• Nenhum resultado encontrado

Anos 70 música popular - Ana Maria Bahiana José Miguel Wisnik Margarida Autran

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Anos 70 música popular - Ana Maria Bahiana José Miguel Wisnik Margarida Autran"

Copied!
52
0
0

Texto

(1)
(2)

~

~.;~~E~

'"

~.

t'-J

\ '" I '" I ~ I .Q

!:l

> -.

Il!Jlla~all/rdIJ

~

",. COMPRA, VENDA ETROCA Livros Didaticos, Universitarios, Literarios, CD's e DVD's Novos e Usados. Fone: (62) 3223-3939 Fax: 3225-0586 Rua 4 nO 1.035 • Centro -Goiania -GO E-mail: bazardolivro Jlyn@hotmail.com

'"

ct 8,

a

OJ ~

--g.

/~

-,,'

~

~.

f) .-;:,.

'"

,

...

~

--,-~~~'-I

)<l :l. P- I» '-

51

"

3

"

"

a.

!"

~

=,

00

....

~

~

"'C

0

~

=

~

-

"1

>

2

0

r.I1

...:t

0

.:,

J

(3)

Copyright © de Europa Empresa Gnifica e Edltora Ltda.

Coordena9ao da pesquisa Coordena9ao de texto Pagina9ao e montagem Revisiio Fotos Capa Adauto Novaes Jorge Ferreira

Joso Ferreira da Silva e Jayme Pantera Ail ton, Antonia) Dolores e Milton Mauricio Valladares, Agencia 0 Globo e Editora Abril. Artistas Gnificos Fernando Chinaglia Distribuidora

Sf

A ANOS70

o urn lan9amento de Europa Empresa Gnifica e Editora Ltda. Rua Riachuelo, 109 - Rio de Janeiro

CEP 20 230 -Fone: 224 3043 Impressao: Europa

AN OS 70. Rio de Janeiro, Europa Emp. GrM. e Edit. Ltda., 1979-1980. 7 v. il.

1. Arte - Brasil. 2. Cultura - Brasil. 3. ,Muska popular Brasil. 4. Literatura Bra.si!_ 5. Clne,rna

-Brasil. 6. Teatro - -Brasil. 7. Televisao, - Brasil. 8.

Artes Plasticas - Brasil. 9. Musica - BraSIl.

CDU 7(81)

I

Ainda soh a tempestade

Durante quatro meses, dezenove pesquisadores traba-lharam nesse primeiro processo de reflexao sabre a cuI-tura da decada de 70 no Brasil. De inicio surgiram

algu-mas contradi~5es que, lange de serem resolvidas no

pla-no teo rico, estao refletidas nos ensaios. A primeira de-las, a mais evidente, consiste em realizar urn trabalho sob a influencia dos limites politicos de uma tempesta-de que continua a inundar consciencias e pniticas. Seria ilus6rio pensar que, nestas circunsHincias, 0 mais com-bativo dos crfticos - isolado no seu trabalho individual - guarda uma aguda cIareza politica. A logica do siste-ma consiste em tirar dele a siste-materia-prisiste-ma _ [iImes, pe-"yas, music as, exposiyoes, livros etc. - e sem ela muitas vezes a crftica e con den ada a repetir 0 discurso sobre a Censura, tare fa importante de denuncia mas insuficien-te, porque esteriliza 0 campo da reflexao teorica.

Al-guns dos ensaios aqui puhlicados tentam superar esta contradiy80 invertendo 0 caminho: analisam, por exem-pIo, a obra nao apenas atraves da sua relayao externa com a censura, mas procuram dissecar principal mente as contradiyoes internas as pr6prias concepyoes esteti-cas engendradas peJa Censura, e definir ate onde a re-presentayao formal de peyas de teatro, filmes, musicas etc. foi penneavel as ordens, contra-ordens e decretos.

E

0 metodo que permite mostrar 0 carater especffico e contradit6rio de determinadas manifestayoes culturais.

o

conhecimento da realidade cultural discutida em cada urn dos sete Iivros dcssa coJeyJo e 0

desenvolvi-menta te6rico pretendido Jcvanun os :lutores a U(Tl can-fronto com nova contradiyao: a ver,.ldjc tem earlter de cIasse. 0 pensamento brasileiro -- .lpeSal" do:;, ;)\,an\:os 5

(4)

em sentido contrario - guarda ainda elementos de uma pesada heranya e a influencia de uma concepr;ao cultu-ral que foi hegemonica entre os intelectuais, durante urn razoavel periodo da nossa hist6ria recente: 0 popu" lismo-reformista. Esta tendencia, ao abrir mao do conceito e da pratica da 'Iu~a de classes, cria enormes barreiras para-~e chegar ate ,mesmo' perto da verdade. Daf os cultores dessa - linha . de pensamento sempre lidarem com meias-verdades que impedem a verifica-yaa, 0 conhecimen to da unidade organica e

contradi-t6ria de tad os os aspectos da cultura. Quando, par decreta, se define que duas concepyoes culturais se fundem em uma s6, isto e, quando se define arbitra-riamente que os interesses da "burguesia nacional" e sua cultura nacional popular sao as mesmos da grande massa de trabalhadares, instaura-se 0 imobilismo, torna-se impassivel 0 avanyo te6rico, porque jamais a burguesia vai criar novas concep90es de cultura que neguem seus interesses fundamentais enquanto classe. A nao se.rque por .uma contor,ao mental (e historical se pense, que ela pretenda urn dia se' negar enquanto classe. 0 combate.a tais concep,aes foi preocupa,ao de alguns textos da pesquisa dos Anos 70. Dal a inten,ao de resgatar as importantes tentativas de resistencia cultural da decada. Em alguns ensaios fica demonstrado que a resistenda foi muito limit ada em funyao de dais outros problemas: 1. se 0 sistema dominante sempre propae representayoes culturais sistematizadas - e essa

e

uma das foryas de sua ideologia -, ao longa dos aoos

70 a revolta cultural se apresentou de forma esponta-nea e desarganizada; 2. on de houve tentativa de siste-matizayao da revolta, ela se dell, ainda aqui, sob a es-senda da conciliayao de ciasse, fruto das velhas con-cep<;6es do populismo cultural da decada de 60, que ignoram nao a existencia de contradiyao entre duas linhas de pensarnento - a do dominan te e a do dam

i-nado - mas 0 carater antagonico dessa contradiyao. Enfim, 0 leitor esta diante de urn primeiro balanyo e amilise das principais manifestayoes culturais da deca" da na mtisica popUlar, litcratura, cinema, teatro, televi-sao, mtisica classica e artes plasticas. Mais do que 0 ba-lanyo, 0 que importa oeste trabalho e a disposiyao de abrir novas formas de analise e crftica.

Adauto Novaes

6

o

minuto e

0

milenio

Ou

Por

favor~ professor~

uma decada de

cada vez

Jose

Miguel Wisnik

Continua em vigor na m-usica comercial-popular bra-sileira a convivencia entre dais modos de produyao di-ferentes, tensos mas interpenetrantes dentro dela: 0

industrial, que se agigantou nos chamados anos 70,

com 0 crescimento das gravadoras e das empresas que controlam os canais de radio e Tv) e 0 artesanal, que com preen de as poetas-musicos criadores de uma ohra marcadamente individualizada, onde a subjelividade se expressa lirica, satlrica, epica e-parodicamente.

Especialistas europeus e cdticos 'da chamada "cultu-ra de massas" afirmam que a implantayao da industria cultural imprime nos "produtos de arte" a marca da re-petiyao e da estandarctizayao, suprime a margem de ope-rayao estetica pessoal, aD mesmo tempo em que progra" rna mercadologicamente a imagem individual do artista. Mas

a

primeira vista ja da pra saber que existe uma especie de "artesao canoro" (como ja se disse com in-tell/toes pejorativas) que continua a desenvolver uma poetica carnavalizante, onde entram aquelcs elementos de lirismo, de critica e de humor: a tradiyao do carna" val, a festa, 0 non-sense, a malandragem, a embriaguez da danya, e a subita consagrayao do momenta fugidio que brota das historia do desejo que todas as can<;6es nao chegam pra con tar.

o

segundo capitulo do tema do "vazio cultural" na musica dos anos 70, e que acompanha 0 da industria cultural, chama~se "censura". Esta vestiu-se a rigor ao longo desses tempos; no momenta usa traje esporte. No entanto, sustenta 0 critieo Gilberta Vascollcellos, em seu livro De olho na [resta, (2) que a tradi~ao da ma-landragem na rnusica popular, especialmente aquela

(5)

que atravessa a hist6ria do samba, instrumenta-a para

contrapor

a

ordem repress iva urn contradiscurso,

mes-mo que cifrado. E exemplifica a au toconsciencia desse processo com a musica "Festa imodesta", feita por

Caetano Veloso para 0 disco Sinal [echado, de Chico Buarque, Filigranando a sua apologia imodesta do com-positor popular com cita90es de Assis Valente e de Noel Rosa, a letra canta: "Tudo aquilo/que 0 malan-dro pronuncia/que 0 otlirio silencia/passa pela fresta da

cesta/e resta a vida".

Salve 0 prazer e salve-se 0 compositor popular: ele

passa urn recado, que nao e propriamente uma ordem

nem simplesmente uma palavra, e nem uma palavra d~

ordem, mas uma puls.:u;:ao que inclui urn jogo de cin-tura, uma cultura de resistencia que sucumbiria se vi-vesse s6 de significados, e que, por isso mesmo,

traba-l~a simultaneamente sabre os ritmos do corpo, da

mu-sIca e da linguagem.

Oconto "0 recado do morro", de Guimaraes Rosa

apresenta urn mite que, alem de bonito, oferece u~

modelo figurado que serve para interpretar melhor isso

que estou falando agora: ali,

ha

urn "recado" ouvido

por urn eremita, recado que vern do fundo da terra, de "debaixo do barro do chao", e que passa de boca em

boca de forma ininteligivel por sete personagens

margi-nais (visiomirios, crianc;as, debeis mentais), 0 setimo

das quais lhe d. a forma acabada de uma can9ao -

e

0

cantor popular. Grac;as

a

progressiva transmissao do

re-cado, que passa dos estagios de fragmentarias

intensida-des dionisiacas ate sua apolinea forma final, 0 her6i

to-rna c0n.sciencia de que esta sendo vi tima de uma cilada, e se salva da morte.

Nao conhe90 descri9ao melhar. A musica popular

e

uma rede de recados, onde 0 conceitual e apenas urn

dos seus movimento~: 0 da subida

a

superficie. A base e

uma s6, e esta enraizada na cultura popular: a simpatia,

animica, a adesao profunda as pulsac;5es teluricas,

cor-porais, sociais que VaG se tornando linguagem.

Na conjuntura de repressao dos anos 70, a musica

popular desses poetas portadores do recado campreen-deu talvez mais do que nunca a especificidade da sua for9 a, e ela vern do prazer, diz a "Festa imodesta", de Caetano, e da for9a indomllvel, diz "0 que sera"

("I\.

flor da pele"/"A flor da terra"),de Chico Buarque (essa musica

e

talvez a forma mais completa do recado da 8

musica popular como capta9ao das for9as

erotico-poli-ticas, dionisiaco-apolineas).

Os pedac;os do recado que procuram maior explicita·

9aO politica ficam embargados na alfandega da censura,

ou logram passar com uma ironia camaleonica pelo seu

bico estreito.

E

0 caso de "Corrente", samba de Chico

Buarque, verdadeiro exercicio da chamada "dialetica da malandragem" aplicada ao confronto com a ordem proibidora da censura. Nessa musica, ele faz

aparente-mente urn "samba pra frente" em que finge urn mea

culpa pelo seu famoso e censurado "Apesar de voce",

aderindo ironicamente

a

"corrente pra frente" qt--3 era

urn slogan do "milagre brasileiro" (jll abalado

a

altura do lan9arnento do disco Meus caros amigos). Mas a (falsa) palinodia

e

subvertida pelo drible de corpo, e a letra

e

cantada de tras pra frente, com deslocarnento do

ritmo e da melodia que altera a enfase, e dai a sintaxe e

o sentido das frases. "Talvez precise ate tomar na carat

pra ver que 0 samba esta bern melhorado", "talvez

pre-cise ate tomar na cara/pra confessar que andei

samban-do errasamban-do" (onde a entoac;ao a principio sugeria que 0

poeta se compenetrava da melhora do estado geral de

coisas, a enfase revela de repente os

constrangimen-tas da for9a e do arbitrio). A contra-corrente

e

contra-ideologia passada de mao em mao. No final dessa

mu-sica, 0 verso "Isso me deixa triste e cabisbaixo" aponta

pra duas direc;oes, uma melanc6lica e outra al.l;to-ir9~i­

ca: "nao ver a multidao sambar contente", mas "fa-zer urn samba bern pra frente". 0 humor crftico deixa o poeta cansado do elaborado malabarismo necessario

para dar tnlnsito

a

ambigua mensagem, transito este

que permanece cifrado e duvidoso. Can9aO acabada, obra aberta, corrente fechada.

No seu livro, Gilberto Vasconcellos centra a

aten-<;ao na dupla Chico e Caetano, e

e

realmente nesses dois

artistas que a tensao poetica em jogo atinge a sua para-da mais alta. As correspondencias, afinipara-dades e

diferen-9as entre Chico Buarque e Caetano Veioso precisarn ser acompanhados de perta, porque elas cantem as

correla-c;oes mais significativas. Nao e a toa que

frequentemen-te urn e jogado contra 0 outro: sabe-se que sao

realmen-te duas for9as. No entanto, realmen-temos a mania maldita de so enfrentar a complexidade da cultura brasileira na ba-se da exclusiio, de Emilinha ou Marlene a Mario de An-drande ou Oswald de Andrade, e dai a Chic\) Buarque ou Caetano Veloso.

(6)

POR MAIS DISTANTE QUEPOSSA

APARECER

Uma decada

e

isto: a planeta girando dez v"zes Terra. Sempre [oi, mas desta vez ficou mais visivel. Tu-do de novo ao reTu-dor Tu-do Sol. Pela TV. Ver a Terra da Lua e e,tar I. e estar aqui. Mas como? (3)

A viagem pra fora da Terra alterou a nossa conscien-cia, como se uma parte desta se desprendesse de plane-ta enos visse ao longe, e ouvisse no espac;o 0 nossa eeo ecologico. Caetano cantou em cima do lance: "'Quem esteve na Lua viu/quem estcve na rua tambem viul

quanta ao mai~

e

iSSQ e aquilo/e eu estoll muito

tran-quilo/pousado no meio do planeta/girando ao redor do Sol" ("A voz do vivo", 1969). Embora nao a diga nes-se momenta, essa mtisica foi feita depois de Caetano tcr se encontrado "preso na ccla de lima cadeia", em fins de 68 e comel'o de 69, de onde ele vo "as tais fotogra-fias/em que apareces inteira/( ... ) Terra/Terra/par mais distante/o errante navegante/ quem jamais te esquece-ria" (como ele diria dez anos mais tarde, no disco

Mul-to,

1978).

As duas mtisicas estao ligadas por urn areo, e entre 0

oculto 6bvio do fim dos anos 60 e 0 6bvio oculto do fim dos 70 estao dez voltas de hist6ria.

Mas so quem entende que 0 tempo se faz de cruza-mento de tempos

e

que pode compreendcr este simbo-10: urn homem encerrado numa prisao descobre a T efra como uma mulher, e estando dentro deja, excessiva-mente dentro, esta de fora eave inteira. Estando preso

esta desgarrado, numa especic de lugar nenhum que

c

a chao de todas as utopias muitas vezes sonhadas de den-tro das eadcias, e cis que se redescobre estc chao con-creto:

e

a came em que viajamos todos (no nada: pon-to-de-fuga do espal'0-tempo), a carne do planeta e a nossa.O desgarramento da Terra, Janyado por lima

fie-c;:ao-cientifica real,

e

acompanhado de urn novo ema!· zamcnto nela (uma nova necessidade de dar-Ihc cari-nho), urn desprelldeNie que

e

acompanhado de lima

pregniincia, palavra que tamhem quer dizer gravidez: a Terra

e

urn ova, e vern a ser fecundada de novo por es-ta viagern. Urn avo que se leva na palma da mao, como uma chama_ (A gente vai levando). Chico e Caetano: ''Terra'' e "'Cio da terra",

Tudo isto

e

algo mais do que uma hist6ria

indivi-10

r

dual. Sao sfmbolos para os quais "contribuem" aconte-cimentos de varias ordens: 0 AI-S, a tecnologia espa-cial, 0 vertice aflorante da consciencia ecologica. Se 0 AI-S que leva 0 cantor

a

cadeia e 0 acontecirnento in-testino que vai viabilizar a ferrea politica de "desenvol-virnento e seguranc;a" dos anos seguintes, enquanto isso a Ciencia dos centros desenvolvidos chega ao seu rna-mento de devaneio, essa especie de passeio no espac;o, cssa aventura que, entre cara e gratuita, nos coloea cara a cara com 0 enorme e 0 fnfimo, e a consciencia ecologi-ca, que ini passar peIa via da contracultura e da negac;ao da ideologia desenvolvimentista, prepara 0 desdobra-menta (morte e renascirnento) de seus sonhos. A per-cepl'ao poetica trabalha com a multiplicidade dos tem-pos, e a sua riqueza vern daf.

Par

mms

distantes que possam parecer, na rnusica "Terra" cruzam-se a Bahia e a India, 0 minuto e 0 mi-to, a decada, 0 milonio e a hora do Brasil. (4)

SOCIOLOGIA DO OUVIDO TOCADADE

OlNIDO{l)

Nao

e

possivel ir falando em canC;ao comercial popu-lar como se cia tivesse urn usa puramente estetico-con-templativo, como se ela fosse urn objeto de arte expos to num museu au executado sobriamente numa sala de concerto. Uma das dificuldades de se falar sobre ela e levar em eonsiderac;ao a muItipJicidade dos seus usos, que corresponde it multipJicidade dos modos como cIa

e

escutada. Acreseenta-se a essa dificuldade 0 fato de que a musica nao

e

urn suporte de verdades a serem di-tas pel a lctra, como uma tela passiva onde se projedi-tasse uma imagem figurativa; talvez seja mais frequente, ate, o caso contrario, on de a letra aparece como urn vefculo que carrega a musica.

Que tipo de consumo se produz?,

e

a pergunta que

fazemos diante da massa sonora que transborda par to-dos as lato-dos com a avanc;o da industria cultural nos 111-timos anos, c que lnclul a agigantarncnto das gravado-ras c do volume de sua produyao, das radios como exci-tadores do mcrcado musical, da telcvisao e do efcito de rcssomlncia mercadol6gica que cia extrai d8 utiliza\,<lo da trUha sonora como jingle do produto IUn'ela. e da novela como chamada para a produto trilha sOItora em disco.

(7)

Em primeiro lugar,

e

evidente que se trata de urn complexo industrial-ideologico que procura explorar ao maximo a forc;a pcnetrante que a musica tern: 0

ex-traordimirio poder de propagaC;ao social que vern de sua propria materiaiidade, do seu carater de objeto/subjeti-vo (esta fora mas esta dentro do ouvinte!), simultaneo (vivido por muitas pessoas ao mesmo tempo), e do en-raizamento popular de sua produl'iio no Brasil.

De urn lado, sabernos que esse "tratamento" indus-trial-capitalista tende a conferir

a

canl'lio os tral'os da mercadoria produzida em serie, que tern como horizon-te a estandardizal'ao, is to

e,

a subordinal'ao da lingua-gem a padroes uniformizados de vendabilidade. 0 pen-sador alemao Theodor W. Adorno, por exemplo, afirma que, no interior desse tipo de produc;aa para 0 lucro, a

mercadoria engana 0 ouvinte ao seduzi-Io com a pro-mess a do valor-de-uso da sua fruiC;30, quando a unica coisa que eia realmente oferece

e

seu prest[gio consu-mivel, 0 fantasma de urn valor musical intrinseco que

eia nao tern. Assim e que os apelos dessa musiea ~~re­

gressiva", segundo eie, excitam e nao satisfazem, agra-dam pela "novidade" do prazer que frequentemente parecem ofereeer, e deeepcionam permanentemente pe-10 fundo de redundancia e mesmice que abrigam e fre-quentemente eseondem. 0 fantasma da "aura" de arte que as vezes as cerea, au do atrativo que suas "embala-gens" sonaras prometem, seria desse modo tao Hus6-rio como nas ilhas gra-finas das propagandas do cigar-rO: urn valor-de-usa falsificado ou imaginario que enco-bre, vicariamente, 0 valor-de-troca. (5)

Trocada em miudos, essa tese sustenta a ideia de uma "regressao da audiC;ao", onde a escuta musical dei-xa de ser escuta, e 0 uso que se faz da musica nao

e

urn uso musical, passando a ser ora pose de "consumo-de-cultura", ora relqx, distra((ao fantasiosa, exercfcio mus-cular tecnico-gimistico.

A rna vontade para com a musica popular em Ador-no e grande: Podemos entende-Ia num europeu de for-mayao elUdita. Par um lado, a uso musical para ele

e

a escuta estrutural estrita e consciente de uma pec;a, a percepl'iio da progressiio das formas atraves da histo-ria da arte e atraves da construyao de uma determinada obra. Por outro, 0 equilIbrio entre a musica erudita e a popular, num pais como a Alemanha, faz a balanl'a cair espetaculannente para a lado da tradiyao erudita, por-que a musica popular raramente

e

penctrada pel os seto-12

res mais criadores da cultura, vivendo numa especie de marasmo kitsch e digestivo (alias, nos paises europeus, o que trouxe de volta a grande vitalidade da musica po-pular, quando foi 0 caso, foram os meios eletricos e 0

rock).

Ora, no Brasil a tradil'lio da musica popular, pela sua inserc;ao na sociedade e pel a sua vitalidade, pela riqueza artesanal que esta investida na sua teia de recados, pela sua habilidade em captar as transformal'oes da vida ur-bano-industrial, nao se oferece sirnplesmente como urn campo docil

a

dominac;ao economiea da industria cul-tural que se traduz numa linguagem estandardizada, nem

a

repressao da censura que se traduz num contrale das formas de expressiio politica e sexual explicitas, e nem as outras press6es que se traduzem nas exigencias do born gosto academico ou nas exigencias de urn enga-jamento estreitamente concebido.

NO, NO, Y NO

Aqui seria preciso Ievar sempre em considerac;ao cer-tas caracteristicas da pratica musical brasileira, e entre elas: no Brasil, a musica erudita nunca chegou a formar urn sistema onde autores, obras e publico entrassem numa relaC;ao de certa correspondencia e reciprocidade. Lamente-se ou nao esse fato, 0 uso mais forte da

musi-ca da musimusi-ca no Brasil nunmusi-ca foi 0

estetico-contempla-tivo, ou da "musica desinteressada", como dizia Mario de Andradl " m~IS 0 usO ritual, magico, 0 uso interessado

da festa popular, 0 canto-de-trabalho, em suma, a musi-ca como urn instrumento ambiental articulado com outras pnHicas sociais, a religiao, 0 trabalho e a festa.

Com a urbanizayao e a industrializayao, esse uso ga-nhou uma amplitude ainda maior na caixa de resso-nancia das grandes cidades, com 0 advento do radio, do

disco, e do carnava] moderno. Sabre 0 batuque coleti-vo do samba foi se desenhando 0 melos individual do

sambista, que canta com maHcia e altivez a sua condi-C;ao de cidadao precario, entre a "orgia" e 0 trabalho, numa dialetica da ordem e da desordem. (6) Assim tambcm e que muito da musica sertaneja foi toman-do caracteristicas urbanas, e LUIS Gonzaga veio a can-tar para 0 norte/suI Brasil intciro.

l.-Foi se formando uma Jinguagem capaz de can tar 0

(8)

amor, de surpreender 0 cotidiano em flagrantes

lirico-ironicos, de celebrar 0 trabalho coletivo ou de fugir it

sua imposigao, de portar a embriaguez da danga, de jo-gar com as palavras em ludicas configuragoes sem sen-tido, e de carnavalizar na maior (subvertendo-a em pa-rodia) a imagem dos poderosos.

Tudo isso constitui urn artesanato que foi se desen-volvendo nas dobras e nas sabras, nas barbas e nas rebar-bas do processo de modernizayao do pafs; ao mesmo tempo em que a musica popular mais se tornava merca-doria, convivia com chuvaradas de musica estrangeira, e se difundia por meios eltHricos-industriais.

o

fenomeno da musica popular brasileira talvez es-pante ate hoje, e talvez par isso mesmo tambem conti-nue pouco entendido na cabega do pais, por causa des-sa mistura em meio it qual se produz: a) embora man-tenha um cordao de liga,ao com a cultura popular nao-letrada, desprende-se del a para entrar no mercado e na cidade; b) embora deixe-se penetrar pela poesia culta, nao segue a 16gica evolutiva da cultura literaria, nem

fl-lia-se a seus padroes de filtragem; c) embora se repro-duza dentro do contexto da industria cultural, nao se reduz as regras da estandardizagao. Em suma, n:fo fun-ciona dentro dos limites estritos de nenhum dos siste-mas culturais existentes no Brasil, embora deixe-se per-mear por eles.

Sendo assim, eSse tipo de musica nao tern um regime de pureza a defender: a das origens da Nayao, por exemplo (que um romantismo quer ver no folclore), a da Ciencia (pela qual zela a cultura universitaria), ada soberania da Arte (cultuada tantas vezes hieraticamente pelos seus representantes cruditos). Por isso mesmo, nao pode ser lida simplesmente pelos criterios crfticos da Autenticidade nacional, ncm da Verdade raciona!, nem da pura Qualidade. Trata-se de um caldeirao - mereado pululante onde varias tradiyoes vieram a sc confundir e se ·cruzar, quando nao na intencionalidadc criadora, no ouvido atcnto ou distra{do de todos nos.

E

claro que uma tal zona do agriao se cOllstituu num campo repuxado por todos os lados: pela rcdundimcia e pclos mais dcscarados (bem ou mal sucedidos) expedi-cntes comerciais; pelo crivo do bom-gosto que quer

fiI-trar alguns de seus setOres c dele-los no bolsao de urn padrao mais "alto" em contra"dsi~ao a outrus manifes-tayoes "infcriorcs"; pcla vontade de se fa7.er passar par "aute-ntica" arte "popular".

14

Mas 0 mais interessante

e

que urn sistema aberto

co-mo esse passa periodicamente por verdadeiros saltos produtivos, verdadeiras sfnteses crfticas, verdadeiras re-ciclagens: sao momentos em que alguns autores, isto

e,

alguns artistas, individualmente e em grupos, repensam toda a economia dos Sistema, e condensam os seus mul-tiplos elemefltos, ou fazem com que se precipitem cer-tas forma,5es latentes que estao engasgadas. Podemos "pontar alguns, talvez os mais salientes desses mo(vi)-mentos metacrfticos: 0 nascimento do samba em

1917, a bossa-nova, 0 tropicalismo, 0 pos-tropicaIismo (como chamar a dec ada de 70?).

I. "Pelo telefone" (1917): Donga faz um oportuno aproveitamento dos elementos rftmicos sincopados que estavam em vigor desde 0 fim do seculo XIX, "plagia"

um "partido alto" que se ouvia na casa de Tia Ciata, te-matiza os podcres da danga e da repressao conivente

("0 chefe da policia/pelo telefone/manda me avisar") que faziam a materia da "diali:tica da malandragem", agora investida de urn novo nivel tecnologica (0 telefo-ne), grava tudo em disco, e com ista toma-se "autor". Estava "inventaao" 0 samba, e para que isso

aconte-cesse era preciso que se encontrassem a musica negra, suas eJaborayoes popularescas e urbanas, 0 telefone, 0

gramofone, 0 mercado musical incipiente, projctadas

sobre a ambfgua e resvaladiga area de confluencia entre a ordern do trabalho e a da Festa na sociedade carioca. Pode come~ar 0 carnaval (dois rneses depois do qual,

como se sabe por aquela marchinha, Cabral inventou 0

Brasil ... ).

2. A bossa-nova (come,o dos anos 60): como

e

sa-bido de sobra, reprocessa a batida do samba e a hamo-nia das canyoes corn influxos do jazz e da musica im-pressionista, torna as letras mais conccntradas e da urn calafrio cameristico na tradigao do canto em do-dc-pei-to;em suma, precipita sobre 0 mercado uma sintese em

adensamento das linhas da canyao de massa em vigor no Brasil, da can~ao erudita intemacional do jazz, e cria um novo padrao de produyao t€Scnica, de uso da voz e do viollio (J oao G ilberto), tendo como cor local o desenvolvimcnto juscelinista, e instrumentando toda uma geragao surgida na decada de 60. Em tempo: cria no interior da musica popular urn sub-sistema que cornpreendc uma cxportayao e uma linha-de-expressao intelectualizada que sera 0 casulo qe toda a

floral;ao ··universitaria" que atravcssara de fcstivais a 15

(9)

decada de ~O .(a bossa~nova deixa mais

a

vista a espinha de classe~medla que sustenta a musica comercial~popu~ lar de que est amos falando, e essa espinha ficara para

s~mpre atrav~ssada na garganta do critico, alias impres~

slOnante, Jose Ramos Tinhorao).

3. 0. t.ropicalismo (fim dos an os 60): devolve a MPB uIllverSltana, herdeira da bossa~nova, ao seu meio real a "geJcia geral brasileira", foco de cultufas. Caetano~ contribuic;ao milionaria de todos os gClleros musicais tanto na composic;ao como na re~interpretac;ao i1umina: dora, na re~leitura e na citac;ao do cancioneiro. Mudan~ <;a da tex~ura do som, seja pela guitarra elctrica. prIos novos reglstros da voz, pela parafernalia instrumental mobilizada por Rogerio Duprat. Assim, 0 tropicalismo promove urn abalo sismico no chao que parecia sustCJ!-tar 0 terrac;o da MPB, com vista para 0 pacto populista e para as harmonias sofisticadas, arran cando-a do

chcu-10 do bom-gosto que a fazia recusar como inferiores au equivocadas as demais manifcstac;6es da musica comer-c;al, e filtrar a cultura brasileira atraves dc urn halo es~ tetico-politico idealizante, falsamente Hacima" do mer-cado e das condic;ocs de classe. No fenncnto da crise

qu~ espalha ao vento, 0 tropicalismo capta a vcrtiginosa

esplral descendente do impassc institucional que leva-ria ao AI-5. (7)

So.CIo.LOGIA DO. o.UVIDo. To.CADA DE o.UYIDo. (II)

0. sax da alta madrugada, as duplas caipiras tocam cedo po:~uc os trabalhadores do campo come<;am ce-do, a muslCa-geraJ de acordar a cidade, os funcionarios motorizados, os motoristas de taxi, 0 radio 0 dia intei-ro ligado da empregada, 0 nidio de pilha do openirio da construyao, a musica dc fundo das lojas, 0 sam em

fre-q(h~ncia modulada, a quarto dos adolescentes as

sinfo-nias e .CJuartetos de po is das rcfeic;6es. A musi~a por to-d(?s os lado.;, uma espccle de habito, uma especie de

ha-rUa!, algo que COIllpl::ra 0 lugar de morar, 0 lugar de

trabalhar, seu usa (:,'~'stante num preencher os hiatos do lI~eio alll.biente. \to meio ambicnte fisico e subjetiv0, a rrlUSlca dlstrac;:;o. Jistrai a trabalho, distrai 0 lazcr,

fal, c{)lltrapollto .:<:go com 0 que ell YOU fazer, papel de

pareul', pan():d~'.(undo, ponto-de-fuga, acompanhamcn~ to l'1l1 h:J.molllco, agudo, da atividadc viver, em toda p:ute, lima cspecie dc cemirio, jardim porta til. ;\

musi-16

t

ea assim ouvida: urn tceido que passa por dentro de urn corpo de diferenyas, 0 teeido conjuntivo: serve

a

unida~

de do organismo ocupando todos os espayos livres de maneira a nao deixar vaZlos, Jiga os difcren tes 6rga"os entre si, e os sustenta e os protege. Hermeto MagaI, So~

riano Veloso etc. Todo dia ela faz quase sempre igual, transborda pclo eotidiano, preenche parte das fraturas entre 0 real e 0 imaginario, materia sonora, massa ora

bern mais fina ora bern mai~ grossa. Assim agindo uma forc;a conservadora: nao: rnais simplcsmente uma fOfya protetora. Como a religiao: espirito de um mundo sem espirito?

0. o.RGASMo.

Ii

0. OPIo. DO. Po.Vo. VIVA 0. COITUS

INTERRUPTUS

o

que acontece calar a boca de urn vulc~o semi~ativo:

desses que exalam ha seculos urn vapor continuo? Urn grito, urn clamor que 0 tempo todo escapa entre 0 que

se deseja e 0 que vive: talvez s6 seja possivel entender 0 uso da musiea assim, pergun tando da sua forya, e da forya da demanda que a sustenta no aT. Se toda a musi-ca usada por nos fossc musi-caIada de repente, taIvcz isso aba-lasse profundamente a ordem das (;oisas, pois, pelo me-nos por um momen to, tomaria 0 insuportavel

insupor-tavel.

Mas acontecc que ela nao se caIa: parece que ha nela urn filao que

e

da ordem daquilo "que nilo po de mais/ se calar", como diz certa canc;ao de Caetano Veloso feita para Roberto Carlos ("Muito romantico"). As-sim como 0 orgasmo do povo nao pode ser promovido

ou interrompido por urn slogan, a necessidade de musi-ca tambcm nao se intcrrompe com palavras. 0 usa po-Htko da forya musical esta Jigado a isso.

E

a que ex~ plica a perspectiva daquelcs que, em nome de uma

cd-tica radical da ordem social e do papel consolador da arte, e conscientcs disso, gostariam que ela se calasse de vez. Par outro lado ha a perspcctiva daqueles que, ja que cIa nao sc cala, e ja que

e

forte, que pelo

menos/a-lasse a verdade, dissesse a que vcrn, e se tornasse

veicu-ladora de mensagens poJiticas. E isso de fato tcnde a acontecer, mas se nern semprc

e

possivel, tambern nem sempre 0 cOil/elida politico e 0 desejo dessa forya

es-tranha, a musica. Ela csta em algum lugar cntre.-.o silen-cio e as palavras.

Hu

tarn bern uma perspectiva politica

(10)

diferente, que nao quer nem que a mlisica se cale como tal, nem que se cale para deixar que as palavras falem, mas que seja musica, que exista como for9a, que seja assim mesmo uma estranha no campo de for9as, e que atue como propulsora a seu modo pr6prio.

UMA ESTRANHA

NO CAMPO DE FORI;AS

Os maiores nomes da musica popular brasileira nos anos 70, aqueles consagrados, vieram da decada ante-rior, ja tinham urn passado. Assim, sao artistas que, mais ou menos intensamente, viveram 0 fim de 68

co-mo urn trauma, alguns deles enfrentando prisao e exi-lio. A sua musica contem urn comentario disto, e, afi-nal, congratula-se com 0 fato de ser ela mesma uma

for9a, uma fonte de poder, 0 de extrair de seus

pr6-prios recursos uma capacidade de resisH~ncia. Poderia-mos dizer que essa musica comporta mais do que uma Iesistencia: algo como urn resgate.

Ao longo da decada, varias compusi90es marcantes de Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buar-que, Gilberto Gil, VaG indican do uma visao da musica como poder, "poder psicol6gico, social, politico, espiri-tual e magico". Esse poder advem de sua atua~ao sobre o corpo, e se desdobra numa figura9ao do corpo social. A primeira dessas musicas, que abre a serie, e que se po-de dizer que funda urn caminho, e "Aguas po-de maryo", de Tom Jobim: nela nao se ve rna is a melancolia sem saida de "Sabia" (parceria de 1968 com Chico Buar-que), que adivinhava 0 ext1io e 0 regresso it sombra de

urna palmeira "que ja nao ha", nem a melodia requin-tada pela rnodula9ao continua dessa musica de uma es-pecie de maneirismo bossa-novistico super-magistral). Em vez disso, uma melodia simples, pontuando ritmi-camente as constatayoes mais concretas: "e/pau/C/pe-dra/

e

0 fim do caminho", fim do caminho que encerra

urn cicio e inicia outro, cicio hist6rico e cicio natural. E a passagem nao e esquematica, vive-se 0 momcnto de

transiyao que e semprc fim e comc90, simultaneamente o impasse e ja a disponibilidade: 0 estrepe no pe, 0

car-ro enguiryado, 0 fim da picada, 0 fim cia canseira, 0

qucira au mIo queira, as aguas de maryo, as "promessas de vida em meu corayao".

18

f

Outro momenta importante

e

0 disco Constru~iio,

de Chico Buarque (1971). Na musica que d. titulo ao LP, a queda do operario da construyao busca ser recupe-rada num mosaico tragico, quero dizer, num mosaico magico onde as estilhayos da construyaO poetica for-mam a figura multi pia e ambigua de uma morte da qual se pode renascer, num novo corpo multiplicado.

E

par ai que 0 desencanto precoce (que vinha assediando muito de perto a musica de Chico Buarque no fim dos anos 60) se transform a numa virulencia incisiva ("Deus Ihe pague").

"Agora nao pergunto mais pra on de vai a estrada/ agora nao espero mais aquela madmgada/vai ter/vai ter/ vai ter de ser/faca amolada/o brilho ccgo de paixao e fe/faca amolada" ("Fe cega, faca amolada", de Milton Nascimento e Ronalda Bastos, 1975): reversao da can-yao-de-protesto dos anos 60, que prometia messianica-mente 0 fu turo, num engajamento para com 0

presen-te, tendo como instrumento e arma a "faca s6lamina" do brilho de luz - alucina~iio e lucidez. A poesla nao se paralisa olhando a dia-que-vird: em vez disso, se poe in-teiramente, e em movimento, no tempo em que esta.

Essa musica de Milton Nascimento e Ronaldo Bas-tos era cantada no show dos Doces Bdrbaros, quc reu-nia em grupo Caetano, Gil, Gal Costa e Maria Bethareu-nia (1976). Ela passa par ali como um elo a mais do recado que esta .tambem em "Urn indio" e em "Genesis", de Caetano. Sao duas musicas meio profeticas, meio viden-tes. A primeira fala de urn indio que descera numa es-trela brilhante num ponto equidistante entre 0

Atlanti-co e 0 Pacifico. A segunda, de uma tribo que ainda ve, "quando toma urn vinho", na cara de umajia (uma ra), o espirito original de tudo. Nao se trata de profecias propriamcnte ao pc-da-Ietra, pais 0 indio que chegara

(no momento ern que for exterminada a ultima na~ao

indigcna), traz consigo tudo 0 que ja existe,

preservan-do em sua total ida de aquilo de vital que desaparece. 0 ponto de encontro dessas "pro feci as", entre 0 extremo

passado e 0 extremo futuro, entre 0 Atlantico e 0

Paci-fico, no centro do tempo c do cspayo, e 0 aqui e 0

ago-ra,

ondc

esta

0 espirito de tudo e

°

sentido de tudo:

oculto, soterrado, e, no ellt'anto, cristalino e 6bvio ao mesrno tempo, so sc souber vcr. Scja portanto num tom epico, como a do "lildio", cantado par Bethania, ou no tom de uma videncia abstrusa, primitiva e tecnol6-gica, de "Genesis", as profecias falam do momenta

(11)

sente, e, ao contnirio do que pode parecer de urn certo angulo, tOe colocam dentro da historia, de uma historia total, e nao fora dela.

Em 1976, Chico Buarque capta 0 recado das vozes

que sussuram na noite de uma realidade desconhecida, nas alcovas, no breu das tocas, nos botecos, nos merca· dos: as duas can90es que recebem 0 nome de 0 que

sera

C'A

flor da pele" e

"A

flor da terra" sugerem a

convergencia do erotica e do polltico, subordinados a urn so princ(pio. 0 que sera, que nao tern descanso

nem cansa90, esse inominal'el que se recarta no avesso do princIpia de realidade (limite, sentido, certeza,

ta-manho, governo, censura, decencia, verganha). realida-de, que fica pairando como uma fantasmagoria

castca-dora sobre a expansao da energia. ou, como chama-Io?, libido, desejo, vontade de contato, amor. Podemos, sim, chama-Io: 0 princ{pio, seja 0 que for, ou como for. E no princIpia reside a especie de atualidade mlstica que percone essas musicas: a for9a dos come90s, da cria,ao, da genese, a for,a do principio que habita tudo o que vive para sempre, e portanto, agora, nesse preciso momenta. Hi nisso uma superayao mitopoetica dos an· tagonismos: festa. danya, carnaval, alegria.

Podemos ja resumir todo esse percurso numa figura, que engloba a tensao em que vive essa tradiyao da musi-ca popular: ao mdxima divisor comum que baseia a di-visao da sociedade de classes, a didi-visao entre capital e

trabalho, a divisao entre forya de trabalho e proprieda-de dos meios proprieda-de produyao, a musica popular contrap6e o mlnimo milltiplo comum da sua rede de recados (puls6es, ritmos, entoa90es, melodias-harmonias, ima-gens verbais, simbolos poeticos) abertos num leque de multiplas r'1rmas (xaxado, baiao, rock, samba, discote· que, chonnho etc. etc. etc.). Trata-se de recuperar per· manentemente esse minima multiplo comum como uma forya que 1uta contra 0 maximo divisor comum

(8). Para que essa luta se sustente como uma tensao, e nao se transforme em pura ideologia (que apresentasse afinal a sociedade de classes e a music a popular como represent antes de urn interesse comum)

e

preciso que ela esteja investida da vitalidade "natural" dos seus usos populares, ou entao, que scja reconstrufda e trans-figurada continuamente pelos poetas·musicos conscien-tes do complexo de foryas e linguagens que ela encerra.

E

0 que acontece com essa linha de compositores de que estou falando.

20

T

Resta saber ate quando e ate onde seni possiveJ re-partir esse salario minima multiplo comum de

cintihin-cia. (9)

ROMANTlCO, DEMASIADO ROMANTICO

A critica nao esti preparada para falar de Roberto Carlos.

Bate com diferentes intensidades na mesma tec1a: can tor comercial.

Cansa de dizer 0 6bvio: que vende cada vez mais

dis-cos. Dan,a.

Esquece de pensar 0 ocullo mais 6bvio: que tipo de

for,a 0 sustem no ar por tanto tempo. Por que ele?

Pedi

a

minha mulher que escrevesse sobre isso. Ela disse: voz poderosa, suave, louca, ele realiza melhor do que ninguem 0 desejo de urn canto espontaneo, arranca

materia viva de sl e entra em detalhes, coisas mal

acaba-das, celulas emacionais primitivas, momentos quase se-cretos de todD mundo (como as frases decoradas que a

gente prepara para lan\=ar ao outro na hora de partir e que nao chega a dizer nem a confessar), uma qualidade romantica, ingenua e vigorosa, que unifica a sem-grad-ce, 0 patetico, a doyura, 0 lirismo que

ha

em todos, e

fica forte, quase indestrutivel, pOis soma anseios, ilu-soes, ideais que tambem pairam por ai, mais alem, es-tranhos a realidade cotidiana de muitos. Roberto assim

e

catalizador, antena, receptor de uma emissora pode-rosa de ondas frequentes e persistentes de desejos re-primidos, aos quais da nomes: substantivos simples, que comp6em cenas visiveis, coisas palpaveis, que confor-tam insegurany3s e pensamentos incompletos e dao rna· teria viva ao sonho.

UMACOLCHA DE

RECADOS

Talvez seja passivel falar urn pouco mals de Caetano Veloso a partir de Roberto Carlos, ele que fez nesses an os tres can90es para Roberto: "Como 2 e 2", "Muito romantico" e "For9a estranha". Todas elas sao meta· canyoes que retletem sobre a ate de can tar , e que

(12)

tam algo de reflexao critica nas veias dessa poderosa corrente de romantismo de massas do qual Roberto Car-los

e

0 portador. Ao fazer isso, Caetano nao destr6i 0

que ha de romantico em Roberto; ao contra rio, poten-cia tudo isso (a ironia, alias,

e

urn dos expedientes ro-manticos para acentuar a tensao entre 0 sentimento

es-pontaneo e a mediayao da mercadoria). A ironia consis-te no deslocamento perpetuo que faz de toda inconsis-terpre-

interpre-ta~ao lima versao entre outras: "noutras palavras sou

muito romantico" cantado por Roberto. cantado par Caetano com piano rommtico, cantado por ele com urn coral solene. Como a "crianya irbnica" de que fala-vam as romanticos alemaes (Novalis), 0 poeta C lima

es-pecie de Eros eujas flechas saem de urn areo tenso entre os p610s da ingenuidade e da nao-ingenuidade. 0 cantor refere-se ao fato de ser urn portador da voz, um porta-voz do desejo (a for,a que me leva a can tar, 0 que pede pra se cantar), com a qual 0 sujeito se reconheee (Sbu 0

que soa) e se estranha (eu minto mas minha voz nao mente). Minha voz me difere e me identifica; noutras palavras, sou ninguem que sou eu que

e

urn outro -essas tres canyoes sao instantaneos de Roberto Carlos feitos par Caetano Veloso, ou instantaneos de Caetaijo Veloso feitos por Roberto Carlos atraves de Caetano Veloso. (10)

Caetano volta-se tamhOm para Jorge Ben, para comemorar-homenagear a fon;a ritmicalirica, comemo-rar a espontaneidade prodigiosa, render grayas, pergun-tar: como e possivel, apesar de tudo, a espontaneidade?, a tecnica e a espontaneidade, lirismo e arte, qualquer coisa e j6ia, juntas.

Essa atitude de Caetano Veloso pode ser vista em pelo menos tres niveis: uma poetica da identidade co-mo drama, a nivel pessoal; urna procura da forya da be-leza pura e das for,as elementares da cultura que sobre-vern ao disco "Arar;d azul", ponto mais avanyado da fragmenta,ao das linguagens no roteiro de Caetano; uma interpretayao do sistema da musica popular como urn campo de foryas onde atua uma poetica da vida brasileira, desbordante, nao centralizada, lugar da perda de uma pedra muiraquita que passa de mao em mao num jogo dcsnorteante como nurna linha-dc-rnontagem, uma pedra que nao se fha mais em urn lugar, exata· mente como a ideia de cultura nacional que brilha em toda parte nenhuma nurn esplendor de fragmentos.

Sc 0 tropicalisrno C 0 sonilo da abertura de um bali

22

T

(que precede 0 fechamento politico de 68) que contem as quinquilharias, as traquitandas e as maravilhas aCll·

mul~das ao longo de uma hist6ria recalcada, a volta do

CXI:JO cont~rn a consciencia de que nao ha mais aquele

bau a abnr, que 0 processo produtivo acelerou os

sign os culturais numa centrifugadora, e que os sellS mo· vimentos reais nao podem ser percebidos em centros 10' calizados, nem em linhas retas, mas em circulos abran· gentes.

Caetano

Ie

0 destino atraves do labirinto de labirin-tos da linguagem, do labirinto de can,6es, ele sabe ir e v?1tar .p~r .ess~ l~birinto; e ao voltar !to corneyo, solita-no/sohdano, mdICa 0 que existe ld. E assim que ele

pe-netra fundo na existencia.

Chico Buarque, artesao habilissimo, Ie as entranhas dos homens: sua lirica dramatica e extremamente sensl' vel ao carpo que sofre e que goza. Sua poesia·musica esta cheia de imagens de contundencia e de intensidade corporal: ela capta a entranha sensivel, e por isso e tao fina para 0 erotica, 0 social (len do 0 futuro' tal como

ele se escreve nas vlsceras dos que sofrern) e ofemini·

no.

E ASSIM SEPASSARAM DEZ ANOS

(E Milton e Gil e Jorge Ben e Gal e)

Jose Miguel Wisnik

outubro/novembro de J 979

(13)

NOTAS

1) Os quatro primeiros paragrafos do texto podem ser lidos, se se quiser, como um "noticiario" crItica, do qual eles parodiam levemente 0 tom.

2) Gilberta Vasconcellos, Musica popular: de olhas na

!resta, Rio, Graal, 1977.

3} "A Terra distante me faz lembrar das primeiras una-gens do homem oa Lua. 0 momento historico presenciado pela TV. Os astronautas saltavam como cangurus e jogavam golfe. Pareciam fclizes, encantados. Tada a teatraliza~ao dos locuto-res terlocuto-restlocuto-res, falando do maior feito da Humanidade, da

Cien-cia e da tecnoiogia, todo 0 palavreado mio conseguia desviar

minha Hten~aO do que ell simpicsmente via - as astronautas brincando num play-ground fantastico. Mas quando a camera mostrou a face da Lua contra 0 fumamento escuro, 0 que eu vi foi inesqueclvel e incompreenslvel. Ali estava a Terra, do outro lado do Video, numa outra dimensiio de realidade. Como era conceblvel que eu estivesse ali, estando eu aqui?!", Medita-(:30 diantc de uma foto dez anos velha, e eterna", de Paulo Neves, em Psicoiogia atual, Ano I, n9 9. A leitura das can(:oes se desprende naturalmente deste texto.

4) "Inspira(:3o quer dizer: cstar cuidadosamente entregue ao projeto de uma mu.sica posta contra aqueles que falam em termos de dccada e esquecem 0 minuto e a milenio", dizia 0

Manifesto do Movimento Joia (1975). "A dCcada e a eternida-de, 0 seculo e 0 momenta, 0 minuto e a historia", dizia 0 Mani-festo do Movimcnta Qualquer Coisa, do mesmo ano (ou sema-na, au minuto au hora).

5) Thcodor W. Adorno, "Sabre el earactcr fetichista en la musica y la regresion del oido", Disonancias, Madrid, RIALP, 1966.

6) Esse tema

e

descnvalvido no livro de Gilberta Vascon-cellos, com base no cnsaio de "Dialctica da malandragem", de Antonio Candido.

7) Veja a leitura de Cclso Favarctto, (om Tropicdlia: a/ego-ria alega/ego-ria, Sao Paulo, Kairas, 1979.

8) Esta sacada vem formulada na entrevista de Matinas Suzuki Jr., "Rccuperando a dimensao tnagica da musica", para o Folhetim, Sao Paulo, 28 de outuhro dc 1979.

9) "Realce, uma mane ira de dizcr a luz gera!. Denominar a brilho anonimo, como um salario minima dc cintilancia a que todos tivessem direito", Gilberta Gil, 1979.

10) "( ... ) para cntcnder algucm que, mIo obstante, so en-tcnde pela mctade, 6 preciso cntende-lo primciro totahnente e melhor que eIe a si proplio, para, em scguida, SO entcnde-lopela mctade, cxatamentc como a mctade de si m(~smo", diz Schlegel, um dos romanticos alcmacs do scculo passado, Diz tambem: "A ironia c a consciencia clara da ctcrna agilidadc do caos infi-nitamcntc pleno". Essas cit3(:oes cstao cm 0 Romantismo, de varios autores, Sao Paulo, Perspectiva, 1978.

24

r

!

A

"linha evolutiva"

prossegue

a mUSlca

dos universitarios

Ana Maria Bahiana

Musica universitaria, a rigor, nao existe. E melnor ver e pcnsar 0 universitario na musica, como classe, e tentar trayar 0 modo de ay80 que ele, assim,

desenvol-veu ao longo desta decada. Sua presenya nao

e

novida-de: a ascensao do compositor de formayao universita-ria - vale dizer da classe media urbana em seu estrato superior, que constitui a maior parte da populay8o das universidades brasileiras _. e a ascens[o da pr6pria bos-sa nova, a instalayao da «linha evolutiva" de que falou Caetano Veloso. (I) Universitarios eram Tom Jobim (Arquitetura), Edu Lobo (Direito), Carlos Lyra

(Arqui-tetura). Universitarios seriam Caetano (Filosofia), Gil (Administra,iio), Chico Buarque (Arquitetura) - e Mil-ton Nascimento escapou de ser justamente par que per-tencia a famIlia modesta demais para aspirar a algo alem de urn curso media, como a de Contabilidadc.

Portanto, a forma9ao universitaria - nao propria-mente as bancos das faculdades, que todos abandona-ram a meio carninho, assim que musica se tomou uma profissao, mas 0 ambiente em torno das universidades, a circulayao de ideias - esta no pr6prio miolo da musi-ca brasileira nesta e nas duas demusi-cadas passadas. A visao do veio principal da musica, no Brasil,

e,

necessaria-mente, a visao das universidades - ainda mais que a crf-tica constante, em profundidade, surgida em meados dos anos 60, e, tambem, de extrayao universitaria. lsso significa, em ultima analise, que 0 circuito se fecha de

modo perfeito: a musica sai da classe media,

e

orienta-da pela classe media e por cIa

c

consumida. Observar 0

que aconteceu com a "musica universitaria'\ .. no Brasil dos anos 70

e

obscrvar 0 que aconteceu com a c1assc

(14)

media e com a universidade brasileira neste decada. Continuac;ao natural dos anos 60, os universitarios

tem acesso ao cenario e aos meios de produc;ao da mu~

sica brasileira at raves dos festivais, em dais momentos

breves mas distintos e marcantes: urn, envolvendo os

dois uitimos anos da decada passada e os dois primeiros desta, traz a produl'aO do eixo Rio-Sao Paulo, sensibiliza-do de mosensibiliza-do direto pelos acontecimentos musicais sensibiliza-do periodo 65-68; outro, que e anunciado a partir de 72,

mas se realiza concretamente tres ou quatro anos

de-pois, marca a presenc;a dos migrantes, dos composito~

res universitarios fora do eixo, os nordestinos, a quem

as explos6es dos anos 60 chegam tarde e repercutem de modo diverso, com diferentes resultados.

E

necessaria uma palavra sabre as festivais, antes de

tentarmos compreender seus personagens. Grande feira

de amostras da musica brasileira de classe media e for~

mac;ao univ~rsitaria - apesar da existencia da "Bienal

do Samba" e de festivais de musica carnavalesca, a

fama da palavra se deve basicamente a esse tipo de

compositores e plateias - as festivais cumpriram varias

fUllc;oes - e, com 0 esvaziamento dessas func;oes, sua

transferencia para outras areas, se esvaziaram tambem.

Os festivais eram, basicamente, a grande vitrine onde 0

artista se mostrava exatamente ao seu publico em po~

tencial. E, como decorrencia, 0 supermercado das

gra-vadoras, que ali podiam escolher, com estreita margem de erro, seus novos produtos, ja testados pelo

confron-to com 0 publico. 0 elemento concorrencia - em si

absurdo, ja que se tratava de julgar e premiar obras

completamente dis pares em forma e intenc;ao - servia

como atrativQ extra, ~empe-ro, e ordenava os contatos

artista/plateia, favorecendo a cristalizal'ao de

tenden-cias, grupos, torcidas.

A censura e a repressao direta, com pris5es e exilios, tiraram dos festivais sua func;ao de ponto de encontro e reduziram-nos apenas a feiras para novas contratac;oes.

Mas, com a recessao da industria do disco - da qual ela s6 se refaria a partir de 74/75 - ate esse papel se

tor-nou superfluo. As gravadoras preferiam investir nos

no-mes ja contratados - e foi justamente nesta decada de 70 que os estreantes dos festivais, como Chico, Milton,

Gil e Caetano, tomaram-se "estrelas" em popularidade e bons vendedores de discos. Nos poucos casos de no-vas contratac;oes, preferiam "fazer as compras"

direta-mente, mesmo porque, tolhida em sua liberdade de

26

l

criar e exacerbado apenas 0 lade de competil'aO,

dispu-ta, a produc;ao que comec;a a aparecer nos festivais de-cresce consideravelmeI?te em substancia, gerando urn ser estranho, hlbrido e fugaz, conhecido como "rnusir.::t

de festival" - da qual "BR-3", de Antonio Adolfo e Ti-berio Gaspar, vencedora do Festival Internacional da Canl'aa de 70, talvez seja um dos exemplares mais Ii-picos.

1972 pode ser considerado 0 ano final da era dos

festivais - e, tambem, 0 ano que marca a entrada em

cena da terce ira gerac;ao de compositores a eles ligados,

a segunda geral'ao de universitarios dos anos 70. Em 75, a Rede Globo tentaria trazer de volta a f6rmula,

sem exito - os compositores e seu publico ja tinham

encontrado nOVDS canais de cornunicac;ao. E,

curiosa-mente, no ano final da decada. mais uma vez os festivais ameac;am voltar, embora seja dificil preyer sucesso para

uma f6rmula ja tao exaurida e ultrapassada pelos pr6-prios procedimentos dos musicos e das plateias.

E

inte-ressante observar que, enquanto urn dos festivais

anun-ciados - 0 da TV Tupi, dirigido pelo veterano Solano

Ribeiro - mantem 0 antigo formato de competil'ao re-gulada par um juri de crilicos, outro - 0 da Rede

Glo-ba - reflete de modo exato 0 est ado de coisas na

in-dustria do "show-business" do Brasil - prescindindo

do interrnedio de terceiros, as proprias gravadoras

esco-lherao (e contratarao) os vencedores. 0 que significa

"fazer as compras diretamente", apenas, agora, com 0

teste ao vivo avalizando a aquisic;ao - e revela 0 ponto

de controle a que a industria do disco chegou, no

pano-rama da criac;ao musical do pais.

Quando a decada de 70 comel'a, os festivais ja

passa-ram de muito seu pique maximo, arrebanhando e lan-yando a scgunda gera<;:ao de compositores universitarios, primeira pos-bossa-nova. A repressao, com prisoes, eXf-lios e censura constante, esvaziara qualquer conteudo que os certames algum dia puderam ter - e, ao mesmo

tempo em que abria (a forl'a) um espal'D para novos

no-mes, impedia que eles surgissem, ou melhor, instalava-se como presen<;:a absoluta no proprio processo de

cria-I'ao. Havia tambem 0 proprio desgaste dos festivais, em si - na decada anterior, existiam pelo menos quatro: 0

d~ TV Excelsior (l965/66), 0 da Record (1965/68), Sao Paulo, 0 Festival Internacional da Canl'ao, da

Re-de Globo, no Maracanazinho, Rio {l966/72}e 0 Uni-versitario, da Tupi, no Rio (!969/72). Na nova decada,

(15)

sobreviviam apenas 0 FIC e 0 Universitario - mais tar-de, com a op~ao do Festival de Juiz de Fora, onde 0 nl-vel qualitativo era alto, mas a repereussao, minima, por estar fora do eixo Rio-Sao Paulo. Nos dais, 0 desgaste ja deixara suas marcas: 0 FIC fieara reduzido a uma feira-livre para novas contrata~oes? urn espetaculo para grandes plateias~ onde a apresenta~ao valia mais que a musica em si; e 0 Universitario tentava ser a porta

ime-diata de escoamento da produ~ao de nov os composito-res, "uma especie de vestibular para 0 Internacional",

como disse Jose Jorge Miquinioty, letrista do

compo-sitor Ruy Maurity. (2)

E

nesse cenario que surge a primeira leva de univesi-tarios dos anos 70, a gera\=30 da entressafra, esprcmidos entre as compara~5es corn 0 passado rccente, 0

impae-to das discussoes levantadas com as anos 60 (conteudo/

forma, participa~ao polftica direta/revoluyao estetica, busca de raizes/assimila\=ao e sintese de elementos ex-temos), e a repressao que se instalava no presente - e, possivelmente, no futuro.

Parece desnecessario dizer que nao cram muUos e es-tavam confusos. De concreto, e ern corn urn, tinham apenas a certeza de que a universidade n~o ~s levaria muHo longe, e a esperanya de que as festlv~HS fossem sua porta de salda, 0 acesso

a

profissionalizayao na mu-sica - e nao havia muito aJern disso. "0 festival e 0 un

i-co meio que 0 jovem compositor disp6e para se lan~ar no rneio musical", Ivan Lins disse em 1970, quando concorria a seu segundo Universitario. "A maio ria dos estudantes nao gosta dos programas de calouros ou das estayoes de ddio.ja que. na maioria das v,nes, estao ar-riscados a passar por vex ames que podem comprome-te-Ios definitivamente." (3) A ObSerV3yaO de Ivan

e

re-veladora de como os compositores universitarios se viam, na epoca - c, na vndade. ainda se veem ate hoje, em grande parte. Parcela escolhida da cria~ao musical do paiS, detentora da continuidade da "linha evolutiva".

boa demais para se submeter aos "vex ames" dos pro-gram as de calouros e das estayoes de radio -~ estas ulti-mas, csscnciais a qualqucr carreira pro fissional, c por ondc todos eics, gostando ou nao, tivcram que passar. Em 76, Luiz Gonzaga Jr. ... nao por acaso. 0 de

forma-yaO mais popular e nessa epoca comcyando 0 processo de "abcrtura" de sua musica quc 0 tornaria urn clos

compositorcs de maior sucesso dos (dtimos uois anos

70 - tllostrava-se acostumado e ate divertido com essa

28

realidade anks execrada. "Voce sabe do que gosto? De trabalhar disco em radio. Trabaiho mesmo. Rapaz, meu sonho era ter urn programa de radio. Show oa naite, sa-be como

e?

Eu fui a uma paryao de programas desses, transei com os caras, e [aei! en trar na deles." (4)

Podcmos abordar e ten tar compreender esta prime i-ra leva de universitarios dos anos 70 at raves das

carrei-ras de dais deles: Ivan Lins e Luiz Gonzaga lr. Os dois

sao contemponlneos em idade, formac;ao e no desenvol· vimento de seus trabalhos -- e 0 que acontece com eles e sua musica, ao longo da decada,

e

revelador de quem eram, 0 que pensavam e criavam esses compositores

universitarios dos primeiros anos 70 (embora seja sem-pre bom lernbrar que nao se trata de buscar estere6ti-pas, figuras Upicas: Ivan e Gonzaguinha sao antes exempJos de urn grupo de criadores, num dado

mo-menta).

Ivan Lins vinha de uma familia classe media da Tiju-ca e cursava QuimiTiju-ca; Luiz Gonzaga Jr., filho de Luiz Gonzaga e uma cantora de coros de grava~ao e casas noturnas, criado pel os padrinhos no morro de Sal')

Car-los, ambiente decididamente popular da Zona Norte do

Rio, estudava Econornia. (Ivan completaria a curso e pensaria seriamente em seguir a carreira; Gonzaguinha deixou 0 seu no meio). Seus caminhos va~ se encontrar

exatarnente nos festivais universitarios da Tupi - e, co-mo conseqilencia, nas reuni5es de musicos e composi-tares universitarios cariocas que vao dar origem, em

70, ao MAU - Movimento Artfstico Universit<irio, de curta durac;:ao.

A historia de suas estreias e muito semelhante - sur-gem no Universitario, atraem alguma atenyao, passam ao Internacional, sao alvo de interesse de gravadoras e meios de comunicayao, integram 0 MAU numa atitude mais de defesa que de ataque, cerrando em tomo de sua formac;ao univcrsitaria expressa no nome do grupo e acabam dilacerados pela super-exposi~ao - justamen-te 0 4uC: mais remiam - agravada por seu pr6prio des-preparo diante das eXlgcncias do mercada onde, afinal, tinham buscado entrar. 0 programa de TV "Sam Livre

Exporta,ao". da Rede Globo - criado para capitalizar

c massificar 0 que os homens dc TV viam como nova

tendcncia do mercado, a faixa universitaria de publi-co _. e 0 marco. Invcntado a partir do MAU e por

cau-sa dele, logo se esvazia. mostra sua verdadefr3 face e ameac;:a con'ocr as frageis carrciras de seus contratados.

(16)

I.

Ivan se afasta do MAU para tentar 0 estrelato maximo, individual - "Quando estavamos juntos, meu sucesso

quase sempre passava despercebido. Paralelamente,

per-di contratos e chances de ganhar mms, so para ficarmos

unidos, pensando que isso ajudaria a tados", disse, em

71 (5) - mas urn ano depois esta arrependido, sentin-do-se (com razao) desgastado, queimado - e esse

im-passe se arrastaria penosamente po~ quatro anos de s~~

l{~ncio quase total, com Ivan recolludo e quase

esquecl-do, depois de al,ado as glorias de suoosso instantaneo, em 70 e 71. "A televisao usa a sua musica para se

pro-mover, em vez de ser ao contnirio,

e

angustiante" (6).

Gonzaguinha, ao contnirio, prossegue - ern grande

parte porque, de temperamento fechado, P?UCO dado

a sorrisos, e musica mais densa (como se vera a segUlf),

nao se prestava para 0 papel de idolo. Findos

natural-menta 0 MAD e 0 "Som Livre Exportayao", continua

produzindo, gravando, e obtendo a mesma exposi,ao

minima da sua estreia - resguardado, portanto, dos

riscos do sucesso. Sua obra, muito coesa, s6 nao esta

a salvo da censura, que recollie seu compacta

Hearn-portamento Geral", seu primeiro LP, veta a maior parte

da produ,ao destinada aos albuns de 74 e 75, "Luiz

Gonzaga Jr." e "Plano de Vao".

Entretanto, ambos enoorram a decada registrando indices altos de popularidade (com seus sinais obvios: boa vendagem de discos, lota,;:o de shows) e

presti-gio junto a critica. Para entendermas a que aconteceu

a ambas - e, por extensaa, 0 que aconteceu

a

esfera de

produ9aa e consumo de musica que integram e r~pre­

sentam - devernas olhar 0 que pensam e a que cnam.

Aparenternente, seria 'simples resumir em duas linhas 0

sucesso de cada urn: Ivan Lins seria 0 "estudante

bur-guesaa" (como ele mesmo se definiu), "consumido pela rnaquina", que faz autocritica, arrepende-se de seus erros, adota urna postura mais politizada por

influencia de urn novo parceiro (Vitor Martins) e,

por-tanto, passa a merecer aten,!oes. Gonzaguinha

repre-sentaria 0 "artista popular" massacrado pela repressao

que, as custas de Iuta e sacrificio pessoal, man tern sua

carreira, se afirma atraves dela, mas so atinge populari-dade maior quando enfatiza seu lado mais doce, a

pro-duyao de canyoes de arnor, de consum~ sempre

segu-ra. Seriam, assim, trajetorias em sentido inverso, da

arnenidade

a

densidade, e vice-versa.

Estes elementos existem. D~ fato Ivan Lins surge

30

com uma produl'ao de can,5es de amor, baladas de

le-tras banais e perspectivas nada revolucionarias de fazer sucessa, transfarmar-se em idolo. De fato sucumbe as pressoes geradas por sua propria ambiyao e s6 se refaz, profissionaimente, a partir de sua uniaa com Vitor Martins e sua autocritica publica, incessante nas

entre-vistas a partir de 76/77. "0 que acontecia comigo,

acontecia com quase todos os jovens da minha idade.

Eu era 0 prototipo do brasileiro da epoca. 0 cara alie-nado, que nao pensava em nada e nao queria pensar,

com uma forrna,ao bern capenga de classe media. ( ... ) Foi a partir de 73/74 que eu realmente tomei

consciencia de uma serie de coisas e passei ( ... ) a

en-frentar nao so estes problemas, mas Qutros." (7) "Em-bora eu nao renegue toda a minha fase inicial, tenho

que reconhecer que en tao eu estava meio perdido, numa

de garotao que ainda nao sabe 0 que queL .. Hoje 0 meu trabalha e mais tranqtiilo, roms pensado, porque eu tambem sou mais calma, mais consciente." (8).

E de fato Gonzaguinha mantem a duras penas sua carreira e atinge sucesso comercial e popular quando despe-se da grande dose de amargura que rcvestia seu

trabalho. "Este

e

0 disco mais ritimado, danl'ante,

contente,

e

0 trabalho mais envolvente que

ja

fiz", ele

disse, a proposito de "Maleque Gonzaguinha", seu

al-bum de 77. "Fiz urn disco dan,avel porque estou com muita vontade de danl'ar, de completar e expandir

mi-nha alegria". (9) E a respeito de sua carreira passada, em 79: "Verifiquei que estava colo cando pra fora ape-nas parte do que eu era". (lO)

Mas as duas linhas nao fazem trajet6rias tao simples. Tanto ha uma dose grande de calculo na "autocritica" de Ivan - "Vitor e eu conversavamos muito, ele me mostrava como eu tinha me desgastado com a critica,

com 0 publico. 0 Vitor me mostrava as areas onde eu

estava queimado: na critica, no publico estudantil. A gente refletia sobre isso, ele dizia: Olha, primeira vamos limpar sua barra, anular essa imagcm que voce tinha do

seu passado." (II) Quanto

a

"mudanya" de

Gonza-guinha, nao

e

substancial ao ponto de representar uma

ruptura real na sua trajet6ria criativa: os mesmos temas,

a mesma inquieta9ao diante das desigualdades sociais, 0

mesmo humor ferino e cortante diante das cantradi-c;oes brasileiras e a mesma densidade melodica e hanna-nica permanecem em sua produ,!ao de 72 au de 79,

mesmo cantada por interpretes romanticos c~mo

Referências

Documentos relacionados

termo de compromisso, ou a não veracidade das informações prestadas durante a seleção, o estudante será desligado do Projeto e o benefício será cancelado. Este pode

cuidados de saúde primários, como elemento fundamen- tal da prestação de cuidados pelos sistemas de saúde, pode constituir uma ferramenta para melhorar os resultados da saúde

pouco regulamentado, com uma proteção contra o desemprego classificada pela OIT e OCDE como sendo de níve l mediano, quando comparada à dos demais países

Sujeito com verbo / locução verbal Verbos + se Verbo intransitivo + se (= índice de indeterminação do sujeito) Feriu-se muito.. Verbo transitivo indireto + se (índice de

As paredes e pavimentos são revestidos em material cerâmico à escolha do cliente. Tectos estucados e pintados a tinta plástica na cor branco. b) Mobiliário:.. Os móveis

d do n.º 2 do artigo 2º do DL n,º 67/2003 de 08/04, transporta-nos para a regra da coincidência, ou seja, para se afirmar conforme ao contrato, o bem de consumo adquirido

Ensaios imunoenzimáticos (tiras da microtitulação) para a determinação qualitativa e quantitativa de anticorpos IgM contra o antigénio da cápside viral (VCA) do