Supremo Tribunal de Justiça Processo nº 05S2838
Relator: FERNANDES CADILHA Sessão: 12 Janeiro 2006
Número: SJ200601120028384 Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
CONTRATO DE TRABALHO RETRIBUIÇÃO RETRIBUIÇÃO-BASE
PAGAMENTO PROVAS RECIBO RECIBO DE QUITAÇÃO
DEVERES DA ENTIDADE PATRONAL TRABALHO SUPLEMENTAR
Sumário
I - A disposição do artigo 94º da LCT, exigindo que, no acto de pagamento da retribuição, a entidade patronal entregue ao trabalhador documento onde conste o período a que respeita a retribuição, com a discriminação da
retribuição base e das demais remunerações, não tem o objectivo de fixar a espécie de prova que é exigível para efeito de se considerar satisfeita a
obrigação retributiva, e destina-se antes a estabelecer um dever contratual da entidade empregadora, cujo incumprimento implica a prática de uma mera contra-ordenação (artigo 127, n.º 3, da LCT, na redacção do Decreto-Lei n.º 170/2001, de 25 de Maio);
II - Nestes termos, nada obsta, à luz das regras de direito probatório material, que o tribunal considere como provado, segundo o princípio da livre
convicção, que, para além das verbas constantes dos recibos de
remunerações, tenham sido pagas ao trabalhador outras importâncias a título de retribuição.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
1. Relatório.
"A", com os sinais dos autos, intentou a presente acção emergente de contrato de trabalho contra B - Lda. com sede em Lisboa, pedindo que a ré fosse
condenada a pagar-lhe diversas importâncias a título de trabalho suplementar e de compensação por não atribuição do descanso compensatório.
Por sentença de primeira instância, foi a acção julgada parcialmente
procedente, condenando-se a ré a pagar ao autor a quantia de 788,51 euros, acrescida de juros de mora até integral pagamento.
Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação em que considera que a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 94º da LCT e 376º do Código Civil, porquanto a prova do pagamento do trabalho suplementar apenas
poderia ser efectuada através de recibo emitido pelo empregador com a discriminação das correspondentes importâncias.
O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, e é contra esta decisão que o autor de novo se insurge, mediante recurso de revista, em cuja alegação formula as seguintes conclusões:
1. O A. intentou acção contra a ré alegando, em suma, que trabalhou sob as ordens e direcção da ré desde 1 de Agosto de 2000 até 3 de Julho de 2001, auferindo o vencimento base mensal de 104.000$00. Prestou à ré diversas horas de trabalho suplementar que a ré não lhe pagou (trabalho suplementar em dia útil, trabalho suplementar nocturno e trabalho suplementar em dia feriado), assim como não lhe concedeu o descanso compensatório remunerado a que tem direito pelo trabalho prestado em dia feriado.
2. Pedia, por isso, a condenação da ré a pagar-lhe a quantia total de 15.279,18 euros, acrescida de juros à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.
3. A douta decisão recorrida veio a considerar, no entanto, ter ficado provado nos autos que a ré efectuara o pagamento daquele trabalho suplementar, por fora, não os incluindo nos recibos de vencimento.
4. Nos termos do artigo 94° do Decreto-Lei nº 49408, no pagamento da
retribuição, o empregador deve emitir recibo onde conste para além de outros elementos, o período a que a retribuição respeita, a discriminação das
importâncias relativas a trabalho extraordinário e a trabalho em dias de descanso semanal ou feriado.
5. E por isso documento emitido obrigatoriamente pelo empregador, de onde tem de constar a discriminação das diversas rubricas dos diversos pagamentos
efectuados.
6. Nos termos do art. 376° do Código Civil, se do recibo o empregador fez constar o pagamento de determinadas quantias, só a esse título pode o pagamento vir a ser considerado.
7. A douta decisão recorrida, ao decidir que o trabalho suplementar se
mostrava pago fora do recibo de vencimento, violou o art. 94° do Decreto-Lei n.º 49408 e o art. 376°do Código Civil.
A ré, ora recorrida, contra-alegou, sustentando o bem fundado da decisão recorrida, e, neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo representante do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negada a revista.
Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
2. Matéria de facto.
As instâncias deram como provada a seguinte matéria de facto:
.1. O A. trabalhou sob as ordens, direcção e fiscalização da R. desde 1 de Agosto de 2000, até 3 de Julho de 2001, exercendo as funções
correspondentes à categoria profissional de vigilante.
.2. Auferia ultimamente o vencimento base mensal de 104.000$00.
.3. O Autor, entre Agosto de 2000 a Março de 2001, exerceu as suas funções de vigilante no Centro C.
.4. No C, o horário praticado pelo A. era de 8 horas diárias, em regra durante quatro dias consecutivos, seguidos de um ou dois dias de folga.
.5. Os horários no C. eram distribuídos por escalas rotativas pelos diversos vigilantes que prestavam trabalho à R.
.6. O Autor além do horário que cumpria no C, trabalhava para Ré muitas vezes noutros postos de trabalho da Ré, designadamente no Edifício da ..., sito na Rua Laura Alves, em Lisboa.
.7. A Ré pagava o trabalho que o A. fazia noutros locais de trabalho para além do horário que cumpria no C, por fora, não o incluindo nos recibos de
vencimento.
.8. O Autor recebia dois cheques distintos: um para pagamento do trabalho prestado no C, outro para pagamento do trabalhado prestado noutros postos de trabalho, para além do ....
.9. Os trabalhadores da Ré, incluindo o A., podiam optar por cumprir apenas o horário no C. ou trabalhar ainda noutros postos de trabalho.
.10. No dia 31 de Maio de 2001, a R. ordenou a transferência do A. para as
instalações situadas no Centro Comercial ....
.11. Em 1 de Junho de 2001, o A. remeteu à R. a carta junta a fls 66, cujo teor dou aqui por reproduzido, pondo fim à relação que os unia, com efeitos a partir de 3 de Julho de 2001.
.12. A partir de 1 de Junho de 2001 e até 3 de Julho de 2001, o A. esteve de baixa médica por doença natural, não mais tendo prestado trabalho à R.
.13. Em 1 de Dezembro de 2000, o A. prestou trabalho à R., pelo menos entre as 8 h e as 15 h e em 25 de Dezembro de 2000, o A. prestou trabalho para a R., pelo menos entre as 12 h e as 20h.
.14. Em Janeiro de 2001, o A. prestou trabalho à R. no dia 1, pelo menos entre as 12h e as 20 h, e prestou trabalho para além do horário que lhe estava
adstrito, no dia 20 - das 8h às 20 h e no dia 21- pelo menos das 8 h às 11h e 30 mn e das 12 às 20 h. O A. prestou ainda trabalho à R., em Janeiro de 2001, no dia 15, pelo menos, das 00h às 8h.
.15.Em Março de 2001, o A. prestou trabalho no dia 5 - pelo menos das 16 às 24 horas, no dia 7, pelo menos das 16 às 24 h e no dia 9, pelo menos das 16 às 22 h.
.15-No dia 25 de Abril de 2001, o A. prestou trabalho à R., pelo menos das 12 às 23 horas e em Abril prestou trabalho nos dias 21 e 22, das 14 às 22 h, dias 23 e 24, pelo menos das 15 às 23 h, dia 28 das 14 às 22 h e dia 29, pelo menos das 15 às 23 h.
.16. Em Maio de 2001, o A. prestou à R. trabalho no dia 1- 15 h às 21h, e para além do seu horário de trabalho prestou trabalho no dia 11- pelo menos das 14 h às 23 h, dia 15- pelo menos das 14 h às 23 h e dia 16 - pelo menos das 14 às 23 h. O A. prestou ainda trabalho, em Maio de 2001, nos dias 4, 5, 6, 9, 17 pelo menos das 15 às 23 h, dia 19, pelo menos das 14 h 30 às 22h e 30 mn, dia 20 das 14 h às 22 h, dias 21, 22, 27 e 28 pelo menos das 15 às 23 h.
.17. A Ré pagou ao A. as importâncias referidas nos recibos de fls 90 a 95, cujo teor dou aqui por reproduzido.
.18. No ... havia diferentes postos de trabalho - garagens e jardins - com horários diferentes.
.19. Por razões de processamento a R. nem sempre paga as quantias devidas a título de pagamento de trabalho suplementar e de trabalho nocturno no mês em que esse trabalho foi prestado, fazendo-o no mês subsequente.
3. Fundamentação de direito.
A questão suscitada no recurso prende-se, no fundo, com a impugnação da matéria de facto.
Pela presente acção, o autor pretendia o pagamento dos acréscimos
remuneratórios devidos por prestação de trabalho suplementar. A acção foi julgada em parte improcedente por se ter considerado, conforme resulta do n.º 7 da decisão de facto, que a ré "pagava o trabalho que o autor fazia noutros locais de trabalho para além do horário que cumpria no C, por fora, não o incluindo nos recibos de vencimento".
Para assim concluir, o tribunal baseou-se nos depoimentos de diversas testemunhas, como decorre da motivação da decisão de facto (fls 158-159).
O recorrente sustenta, porém, que, nos termos dos artigos 376° do Código Civil e 94° da LCT, só poderiam considerar-se como efectivamente pagas as quantias discriminadas nos recibos de vencimento, pelo que a decisão terá violado o estabelecido nessas disposições.
Como se sabe, "o erro na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova"
(artigo 722º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
O recorrente parece pretender que se considere verificado o erro de direito a que se refere a primeira parte do nº 2 do citado artigo 722º (que poderia justificar a intervenção correctiva do Supremo), invocando que o pagamento da retribuição do trabalho suplementar só poderia ser feita através de recibo de quitação.
Ora, é certo que o artigo 94º da LCT estabelece que, "no acto de pagamento da retribuição, a entidade patronal deve entregar ao trabalhador documento onde conste (...) o período a que a respeita retribuição, discriminando a retribuição base e das demais remunerações (...)". A norma não tem, no
entanto, o objectivo de fixar a espécie de prova que é exigível para efeito de se considerar satisfeita a obrigação retributiva, e antes se destina a estabelecer um dever contratual da entidade empregadora, cujo incumprimento implica a prática de uma contra-ordenação, que é punível nos termos previstos no artigo 127º, n.º 3, do mesmo diploma (na redacção do Decreto-Lei n.º 170/2001, de 25 de Maio) (cfr., neste sentido o acórdão de 14 de Dezembro de 2004, revista n.º 2269/04).
Por outro lado, o recibo do vencimento, constituindo um mero documento
particular apenas dispõe de força probatória plena nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º a 376º do Código Civil, o que significa que, se o documento puder ser tido como verdadeiro por não ter sido impugnado pelas partes, apenas se consideram como plenamente provados os factos
compreendidos na declaração que forem contrários ao interesse do declarante. O documento prova, portanto, que foram pagas as parcelas remuneratórias que aí se encontram discriminadas, mas não impede que se venha a concluir que tenham sido pagas outras remunerações de que se não tenha passado recibo de quitação ou que não tenham sido especificadas nos recibos que foram emitidos. Isto é, o documento não prova factos que não estão compreendidos na declaração.
O tribunal de primeira instância podia, por conseguinte, fixar a matéria de facto, sobre ao aludido aspecto, de acordo com a sua livre convicção, não estando limitado à prova produzida através dos recibos de remunerações. E não se verificando qualquer das situações a que se reporta o artigo 722º, n.º 2, do Código de Processo Civil, como se deixou esclarecido, não é possível ao Supremo alterar os resultados probatórios assim obtidos.
4. Decisão
Em face do exposto, acordam em negar a revista e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente
Lisboa, 12 de Janeiro de 2006.
Fernandes Cadilha, (Relator) Mário Pereira,
Maria Laura Leonardo.