão em curso. Muitas outras, que ainda nem conseguimos imaginar, virão. Não precisamos temê-las, se vêm em nome do amor.

Assim, mais relevante do que a obrigatoriedade do anonimato do doador de gametas deve ser a vontade manifestada pelos envolvidos no processo de inseminação artificial caseira. Se as partes envolvidas, doador e receptor(es) dos gametas, concordarem expressamente acerca da questão da paternidade do nascituro, não pode o Direito deixar de reconhecer a vontade das partes. Assim, em um eventual pedido de reconhecimento de paternidade por qualquer das partes, o acordo prévio deverá ser levado em consideração.

O desprezo ao acordo entre as partes configuraria uma afronta ao princípio da boa-fé objetiva, que veda o comportamento contraditório: nemo potest venire contra factum

proprium (ninguém pode vir contra o próprio ato). Esse conceito significa que alguém que se

comporte em certo sentido, não pode vir a contrariar, posteriormente, esse comportamento inicial, lesando a legítima confiança despertada em outrem (DIAS, 2015, p. 59).

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Flavio Tartuce (2005, p. 20) aponta que “a responsabilidade civil apresenta uma nova feição, um novo dimensionamento nas relações de cunho familiar. Muitas vezes, esse novo tratamento surge do desrespeito à boa-fé objetiva”.

A rigor, não há porque diferenciar o tratamento conferido ao doador que realiza a doação de sêmen através de uma clínica de reprodução assistida daquele conferido ao que doa o sêmen para inseminação caseira. A proteção a ambos deve ser pautada na autonomia da vontade das partes, uma vez que se trata de uma relação entre particulares.

Recorde-se, ainda, dos ensinamentos de Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p. 109), para quem a tutela do Estado quanto às relações de família não pode restringir a autonomia privada nem limitar a vontade e a liberdade dos indivíduos. Não pode, tampouco, descaracterizar as feições do direito de família enquanto Direito Privado.

6 CONCLUSÃO

O mundo atual vive a experiência da globalização, decorrente dos exponenciais avanços tecnológicos. As mudanças sociais são reflexo direto do frenético desenvolvimento das comunicações. As distâncias encurtadas do mundo globalizado transformaram as relações humanas de várias formas.

Os modelos de família expressam essas mudanças, e se diversificam cada vez mais. Não apenas em decorrência da maleabilidade do comportamento social, mas também das inovações científicas. O transplante de útero já é uma realidade, e a ciência já vislumbra a possibilidade de que o homem possa, em um futuro relativamente breve, gerar um filho em seu ventre (FERNANDES, 2016, online).

O matrimônio por muito tempo foi protagonista das relações familiares, mas hoje divide seu espaço em pé de igualdade com a união estável. As uniões poliafetivas, ao seu lado, já batem à porta do judiciário demandando reconhecimento.

As relações paterno-filiais também se transformaram de forma significativa. Iniciaram o século passado à sombra do modelo de família matrimonializada do Código Civil de 1916, que conferia direitos diferentes aos filhos, a depender da situação conjugal de seus genitores. Encontraram acolhimento na Constituição Federal de 1988, que consagrou o princípio da igualdade para conferir aos genitores direitos iguais ao planejamento familiar e ao exercício do poder familiar, e aos filhos a condição de igualdade absoluta. Viram suas fronteiras derrubadas pela possibilidade de geração de filhos a partir de gametas doados e úteros “emprestados”. Conquistaram o reconhecimento jurídico da paternidade homoafetiva, da

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