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A TUTORIA E A HORIZONTALIDADE DE SABERES: UMA PRÁTICA DE ENSINO PARTICIPATIVO NO PROJETO “CAMINHOS DO CUIDADO”

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A TUTORIA E A HORIZONTALIDADE DE SABERES:

UMA PRÁTICA DE ENSINO PARTICIPATIVO NO PROJETO “CAMINHOS DO CUIDADO”

Isabel Vargas Witczak

1

RESUMO

O presente texto problematiza as facilidades e dificuldades enfrentadas por tutores e alunos do Projeto Caminhos do Cuidado, tomando-se como parâmetro de análise os três eixos presentes na formação de Agentes Comunitárias de Saúde (ACSs) e Atendentes de Enfermagem (ATENFs) e focando na busca pela horizontalidade de saberes. Adota-se a proposta metodológica qualitativa de cunho presencial e relacional, tal como na pesquisa-ação proposta por Michel Thiollent (2003); no uso do diário de campo, como proposto por Mary Jane Spink et al. (2014); e nos processos grupais, como proposto por Cláudia Dias (2000). Apresen- tam-se as facilidades e dificuldades enfrentadas ao longo dos processos vivenciais assim como as soluções e alternativas encontradas ao enfrentamento dessas, como na socialização das boas práticas.

Palavras-chave: Tutoria. Horizontalidade de Saberes. Ensino Participativo. Projeto “Caminhos do Cuidado”.

1

Psicóloga graduada pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Especialista em Gestão da Atenção à Saúde do Idoso, pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Mestre em Gerontologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Contato: isawitczak@ig.com.br

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Cadernos do Cuidado

ISSN 2595-0886

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INTRODUÇÃO

O presente texto problematiza as facilidades e dificuldades enfrentadas por tutores e alunos do Projeto Caminhos do Cuidado. Em linhas gerais, este Projeto buscou a formação em Saúde Mental, com ênfase ao cuidado de usuários de crack, álcool e outras drogas, destinado aos agentes comu- nitários de saúde e aos auxiliares e técnicos em Enfermagem atuantes na rede de Atenção Básica.

Iniciado em 2013, o projeto cobriu as cinco regiões brasileiras, formando 292.196 trabalhadores que receberam informação sobre procedimentos e prá- ticas cuidadoras, orientadas pela atenção integral e pelo efetivo acolhimento no atendimento aos usuários de drogas, visando, precipuamente, sem- pre a Redução de Danos (RD). Sob a coordenação do Ministério da Saúde, participaram da iniciativa o Instituto de Comunicação e Informação Cientí- fica e Tecnológica em Saúde – ICICT, da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ; o Grupo Hospitalar Conceição – GHC e a Rede de Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde – RET-SUS. Essa ação correspondia ao desdobramento do eixo do Cui- dado, no interior do plano nacional designado por

“Crack: é Possível Vencer”, de responsabilidade do Ministério da Saúde, mas articulado pela Casa Civil, do Governo Federal, como parte da política inter- setorial de controle do uso e circulação do crack e drogas ilícitas no território nacional.

Dentro desse contexto, participo, no ano de 2013, da capacitação preparatória, presencial e obrigatória, para tutores, com duração de 40 horas, realizada em Curitiba/PR. Foram apresen- tados os objetivos planejados e a metodologia projetada para seu alcance. Após esse momento, participamos de uma segunda etapa, essa com 80 horas e realizada por meio de Ensino a Distância (EAD). Posteriormente, os tutores assumiram suas turmas, cada uma delas contava com aproxima- damente 40 alunos. Tendo como público Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Auxiliares ou Técni- cos em Enfermagem (ATENF) de Unidades Básicas

de Saúde (UBS), as atividades foram propostas em cinco encontros de oito horas semanais, além das atividades de dispersão. A metodologia de ensino utilizada baseava-se na proposta de horizontali- dade de saberes conforme Paulo Freire (1987).

É importante destacar que a formação tutorial recebida, calcada em metodologias vivenciais e com situações semelhantes àquelas que seriam depois trabalhadas com o público de alunos, permitiu-me uma maior segurança na condução das atividades.

Em outubro do mesmo ano, inicio minha primeira turma e sigo atuando até fevereiro de 2015, algumas vezes em parceria com outro tutor e outras de forma individual. Foram 13 turmas finalizadas em diferen- tes municípios do Rio Grande do Sul, dentre esses:

Alvorada, Candelária, Chapada, Esteio, Porto Alegre, Santa Cruz do Sul, Santa Maria e Três Coroas.

Pretende-se compartilhar a experiência viven- cial de tutoria, correlacionando-a aos conteúdos propostos e, assim, produzir uma reflexão por meio dos resultados pessoalmente obtidos no

“Caminhos do Cuidado”. Adoto aqui uma proposta

metodológica qualitativa de cunho presencial e

relacional, tal como na pesquisa-ação proposta por

Michel Thiollent (2003); no uso do diário de campo,

como proposto por Mary Jane Spink e colegas

(2014); e nos processos grupais, como proposto

por Cláudia Dias (2000). A principal forma de jus-

tificar essas abordagens está na busca por “dar

vida e voz” àqueles que participaram das atividades

capacitadoras, compartilhando suas experiências

(exitosas ou não) de atuação no cuidado diário que

se organiza em torno da atenção às pessoas com

uso problemático de drogas, um grande problema,

hoje, no âmbito da saúde pública. A possibilidade

da socialização das práticas de tutoria no Projeto e

do trabalho cotidiano de agentes comunitários de

saúde e de auxiliares ou técnicos em enfermagem

traz um caráter humano e ressalta a importância

de espaços de formação como o que realizamos.

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CONCEITOS E PRÁTICAS: DISCUTINDO OS EIXOS DE FORMAÇÃO

A partir dos três diferentes eixos propostos pela metodologia de formação do Projeto Caminhos do Cuidado construiu-se esta escrita. Assim, articu- lando diferentes conceitos e práticas, vivências e discussões compõe-se uma discussão que privile- gia os aspectos relacionais, compondo a horizonta- lidade de saberes.

EIXO I: CONHECENDO O TERRITÓRIO, AS REDES DE ATENÇÃO, OS CONCEITOS, AS POLÍTICAS E AS PRÁTICAS DE CUIDADO EM SAÚDE MENTAL

Ao trabalhar esse primeiro eixo, identificou-se que os ACS e os ATENF discorriam sobre seus ter- ritórios e redes de forma “superficial”. Isso porque sabiam onde se localizavam e quais eram os pro- blemas, mas desconheciam formas de trabalhá-los e os levavam para que as “equipes” tomassem pro- vidências, não exercendo papel ativo de profissional de saúde e não se sentindo integrantes das equipes técnicas, como preconizado pela própria Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) aos ACS:

Desenvolver ações que busquem a integra- ção entre a equipe de saúde e a população adscrita à UBS, considerando as caracterís- ticas e as finalidades do trabalho de acom- panhamento de indivíduos e grupos sociais ou coletividade. (BRASIL, 2012, p. 48-49).

É fundamental que se estabeleça a correlação entre as políticas públicas e sua articulação aos territórios e, consequentemente, às redes ali constituídas. Oliveira e Furlan (2008) discutem a noção de território, afirmando-o fundamental para os arranjos das equipes de saúde da família e alertando que gestores e trabalhadores da saúde muitas vezes

tem olhares controversos sobre o próprio conceito.

Utilizando Milton Santos

2

para fundamentar essa discussão, esses autores afirmam que:

O território funda uma ordem local, a escala do cotidiano, a contiguidade. Os espaços locais tornam-se singulares conforme as possibilidades vividas [...]. O território seria formado de lugares contíguos e de lugares em rede, muito embora sejam os mesmos lugares esses das redes e o das contigui- dades (SANTOS, 2002 apud OLIVEIRA;

FURLAN, 2008, p. 250).

A compreensão do conceito de território é fun- damental para que os trabalhadores possam orga- nizar os recursos disponíveis para a sua atuação de forma mais eficiente. Isso lhes permite identificar as potencialidades e possibilidades locais, traba- lhando e reconhecendo as dificuldades para a sua atuação em saúde mental e dependência química.

Outro ponto que também se destacou, foi um des- conhecimento e a não valorização/utilização dos recursos disponíveis nas redes informais. Entendo por redes informais os espaços tanto físicos, como de recursos disponibilizados pelas comunidades (igrejas, associações, escolas etc.). Desmistificar que a UBS e os centros especializados eram os úni- cos lugares de atendimento, foi um grande desafio.

Oliveira (2016, p. 46) alerta que:

O estabelecimento da Atenção Primária Saúde (APS) como centro de comunicação das redes de atenção requer profissionais tecnicamente competentes, comprometi- dos, em quantitativo suficiente e capazes de organizarem seus processos de trabalho em equipe, de forma que promovam a ter- ritorialização, descrição da clientela, o aco- lhimento, o vínculo, a responsabilização, a integralidade e a resolutividade da atenção.

2

SANTOS, Milton. O retorno do território. In: SANTOS, Milton; SOUZA, M. A. A. de; SILVEIRA, M. L. Território: globalização

e fragmentação. São Paulo: Editoras Hucitec, 2002. p. 15-20.

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Evidencia-se a necessidade de explorar as múltiplas variáveis intervenientes nesse processo, desde as dificuldades socioeconômicas até o ado- ecimento mental de usuários, cuidadores e dos próprios trabalhadores em saúde mental. Os ACS e ATENF passaram a entender que o cuidado em saúde também era a ampliação dos diferentes recursos e ferramentas práticas e teóricas, o que os possibilitava o reconhecimento dos limites de cada profissional. Compreendendo o que expõe a uma maior vulnerabilidade e adoecimento, se favo- rece uma noção de cuidado de si, a possibilidade de ressignificação de experiências e a resiliência.

Também se favorece a invenção e incorporação de tecnologias leves, tal como proposto pelo conceito de clínica ampliada, uma vez que a realização dos cuidados da vida diária das pessoas não se dá de forma homogênea. (BRASIL, 2004, p. 8).

Mesmo com a relevância das políticas públicas no contexto da Atenção Básica, para a maior parte dos trabalhadores em saúde, essas são desco- nhecidas em sua profundidade. Durante a minha tutoria busquei salientar a importância de saber que elas emergem das reivindicações sociais, dos movimentos populares, das pesquisas acadêmicas e da vontade política de que se materializem. Essa materialização acontece por meio de leis, normas regulamentadoras e portarias ministeriais orien- tadoras das práticas profissionais e constantes das relações jurídicas estabelecidas. Ao mesmo tempo, observa-se que a formatação das práti- cas, no momento de sua aplicação, encontra os trabalhadores como meros reprodutores técnicos, informados da necessidade da mudança das suas práticas, não entendem por que devem atender novas orientações: “Sempre fiz assim e funcionava, por que mudar? É só mais trabalho!” Portanto, uma formação “implicada” deve ocupar-se de proble- matizar o cotidiano, o pensamento e a colaboração entre todos na equipe.

Acredito que o projeto “Caminhos do Cuidado”

favoreceu a compreensão da necessidade de

mudança no papel atribuído a estes trabalhadores:

de executores a pessoas conscientes da impor- tância de sua atuação. Isso ficou evidenciado na resistência inicial às atividades propostas e no aco- lhimento da novidade, ao final. Ao longo do curso se verifica a modificação: com a apropriação pessoal e grupal das novas práticas, com o entendimento dessas propostas e dos conceitos diferenciados, transformam suas formas de pensar e ver seus territórios. Ao final dos cinco encontros previstos, as turmas, de modo geral, apresentaram-se muito participativas e, por meio de suas falas, demons- traram mudanças de postura e de posicionamento crítico perante às suas realidades.

EIXO II: A CAIXA DE FERRAMENTAS DOS ACS E ATENF NA ATENÇÃO BÁSICA

A caixa de ferramentas é descrita como um conjunto de técnicas vivenciais, relacionais, inter- pessoais e processuais (BRASIL, 2013). Entre as ferramentas, podemos destacar o Ecomapa, o Genograma, o Projeto Terapêutico Singular e a Mobi- lização Social e Comunitária na ativação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Dentre os objetivos gerais estão a formação e a manutenção dos víncu- los, os processos de acolhimento e a facilitação da escuta. Mesmo que não soubessem nomeá-las, os ACS e ATENF demonstraram, a partir do relato de suas vivências, a apropriação dessas ferramentas.

Também relataram como construiriam a interven- ção para os diferentes casos apresentados por eles e discutidos em grupo.

Motivados por esta atividade, trouxeram vários exemplos de casos nos seus territórios. Destaco aqui o caso de F., homem de meia idade, usuário de bebida alcoólica e drogas, desempregado, sem moradia, sem família ou amigos e que acabou residindo embaixo de uma ponte. Nesse espaço bastante sujo, possuía somente um fogão e um sofá. Sua higiene pessoal também era precária.

Normalmente as ACS, que também atuavam como

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Redutoras de Danos, são bem recebidas ao visita- rem-no. No encontro relatado, ele estava deitado no meio da sujeira e na companhia de seu cachorro.

Conversaram sobre vários assuntos e ele contou um pouco de sua vida, ressaltando que uma das coisas que gostava de fazer era cantar e tocar vio- lão. Após algum tempo de conversa, essas convida- ram-no para um almoço, a ser realizado pela equipe de trabalho em um sítio para uma comemoração.

Meio acanhado e sem jeito, ele aceitou o convite.

No dia do evento, F. chegou muito envergonhado, pois estava sujo e malvestido. Recusava-se a per- manecer junto com as pessoas e almoçar na mesa.

Ao perceber que naquele espaço as pessoas que ali estavam, o tratavam com igualdade, foi se sentido à vontade e passou a tarde cantando e tocando violão. Depois disso, foi convidado a frequentar o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), o que não aceitou de imediato. Dias depois procurou uma das ACS e solicitou ajuda. Nesse momento, foi então conduzido ao CAPS, onde passou por acolhimento e, a partir de então, foi inserido nos grupos para atendimento psicológico e seguiu seu tratamento/

acompanhamento para o uso de drogas e do alcoo- lismo. Atualmente F. retornou ao convívio dos seus familiares, voltando a residir com esses. Retornou ao trabalho e está sempre limpo e bem vestido.

Segundo relatos das agentes, “ele reconquistou seu espaço na sociedade”. Elas relataram ainda que muitos usuários encontram-se na mesma situação, e só precisam ser tratados com atenção e vistos pela família e sociedade como pessoas, como seres humanos que são, e não com indiferença.

Mesmo não conhecendo esse cidadão em profun- didade, na escuta que fizeram, as ACS esqueceram dos aspectos que seriam normalmente fonte de pre- conceito para a maior parte das pessoas e reconhe- ceram o “cantar e tocar violão” como a possibilidade de se aproximarem. Talvez tenhamos aí os conceitos de acolhimento e humanização tomados em favor da própria pessoa e não de uma patologia ou condição social. Vislumbrar a pessoa de uma forma integral

e aproveitar seu potencial foi fundamental para o encaminhamento ao tratamento e, possivelmente, a chave para a obtenção de êxito.

Essas possibilidades foram discutidas em sala de aula e resultaram em um amplo debate: um grupo defendeu tal posicionamento, enquanto outro centrou-se na questão do preconceito: “Como levar um desconhecido, em tal situação, para dentro de sua casa?” Ou ainda: “Isso não é função do ACS”.

Após o debate, como conclusão grupal, viu-se que, mesmo em ações exitosas como essa, é difícil ven- cer o preconceito.

Ressalto novamente a importância do Projeto

“Caminhos do Cuidado”, demonstrando ao sujeito que o seu conhecimento modifica a realidade, mesmo que não saiba nomeá-la ou conceituá-la teoricamente. Ao longo do Curso, por meio dessa metodologia propositiva e reflexiva, esses trabalha- dores conseguem integrar sua prática a esse campo normativo conceitual. Em razão disso, espera-se que novas perspectivas a respeito do fazer destes sejam produzidas. Isso seria um fator motivador para práticas diferenciadas e integrativas.

EIXO III: REFORMA PSIQUIÁTRICA, REDUÇÃO DE DANOS E INTEGRALIDADE DO CUIDADO COMO DIRETRIZES PARA INTERVENÇÃO EM SAÚDE MENTAL E NO USO DE ÁLCOOL, CRACK E OUTRAS DROGAS

Tem-se aqui a desmistificação de conceitos

polêmicos como a Reforma Psiquiátrica e a Redu-

ção de Danos, afastando-os do senso comum que,

muitas vezes, localiza essas práticas de forma

preconceituosa. O espaço da internação hospita-

lar ainda está associado pela população como a

única saída no processo de “recuperação” e a RD é

vista como um incentivo à continuidade do uso de

drogas. As dificuldades de acesso à Rede e o des-

conhecimento dessas centralizavam as discus-

sões. O conceito de Redução de Danos precisava

ser apropriado pelo grupo:

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Se afirmamos que a RD é uma estratégia, é porque entendemos que, enquanto tal, e para ter a eficácia que pretende ela deve ser operada em interações, promovendo o aumento da superfície de contato, criando pontos de referência, viabilizando o acesso e o acolhimento, adscrevendo a clientela e qualificando a demanda, multiplicando as possibilidades de enfrentamento ao pro- blema da dependência ao uso de álcool e outras drogas (BRASIL, 2003, p. 10-11).

Durante a discussão, apareciam as maiores resistências e os debates mais apaixonados, pois o estigma da drogadição e o modelo médico centrado trazem consigo parâmetros “científicos” difíceis de serem desconstruídos e debatidos. É notória a soli- citação de algumas turmas para que as questões relativas ao uso e abuso de drogas e da RD fossem apresentadas por um médico, tomado ainda como figura central no processo de atendimento. Tal processo reforça também a necessidade de uma discussão sobre a integralidade do cuidado e “a integralidade das ações, com a consequente defi- nição de papéis entre os diversos níveis de gover- nabilidade” (BRASIL, 2003, p. 28) e os graus de responsabilização de cada integrante do sistema, conforme definido no conceito de intersetorialidade abaixo descrito:

1. [a] construção de oportunidades de inserção das ações nos mecanismos imple- mentados pelo Sistema Único de Saúde nestas esferas de governo; 2. a formula- ção de alternativas de sustentabilidade e de financiamento das ações; 3. o repasse das experiências relativas às iniciativas de descentralização e da desconcentração de atividades e de responsabilidades obtidas por estados e municípios; 4. [os] proces- sos de formação e capacitação de profis- sionais e de trabalhadores de saúde, com amplo investimento político e operacional para a mudança de conceitos. (BRASIL, 2003, p. 28).

Apareceram, também, as estratégias já utilizadas na Redução de Danos demonstrando um desenvol- vimento de ações que privilegiavam os territórios, ainda que, novamente, sem as suas devidas nomea- ções e conceituações. No desenvolvimento da turma no município de Três Coroas, tivemos a participação de um convidado da ONG Desafio Jovem, que falou sobre o trabalho realizado com usuários e ex-usuá- rios de crack, álcool e outras drogas. Dentre as ações, destaca-se o funcionamento de um restaurante no centro dessa cidade, que auxilia na reinserção ao mercado de trabalho. Fato relevante, as refeições da turma aconteciam nesse mesmo restaurante. A par- tir desse exemplo, discutiu-se todos esses conceitos de uma forma diferenciada, ajudando bastante na superação das barreiras iniciais.

É importante ressaltar que as falas dos ACS e ATENF vinham de um lugar de “desamparo” nas práticas cotidianas, reforçando a impressão de que seus esforços se perdiam nas redes de cuidados e que, ainda, as capacitações ficavam muito no campo teórico e quando se deparavam com questões reais não obtinham apoio dos gestores responsáveis em seus territórios. Segundo eles próprios, “não pre- cisava de tanta reflexão, mas de soluções”. Nesse sentido, e com o auxílio das metodologias ativas, propunha-se a integração/articulação dos partici- pantes e dos seus conhecimentos nas discussões e reconstruções de conceitos. Para tanto, pro- porcionou-se espaços para que pudessem trazer questões que os angustiavam, para, em conjunto, pensarmos possibilidades de enfrentamento. Como principal ferramenta proposta estava o diálogo fun- damentado e sustentado de forma teórica e empi- ricamente demonstrado pelos próprios Agentes Comunitários de Saúde e Auxiliares e Técnicos em Enfermagem na Atenção Básica.

Outra possibilidade é a organização e busca da união da categoria, como estratégia de enfren- tamento da verticalidade das imposições das

“chefias”, pois os gestores normalmente, segundo

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eles, não os veem como integrantes da equipe, mas como “Seus funcionários recebedores de ordens”.

Nessa impossibilidade, não se produz espaço para questionamentos e diálogos formadores ou refor- muladores de propostas de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Mais um curso que somos obrigados a partici- par!”, talvez essa frase demonstre a desmotivação inicial de muitos dos frequentadores do projeto Cami- nhos do Cuidado. Entretanto, com o transcorrer dos sucessivos encontros modificava-se essa impressão:

“que legal, nunca tinha pensado dessa forma!”. A novidade da proposta metodológica foi o diferencial, pois os movimentava e fazia com que os trabalha- dores enfrentassem de frente questões conflitivas.

Tornando-se, então, seguros em estratégias que se constituíam em ato, deixando emergir mecanismos internos de ação, pensamento e prontidão.

No entanto, o cotidiano duro e as decepções acumuladas não se diluem facilmente. Era uma constante, nas diferentes turmas, o início dos trabalhos marcados por queixas generalizadas;

no encerramento, os indivíduos já conseguiam formular demandas e constituir novos processos resolutivos. Um exemplo que me marcou muito foi a construção do “chuveiro social” projeto realizado na região metropolitana de Porto Alegre, durante a realização do curso. Lembro que tal projeto enfren- tou muitas dificuldades em relação à aceitação da equipe técnica, que lembrava ao idealizador de que o espaço seria visitado por pessoas sujas, alcooli- zadas etc., que poderiam causar transtornos para a própria equipe. Mesmo sem apoio institucional – e muito indignado – o técnico de enfermagem res- ponsável pelo projeto buscou outras parceiras no território e conseguiu instalar um chuveiro de livre acesso ao lado da Unidade de Saúde.

O engessamento das equipes verticalizadas e centralizadas choca-se com todos os demais atravessamentos que profissionais cara a cara com

usuários encontram nos seus territórios de atua- ção. Choca-se também com o prescrito nas políti- cas públicas de saúde mental e redução de danos, colidindo frontalmente com o público dos cuidados em saúde mental ou de usuários de álcool, crack e outras drogas. No entanto, ainda localizamos aqueles que estão prontos a enfrentar todos esses desafios. Nesse sentido, o projeto “Caminhos do Cuidado” muito contribuiu para a mudança do para- digma “médico” para o de “acolhimento”, tanto para o público alvo como também para os profissionais envolvidos. O caminho a ser percorrido para que se atinja a amplitude das mudanças necessárias ainda é instigante e longo.

Vivenciar esse processo de tutoria foi de grande

importância para mim. Isso porque, ao pensar essa

nova metodologia de ensino e vivenciá-la junto aos

trabalhadores, possibilito-me ir além das ativi-

dades realizadas durante o Projeto e expandiu-se

para a minha prática diária de trabalho, pois me fez

visualizar de forma diferenciada pessoas (os traba-

lhadores, as comunidades, os familiares...) como

participantes ativos e portadores de diferentes

saberes. Assumir essa horizontalidade de trabalho

é muito necessário na atualidade. É dar-se conta de

que o fazer saúde é muito mais do que aplicação de

técnicas normativas e individualizantes.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas.

Brasília: Ministério da Saúde, 2003. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_

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heab.fmrp.usp.br/App_Data/Conteudo/Arquivos/Humaniza%C3%A7%C3%A3o/Clinica%20Ampliada.pdf>.

Acesso em: 2 fev. 2018.

______. Política nacional de atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2012. Disponível em:

<http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/pnab.pdf>. Acesso em: 2 fev. 2018.

______. Caminhos do cuidado: caderno do tutor. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.

DIAS, Cláudia Augusto. Grupo focal: técnica de coleta de dados em pesquisas qualitativas. Informação &

sociedade: estudos, Paraíba, v. 10, n. 2, p. 1-12, 2000.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.

OLIVEIRA, Nerícia Regina de Carvalho. Redes de atenção à saúde: a atenção à saúde organizada em redes.

São Luís: UNA-SUS/UFMA, 2016.

OLIVEIRA, Gustavo Nunes; FURLAN, Paula Giovana. Coprodução de projetos coletivos e diferentes “olhares”

sobre o território. In: CAMPOS, Gastão Wagner de Souza; GUERREIRO, André Vinicius Pires (Org.) Manual de práticas de atenção básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Ministério da Saúde, 2008.

SPINK, Mary Jane Paris et al. Diários como atuantes em nossas pesquisas: narrativas ficcionais. In: ______.

A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2014.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 12 ed. São Paulo: Cortez, 2003.

INFORMAÇÕES SOBRE O ARTIGO Recebimento – 07-09-2017

Aceite – 20-01-2018

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