A TUTORIA E A HORIZONTALIDADE DE SABERES:
UMA PRÁTICA DE ENSINO PARTICIPATIVO NO PROJETO “CAMINHOS DO CUIDADO”
Isabel Vargas Witczak
1RESUMO
O presente texto problematiza as facilidades e dificuldades enfrentadas por tutores e alunos do Projeto Caminhos do Cuidado, tomando-se como parâmetro de análise os três eixos presentes na formação de Agentes Comunitárias de Saúde (ACSs) e Atendentes de Enfermagem (ATENFs) e focando na busca pela horizontalidade de saberes. Adota-se a proposta metodológica qualitativa de cunho presencial e relacional, tal como na pesquisa-ação proposta por Michel Thiollent (2003); no uso do diário de campo, como proposto por Mary Jane Spink et al. (2014); e nos processos grupais, como proposto por Cláudia Dias (2000). Apresen- tam-se as facilidades e dificuldades enfrentadas ao longo dos processos vivenciais assim como as soluções e alternativas encontradas ao enfrentamento dessas, como na socialização das boas práticas.
Palavras-chave: Tutoria. Horizontalidade de Saberes. Ensino Participativo. Projeto “Caminhos do Cuidado”.
1
Psicóloga graduada pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Especialista em Gestão da Atenção à Saúde do Idoso, pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Mestre em Gerontologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Contato: isawitczak@ig.com.br
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Cadernos do Cuidado
ISSN 2595-0886
INTRODUÇÃO
O presente texto problematiza as facilidades e dificuldades enfrentadas por tutores e alunos do Projeto Caminhos do Cuidado. Em linhas gerais, este Projeto buscou a formação em Saúde Mental, com ênfase ao cuidado de usuários de crack, álcool e outras drogas, destinado aos agentes comu- nitários de saúde e aos auxiliares e técnicos em Enfermagem atuantes na rede de Atenção Básica.
Iniciado em 2013, o projeto cobriu as cinco regiões brasileiras, formando 292.196 trabalhadores que receberam informação sobre procedimentos e prá- ticas cuidadoras, orientadas pela atenção integral e pelo efetivo acolhimento no atendimento aos usuários de drogas, visando, precipuamente, sem- pre a Redução de Danos (RD). Sob a coordenação do Ministério da Saúde, participaram da iniciativa o Instituto de Comunicação e Informação Cientí- fica e Tecnológica em Saúde – ICICT, da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ; o Grupo Hospitalar Conceição – GHC e a Rede de Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde – RET-SUS. Essa ação correspondia ao desdobramento do eixo do Cui- dado, no interior do plano nacional designado por
“Crack: é Possível Vencer”, de responsabilidade do Ministério da Saúde, mas articulado pela Casa Civil, do Governo Federal, como parte da política inter- setorial de controle do uso e circulação do crack e drogas ilícitas no território nacional.
Dentro desse contexto, participo, no ano de 2013, da capacitação preparatória, presencial e obrigatória, para tutores, com duração de 40 horas, realizada em Curitiba/PR. Foram apresen- tados os objetivos planejados e a metodologia projetada para seu alcance. Após esse momento, participamos de uma segunda etapa, essa com 80 horas e realizada por meio de Ensino a Distância (EAD). Posteriormente, os tutores assumiram suas turmas, cada uma delas contava com aproxima- damente 40 alunos. Tendo como público Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Auxiliares ou Técni- cos em Enfermagem (ATENF) de Unidades Básicas
de Saúde (UBS), as atividades foram propostas em cinco encontros de oito horas semanais, além das atividades de dispersão. A metodologia de ensino utilizada baseava-se na proposta de horizontali- dade de saberes conforme Paulo Freire (1987).
É importante destacar que a formação tutorial recebida, calcada em metodologias vivenciais e com situações semelhantes àquelas que seriam depois trabalhadas com o público de alunos, permitiu-me uma maior segurança na condução das atividades.
Em outubro do mesmo ano, inicio minha primeira turma e sigo atuando até fevereiro de 2015, algumas vezes em parceria com outro tutor e outras de forma individual. Foram 13 turmas finalizadas em diferen- tes municípios do Rio Grande do Sul, dentre esses:
Alvorada, Candelária, Chapada, Esteio, Porto Alegre, Santa Cruz do Sul, Santa Maria e Três Coroas.
Pretende-se compartilhar a experiência viven- cial de tutoria, correlacionando-a aos conteúdos propostos e, assim, produzir uma reflexão por meio dos resultados pessoalmente obtidos no
“Caminhos do Cuidado”. Adoto aqui uma proposta
metodológica qualitativa de cunho presencial e
relacional, tal como na pesquisa-ação proposta por
Michel Thiollent (2003); no uso do diário de campo,
como proposto por Mary Jane Spink e colegas
(2014); e nos processos grupais, como proposto
por Cláudia Dias (2000). A principal forma de jus-
tificar essas abordagens está na busca por “dar
vida e voz” àqueles que participaram das atividades
capacitadoras, compartilhando suas experiências
(exitosas ou não) de atuação no cuidado diário que
se organiza em torno da atenção às pessoas com
uso problemático de drogas, um grande problema,
hoje, no âmbito da saúde pública. A possibilidade
da socialização das práticas de tutoria no Projeto e
do trabalho cotidiano de agentes comunitários de
saúde e de auxiliares ou técnicos em enfermagem
traz um caráter humano e ressalta a importância
de espaços de formação como o que realizamos.
CONCEITOS E PRÁTICAS: DISCUTINDO OS EIXOS DE FORMAÇÃO
A partir dos três diferentes eixos propostos pela metodologia de formação do Projeto Caminhos do Cuidado construiu-se esta escrita. Assim, articu- lando diferentes conceitos e práticas, vivências e discussões compõe-se uma discussão que privile- gia os aspectos relacionais, compondo a horizonta- lidade de saberes.
EIXO I: CONHECENDO O TERRITÓRIO, AS REDES DE ATENÇÃO, OS CONCEITOS, AS POLÍTICAS E AS PRÁTICAS DE CUIDADO EM SAÚDE MENTAL
Ao trabalhar esse primeiro eixo, identificou-se que os ACS e os ATENF discorriam sobre seus ter- ritórios e redes de forma “superficial”. Isso porque sabiam onde se localizavam e quais eram os pro- blemas, mas desconheciam formas de trabalhá-los e os levavam para que as “equipes” tomassem pro- vidências, não exercendo papel ativo de profissional de saúde e não se sentindo integrantes das equipes técnicas, como preconizado pela própria Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) aos ACS:
Desenvolver ações que busquem a integra- ção entre a equipe de saúde e a população adscrita à UBS, considerando as caracterís- ticas e as finalidades do trabalho de acom- panhamento de indivíduos e grupos sociais ou coletividade. (BRASIL, 2012, p. 48-49).
É fundamental que se estabeleça a correlação entre as políticas públicas e sua articulação aos territórios e, consequentemente, às redes ali constituídas. Oliveira e Furlan (2008) discutem a noção de território, afirmando-o fundamental para os arranjos das equipes de saúde da família e alertando que gestores e trabalhadores da saúde muitas vezes
tem olhares controversos sobre o próprio conceito.
Utilizando Milton Santos
2para fundamentar essa discussão, esses autores afirmam que:
O território funda uma ordem local, a escala do cotidiano, a contiguidade. Os espaços locais tornam-se singulares conforme as possibilidades vividas [...]. O território seria formado de lugares contíguos e de lugares em rede, muito embora sejam os mesmos lugares esses das redes e o das contigui- dades (SANTOS, 2002 apud OLIVEIRA;
FURLAN, 2008, p. 250).
A compreensão do conceito de território é fun- damental para que os trabalhadores possam orga- nizar os recursos disponíveis para a sua atuação de forma mais eficiente. Isso lhes permite identificar as potencialidades e possibilidades locais, traba- lhando e reconhecendo as dificuldades para a sua atuação em saúde mental e dependência química.
Outro ponto que também se destacou, foi um des- conhecimento e a não valorização/utilização dos recursos disponíveis nas redes informais. Entendo por redes informais os espaços tanto físicos, como de recursos disponibilizados pelas comunidades (igrejas, associações, escolas etc.). Desmistificar que a UBS e os centros especializados eram os úni- cos lugares de atendimento, foi um grande desafio.
Oliveira (2016, p. 46) alerta que:
O estabelecimento da Atenção Primária Saúde (APS) como centro de comunicação das redes de atenção requer profissionais tecnicamente competentes, comprometi- dos, em quantitativo suficiente e capazes de organizarem seus processos de trabalho em equipe, de forma que promovam a ter- ritorialização, descrição da clientela, o aco- lhimento, o vínculo, a responsabilização, a integralidade e a resolutividade da atenção.
2