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O Cinema que fala de nós

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Academic year: 2021

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O Cinema que fala de nós

Foto de José Reynaldo B Santos – CineSesc – 19 anos do Grupo Cinema Paradiso – SP 11/08/2014

É difícil imaginar nossa vida sem o cinema. Segundo o historiador Eric Hobsbawn, o mundo seria completamente diferente do que é hoje se não houvesse a marca do cinema, da imagem em movimento, no Século XX. Nossa forma de perceber o mundo tem muito a ver com o que vimos nos filmes. Locais que nunca visitamos pessoalmente, personalidades que nunca conhecemos, fatos históricos que se cristalizaram em nossa memória através do cinema. Sem nos darmos conta, quando imaginamos a conquista do oeste nos EUA, é de John Wayne que lembramos. De alguns anos para cá, nosso Cristóvão Colombo transformou-se na figura de Gerard Depardieu, como se vê no filme 1492 – a Conquista do Paraíso (Ridley Scott, 2000). Marilyn Monroe até hoje habita o imaginário masculino e feminino da mulher sensual.

Também em termos individuais e subjetivos o cinema nos diz muito sobre nós mesmos. O que temos assistido? Há quanto tempo não frequentamos uma sala de cinema? Em quais suportes

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eu assisto aos filmes? Em plataformas de streaming, internet, em DVD ou acompanho a programação da televisão? Eu assistia a mais filmes antigamente e agora passei pra séries? O que mudou na minha vida que me afastou daquele programa gostoso de sair de casa, me arrumar, comprar pipoca e me deixar envolver pelas emoções que uma sala escura e uma grande tela tem a me oferecer? A assistência doméstica de filmes também nos reserva emoções, embora o envolvimento seja diferente. É possível que toque o telefone, ou chegue alguém. Há concorrência de outros sons e acontecimentos. Mesmo assim, o ato de colocar um filme para ser exibido e o ajuste das almofadas no sofá já revelam a nossa disposição de lágrimas ou de gargalhadas. De sonhos, enfim.

Como têm sido as minhas escolhas? Até pouco tempo atrás, havia locadoras de filmes (certamente, ainda existem em alguns lugares). Íamos à locadora e procurávamos por qual prateleira? Comédia? Suspense? Romance? Filmes de que nacionalidade? Há uma variedade nessa seleção? A quem recorro para escolher os filmes? À crítica cinematográfica dos jornais que divulgam as últimas premiações do Oscar? Procuro dicas de amigos e familiares considerados “cinéfilos” (apaixonados por cinema)? Ou eu me deixo programar pelo que a televisão disponibiliza? Como se dá essa “curadoria”. A própria escolha do que vou assistir – e gostar ou não – é afetada por muitas mediações: de amigos, da publicidade, da crítica especializada, da mídia. É interessante pensar se, em algum momento de nossas vidas, professores são ou já foram esses mediadores. Outras perguntas: O que o cinema significa para cada um de nós? É relaxamento ou atividade cultural? É uma forma de ampliar meus conhecimentos ou apenas diversão?

Pensar nos filmes que escolhemos, no contexto da assistência – em casa ou nas salas de exibição, no computador ou na TV, sozinhos ou acompanhados – nos motivos pelos quais os escolhemos, no gosto que desenvolvemos por determinados gêneros ou nacionalidades dos filmes, tudo isso fala muito de nossa história, dos nossos sonhos e da nossa cidadania audiovisual.

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O Surgimento da Linguagem do Cinema

O cinema surgiu como uma curiosidade técnica, no finalzinho do Século XIX. Logo se percebeu que o público gostava daquele espetáculo. Foi quando o cinema saiu dos cafés e vaudevilles e passou a ocupar grandes galpões que abrigassem bastante gente. Em geral, trabalhadores, pessoas das classes populares.

No início, era necessária a figura do “explicador” porque a linguagem do cinema trouxe elementos tão novos, que causavam sensações muito estranhas, que poucos poderiam absorvê-la sem “ajuda” ou esforço. É famosa a história de que na primeira exibição do cinematógrafo em Paris, em 1895, as pessoas levaram um susto com o pequeno filme A Chegada no Trem na Estação, dos Irmãos Lumière, porque achavam que o trem irromperia a tela. Nos primeiros dez anos um filme ainda era uma sequência de tomadas estáticas, que mais parecia teatro. Eram imagens com câmera parada, portanto não tão difíceis de serem entendidas após algumas experiências. Uma vez entendido, a reação das pessoas era querer compreender os truques daquela mágica. E depois assimilavam, não mais se assustando com o trem. Este início do cinema na França é bem retratado no lindo filme de Martin Scorsese A Invenção de Hugo Cabret (2011).

Não surgiu uma linguagem autenticamente nova até que os cineastas começassem a cortar o filme em cenas, até o nascimento da montagem e da edição. Foi aí, na relação invisível de uma cena com a outra, que o cinema realmente gerou uma nova linguagem. No ardor de sua implementação, essa técnica aparentemente simples criou um vocabulário e uma gramática de incrível variedade. Nenhuma outra mídia ostenta um processo como esse. (Jean-Claude Carrière, 2006:16)

Somente uns vinte anos depois de divertir muitas platéias é que se descobriu que o cinema poderia ser uma expressão artística. A montagem paralela muito usada pelo norte-americano Griffith desenvolveu no público uma competência para acompanhar histórias que se passavam ao mesmo tempo, em ambientes diferentes.

O cinema exige grandes investimentos financeiros. Diferentemente de outras formas de arte, ele precisa de bastante público, para que seja compensatório financeiramente. Tornou-se,

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portanto, o grande impulsionador da cultura de massa e do que foi chamado anos mais tarde de indústria cultural. A dicotomia entre arte e indústria acompanha toda a história do cinema, seus estudos, suas críticas, sua apreciação.

Quando (o cinema) atrai milhões de espectadores em todo o mundo, revelando maciçamente enorme carência do lúdico, tudo indica que o sonho não é apenas uma aspiração; transforma-se numa necessidade de consumo a ser sempre suprida, exigindo do cinema sofisticação cada vez maior para que esse ritual possa corrigir suas imperfeições e expandir seus limites. (Capuzzo, 1987:42) Embora o cinema tenha surgido praticamente ao mesmo tempo na Europa e nos EUA, no início a hegemonia da produção e distribuição de filmes era europeia. Aproximadamente 80% dos filmes exibidos nos EUA eram franceses. Com a primeira grande guerra (1914-1918), a produção de cinema na Europa foi interrompida e começaram a chegar no velho continente os filmes produzidos pelos norte-americanos. O grande destaque desse momento é o cineasta D.W. Griffith, que realizou centenas de filmes pela produtora Biograph e é dele a realização do primeiro longa-metragem e o primeiro fenômeno de público da história do cinema: O Nascimento de uma Nação (1915). Paradoxalmente, esta é uma obra radicalmente racista, que causou muitos protestos e adesões nos EUA, naquela ocasião. O cineasta Spike Lee retoma o momento histórico deste filme de Griffith, em seu brilhante filme Infiltrado na Klan (2018), na perspectiva contrária, da luta antirracista. Voltando a 1915, é neste momento que nasce o cinema hollywoodiano. Os franceses se encantaram com Griffith, Cecil B. DeMille, Charles Chaplin, entre outros. Nunca mais o cinema norte-americano deixou de ter supremacia mundial.

Nos EUA, sempre predominou a figura do produtor nas decisões sobre a realização do filme, ao contrário das produções europeias, onde veremos crescer a importância do diretor do filme. Principalmente no período entre as duas grandes guerras (1919-1939), eclodiram os movimentos artísticos de vanguarda e o cinema passou a ser visto como expressão artística. A marca autoral do cineasta era prioridade e valorizaram-se as várias profissões de uma equipe de filmagem como cenografista, diretor de arte, fotógrafo, figurinista.

Nos EUA esse refinamento também ocorreu, porém mais submetido aos interesses de uma grande indústria. Muitos cineastas europeus foram absorvidos por Hollywood e trouxeram

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experimentações artísticas valiosas para o cinema dos grandes estúdios. Apesar do forte esquema industrial e mercadológico, é possível citar dezenas de diretores que deixaram sua marca autoral nos filmes realizados nos EUA, como Charles Chaplin, Buster Keaton, Orson Welles, John Huston, Billy Wilder, John Ford, Alfred Hitchcock, entre muitos outros. Todos esses diretores trocaram muitas figurinhas com cineastas europeus, inclusive os vanguardistas. Apesar desse intenso diálogo, até hoje identificamos o cinema europeu como “cinema de arte” e o cinema norte-americano como “cinema de indústria”.

O cinema não apenas ganhou status de ARTE (a sétima arte) como revelou seu engajamento político e um compromisso com a herança cultural do século XX. Vale destacar que nos anos 1920, pesquisadores franceses da estética do cinema (Louis Delluc e Riccioto Canudo) criaram o primeiro cineclube, que significava a exibição de filmes (considerados de alto grau artístico) com debates em seguida. No período entre guerras, os cineclubes alcançavam apenas uma elite intelectualizada. Mas após a segunda guerra mundial, a França assumiu o movimento cineclubista como parte de sua política cultural e educacional, no esforço de reconstrução identitária e cultural. Até hoje, a França se diferencia na preservação de sua cultura no sentido da produção e da inclusão do cinema no seu sistema de ensino público.

O Cinema e a Educação

uma aproximação ainda mal resolvida

Cinema e Escola vêm se relacionando há muito tempo, porém nem sempre se forma muito amistosa. Sabemos que a Educação é um campo secular, onde as mudanças ocorrem muito lentamente. A escola vive uma situação de ambiguidade: por um lado é só nela que se garante a conservação do saber acumulado. Mas também está nela a responsabilidade da transformação da sociedade. O cinema, ao contrário, em um século sofreu mudanças muito rápidas e está sempre tentando responder às demandas da contemporaneidade. A Profª Marília Franco nos fala sobre a importância de se conhecer a história das relações educação e cinema (hoje envolve o termo “audiovisual”, mas no início era só o cinema) não apenas para se refletir sobre acertos e erros passados, mas para que conheçamos a origem dos preconceitos e resistências existentes no uso do cinema na escola. A partir da consciência do

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preconceito é que se pode avançar. Segundo a autora, por melhores que sejam as novas propostas do cinema como fonte de conhecimento, é preciso entender:

(...) que não vamos começar do zero, mas sim que já temos uma história construída na educação brasileira, cheia de contradições, preconceitos e mistérios, pois, de um modo geral, essas informações não têm uma ampla difusão na formação do educador brasileiro, mas mesmo assim ele encarna esse fascínio e esse preconceito e fica muito perdido diante da proposta de usar filmes dentro da escola. (Franco, 2010:9)

No mundo todo o mal-estar na relação da educação com o cinema ocorreu, inclusive no meio intelectual e artístico. Walter Benjamin no clássico texto A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica discute o quanto o conceito de arte se transforma com o advento da fotografia e do cinema. Surge a cultura de massas e muitos pensadores, principalmente pelo uso que os governos totalitários fazem do rádio e do cinema, vão condenar essa forma de cultura por promover a manipulação ideológica. A visão desses pensadores que se concentraram na conhecida Escola de Frankfurt é conhecida como a “teoria crítica da comunicação” e foi muito difundida especialmente nos cursos de Humanidades. Embora ela tenha sido concebida nos anos de ascensão do nazismo, ela ganha muito espaço no Brasil nos anos setenta, pois ela “cai como uma luva” para se compreender a força dos meios de comunicação de massa no período da ditadura militar.

A Igreja, por sua vez, desde o surgimento do cinema, percebe sua força e teme pelo seu impacto junto à sociedade, especialmente no que tange à formação das crianças e jovens. “Em nome da moral e dos bons costumes”, defende o controle das mensagens dos filmes, através da censura. O filme Cinema Paradiso (Tornatore, 1988) mostra de forma hilariante o esforço do padre em eliminar todas as cenas que sugerissem qualquer sensualidade. Com o tempo, a ideia de censura se transforma em necessidade de se compreender a linguagem do cinema, com o intuito de proteção contra as más influências. A parte mais progressista da Igreja católica acaba se transformando em grande incentivadora dos cineclubes, nos círculos operários e estudantis. As escolas católicas, nos anos 1940 e 50, adotam o cinema como parte da formação do magistério, o que fazia parte de uma estratégia católica internacional conhecida como “Plan de niños”. Esse plano, que ganhou muito força na América Latina, deu

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origem a uma série de entidades ligadas a alfabetização audiovisual e forma a base da corrente educacional que defende a “leitura crítica dos meios”.

Em termos de políticas públicas, o potencial educativo do cinema é rapidamente percebido nas instituições educacionais, que buscam desenvolver o “cinema educativo”. No Brasil, a principal personalidade nesse âmbito é o educador Anísio Teixeira que, ao lado de Roquette Pinto, batalha pela criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), na Era Vargas. O cineasta Humberto Mauro torna-se diretor do INCE realizando muitos filmes educativos que são verdadeiras obras de arte. No entanto, pela instabilidade das políticas educacionais, cultura escolar muito conservadora e precariedade das instalações das escolas, o INCE resulta em uma experiência restrita a poucas escolas (principalmente do Rio de Janeiro). Infelizmente, o cinema educativo passa a ser sinônimo de chato.

Independente dos professores serem ou não religiosos ou de conhecerem a teoria crítica da Escola de Frankfurt, o fato é que as duas visões, cada uma a seu modo, fincaram raízes na formação dos professores. Ambas superestimam o poder da mídia e da cultura audiovisual, acreditando que um filme ou um programa de televisão é deformador porque dá maus exemplos ou porque produz a alienação. O moralismo é muito forte no senso comum e na cultura escolar tradicional (lembrando que a escola jesuítica deixou muitas marcas na nossa escola até hoje). A discussão sobre a penetração ideológica e os malefícios da cultura da mídia é forte nos cursos de licenciatura.

Superestimar os efeitos de um produto audiovisual paradoxalmente gerou consequências distintas: (1) a condenação veemente de filmes ou programas de TV considerados “inadequados” para a criança ou para o jovem (muitas vezes porque apresentam cenas sensuais ou de violência, ou porque abordam temas “complexos”). É comum que essa criança ou jovem tenha acesso a esse filme em outro cenário, longe de um educador que possa qualificar o debate sobre essa experiência. (2) a outra forma de superestimar o poder do audiovisual é substituir uma aula por um filme. Um filme “histórico” ou que traga uma “boa mensagem” muitas vezes é usado de forma a ocupar toda uma aula (ou duas aulas). Inconscientemente, muitos professores acreditam que o simples fato de passar um filme que

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mostre uma mensagem edificante seja suficiente para que o estudante “assimile” que devemos fazer o bem, ser altruístas, cuidar do planeta, evitar doenças sexualmente transmissíveis, compreender a importância do estudo, ser tolerante, etc.

Não é muito diferente quando o professor, além de passar o filme, solicita, na aula seguinte uma redação sobre “a mensagem” do filme. Pressupõe-se que o filme tenha uma ou duas mensagens indiscutíveis. Até por isso é comum que um professor evite um filme muito “aberto”, que produza efeitos “não controláveis”. A cultura escolar ainda está presa à avaliação do “verdadeiro ou falso” e há pouco espaço (tanto no imaginário do professor como do aluno) para problematização de temas e situações complexas, personagens menos estereotipados (que não sejam heróis ou vilões, mas pessoas contraditórias e falíveis como todos nós somos). É bom lembrar que o estudante sabe muito bem o que professor espera de “uma boa redação”. É muito comum, dependendo do grau de liberdade que esse aluno sinta no ambiente escolar, que ele escreva um texto “politicamente correto”, afinal, vale para avaliação. Não necessariamente essa redação reflete o que o estudante pensa ou sentiu.

Infelizmente, na maioria das vezes por problemas que fogem a alçada do professor, criou-se um hábito de se passar um filme quando há falta de um professor. Também é comum o uso de filmes quando o professor não teve tempo de preparar a aula. Por todos esses “maus usos”, construiu-se uma série de resistências e preconceitos com o uso do cinema na escola. Ainda hoje é frequente, quando está programado um filme no horário da aula, surgirem comentários do tipo: “hoje não tem aula, é só filme”. Comentários maldosos vêm de colegas, superiores hierárquicos, dos pais de alunos (“mando meu filho pra escola pra estudar, não para ver filme”) e, tristemente, dos próprios alunos.

Hoje podemos dizer que vivemos em um mundo audiovisual. Tudo começou com o cinema, mas hoje temos muitos suportes diferentes para ver um filme, além da TV, da internet etc. No entanto, a cultura escolar ainda se mantém apoiada quase exclusivamente no mundo letrado, à cultura escrita. Ainda há muito que se caminhar para que a cultura audiovisual adquira a mesma legitimidade que a escrita na escola.

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Também é comum que os professores avaliem que um documentário é mais educativo do que um filme de ficção. Não apenas entre professores, o público em geral acredita que o documentário “fale a verdade” e a ficção “conte uma história fantasiosa”. Precisamos lembrar que o documentário não deixa de ser uma montagem de depoimentos, informações e imagens. É resultado de um processo de escolha de seus realizadores. Muitos documentaristas da atualidade fazem questão de expor seus métodos de construção daquela narrativa, ao contrário de alguns em que a voz em “off” parece nos contar uma verdade incontestável, algo que está acima das imagens e situações selecionadas.

Da mesma forma, a ficção reflete processos que uma determinada sociedade está vivendo. Como exemplo, podemos olhar para as produções norte-americanas dos últimos anos, após o ataque às torres gêmeas, que têm nos trazido muitas discussões sobre intolerância. Os filmes europeus têm se aprofundado em temas como miscigenação e identidade cultural, resultantes da colonização e da presença maciça de imigrantes. Vimos no Brasil, recentemente, muitos filmes sobre violência urbana e outros que trazem à tona o período da ditadura militar. São temas que dizem muito desses povos e do contexto da sua produção, independentemente de estarem no formato documentário ou ficção. A identidade de gênero é outro tema que vem aflorando em muitos filmes, o que revela uma necessidade da sociedade em discutir tais temas.

Outra ilusão que persiste no cenário educacional é achar que o cinema (e o audiovisual) vai aliviar o tédio das aulas, tornando-as mais divertidas. O historiador Marcos Napolitano, nos alerta que o cinema não pode ser usado para motivar alunos desinteressados e preguiçosos para a leitura. Essa postura reforça os preconceitos em relação ao audiovisual já citados antes:

O uso do cinema (e de outros recursos didáticos “agradáveis” dentro da sala de aula não irá resolver a crise do ensino escolar (sobretudo no aspecto motivação), nem tampouco substituir o desinteresse pela palavra escrita. (Napolitano, 2009:15)

O tempo do filme normalmente também não condiz com o tempo da aula. Para que um filme seja exibido integralmente em uma aula é preciso que seja um curta metragem (ótima opção) ou que seja uma aula “dobradinha”. Muitas vezes, é interessante um acordo com outro

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professor para que o filme seja exibido em aulas de disciplinas diferentes e que seja abordado de forma interdisciplinar. A outra opção é que seja exibido no contraturno, o que exige adequação das atividades e horários da escola. A existência de um cineclube pode ser uma opção excelente para cultivar a presença do cinema na escola.

Relatamos essas resistências e alguns equívocos passados para termos clareza do cenário e das dificuldades da aproximação do Cinema e da Educação. Para que consigamos reverter esse quadro, é preciso boa preparação e planejamento para que todos os envolvidos entendam o cinema em toda a sua potencialidade: como lazer, conhecimento e arte.

Várias possibilidades da presença do cinema na Escola

O CINEMA COMO FONTE

Uma das formas mais comuns de usos do cinema é que ele seja usado como conteúdo ilustrativo para alguma aula. Essa prática é bastante problemática, primeiro porque reduz o filme a um recurso didático de segunda ordem, em geral para animar uma aula cuja referência teórica encontra-se em um texto escrito “mais confiável”. Em segundo lugar, porque pode passar a ideia de que aquela abordagem é “a verdadeira” ou a única possível. Lembramos que o filme provoca uma experiência bastante sedutora e, portanto, persuasiva e marcante. Se não houver boa intervenção do professor ou de outro mediador, é muito comum que o estudante volte para casa com a sensação que “foi assim que as coisas aconteceram”, o que pode ser muito enganoso.

Os “filmes históricos” são evidentemente os mais usados na prática escolar. Esse dado revela não apenas que os historiadores gostam MUITO de cinema, mas também que os filmes são usados como “ilustração” do conteúdo das aulas de História. Uma sugestão é que sejam escolhidos trechos de diferentes produções que tratem do mesmo período histórico e que suas abordagens sejam problematizadas. Por exemplo: os jesuítas no Brasil podem ser mostrados romanticamente na produção francesa A Missão (Roland Joffé, 1986) ou como parte do projeto colonizador como aparece em Desmundo (Alain Fresnot, 2003). Outro exemplo seria exibir trechos de Spartacus (1960), de Stanley Kubrick e Gladiador (2000), de

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Ridley Scott e comparar como produções realizadas em épocas tão diferentes contemplam o homem da antiguidade.

Nada impede que um professor se valha de fatos e informações abordados em um filme para potencializar a aula, porém, o professor deve mostrar a complexidade da obra e pode mesclar seu uso com o de outras linguagens e obras – textuais, imagéticas, sonoras. Se usado com planejamento, critério e discussão, o uso do cinema como conteúdo das aulas pode ser enriquecedor.

Outra forma de se usar o filme como fonte é que ele seja “pré-texto” para problematizar temas que o professor deseja trabalhar com seus alunos. Marcos Napolitano levanta essa possibilidade do uso do filme como “texto-gerador” deixando claro que, nesse caso, o professor tem menos compromisso com o filme em si, sua linguagem, sua estrutura e suas representações, e mais com os temas (políticos, morais, ideológicos, existenciais, históricos, etc) que suscita. O filme pode estimular debates e diversas atividades, especialmente interdisciplinares.

O CINEMA COMO LINGUAGEM

O exercício do olhar é outra forma de consideração do filme na escola. Nesse caso, o que mais importa não é a história do filme em si ou o tema que ele aborda, mas a linguagem específica do cinema, isto é, que recursos o cineasta se valeu para contar a história, quais as opções estéticas, narrativas e técnicas. Há um narrador explícito? Ou é a câmera que nos conduz e narra a história (câmera subjetiva)? Que recursos enfatizam ou desvalorizam um determinado personagem? Que opções de iluminação foram usadas para criar determinada atmosfera? Em que contexto histórico e em que movimento artístico aquela obra foi realizada? De que forma a edição e a montagem narram a história? É linear? Há a opção pelo flashback? A construção dos personagens é densa ou é superficial?

Essa abordagem é muito interessante para a formação do olhar crítico do espectador. Quando esse olhar começa a ser desvendado, logo o aluno desperta para um olhar diferenciado também para os programas televisivos e da internet. É comum o aluno chegar à escola analisando a telenovela ou o telejornal de forma mais crítica. Em tempos de notícias falsas nas redes sociais, esse olhar crítico assume importância maior ainda.

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É muito comum que o professor se sinta despreparado para essa forma de uso do cinema, o que é natural, pois o cinema, infelizmente, ainda não faz parte da formação inicial dos professores. Os cursos de licenciatura quase sempre reproduzem a supervalorização do texto impresso, em detrimento do audiovisual. Nesses cursos, quando existe o uso de um filme, quase sempre é de forma ilustrativa. O professor deve, então, buscar um autodidatismo se quiser aproveitar toda a potência do cinema como instância formadora.

Os professores de Literatura – que também se constituem usuários contumazes de filmes nas suas aulas - devem ter atenção para não tentarem suprir as dificuldades históricas de leitura entre nossas crianças e jovens. A comparação entre a linguagem literária e a do cinema pode ser muito rica, desde que o filme não seja visto como “ilustração” da obra literária. Filmes cujos roteiros derivam de obras literárias podem ser tão bons quanto os livros, ou não. Pode ser uma ótima oportunidade de se usar uma mesma história com linguagens diferentes.

O professor que se sente mais seguro para abordar o filme a partir da linguagem é aquele que construiu sozinho um bom repertório cinematográfico, pelo hábito de ver filmes como arte e fonte de conhecimento e/ou por frequentar cineclubes.

A partir da abordagem do cinema como linguagem, podemos desmembrar para outra possibilidade que é olhar o filme como discurso ideológico. Há uma forte corrente, principalmente dentro da linguística, que é a análise do discurso. Essa corrente deu suporte à leitura crítica dos meios de comunicação e privilegia a desconstrução da obra para que se desvende a intenção do seu realizador.

Essa visão foi construída em especial a partir dos anos 1980, no período de abertura política quando era muito importante a denúncia contra a manipulação dos meios de comunicação, no entanto, vale o cuidado de não se tomar o filme como um “mau-objeto”, como nos diz o cineasta e pesquisador francês Alain Bergala, como se precisássemos “defender” as crianças e os jovens contra todo tipo de manipulação, principalmente a ideológica.

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É bem interessante lembrar que também a partir dos anos 1980, ganharam expressão as pesquisas de recepção. Antes, essas pesquisas eram pensadas apenas em termos mercadológicos e quantitativos (quantos consumiram tal produto, qual o índice de audiência de tal programa). As pesquisas de recepção qualitativas são derivadas dos estudos culturais e buscam compreender COMO as pessoas assistem a filmes ou programas de TV e COMO re-significam essa experiência cultural.

As pesquisas qualitativas mostram que os receptores estabelecem uma negociação de sentidos com a experiência audiovisual e que é um exagero achar que os meios de comunicação – em especial os audiovisuais - “deformam” as mentes, “hipnotizam” e “anestesiam” os indivíduos, tirando-lhes a capacidade crítica e criativa.

Tem sido comprovado que a formação das crianças e jovens acontece a partir da combinatória de várias instâncias de socialização: família, escola, religião, mídia, entre outras. A força da experiência audiovisual (incluindo aí a internet) depende muito da presença vital dessas outras instâncias formadoras. Nessa perspectiva, a leitura crítica adota o sentido muito menos “defensivo” e mais “favorável” ao contato com a diversidade de linguagens, propostas, conceitos e experiências culturais.

O CINEMA COMO ARTE:

Talvez o maior incômodo na relação Cinema e Educação venha do fato de que o cinema é um produto cultural e artístico e não foi pensado pelo cineasta para “caber” na aula de Geografia ou de Física, ou mesmo para transmitir mensagens educativas. O cinema é formador à medida que faz parte da nossa herança cultural e seu acolhimento contribui para o desenvolvimento de pessoas mais sensíveis e humanistas.

Os defensores da presença do cinema como ARTE na Educação têm a preocupação de que a escola evite “didatizar” o filme, isto é, instrumentalizá-lo de forma a transformá-lo em um recurso didático de menor importância.

A experiência com a arte é subjetiva e polissêmica, isto é, produz muitos significados. Dependendo do universo cultural de cada pessoa, a apreciação da arte pode ter maior ou

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menor profundidade. Uma obra de arte pode provocar diversas camadas de leituras e a escola pode desempenhar um papel importante na sensibilização e na criação de laços com as obras de arte.

Para apreciação da arte não é bom que se seja pragmático. Não é possível “mensurar” o quanto uma criança é capaz de interagir com uma obra de arte, por ser uma experiência subjetiva. Muitas vezes o tempo em que um filme opera uma transformação em uma pessoa é variável. Quantas vezes até rejeitamos um filme, mas depois ele fica em nossa mente perturbando nossos sentidos e questionando algumas ideias pré-concebidas?

A obra de arte exige releituras, sedimentação da experiência. A primeira leitura, em geral, tem o efeito de se compreender a história, os personagens, as situações criadas. Mas o cinema é muito mais que isso, as várias outras camadas de significações vêm com o tempo, com as conversas, com os sentimentos que se assentam.

A defesa de Alain Bergala, cineasta francês que implantou o ensino de cinema no sistema educativo francês, é que o cinema deve trazer para a escola uma experiência de alteridade. Ele é bastante ousado ao dizer que a arte não pode se reduzir ao ensino em sua lógica disciplinar, encaixotado em grades curriculares, ou tiraria da arte a sua potência de revelação e seu alcance simbólico. A arte, para permanecer arte, deve permanecer um fermento de anarquia, de escândalo, de desordem. A arte é por definição um elemento perturbador dentro da instituição. (Bergala, 2008:29-30)

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, in: OS PENSADORES, Abril S.A. Cultural: São Paulo, 1983.

BERGALA, Alain A Hipótese-Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink, 2008.

CAPUZZO, Heitor Cinema – a aventura do sonho. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986.

CARRIÈRE, Jean-Claude A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. FRANCO, Marília. Hipótese-Cinema: Múltiplos Diálogos – ECA-USP: São Paulo, 2010.

http://www.educacao.ufrj.br/contemporanea.html . Revista Contemporânea >> Números Publicados Rio de Janeiro, v. 5, n. 9. - janeiro/julho 2010.

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MOGADOURO, Cláudia A. Educomunicação e Escola: o cinema como mediação possível (desafios práticas e proposta). Tese de Doutorado, ECA-USP, 2011. Disponível em:

https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-23092011-174020/publico/TESE_MOGADOURO_CLAUDIA.pdf

NAPOLITANO, Marcos Como Usar o Cinema na Sala de Aula, São Paulo: Contexto, 2009. Filmes Citados

Filmes citados

1492 – A Conquista do paraíso (1492: Conquest of Paradise) – EUA/Inglaterra/França/Espanha, 1992, de Ridley Scott

Chegada no Trem na Estação, A (L'arrivée d'un train en gare de La Ciotat) – França, 1895, de Louis Lumière e Auguste Lumière

Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso) – Itália/França, 1988, de Giuseppe Tornatore

Desmundo – Brasil, 2003, de Alain Fresnot

Gladiador (Gladiator) – EUA/Reino Unido, 2000, de Ridley Scott

Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman) – EUA, 2018, de Spike Lee

Invenção de Hugo Cabret, A (Hugo) – EUA/Reino Unido, 2011, de Martin Scorsese

Missão, A (The Mission) – Inglaterra, 1986, de Roland Joffé

Nascimento de uma nação, O (The Birth of a Nation) – EUA, 1915, de D. W. Griffith's

Referências

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