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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ FACULDADE DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA - MESTRADO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ FACULDADE DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA - MESTRADO

O ABSOLUTO COMO CONCEITO TEOLÓGICO EM HEGEL E AS CRÍTICAS DE FEUERBACH

Projeto de dissertação de

Chrysantho Sholl Figueiredo

Prof. Dr. Luiz Sérgio Repa Orientador

Curitiba,

19 de outubro de 2011

(2)

O Absoluto em Hegel como conceito teológico e as críticas de Feuerbach

Um homem deve se entregar e explorar um milhão de objetos, mas ele não deve encontrar aquele estranho objeto, o universo; pois se ele o fizer, ele terá uma religião e estará perdido. Tudo importa – exceto tudo.

- Gilbert Keith Chesterton (Teólogo moderno inglês. Anglicano convertido ao

catolicismo.)

1

O objeto deste projeto é a relação entre o conceito de absoluto como conceito teológico em Hegel e as críticas de Feuerbach em A Essência do Cristianismo.

O argumento principal é entender porque após o hegelianismo, a filosofia, principalmente a alemã, abandona o mote tradicional da busca pela compreensão da mediação racional da realidade pelo conceito e se lança num furioso ataque contra a religiosidade em geral e, em especial o cristianismo. Com raras exceções

1

, quase todos os alunos de Hegel parecem ter advogado pelo rompimento da razão especulativa com a teologia, seja de uma perspectiva laica como a filosofia de Bruno Bauer, seja na defesa apaixonada do ateísmo nos “materialismos” de Feuerbach e de Marx.

O próprio Hegel inicia sua grande empreitada, A Fenomenologia do espírito, após a conclusão da obra de 1802, Fé e Saber, publicada no Jornal Crítico de Filosofia de que era co-editor juntamente com Schelling. O ensaio que precede a grande obra é justamente uma crítica à relação entre religiosidade e racionalidade nos sitemas de Kant, Jacobi e Fichte. As obras de Hegel que mais utilizaremos são a sua Filosoofia da Religião em que Hegel lança mão mais abertamente dos argumentos teológicos e a sua “pequena lógica”, o primeiro volume da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, uma vez que na lógica hegeliana, a religião e o seu discurso racional, i.e. a teologia, estão contidas como momento necessário do saber especulativo.

A Essência do Cristianismo de Feuerbach é uma escolha importante por dirigir sua crítica precisamente ao modo como a razão parece estar ainda circunscrita na forma religiosa do pensamento. Ao contrário do argumento de Hegel, para quem a filosofia

1 Como a do dinamarquês Soren Kierkegaard.

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especulativa incorpora e supera o pensamento religioso, Feuerbach aponta que ela está, na verdade, confinada nos limites da teologia. Deve-se começar por um exame crítico desta moldura racional e teológica. Se desde Charles de Brosses a Idéia de Deus percorre um caminho que vai da infância da humanidade pagã ao Cristianismo - do culto aos deuses fetiche à profissão de Fé que é ao mesmo tempo princípio ético fundador e agir prático - para o jovem hegeliano materialista, é a Religião, seja ela qual for, que deve ser vista como uma infância da humanidade.

Entender como a razão incorpora o pensamento religioso e teológico por meio do desenvolvimento do conceito de absoluto no edifício lógico hegeliano e como a crítica radical a uma tal “conciliação” se encontra no materialismo feuerbachiano é parte central deste debate inscrito no coração da modernidade, especialmente nos séculos XIX e XX.

Ele pode nos apontar tanto os limites de uma racionalidade fundada no laicicismo, quanto, de outro lado, os limites mesmos de uma racionalidade teológica: de um discurso lógico-racional do desenvolvimento da idéia de Deus que parece implicar em uma

“hierarquia lógica” entre as diversas religiões.

Não é a toa que até mesmo Cristo, em seu último suspiro grita em agonia: “Eli, Eli, lama sabachtháni?, isto é: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (MT 27:46). Talvez ele próprio temesse perder-se na religião ao aproximar-se deste estranho objeto Universal de que nos fala a racionalidade teológica.

2

Segundo Arsenio Guinzo, “es preciso tener presente que la filosofia de Hegel, al ser eminentemente una filosofia de lo Absoluto, toda ella podría ser denominada Filosofia de la religión em sentido amplio”

2

. De fato, desde a juventude, a crítica de Hegel às filosofias empiristas e idealistas já traziam uma defesa apaixonada do Absoluto, como em Fé e Saber quando Hegel afirma que numa tal rivalidade tem-se a impressão de que “Deus não existe!”, Nesta obra, Hegel faz a crítica aos sistemas de Jacobi, Fichte e Kant naquilo em que nelas, o conceito de absoluto está sempre acima da razão, operando em outra dimensão que não a dimensão racional e humana. Sua crítica ao dualismo do finito e do infinito, i.e., ao mal infinito, elaborada em Fé e Saber reaparecerá em toda a

2 GUINZO, Arsenio, Em torno a la filosofia de la religión de Hegel, in HEGEL, G.W.F., El Concepto de Religión, p. 8.

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sua biografia intelectual, até as obras da maturidade. O conceito de Absoluto em Hegel inaugura uma nova atitude em relação ao que tradicionalmente se entendia por transcendência (sobretudo no idealismo subjetivo).

O interesse de uma tal “filosofia do absoluto”, como aponta Guinzo, é o de colocar Deus novamente na primeira página:

“volver a colocar a Dios em la primera página, em el comienzo de la filosofia, como único fundamento de todo, como único princípio del ser y del conocer, despúes de haberle tenido situado durante tanto tempo junto a otras finitudes, o incluso al final, como un postulado que surge de una finitud absoluta” 3

É o próprio Hegel quem nos propõe, assim, o exame do Absoluto como um objeto religioso: “el objeto de la religión misma es el más elevado, el absoluto; él es tambíen el objeto de la Filosofia de la religión, su contenido es el contenido absoluto mismo”

4

. Em Sua Filosofia da Religião Hegel discorrerá sobre os momentos ideais da religião e das diversas noções de Deus que aparecem nas diversas religiões. Assim, sua filosofia se aproxima muito do que, no seu tempo, foi denominado por theologia naturalis graças à obra homônima do filósofo silesiano de Breslau, Christian Wolff, na medida em que pretende ser um discurso científico sobre o que se entende por Deus

5

. Porém, Hegel não pretende conceber a Deus como objeto inatingível pela “mera razão”

como afirmaria Wolff, para quem Deus, o Absoluto, é uma coisa:

“Em la filosofía, lo supremo es denominado lo Absoluto, la Idea, y es supérfluo remontarse más lejos; esto supremo, en la filosofía de Wolff llega a llamarse incluso ens, cosa, y eso se delata prontamente como una abstracción tal que de ningún modo corresponde a nuestra representación de Dios”6

Hegel quer compreender Deus como espírito absoluto, e não somente como objeto. Ao contrário de buscar Deus como objeto científico, Hegel quer compreender sistematicamente o desenvolvimento do pensamento religioso para demonstrar em que medida o espírito absoluto e a razão incorporam a religião e a teologia como momentos necessários. Pelo mesmo motivo, entretanto, também não se pode negar o vínculo íntimo entre a teologia e a filosofia hegeliana, afinal, é em torno disto que circularão as críticas de Feuerbach ao pensamento de Hegel.

3 HEGEL, G.W.F. apud GUINZO, Arzenio, op cit, p. 15-16

4 Idem, p. 57.

5 Idem, p. 63-64.

6 HEGEL, G.W.F. Leciones sobre la filosofia de la religión, vol. 1, p. 32.

(5)

Ao discorrer sobre os momentos ideais da religião, Hegel aponta três noções de Deus: a) substância absoluta; b) diferença absoluta; c) mediação absoluta.

Primeiramente, Deus é entendido como a substância absoluta. Este é o momento da intuição religiosa em que Hegel demonstra como ela está fundada na racionalidade humana. Afinal, o primeiro momento do conceito de religião é dado pela noção comum de que Deus é a verdade absoluta e com isto estaríamos apontando um nome genérico para uma substância comum a toda a infinitude multiforme dos seres existentes na natureza: “Cuando atribuímos un ser a las cosas particulares se trata tan solo de un ser prestado, tan solo de la aparencia de un ser, no del ser absolutamente autônomo que es Dios” (p. 232)

Mas a que sentido ou faculdade humanas se apresenta uma tal substância presente na multiplicidade dos seres existentes na natureza? Para Hegel, é senso comum entre os homens e mulheres de sua época a afirmação de que o homem se diferencia dos animais por sua capacidade de pensar. Mas também é um traço distintivo do homem que ele e somente ele possua religião. Portanto “el hombre es un ser pensante y solo el hombre posée religión. De aqui se há de concluir que la religión tiene su asiento íntimo en el pensamiento” (p.235) A substancialidade absoluta de Deus está fundada, portanto, na racionalidade humana enquanto tal.

Uma tal substancialidade absoluta, entretanto, não deve permanecer sob o signo de um nome genérico e abstrato. Afinal, isto corresponderia à época em que a religião humana estava ainda restrita aos limites do paganismo (ou panteísmo).

“Panteísmo, en sentido propio, significa que todas las cosas, el Todo, el Universo, este conglomerado de todo o que existe, que esta infinitud de cosas singulares son Dios, y a la filosofia se reprocha afirmar que todo es Dios, todo, es decir, esta diversidad infinita de cosas singulares”7 (236).

Por isso “se Deus fosse realmente o Todo, Deus estaria superado”

8

. Portanto o exame dos momentos ideais da religião não pode se deter nesta abstração. Com isso, Hegel parte para o exame de Deus como diferença absoluta. Deus é não só uma substância espiritual mas também a consciência para a qual Ele existe. Com isto Deus aparece como a cisão absoluta na medida em que é, não a substancialidade que se

7 Idem, p. 257.

8 HEGEL, G.W.F. El Concepto de Religión, p. 238

(6)

confunde com o mundo natural, mas a negação deste mundo natural e sensível. Hegel nos aponta o Deus Judeu como o protótipo desta concepção ideal de Deus:

“el Dios judio es un Dios celoso que no tolera ningún otro junto a si y da lugar de este modo a una unidad superior; pero esta unidad divina es ella misma todavia uma unidad abstrata y no la realidad que corresponde al concepto del espíritu”9

Finalmente, Hegel nos apresentará Deus como mediação absoluta. Não mais uma substância abstrata que se confunde com a multiplicidade amorfa dos seres naturais, não mais a abstração de um ser cuja natureza é sua diferença radical para com a realidade mundana, mas um Deus que é mediação, algo muito mais concreto que uma relação simples a um objeto

10

. Deus é agora silogismo e manifestação que corresponde a seu conceito. Como então apreender Deus como idéia lógica?

Em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas (vol. 1), Hegel desenvolve o conceito de absoluto de forma muito curiosa. Como é comumente sabido, ela é dividida em três doutrinas: a) doutrina do ser; b) doutrina da essência; c) doutrina do conceito. O interessante é que no início de cada uma delas, a primeira explicação sobre o que seja o ser, a essência ou o conceito é dada por equiparação ao absoluto. Senão vejamos:

1 - “se [o] ser for enunciado como predicado do absoluto, isso dará a primeira definição deste: O absoluto é o ser”

11

.

2 - “O absoluto é a essência. Esta definição é a mesma que a definição de que o absoluto é o ser [...]; mas é ao mesmo tempo mais elevada, porque a essência é o ser que foi para dentro de si”(§112).

3 - “O conceito, enquanto é a forma absoluta mesma, é toda a determinidade, mas tal como ela é em sua verdade”(§164).

9 Idem, p. 246.

10 Idem, p.247.

11 HEGEL, G.W.F., Enciclopédia das Ciências Filosóficas, vol 1: Ciência da Lógica, p. 176. Daqui por diante, sempre que citarmos a mesma obra, anotaremos o parágrafo a que se refere entre parênteses no corpo do texto.

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Na doutrina do ser, o absoluto se apresenta em seu primeiro (e portanto mais abstrato) nível de compreensão. Ele é descrito como o processo de superação da imediatez, entendido como o primeiro passo para o pensamento. Pois o ser, i.e., os objetos apresentados à percepção partem da imediata oposição com o nada, expressada na famosa frase de Parmênides: “O ser somente é, o nada, nada é”. Então, a primeira aparição do absoluto consiste em sair desta imediatez e chegar a unidade dialética do ser e do nada como movimento ou vir-a-ser (§ 88). A primeira forma do absoluto aparece como o trânsito incessante do ser, nos objetos transformando-se uns nos outros (§ 111) em vez da oposição estática e abstrata entre ser e nada.

Tal como a superação da imediatez dos objetos é o primeiro passo para o pensamento em geral, ela é também descrita como a superação do paganismo (ou panteísmo) como um primeiro passo para o pensamento religioso:

Mas deve chocar como extraordinário ver ainda em nossa época as proposições: “do nada, nada vem-a-ser” ou “algo só vem-a-ser de algo” expostas de modo totalmente ingênuo, sem qualquer consciência de que são a base do Panteísmo, como também sem conhecimento de que os antigos esgotaram o exame destas proposições (§88).

Não podendo o pensamento contentar-se com esse “mal infinito”, o que então era transitar infinito torna-se relação: “No ser, tudo é imediato; ao contrário, na essência tudo é relação” (§ 111). A doutrina da essência é o caminho da superação de uma unidade metafísica da existência. Inicialmente a essência é o fundamento infinito da existência.

Posteriormente o fundamento se torna o reflexo das diversas aparições finitas da existência, mediadas umas em relação às outras. O absoluto se torna a mútua mediação, isto é, a efetividade como unidade “da essência e da existência, ou do interior e do exterior” (§ 142). A doutrina da essência termina com o esgotamento da oposição entre um mais além infinito das aparições (fundamento) e as aparições como meros fenômenos limitados. Novamente entra em cena o caráter religioso do absoluto: como lembra Hegel, o dualismo entre fundamento e aparição é superado assim como foi superada a idéia das religiões judaica e maometana de “Deus como o senhor, e só como o Senhor” em que Ele

“é considerado só como a mais alta essência do além” (§ 111).

Por fim, o absoluto enquanto Conceito é a unidade dialética entre Logos e Natureza na qual as mediações do saber (subjetivo) são refletidas na imediatez do objeto.

Por isso o Conceito é a forma absoluta, mas não como essência (abstrata ou

transcendental), mas como as determinidades tomadas em sua verdade (§ 299). A

(8)

mediação absoluta do conceito, aparece na realidade não como “força suprema”, universal e abstrata, mas como a realização concreta do conceito na imediatez singular do objeto. Se o Ser era o “conceito somente em si” (§ 84) e a Essência “o conceito enquanto conceito posto” (§112), agora surge o Conceito como tal, na unidade dialética entre ser (imediato) e essência (mediada) ou unidade dialética entre subjetivo e objetivo; entre o Universal e o singular.

Aqui talvez esteja a maior crítica de Feuerbach ao sistema hegeliano. Em vez de uma tal concepção de racionalidade nos afastar da idéia de Deus, ela parece, ao contrário, ressucitá-la para a vida eterna. No conceito tornamo-nos conscientes da racionalidade universal como de nós mesmos como parte constituinte desta racionalidade...

“na religião cristã Deus é conhecido como amor, e na verdade, enquanto em seu Filho, que é um com ele, se revelou aos homens como este homem singular, e assim os redimiu, nisso está assim expresso igualmente que está em si superada a oposição entre subjetividade e objetividade e que nossa obra é fazer-nos partícipes dessa redenção, renunciando a nossa subjetividade imediata (despojando o velho Adão) e tornando-nos conscientes de Deus como de nosso Si verdadeiro e substancial” (§194)

Bem se poderia argumentar que, com isto, Hegel declara que “Deus está morto”.

Mas num sentido muito diferente do que Nietzsche diria décadas depois: da morte de Deus, Hegel trata na terceira parte de sua Filosofia da Religião quando aborda o sentido da paixão e da ressurreição de cristo: “es especialmente la muerte de Cristo la que es entendida solamente por este testimonio del Espíritu; la muerte es la piedra de toque en la que se legitima la Fe”. A novidade do Cristianismo seria justamente a de um Deus que morre.

De forma talvez exageradamente imagética, poderíamos dizer que a preocupação de Feuerbach, então, seria esta: seria a Coruja de Minerva, ave de rapina que levanta vôo após o crepúsculo em busca da caça, apenas a fantasia daquela pomba branca que após seu longo vôo num dia ensolarado, repousou às margens do rio Jordão sobre a cabeça de Deus (que é Filho)?

3

Feuerbach partilha do mesmo pressuposto de Hegel, a saber, que o que

diferencia o homem dos animais é precisamente sua capacidade de pensar, sua

consciência. Também Feuerbach não deixa de reconhecer a religião como característica

(9)

distintiva da espécie humana: “A religião tem seu fundamento na diferença essencial entre o homem e as bestas – as bestas não tem religião”

12

.

Mas, se Feuerbach reconhece a filosofia hegeliana como o “ponto culminante da filosofia moderna” é para apontar a necessidade histórica de uma nova filosofia fundada numa crítica a Hegel

13

. Para Feuerbach, o sistema hegeliano não é capaz de despertar a humanidade para a razão, mas faz com que adormeça mais ainda na religião quando ao final faz o saber especulativo encontrar-se com um Conceito que tem a forma de um Ser Absoluto. Para o materialismo feuerbachiano o desenvolvimento racional deve ao final negar a religião em vez de reconciliar-se tão acriticamente com ela, como (supostamente) faz Hegel. Porquê?

A consciência no materialismo feuerbachiano só está presente em um ser cuja espécie, como natureza essencial, é um objeto para o pensamento. O que distingue o homem como ser racional é que ele é o único animal que pensando sua própria espécie pensa a si mesmo. Então ocorre que a

“religião, sendo idêntica com as características distintivas do homem, é então, idêntica à autoconsciência – com a consciência que o homem tem de sua própria natureza. Mas a religião, expressada genéricamente, é a consciência do infinito; então ela não pode ser nada mais do que a consciência que o homem tem de sua própria – não finita e limitada, mas infinita natureza” 14

Nesta afirmação da natureza infinita do homem é que se reconhece o humanismo de Feuerbach. Seu materialismo afirma que cada desenvolvimento do pensamento religioso (a passagem do paganismo ao judaísmo e do judaísmo ao cristianismo) é um passo em direção a autoconsciência do homem – mas não por meio de Deus ou do Conceito, como parece querer Hegel, e sim por meio de sua própria natureza.

Se a tarefa deste materialismo é demonstrar que a “antítese entre o divino e o humano é ilusória”, não sendo nada além da antítese entre o indivíduo humano e sua espécie, ele explica, entretanto: “Não sou eu, um indivíduo insignificante, mas a própria religião quem diz: Deus é homem, o homem é Deus; não sou eu, mas a religião que nega o Deus que não seja homem, mas somente um ens rationis”

15

.

Para Hegel, as religiões trazem a mensagem de sua eterna presença no mundo humano. Para Feuerbach, a mensagem religiosa é outra: a de sua própria dissolução. A

12 Tradução livre de FEUERBACH, Ludwig Andreas von, The Essence of Christianity, p.1

13 FEUERBACH, Ludwig Andreas Von, Principles of the Philosophy of the Future, §19

14 Idem, p. 2.

15 Idem, p. viii

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necessidade da religião para o homem tem a forma de uma ilusão: assim como o pensamento infantil, que enxerga o homem adulto como um outro, a religião como

“condição infantil da humanidade” também faz a natureza humana aparecer na forma de um outro, de Deus. E o desenvolvimento da religião é um progressivo amadurecimento do homem e um desmascaramento desta fantasia

16

, uma desalienação.

Tanto Deus quanto o Conceito hegeliano, o Absoltuo, para Feuerbach, são sintomas, fantasmas que emergem das estruturas da própria consciência humana alienada

17

. A ilusão religiosa deve ter sua origem, portanto, num elemento material da consciência. Feuerbach nos fala dos sentimentos e dos sentidos, das relações que estabelecemos, enquanto indivíduos, com os objetos sensíveis e com os outros indivíduos da espécie humana. Por isso é que “tu não tens outra definição de Deus senão esta: Deus é o puro, ilimitado e livre Sentimento.”

18

O empreendimento feuerbachiano pode ser entendido como a tentativa de restabelecer o sentimento originário, a relação sensual dos indivíduos entre si e com os objetos, de onde nasce a “fantasia religiosa”. Não há necessidade, segundo esta perspectiva, de apoiar-se na projeção imaginária de um ser Absoluto. O único critério da verdade, aqui, é o objeto enquanto ser, i.e. o outro do pensamento: “a autoconsciência do homem é a sua consciência do objeto”

19

.

“O homem não é nada sem um objeto. Os grandes modelos da humanidade, estes homens que nos revelam de que a humanidade é capaz, atestaram a verdade desta proposta ao longo de suas vidas. Eles tiveram somente uma paixão dominante – a realização do objetivo que era o objeto essencial de sua atividade. Mas o objeto com o qual um sujeito essencial e necessariamente se relaciona, não é nada mais do que a própria natureza deste sujeito.”20

Todo o saber, todo o conhecimento, aqui, é também o auto-reconhecimento do homem nos objetos de seu pensamento e de seus sentidos, que refletem seu “verdadeiro ego objetivo”

21

. Feuerbach chega mesmo a explicar sua concepção de objetividade utilizando por metáfora o oráculo de Delphos: os objetos dizem ao homem “conhece-te a

16 Feuerbach partilha do mesmo pressuposto iluminista inaugurado por De BROSSES, Charles, Du Culte des Dieux Fétiches. A diferença é que para De Brosses o Cristianismo já representa o amadurecimento do homem em relação às religiões “fetichistas” ou pagãs da humanidade em seu estádio infantil. A posição de Feuerbach parece ser mais radical: toda e qualquer religião é uma infantilidade.

17 Neste sentido ver o capítulo dois de CARTER, Benjamin Wildish, Feuerbachian imgination and the reversal of hegelian ontology in the Essence of Christianity.

18 FEUERBACH, op. Cit, p. 10.

19 Idem, p. ix.

20 Idem, p. 4

21 Idem, p. 5

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ti mesmo!” (Gnthi seantou). A objetividade e o ser são os limites do saber assim como “a medida da natureza é a medida do entendimento”

22

.

É em Princípios para uma filosofia do futuro, de 1843, que Feuerbach formula sua mais direta crítica à filosofia hegeliana. Nela, se postula a necessidade de uma nova filosofia que realize a filosofia Hegeliana assim como ela realizou a teologia

23

, mas resolvendo sua contradição que consiste “no fato de que a negação da teologia do ponto de vista da teologia ou a negação da teologia que é ela própria, novamente teologia; esta contradição caracteriza especialmente a filosofia hegeliana” (§21).

Para o pensamento feuerbachiano, é a passagem do abstrato ao concreto que constitui o principal problema do Absoluto hegeliano. O absoluto em Hegel, realiza justamente o contrário do que propõe na medida em que, como salto teológico, é alienação, afastamento do Homem de seu ser genérico ou espécie:

“O pensamento que ‘procura ir além de seu outro’ – e o outro do pensamento é o ser – é o pensamento que extrapola as fronteiras da natureza. Este alcance para além de seu outro, para o pensamento, significa que ele clama para si aquilo que não pertence propriamente ao pensamento, mas ao ser.[...] Mas como é que acontece de o homem se apoderar daquilo que é uma propriedade do ser? Através da Teologia. [...] O “conceito concreto” é Deus transformado em conceito” (§29)

Vem daí a qualificação de Hegel como um “realista abstrato” uma vez que “seu objetivo é capturar a coisa-em-si, mas somente no pensamento da coisa; ele quer estar fora do pensamento, mas ainda permanece dentro do pensamento – daí a dificuldade em capturar o conceito concreto” (§30).

Mas há algo problemático no pensamento feuerbachiano. Em primeiro lugar Feuerbach parece ambíguo ao falar ao mesmo tempo dos objetos sensíveis, portanto, daqueles objetos imediatamente existentes ao mesmo tempo em que cada objeto da atividade humana reflete um objeto privilegiado, qual seja, a espécie humana considerada objetivamente

24

. Esta espécie humana pode ser tão seguramente apresentada como o conceito concreto que falta a Hegel? Nisso decorreria uma outra indagação: o pensamento feuerbachiano consegue efetivamente superar a teologia ou também é necessário um ato de fé na infinitude da espécie humana, tal como ela é concebida por

22 Idem, p. 8

23Tradução livre de FEUERBACH, Ludwig Andreas Von, Principles of the Philosophy of the Future, §20.

Daqui por diante, sempre que citarmos a mesma obra, anotaremos o parágrafo a que se refere entre parênteses no corpo do texto.

24 Aqui surge um primeiro ponto problemático no pensamento feuerbachiano, a saber sua “ontologia das espécies” como diz CARTER, Bejamin Wildish. op cit.

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Feuerbach? Na tentativa de “matar o Absoluto” hegeliano, Feuerbach tem de unir o homem a um outro ser infinito, ou seja, a sua própria espécie. Não estamos diante de uma vingança do Absoluto que retorna quando consideramos a natureza do homem como o absolutamente verdadeiro?

*

No limite, as aproximações e distanciamentos que sugerimos neste projeto entre os três autores mencionados, Hegel e Feuerbach, estão ainda muito carentes de aprofundamento. A Filosofia da Religião é imprescindível no debate na medida em que é nela que Hegel desenvolve suas idéias teológicas como base de sua filosofia. A Enciclopédia das Ciências Filosóficas parece ser uma escolha responsável. Em primeiro lugar porque a crítica de Feuerbach não se limita à teologia... mas diz respeito a forma como a lógica hegeliana supostamente incorpora e supera esta lógica. Em segundo lugar porque, na medida em que se trata de sua obra de maturidade, encontramos um material rico em elementos para a pesquisa das relações entre suas concepções e a de seus críticos, .

A Essência do Cristianismo parecem escolhas interessantes pelo motivo oposto.

Nelas não estamos diante da crítica mais madura à dialética hegeliana formulada por Feuerbach. Neste caso a melhor crítica à lógica hegeliana vem somente em Princípios para uma filosofia do futuro. Mas por isso mesmo as aproximações e distanciamentos são mais ricos: em se tratando do jovem discípulo ávido em nomear os limites do pensamento do Mestre, as críticas podem voltar contra seu formulador, fazendo do debate uma experiência mais viva.

E assim ainda restam inúmeras indagações: quais os limites de uma tal leitura

que confronte Hegel e Feuerbach? Em que medida é possível compreender a crítica à

teologia como argumento principal contra a lógica hegeliana? Até que ponto, neste

materialismo de que tratamos, a metafísica não acaba entrando pela porta dos fundos, i.e.,

pensando em jogar o absoluto para escanteio, Feuerbach não estaria apenas reafirmando-

o ao “absolutizar” a consciência da espécie humana como critério da verdade? Em que

medida este materialismo não seria ainda tributário de um “ato de fé”? Em que medida

Hegel responderia a tais concepções feuerbachianas?

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Por fim, as condições para a realização plena do esclarecimento suscitam o inesgotável debate sobre razão e fé e o reconhecimento democrático das inúmeras religiosidades. Mas, então, há ainda espaço no mundo secular e democrático para uma teologia que, na necessidade de compreender o pensamento religioso em seu desenvolvimento histórico, parece invariavelmente hierarquizar as diversas religiões em oposição à seu reconhecimento igualitário, i.e., a teologia versus a religião comparada?

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Bibliografia

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CHESTERTON, Gilbert Keith, Heretics. Dover Publications, Mineola: 2006

_____________, O Homem Eterno. Mundo Cristão, São Paulo: 2010

25 Ver o capítulo Deus e a religião comparada em CHESTERTON, Gilbert Keith, O Homem Eterno.

(14)

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Referências

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