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FANTASIA E GOZO: UM RECORTE POSSÍVEL NO DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL ENTRE A PSICOSE E A PERVERSÃO

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PSICANÁLISE E LINGUAGEM: UMA OUTRA PSICOPATOLOGIA

FANTASIA E GOZO: UM RECORTE POSSÍVEL NO DIAGNÓSTICO

DIFERENCIAL ENTRE A PSICOSE E A PERVERSÃO

JÚLIA ZENNI DE CARVALHO GUERREIRO

Orientadora: Sandra Dias

Monografia apresentada como parte dos requisitos para o certificado de Especialização

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DEDICATÓRIA

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JÚLIA ZENNI DE CARVALHO GUERREIRO: Fantasia e gozo: um recorte possível no diagnóstico diferencial entre a psicose e a perversão. 2008

Orientadora: Sandra Dias

Palavras-chave: fantasia, gozo, psicose, perversão

RESUMO

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO --- 01

1 – Fantasia: de Freud a Lacan --- 04

1.1 – As Primeiras noções 04

1.2 – A Grande virada 12

1.3 – Os Acréscimos de Lacan 15

1.4 – A teoria da sedução e seus desdobramentos 21

1.5 - Últimas observações 23

2 – Gozo: de Freud a Lacan --- 31

2.1 – Os termos Wunsch e Lust 31

2.2 – O Gozo em Freud 33

2.2.1 As contribuições de “Além do Princípio do Prazer” (1920) 34

2.3 – Do Indizível ao submetimento à Lei do desejo 47

2.4 – O gozo fálico e o Outro gozo 52

3– Sobre a Psicose --- 54

3.1 – Primeiras notas 54

3.2 – A forclusão do significante e o fenômeno psicótico 59

3.3 – A psicose e o objeto a 65

3.4 – Últimas observações 68

4- Sobre a Perversão 72

4.1 - Primeiras considerações 72

4.2 - As contribuições de “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci”(1910) 73

4.3 - A Verleugnung como resposta 75

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5- Fantasia e gozo: possibilidades no diagnóstico diferencial 88

5.1 – Retorno à pulsão 88

5.2 - Real, fantasia e objeto a 89

5.3 - Acerca da psicose 92

5.4 - As contribuições de “Bate-se uma criança”(1919) 101

5.5 - Acerca da perversão 107

5.6 - As contribuições de “Kant com Sade”(1998) 112

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O presente trabalho é fruto de indagações e questionamentos surgidos a partir de um caso trabalhado em supervisão. Trata-se de um atendimento realizado, por um período de, aproximadamente, um ano por uma colega da equipe. Diante do relato do caso, buscava-se sempre recortar cenas importantes da vida deste sujeito. Mediante algumas passagens ao ato e sua posição na cena fantasmática, inferia-se sua posição subjetiva diante o desejo do Outro e, assim, a configuração de sua estrutura clínica. Se tratava de uma psicose ou de uma perversão?

Outro motivo presente na construção deste trabalho, é a pequena quantidade de trabalhos que levam em consideração uma aproximação entre a psicose e a perversão. Normalmente, o que se discute muito são as relações entre a neurose e a perversão, sendo esta última uma estrutura clínica que desvela o que se encontra velado na primeira. Além disso, não se pode deixar de mencionar o trabalho de Freud (1905) – “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”- em que o autor aproxima essas duas posições clínicas e afirma que a neurose é o negativo da perversão. Com Lacan, será possível inverter isso, ao afirmar a perversão como a positivação da neurose (Braunstein, 2007).

Desta maneira, o trabalho foi desenvolvido no intuito de apresentar elementos importantes na discussão do diagnóstico diferencial entre a psicose e a perversão.

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O segundo capítulo retoma as noções de gozo em Freud e Lacan. É importante marcar que apesar de conceber a noção de compulsão a repetição e nomear a pulsão de morte, Freud não operacionalizou o gozo. Trata-se de um conceito do qual se tem indícios em alguns casos clínicos descritos por Freud. O texto “Além do princípio do prazer” (1920) será bastante discutido, devido sua importante contribuição na construção metapsicológica freudiana. Ao ser retomado por Lacan, a partir da leitura dos trabalhos de Freud, o conceito de gozo será operacionalizado; será diferenciado do desejo. O gozo estaria, assim, do lado da Coisa, enquanto o desejo, do lado do Outro, vindo do Outro primordial.

A partir disso, o capítulo seguinte se propõe discutir o campo das psicoses. Retoma-se alguns textos freudianos e delineia as construções posteriores advindas com Lacan. Trabalha-se o fenômeno psicótico, suas produções delirantes e manifestações. A questão central suscitada é a rejeição, a falta de um significante primordial que marca a estrutura da psicose. A Verwerfung do Nome-do-Pai traz conseqüências graves ao sujeito. Diante de um buraco, de uma falha na simbolização, o sujeito encontra-se em apuros quando demandado a responder deste lugar. É isso que é retomado nos acontecimentos desencadeantes de uma crise.

À perversão, foi dedicado o capítulo quatro do presente trabalho. Discute-se, neste momento, as contribuições freudianas acerca da constituição da estrutura perversa. Alguns textos, como “Leonardo da Vinci: uma lembrança de sua infância”(1910), “A divisão do Ego no Processo de Defesa”(1938), “O Fetichismo”(1927) foram levados em consideração nesta empreitada. Obviamente, não poderia deixar de constar, neste capítulo, as importantes e fundamentais contribuições trazidas por Lacan. A Verleugnung – como mecanismo de defesa perverso, a construção do fetiche e a transformação do desejo em vontade de gozo, constituem alguns pontos da apresentação. Apesar de ser um texto de suma relevância, optou-se por reservar a discussão de “Kant com Sade” (1998) para o último capítulo, tendo em vista suas contribuições acerca da noção de objeto, além do posicionamento do sujeito frente ao gozo e ao desejo.

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discutidas por Lacan. Foi possível articular essas “categorias” ao posicionamento do sujeito frente à castração. Ou seja, a partir deste trabalho, chegou-se a conclusão da viabilidade de vislumbrar a estrutura clínica, a partir do posicionamento do sujeito na fantasia e em sua relação com o gozo. Não cabe adiantar que divergências se dão, nesta relação, entre a psicose e a perversão. Será construído, passo a passo, as marcas e os vestígios desta distinção. É possível apenas dizer que é viável essa diferenciação diagnóstica, utilizando como referência o viés do gozo e da fantasia. Estes elementos trazem consigo o posicionamento do sujeito no campo do Outro; peça fundamental na estruturação e constituição do sujeito.

(9)

Fantasia

1

: de Freud a Lacan

(...) o significante, a partir do momento em que é introduzido, tem, fundamentalmente, um valor duplo. De que modo se sente o sujeito, afetado como desejo pelo significante, na medida em que é ele que é abolido, e não o outro que detém o chicote imaginário e, é claro, significante? Como desejo, ele se sente escorado naquilo que como tal o consagra e o valoriza, ao mesmo tempo que o profana. Há sempre, na fantasia masoquista, uma faceta degradante e profanadora, que indica ao mesmo tempo a dimensão do reconhecimento e o modo de relação proibido do sujeito com o sujeito paterno. É isso que constitui o fundo da parte desconhecida da fantasia (Lacan, 1957-58, p. 255).

1.1As Primeiras Noções

Desde seus momentos iniciais, pode-se dizer que Freud se ocupou das fantasias. É bem verdade que nos primórdios de seu pensamento, Freud não tinha idéia da importância que estas teriam para suas construções analíticas.

O termo Phantasie, em alemão, é utilizado para designar o mundo imaginário, as imaginações e as próprias fantasias.

É interessante notar como a noção de fantasia vai sendo implementada na teoria freudiana, juntamente com suas contribuições na formulação de uma metapsicologia; que servem de apoio para o entendimento dos processos psíquicos e estruturais do sujeito.

1

(10)

Em seus primeiros momentos, pensando a histeria, Freud (1897) escreve em seu Rascunho L, anexo à carta 61, datada de maio de 1897, que as fantasias constituem-se em fachadas psíquicas que bloqueiam o caminho direto às lembranças, ou ainda, o acesso às cenas primárias; formadas de restos ouvidos e vistos. Há que se reconhecer, aqui, sua aproximação com os sonhos; teorização que ocorre numa fase posterior, mas que encontra seus germes desde essa época. Freud (1897), já neste momento, afirma ser viável perseguir todo processo de estruturação e, ainda, todos os elementos fundamentais na construção da fantasia. Outro ponto a ser considerado são as fantasias como defesas. O autor apenas aponta, não desenvolve, neste momento, essa noção.

Em seu Manuscrito M (1897), intitulado “A Arquitetura da Histeria”, Freud afirma que algumas cenas são, para o sujeito, acessíveis; em compensação, outras o são apenas por meio das fantasias. Tudo acontece como se os acontecimentos estivessem dispostos em ordem crescente de resistência, ou seja, as cenas menos investidas estão mais próximas da barreira da consciência do que aquelas que se encontram em grau elevado de investimento. É claro que estas cenas não vêm à tona completamente, já que estas mantêm conexão com aquelas que foram recalcadas mais fortemente, se é que é possível assim dizer (Freud, 1897).

(11)

Um fragmento da cena visual junta-se, depois, a um fragmento da experiência

auditiva e é transformado numa fantasia, enquanto o fragmento restante é ligado a

alguma outra coisa. Desse modo, torna-se impossível determinar a conexão original.

Em conseqüência da construção de fantasias como esta (em períodos de excitação),

os sintomas mnêmicos cessam. Em vez destes, acham-se presentes ficções

inconscientes não sujeitas à defesa. Quando a intensidade dessa fantasia aumenta

até um ponto em que forçosamente irromperia na consciência, ela é recalcada e

cria-se um sintoma mediante uma forca que impele pra trás, indo desde a fantasia

até as lembranças que a constituíram (Freud, 1897, p.302).

Neste mesmo artigo, ele (1897) vai marcar a diferença entre as fantasias na histeria e na paranóia. Neste momento inicial, o que chama mais atenção é que, na última, as fantasias são mais sistematizadas e estruturadas; enquanto, na histeria, são desarticuladas e independentes entre si, de maneira até serem contraditórias. Este ponto constitui apenas um acréscimo acerca do que será desenvolvido com maior rigor posteriormente. Há que se ter em mente, apenas, que o foco principal do presente trabalho não está no diagnóstico diferencial entre a neurose e a psicose, mas entre esta última e a perversão.

De forma sucinta, pode-se entender o funcionamento da histeria como tendo o seu esqueleto relacionado com a reedição das cenas, umas com acesso livre, enquanto outras, apenas por intermédio das fantasias; sendo estas frutos de coisas ouvidas e compreendidas no “só - depois”. É interessante ressaltar o papel de defesa das fantasias, funcionando, por vezes, como escudos protetores.

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freudiano marca e define o trabalho em análise, construído mediante a ponte transferencial entre o analista e seu analisando.

Outra consideração freudiana, neste momento inicial da construção teórica da histeria, é abordar que as estruturas psíquicas afetadas pelo processo de recalque não se constituem lembranças, mas impulsos advindos da cena primária. De acordo com essa idéia, tanto a histeria, como a neurose obsessiva e a paranóia – esta última considerada uma patologia neurótica neste período – compartilham os mesmos elementos em suas formações: fragmentos de memória, impulsos (oriundos das lembranças) e lembranças defensivas e protetoras.

(...) e percebo que a irrupção na consciência, a formação de compromissos (isto é,

sintomas), ocorre nessas neuroses em pontos diferente. Na histeria, são as

lembranças, na neurose obsessiva, os impulsos pervertidos, na paranóia, as ficções

protetoras (fantasias) que penetram na vida normal, distorcidos pela formação de

compromissos (Freud, 1897, p.296-297).

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Os devaneios podem ser de duas ordens: inconscientes ou conscientes. Quando estes se tornam inconscientes, podem se tornar patológicos, ou seja, tomar a forma de um sintoma ou até mesmo de um ataque histérico. As fantasias inconscientes podem ter sido sempre inconscientes ou, podem ter sido conscientes, passando para o inconsciente pelo processo do recalque. Seu conteúdo pode, ou não, ter sofrido modificações significativas. É importante mencionar que as atuais fantasias inconscientes são frutos de devaneios conscientes. Há uma ligação relevante entre as fantasias inconscientes e o que se refere às questões sexuais do sujeito, já que

(...) é idêntica à fantasia que serviu para lhe dar satisfação sexual durante o período

de masturbação. Nesse período, o ato masturbatório (...) compunha-se de duas

partes. Uma era a evocação de uma fantasia e a outra um comportamento ativo

para, no momento culminante da fantasia, obter autogratificação (...)

Originalmente, o ato era um processo puramente auto-erótico que visava obter

prazer de uma determinada parte do corpo, que pode ser denominada de erógena.

Mais tarde, esse ato fundiu-se a uma idéia plena de desejo pertencente à esfera do

amor objetal, e serviu como realização parcial da situação em que culminou a

fantasia. Quando, posteriormente, o sujeito renuncia a esse tipo de satisfação,

composto de masturbação e fantasia, o ato é abandonado, e a fantasia passa de

consciente a inconsciente. Se não obtém outro tipo de satisfação sexual, o sujeito

permanece abstinente; se não consegue sublimar sua libido – isto é, se não consegue

defletir sua excitação sexual para fins mais elevados – estará preenchida a condição

para que sua fantasia inconsciente reviva e se desenvolva, começando a atuar, pelo

menos no que diz respeito a parte de seu conteúdo, com todo o vigor de sua

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Neste sentido, devaneios inconscientes estão na fonte da manifestação dos sintomas, inclusive, os histéricos. Pode-se dizer que esses sintomas histéricos nada mais são que fantasias inconscientes que vêm à tona. Sendo os sintomas de ordem somática, tem-se que suas manifestações motoras e sensações sexuais advêm dos devaneios quando estes ainda eram inconscientes. Ao investigar a histeria, em vez do interesse se focar nos sintomas referentes, o foco terá de ser nas fantasias que lhes deram origem. Sendo, os sintomas histéricos são senão substitutos, que aparecem por meio conversivo, do retorno das vivências traumáticas experenciadas pelo sujeito; estão a serviço da obtenção de prazer e são compromissos entre dois impulsos afetivos e instintuais divergentes, um dos quais busca satisfazer uma pulsão sexual inconsciente, enquanto o outro tenta recalcá-lo. A Psicanálise possibilita intervir nesses sintomas e deles extrair suas fantasias motivadoras e, então, devolvê-las ao sujeito. A partir da clínica, foi possível inferir que o conteúdo fantasístico dos histéricos compunha a realização, no real, da satisfação no caso dos pervertidos2.

Esse método de investigação psicanalítica, que dos sintomas visíveis conduz às

fantasias inconscientes ocultas, revela-nos tudo o que é possível conhecer sobre a

sexualidade dos psiconeuróticos (...)Provavelmente devido às dificuldades que as

fantasias inconscientes encontram em seus esforços de expressão, a relação das

fantasias com os sintomas não é simples, mas, ao contrário, bem complexa. Via de

regra, quando a neurose está plenamente desenvolvida e persiste há algum tempo,

um determinado sintoma não corresponde a uma única fantasia inconsciente, mas a

várias fantasias desse gênero, e essa correspondência não é arbitrária, mas obedece

a um padrão regular (Freud, 1908 [1907], p. 151-152).

2

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Há que se considerar duas características importantes com relação às fantasias. A primeira é que são construídas diante de uma insatisfação. São os desejos não-satisfeitos que possibilitam a formação dos devaneios. Diante disso, é possível pensar que, sendo assim, as fantasias são, em sua essência, a realização de um desejo, uma espécie de “modificador da realidade” antes insatisfeita e, posteriormente, adequada à satisfação e à experiência prazerosa. A outra característica a ser ressaltada é que os desejos que culminaram na constituição de suas fantasias são de ordem infantil e proibida (Freud, 1908[1907]).

Em “Escritores Criativos e Devaneios” (1907[1906]), Freud vai afirmar que as causas desejantes podem ser de duas ordens: ambiciosas e eróticas. Apesar de fazer uma pequena diferenciação de como isso está presente em homens e mulheres, Freud (1907[1906]) acentua a relevância de ter em mente que esses desejos motivadores, freqüentemente, encontram-se unidos. Outro ponto importante é que o conteúdo do fantasiar é variável e adaptativo às experiências vividas pelo sujeito. Dessa maneira, é possível marcar a relação importante entre tempo e fantasia. Esta última articula passado, presente e futuro de forma bem notória. Neste ponto, é importante refazer duas ressalvas: primeiro, quanto ao inconsciente como uma estrutura atemporal e, segundo, a imprecisão de Freud com relação aos termos devaneio e fantasia – comparecem, ainda como equiparados.

O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora

no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali,

retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual

esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a

realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra

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É impossível não notar a proximidade que as fantasias têm das construções oníricas, ou seja, dos sonhos. Assim como as fantasias, os sonhos também se constituem como realizações de desejo. Quando obscuro, o significado desses últimos, nota-se a proximidade daquilo que constitui o desejo como proibido e infantil. Neste sentido, tem-se o processo de recalcamento que, como defesa, envia esses conteúdos traumáticos e desprazerosos para o inconsciente. Não há como deixar de mencionar o trabalho de distorção onírica que permite que o conteúdo, ao vencer a barreira da censura – que ignora e não percebe esse disfarce – possa emergir para o sujeito.

É interessante marcar que o recalque não significa algo que foi dissolvido ou extinto da memória, mas, ao contrário, algo que está sempre retornando e retomando a história do sujeito, apesar das inúmeras dificuldades encontradas nesse processo.

Sendo,

É verdade que o reprimido3 (...) conserva uma capacidade de ação efetiva e, sob a

influência de algum evento externo, pode vir a ter conseqüências psíquicas que

podem ser consideradas como produtos da modificação da lembrança esquecida e

como derivados dela, e que, se não forem vistas por esse prisma, permanecerão

incompreensíveis (...)Tal retorno do que foi reprimido deve ser esperado com

particular regularidade quando os sentimentos eróticos de uma pessoa estão ligados

às impressões reprimidas – quando sua vida erótica sofreu as investidas da

repressão (...) quando o que foi reprimido retorna, emerge da própria força

repressora (Freud, 1907[1906],39-40).

3

(17)

Outro ponto importante a ser considerado é que o material inconsciente só se faz presente por meio de uma conciliação com os determinantes conscientes. Freud nomeia como uma formação de compromisso esse mecanismo de conciliação entre as moções conscientes e inconscientes – é necessário que cada uma delas renuncie a um quantum de satisfação. São, assim, sempre satisfações parciais, nunca satisfações totais ou completas.

Pode-se dizer que as fantasias são substitutas e derivações de lembranças recalcadas que não atingem a consciência, senão de maneira transformada e distorcida. Essa distorção, também notada nos processos oníricos, se deve ao trabalho do material inconsciente que visa ultrapassar a barreira da resistência e da própria censura. Por meio desse compromisso, resíduos inconscientes podem ultrapassar esse limite, sem que sejam impedidos de chegar à consciência.

1.2A Grande Virada

Em qualquer momento ou situação em que se fale de fantasias, será quase impossível não se ouvir alguma citação ou referência com relação ao importante texto freudiano, datado de 1919, “Bate-se numa Criança”.

Apesar de seu percurso já feito com relação a teoria da fantasia, Freud ainda não conseguiu precisar a diferença entre devaneio, fantasia e recordação. Será somente com este texto de 1919 que estas noções ficarão claras.

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É muito comum que uma dada fantasia esteja presente no tratamento de casos neuróticos: uma criança é espancada. Esta fantasia traz consigo sensações prazerosas e, por vezes, satisfações masturbatórias percebidas nos genitais. Neste sentido, a fantasia encontra-se investida com um alto teor prazeroso e teria sua descarga de cunho satisfatório e auto-erótico. Inicialmente, isto ocorre com certa aceitação do paciente sendo transformada, posteriormente, em algo involuntário e com características de ruminação.

A fantasia não é confessada com tranqüilidade e, muito menos, com freqüência. A primeira vez que comparece, traz consigo a marca da dúvida, da incerteza, da vergonha e da culpa. De acordo com Freud (1919) esta fantasia tem seu aparecimento datado antes mesmo que a criança entre na escola.

É interessante ressaltar que, por vezes, a fantasia ‘uma criança é espancada’ surge com outras atribuições, como: ‘uma criança está sendo espancada e estão lhe batendo no seu traseiro nu’.

Uma fantasia dessa natureza, nascida, talvez, de causas acidentais na primitiva

infância, e retida com o propósito de satisfação auto-erótica, só pode, à luz do nosso

conhecimento atual, ser considerada como um traço primário de perversão. Um dos

componentes da função sexual desenvolveu-se, ao que parece, à frente do resto,

tornou-se prematuramente independente, sofreu uma fixação, sendo por isso,

afastadas dos processos posteriores de desenvolvimento, e, dessa forma, dá

evidência de uma constituição peculiar e anormal do indivíduo. Sabemos que uma

perversão infantil desse tipo não persiste necessariamente por toda a vida; mais

tarde pode ser submetida à repressão, substituída por uma formação reativa ou

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ocorrem, a perversão persiste até a maturidade; e sempre que encontramos uma

aberração sexual nos adultos (...) temos motivos para esperar que a investigação

anamnésica revele um evento (...) que conduza a uma fixação na infância (Freud,

1919, p. 197-198).

É no período infantil que a libido é despertada perante situações reais e se articulam, posteriormente, a determinadas questões na vida do sujeito. As fantasias de espancamento que estão sendo tratadas aqui comparecem mais tarde, mais ao final desse período; estas sofrem desenvolvimentos e modificações em amplos aspectos, principalmente, no que diz respeito ao autor da fantasia, ao objeto, conteúdo e sentido.

A primeira etapa da fantasia de espancamento reside de épocas muito anteriores, localizadas na infância. A criança batida não coincide com a que fantasia. A criança espancada é uma menina ou um menino – irmãzinha ou irmãozinho. Não há relação direta entre o sexo da criança que fantasia e daquela que é objeto. Neste sentido, não se trata de atribuir um caráter masoquista nem sádico a dada fantasia, já que autor e objeto não coincidem. O autor do espancamento não é revelado neste primeiro momento. O que se tem é que não se trata de uma criança, mas sim de um adulto. Essa primeira etapa pode ser representada pela sentença: ‘o meu pai está batendo na criança’.

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Nunca é lembrada, jamais conseguiu tornar-se consciente. É uma construção da análise, mas nem por isso é menos uma necessidade” (Freud, 1919, p. 201).

A terceira etapa é similar à primeira. O autor do espancamento nunca é a figura paterna, é alguém que não se sabe quem é, ou é algum substituto do pai como, por exemplo, um professor. Nesta etapa, a criança que cria a fantasia está no lugar de quem observa a cena – ‘Provavelmente, estou olhando’. Em vez de uma, agora, várias crianças (desconhecidas) estão sendo espancadas. Além disso, a cena pode sofrer novas configurações, não mais se tratando apenas de espancamentos, mas, também, de situações de castigos e humilhações. É importante ressaltar o caráter sádico em questão. Tem-se como característica diferencial dessa etapa uma considerável excitação sexual, sendo um meio para prazeres masturbatórios. O questionamento que se levanta é como essas fantasias sádicas de espancamento tornam-se capazes de movimentar libidinalmente o sujeito.

1.3 Os Acréscimos de Lacan

É interessante notar que se a análise chega às fantasias de espancamento, ela nos apresenta a dinâmica da criança envolvida com o casal parental.

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Essa atitude existe lado a lado com uma corrente de dependência afetiva da mãe (...)

ou dar ímpeto a uma reação excessiva de dedicação à mãe. Não é, porém, com a

relação entre a menina e a mãe que a fantasia de espancamento está ligada. Há

outras crianças à volta (...) de quem não gosta por toda espécie de motivos, mas

principalmente porque o amor dos pais tem de ser compartilhado com elas, que,

ademais, por esta razão, são repelidas com toda a energia selvagem característica

da vida emocional nessa idade (Freud, 1919, p. 202).

Quando se trata de um irmão ou uma irmã, são desprezados e odiados pela criança; enquanto os pais disponibilizam a esse irmão todo um cuidado e afeição – percepção essa sempre vista pelo infans. Mais que rapidamente desenvolve-se a idéia de que ser espancado é ser não ser amado, é ser humilhado. A concepção da cena do pai espancando essa criança odiada é muito agradável, independente disto ter realmente ocorrido, ou não. A idéia envolvida é ‘o meu pai não ama essa criança, ama apenas a mim’. É este o sentido da fantasia de espancamento na primeira etapa. Neste momento inicial, ainda não há indícios de envolvimento sexual genital com saídas masturbatórias.

O pai recusa, nega seu amor à criança espancada, irmãozinho ou irmãzinha. É por

haver uma denúncia da relação de amor e humilhação que esse sujeito é visado em

sua existência de sujeito. Ele é objeto de uma servícia, e essa servícia consiste em

negá-lo como sujeito, em reduzir a nada sua existência de desejante, em reluzi-lo a

um estado que tende a aboli-lo como sujeito. Meu pai não o (a) ama, eis o sentido da

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intervenção do pai assume seu valor primordial para o sujeito, aquele do qual

dependerá tudo o que vem depois. Essa fantasia arcaica, portanto, nasce de saída

numa relação triangular, que não se estabelece entre o sujeito, a mãe e o filho, mas

entre o sujeito, o irmãozinho ou irmãzinha e o pai. Estamos antes do Édipo, e mesmo

assim o pai presente (Lacan, 1957-58, p. 246).

É evidente que esses prazeres incestuosos vão cair por terra, ou seja, vão ser repreendidos e recalcados. Ao serem mandados para o inconsciente, surgirá um sentimento de culpa que trará modificações significativas na etapa posterior.

Se a fantasia do período incestuoso era marcada pela representação ‘ele ama apenas a mim, e não a outra criança, por isso bate nela’, o sentimento de culpa vai influenciar na configuração da segunda etapa, que será ‘não, ele não ama você, pois está batendo em você’ – transformada, adquire um caráter masoquista. Seguindo, tem-se ‘estou sendo espancada pelo meu pai’, uma mescla de culpa e amor incestuoso sexual.

Não é apenas o castigo pela relação genital proibida, mas também o substituto

regressivo daquela relação, e dessa última fonte deriva a excitação libidinal que se

liga à fantasia a partir de então, e que encontra escoamento em atos masturbatórios.

Aqui temos, pela primeira vez, a essência do masoquismo (Freud, 1919, p. 205).

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fase, é ela quem é espancada pelo pai. De certa forma, isso está articulado com o desejo edipiano da menina – de ser objeto do desejo paterno – e a culpa que isso traz – exigência de ser espancada por isso.

Num momento posterior, depois da saída edípica, comparece uma outra transformação. A figura do pai é alterada; transforma-se em um personagem tirano, onipotente e ativo que exerce a ação de bater, enquanto o sujeito comparece na forma de inúmeras crianças que são espancadas, onde independem seus sexos, femininos ou masculinos.

Essa forma derradeira da fantasia, na qual alguma coisa é mantida, fixada,

memorizada, diríamos, permanece, para o sujeito, investida da propriedade de

constituir a imagem privilegiada na qual o que ele puder experimentar de

satisfações genitais irá encontrar seu apoio (Lacan, 1957-58, p. 247).

Na terceira etapa, a criança encontra-se como espectador, com um olhar voltado para a cena. O pai continua como agente, podendo ser substituído por um professor ou qualquer figura de autoridade. Outro ponto a ser considerado é que as crianças tidas, nesta fase, nada mais são do que substitutos do próprio infans.

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fantasia masoquista de fustigação. Antes mesmo de qualquer relação empática do sujeito com aquele que sofre, o que comparece, antes de mais nada, é algo que risca, barra, encerra o sujeito, ou seja, algo que vem do próprio significante. “A fustigação não atinge a integridade real e física do sujeito. É justamente seu caráter simbólico que é erotizado como tal, e o é desde a origem” (Lacan, 1957-58, p. 250).

Num segundo momento, a fantasia assume outra configuração. Freud vai afirmar (1919) que aqui se encontra a gênese do masoquismo. Conforme dito anteriormente, ‘meu pai me bate’ não chega como lembrança. A ideia inicial ‘o rival não existe, não é nada’ é, agora, transformada em ‘você existe, e é até amado’. E ainda,

(...) a relação que liga o sujeito a qualquer imagem do outro tem um caráter

fundamentalmente ambíguo, e constitui uma apresentação perfeitamente natural do

sujeito à báscula que, na fantasia, leva-o ao lugar que era do rival, onde, por

conseguinte, a mesma mensagem chegará a ele com um sentido totalmente oposto

(Lacan, 1957-58, p. 256).

A última etapa é caracterizada por evidenciar a relação do sujeito com o outros (a); significando que os indivíduos estão sujeitos, em sua constituição, ao jugo de alguém.

Entrar no mundo do desejo é, para o ser humano, suportar, logo de saída, a lei

imposta por esse algo que existe mais-além (...)É assim que, num determinado

sujeito, que entra na história por vias particulares, define-se uma certa linha de

evolução. A função da fantasia terminal é manifestar uma relação essencial do

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É importante trazer a figura materna para este contexto. É interessante notar que a relação mãe-criança não é formada apenas de satisfações e frustrações, mas, principalmente, do objeto de desejo da mãe. Para ter acesso ao mundo dos significados, essa criança vai em busca do que ela significa no desejo da mãe e de que se trata o seu próprio desejo. Neste momento, entra em cena a função privilegiada do falo. Este é o significante-pivô em torno do qual a construção da dialética do desejo vai se constituir.

O falo entra desde logo em jogo, a partir do momento em que o sujeito aborda o

desejo da mãe. Esse falo é velado e permanecerá velado até o fim dos séculos, por

uma razão simples: é que ele é um significante último na relação do significante com

o significado. Com efeito, há pouca probabilidade de que venha jamais a se revelar

senão em sua natureza de significante, ou seja, de que venha realmente a revelar, ele

mesmo, aquilo que, como significante, ele significa (...) desejo da mãe não é

simplesmente, nesse momento, o objeto de uma busca enigmática que deva conduzir

o sujeito, no correr de seu desenvolvimento, a rastrear esse sinal, o falo, para que

então este entre na dança do simbólico, seja o objeto preciso da castração e, por

fim, seja entregue a ele sob uma outra forma, para que ele faça e seja o que se trata

de fazer e ser. Ele o é, ele o faz, mas, aqui, estamos absolutamente na origem, no

momento, em que o sujeito se confronta com o lugar imaginário onde se situa o

(26)

Partindo das idéias apresentadas, Freud (1919) afirma quão importantes são no entendimento das perversões, acrescentado a noção fundamental de que a perversão não é algo isolado no desenvolvimento infantil, mas sim constituinte de todo e qualquer processo de desenvolvimento, inclusive os ditos ‘normais’.

Uma perversão na infância, como é sabido, pode tornar-se a base para a construção

de uma perversão que tenha um sentido similar e que persista por toda a vida, uma

perversão que consuma toda a vida sexual do sujeito. Por outro lado, a perversão

pode ser interrompida e permanecer ao fundo de um desenvolvimento sexual normal,

do qual, no entanto, continua a retirar uma determinada quantidade de energia

(Freud, 1919, p. 207).

É importante marcar as diferenças estruturais dessas fantasias em homens e mulheres, não sendo possível estabelecer um paralelismo completo. O que há de se ter em mente é que, em ambos os casos, as fantasias de espancamento tem suas origens na relação incestuosa com o pai.

1.4A teoria de sedução e seus desdobramentos

(27)
(28)

1.5Últimas observações

Em seu texto, Miller (2002) propõe uma segmentação clínica entre o sintoma e a fantasia. Ele inicia afirmando que nem tudo, para Lacan, é significante; seu ponto de partida se deu com a idéia do inconsciente estruturado como linguagem. Seu grande achado foi o objeto a. A partir disso, modifica-se a noção do eu (Moi), de interpretação e transferência.

Lacan atrela a travessia da fantasia como término de análise. Segundo o autor (2002), fantasia e sintoma são distinções entre significante e objeto, na medida em que o sintoma diz de uma articulação significante, enquanto a fantasia, uma articulação com o objeto. Entretanto, Miller acredita que há, também, algo de objeto envolvido no sintoma.

Se o paciente lamenta e reclama do seu sintoma, principalmente, quando se inicia um processo analítico, da fantasia, quase nada se diz; e através dela obtém-se certo prazer. Dir-se-ia: desprazer no sintoma e prazer na fantasia. Esta diz do íntimo do sujeito; por vezes, ele até se envergonha delas, pois vai de encontro com seus valores morais. Sintoma e fantasia se situam em lugares diferenciados.

É que geralmente tira o conteúdo da sua fantasia do discurso da perversão, coisa

que foi dita por Freud, por Lacan, e que também observamos na experiência. O fato

de que o neurótico tenha fantasias perversas não quer dizer que o seja. Um

obsessivo, por exemplo, que obtém sua fantasia do discurso da perversão, a tira do

campo de um gozo que não é o seu próprio gozo. E em geral, se mantém a uma certa

distância e preserva algo assim como ima margem de segurança com relação a suas

(29)

Freud, em seus escritos iniciais, já pensava a fantasia como recurso contra o sintoma, sendo a primeira uma produção imaginária que se encontra à disposição do sujeito em dados momentos.

Ao escrever o “Bate-se numa criança” (1919), Freud relaciona a fantasia com a vivência da masturbação, sendo essa satisfação, um gozo fálico. É importante observar que não se trata de um gozo do Outro, mas, justamente, um espaço em que ambos podem se separar (gozo fálico e gozo do Outro).

A idéia freudiana traz a fantasia como meio de obtenção de prazer, de alcance de satisfação. A noção lacaniana a apresenta como meio de transformar o gozo em prazer.

Nesse sentido, a fantasia tem uma função semelhante à do brincar, que é – a partir

de uma situação tanto de gozo quanto de angústia – produzir prazer. Não devemos

esquecer que a condição necessária do fort-da é a ausência da mãe. É porque esse

Outro foi embora que a criança fica em situação angustiante, da qual obtém prazer

graças à sua maquinação lúdica. É importante recordar essa ausência porque é a

ausência do Outro que presentifica e põe em evidência seu desejo. A partir disso é

que Lacan constrói sua fórmula da metáfora paterna, pois o que lá aparece como

“desejo da mãe” é algo que vem ocupar o lugar deixado anteriormente pela

ausência da mãe. Quando não está, pode-se perguntar qual é o seu desejo, que é o

que deseja. Por isso, a criança do fort-da produz essa maquinação ao se evidenciar

o desejo do Outro. Mas o que ilustra é generalizável: a fantasia é uma máquina que

(30)

Outra diferenciação apresentada faz referência à fantasia fundamental incitada no segundo tempo da análise do “Bate-se numa criança” (1919); nunca comparece como tal, como vivência; trata-se de uma marca limite do processo de análise, e que nem sempre é alcançado num trabalho. Miller (2002) pensa a fantasia fundamental como o recalque originário; algo que não é possível dizer e que não se finda: sempre haverá mais um. Não cabe interpretação, mas sim, construção. É interessante notar que, ao contrário da interpretação que é pontual e focal, a construção possibilita aberturas do discurso ao colocar o sujeito diante de sua história; permite elaborações, ou melhor, perlaborações (Freud, 1937). O que se espera é que na travessia da fantasia, o sujeito altere sua relação com a mesma, modifique sua posição diante do fantasma.

Miller (2002) apresenta a fantasia em suas três vertentes: imaginária, simbólica e real. No primeiro campo, tem-se um sujeito que pode produzir imagens, relacionados a si mesmo ou às pessoas que estão a sua volta. Trata-se do primeiro campo problematizado por Lacan, em que se figuram a relação a ← a’. No campo simbólico, tem-se a obediência às leis da língua, na construção de uma história, de um roteiro. O artigo de Freud “Bate-se numa criança” (1919) demonstra isso, ao apresentar uma fantasia que extrapola o nível de uma frase, implicando-a em variações gramaticais, ou seja, numa elaboração gramatical. Outra vertente é a do campo do real. Trata-se da fantasia dotada de seu quantum imodificável, inalterável, impossível. “Por essa razão, para Lacan, o fim de análise é a conquista de uma modificação da relação do sujeito com o real da fantasia” (Miller, 2002, p. 113).

(31)

(...) uma formulação completamente separada do resto de seu discurso. Como um

monumento isolado que entretanto é, ao mesmo tempo, matriz do seu

comportamento (...) A fantasia é como um acordeão: pode recobrir toda a vida do

sujeito e ser, ao mesmo tempo, a coisa mais oculta e mais atômica do mundo (Miller,

2002, p. 115).

No artigo freudiano (1919), percebe-se alterações na gramática da fantasia, como a passagem do passivo para a voz ativa. Com a leitura de Lacan, a ênfase cai não sobre a gramática, mas sim sobre outra questão simbólica: a lógica da fantasia, ou seja, a fantasia como axioma; no sentido da articulação significante poder encontrar-se no registro do real. O axioma é a origem do sistema e, ao mesmo tempo, o que não se altera.

Em 1908, em seu artigo “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade”, Freud articula de forma clara a histeria, seus sintomas clássicos com as fantasias. Propõe que a fantasia inconsciente envolvida é determinante na constituição do sintoma. Neste sentido, poder-se-ia pensar que o conteúdo das fantasias seria a própria constituição do material inconsciente. Dessa maneira, esse artigo incita que a prática analítica chegaria, pelos sintomas, às fantasias que os determinam. Apesar de inovadora, essa concepção não diferencia o imaginário do simbólico. Lacan vai ter que se a ver, inicialmente, com a mesma questão.

(32)

A primeira fórmula da fantasia (a ← a’) demonstra sua peculiaridade essencialmente imaginária. Outra consideração importante é que Lacan propõe a prevalência imaginária no sujeito devido a uma falta no simbólico. Aqui, já se percebe uma noção de uma ausência na cadeia significante, possível de ser demonstrada em A, podendo ser preenchida com um elemento imaginário. Uma última consideração importante desse primeiro modo lacaniano de situar a fantasia é que, também, é a primeira vez que se consegue situar a instância superegóica; quando ocorre uma falta na cadeia significante, advém do imaginário, a figura do supereu.

É bem verdade que se trata da primeira forma de marcar a fantasia, embora não seja o último. Sabe-se que: a ← a’ passa a ser $ ◊ a. Algo comparece de novo nessa outra formulação. Apesar de já estar presente na primeira, é na segunda configuração que o objeto a fica mais evidente e, ainda, passa de imaginário para real. Há algo muito interessante que advém dessa nova construção: o sujeito como sujeito do significante presentificado na fórmula da fantasia, isto é, sujeito como simbólico.

De acordo com Miller (2002), essa idéia já se encontra, de certa forma, no texto freudiano de 1919, quando nos aponta dois componentes essenciais na formação da fantasia. São eles: um gozo, uma satisfação advinda da zona erógena e uma representação de desejo. É bem verdade que a própria fórmula da fantasia proposta por Lacan mostra que ambos – gozo e representação de desejo – podem ser vistos: $ ◊a, tais como em a, o gozo e em $, o sujeito simbólico, do desejo.

Neste sentido, o que Lacan escreve como $ ◊ a é esse significante, lugar da fantasia

como axioma simbólico. É algo como o valor do que permanece quando a ordem

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ao chegarmos ao ponto mesmo da fantasia, não estamos diante de uma mera

reticência do sujeito, e sim diante de uma falta das palavras e do saber. “Batem em

uma criança” é o título do trabalho de Freud, mas quando ele introduz a frase

completa, tal como o paciente a enuncia, vemos que é assim: “Não sei mais, batem

em uma criança”. Esse “Não sei mais” é também muito importante, e corresponde

ao que se escreve como S (A). “Não sei mais”; em uma falta do saber se aloja esse

resto simbólico, totalmente resistente, que é o axioma fantasmático (...)

Fundamentalmente, é algo posto ao princípio (...) A fantasia fundamental, para

Lacan, está ligada a uma significação absoluta. Uma separação descolada,

separada de tudo. A significação de “batem em uma criança” não tem motivação

anterior e é, em si mesma, um começo absoluto (...) (Miller, 2002, p. 135-136).

Essa articulação é paradoxal em Lacan, pois relaciona dois elementos essencialmente diferentes em suas estruturas.

(34)

(...)Objeto do desejo do Outro, destacando, especificando, um gozo para sempre

indizível, desembocando, Lacan nos diz, em quatro configurações, quatro objetos

topológicos que delimitam um furo, quatro objetos ‘a’ que a clínica revela: o seio, as

fezes, a voz e o olhar, real de um gozo do qual temos apenas o rastro nas diferentes

imaginarizações dos objetos de substituição: objetos dos roteiros dos sonhos e

devaneios, objetos fetichizados da vida erótica (...) (Tyszler, 2007, p. 102).

Diante de sua relação com o desejo, pode-se dizer que a fantasia nos mostra a própria direção desejante; tendo em sua face defensiva, uma tentativa de mascarar o real do desejo, em seu aspecto impossível e desprazeroso.

Uma consideração importante feita por Tyszler (2007) revela que a dimensão do olhar, especular está sempre presente no fantasma.

Tem-se que

Há um ponto do real que escapa ao sentido e à representação, trata-se do dejeto da

operação pela qual o sujeito privilegiou tal gozo do Outro. Ele se fez boca, merda,

olhar ou voz de um gozo que o envolveu como o plano projetivo, de um gozo do qual

ele não se destacou, mas que ele não pode perceber (que ele não pode imaginar, ao

qual ele não pode dar sentido, ao qual ele não pode dar imagem). Esse objeto, esse

resíduo, é a matemática do sujeito; ele faz furo em toda enunciação, toda inclinação,

toda tentativa mesmo intelectualizada; em uma palavra, tudo que numa vida tem

peso de realidade desejante (Tyszler, 2007, p. 107).

(35)
(36)

Gozo: de Freud a Lacan

Freud não estabeleceu o conceito de gozo (Genuss) em sua obra. Utilizou, contudo, a noção de prazer (Lust). Apesar disso, em seus casos clínicos, é possível apreciar indicações da operatividade do gozo. É bem verdade que, para ele, o gozo é um vocábulo, mas não um conceito. Freud não operou com ele em sua teoria.

Considerou-se relevante retomar alguns conceitos antes de prosseguir com a temática do gozo. Optou-se por fazer uma retomada de alguns termos encontrados em Freud, a fim de esclarecer algumas terminologias.

2.1 Os termos Wunsch e Lust

De acordo com Hanns (1996), o termo Wunsch pode ser traduzido por ‘desejo’. Contudo, tem-se que o termo, em alemão, designa algo mais específico. Refere-se ao que é almejado, idealizado. No que diz respeito ao imediato, ao querer, as palavras Lust (vontade) e Wille (querer) são mais utilizadas.

Na obra freudiana, Wunsch articula-se muito à ordem representacional, diferenciando-se de Lust (vontade, desejo, prazer) e de Begierde (desejo intenso), ou seja, Wunsch circula nas regiões do pensamento, do sonho, da fantasia, do imaginado, do alucinado, da loucura (Hanns, 1996).

(37)

segundo, traz uma idéia de satisfação da necessidade para que o sujeito não entre em sofrimento.

A pulsão (...) é inquietante e aguilhoa o sujeito, necessitando ser apaziguada; sua

meta é obter o prazer (Lust), desconsiderando qualquer mediação. Sua expressão

mais imediata é a Lust (desejo-vontade e sensações de prazer). Sendo uma

manifestação mais direta do Trieb, o qual desconsidera a realidade, a Lust

constitui-se numa “tendência”ou “vontade” e não propriamente num “deconstitui-sejo. Expressa uma

verdade do corpo de forma direta, quase sem mediação do objeto (...) Enquanto Lust

é de cunho mais auto-erótico, o Wunsch se dirige a um objeto investido e imaginado,

o qual faz a triangulação entre o Wunsch e a Lust (Hanns, 1996, pp. 143-144).

O termo Lust (vontade/desejo/prazer) diverge, assim, de Wunsch (desejo), de Begierde (“fissura”), Genuβ (fruição, prazer) e do termo ‘gozo’ (no sentido do pico de prazer, orgasmo).

(38)

O prazer de Lust é diferente de gozo, no sentido de que gozo pode significar um

ápice, um orgasmo, enquanto Lust enfatiza mais o processo e a sensação de “ser

afetado/estimulado/sensibilizado corporalmente nas suas sensações”. Também é

diverso da palavra “prazer”, a qual pode descrever uma fruição plena e desdobrada

de certas sensações. A Lust permanece ligada à fronteira entre a disposição

(vontade), o “prazer antecipatório” e as sensações que começam a brotar (Hanns,

1996, p. 149).

2.2 O Gozo em Freud

Em sua obra, o termo Genuss comparece no caso clínico do Homem dos Ratos (1909) em que o relato do suplício dos ratos é marcado por uma expressão de intenso prazer, no auge do horror. Outro momento, é na experiência do fort-da, ao observar o seu neto; é como se ele sentisse na dor desse par presença-ausência, uma espécie de prazer. Há outro episódio importante que se pode notar a expressão desse júbilo na obra freudiana. Trata-se do caso Schreber (1911) e sua transformação em um corpo feminino – emasculação.

(39)

É verdade que a pulsão se constitui a partir da necessidade, antes de destacar-se

dela, de modo que, por exemplo, o prazer de comer pode ter como efeito em retorno

uma erotização da necessidade, que pode ser assim profundamente perturbada

(Valas, 2001, p. 19).

A experiência clínica, como anteriormente citada, demonstra algumas tensões já vividas com intenso prazer, entrando em choque com a proposta inicial freudiana do funcionamento do aparelho psíquico. Freud percebe isso e desfaz o paralelismo direto prazer/rebaixamento de tensão e desprazer/tensão. Isso será retomado em seu artigo Além do princípio de prazer (1920).

2.2.1 As Contribuições de “Além do Princípio do Prazer” (1920)

“Além do Princípio do Prazer” (1920) é um texto de suma importância na obra psicanalítica. É um texto que vai, pela primeira vez, apresentar o conceito de pulsão de morte e natureza pulsional da compulsão à repetição. Refere-se a este último como sendo um fenômeno que comparece nas experiências infantis e no trabalho de análise; atribuindo à mesma, conforme mencionado, a qualidade de pulsão. É, também, neste artigo que Freud vai diferenciar a pulsão de vida (Eros) da pulsão de morte, embora seja somente em 1923, em seu texto “O Eu e o Isso” que esta distinção fique melhor consolidada e argumentada.

(40)

Ao longo do desenvolvimento de sua obra metapsicológica, Freud deixa claro o princípio do prazer como regulador dos processos psíquicos. Parte-se da idéia que a cada vez que há acúmulo de energia, a tensão no aparelho aumenta e, como reação, o aparelho busca diminuir essa retenção, evitando o desprazer e alcançar o prazer. Neste sentido, pode-se perceber a característica econômica que este sistema engendra.

O prazer e o desprazer estariam associados ao quantum de excitação presente no psiquismo, sendo o primeiro caracterizado pela diminuição e o segundo, pelo aumento de tensão no aparelho. Freud coloca que, muito provavelmente, a sensação prazerosa, ou não, deriva do nível, da magnitude, ou seja, de quanto esse nível aumentou ou diminuiu num dado período de tempo. O aparelho, dessa forma, se manteria numa tendência de reduzir a tensão ou deixá-la num nível constante.

(...) se o trabalho do aparelho psíquico visa a manter a quantidade de excitação em

nível baixo, então tudo aquilo que for suscetível de aumentá-la será necessariamente

sentido como adverso ao funcionamento do aparelho, isto é, como desprazeroso. O

princípio de prazer deriva do princípio de constância (...) (Freud, 1920, p. 136).

(41)

É interessante ressaltar que o princípio do prazer segue um modo de funcionamento primitivo no aparelho psíquico denominado processo primário. Seria muito complicado supor que esse funcionamento estaria de acordo com as exigências da realidade. O que ocorre é que

(...) ante as dificuldades do mundo exterior, o princípio de prazer desde o início

revela-se ineficiente e um perigo para a necessidade de o organismo impor-se ao

ambiente. Assim, ao longo do desenvolvimento, as pulsões de autoconservação do

Eu acabam por conseguir que o princípio de prazer seja substituído pelo princípio

de realidade. Entretanto, o princípio de realidade não abandona o propósito de

obtenção final de prazer, mas exige e consegue impor ao prazer um longo desvio que

implica a postergação de uma satisfação imediata, bem como a renúncia às diversas

possibilidades de consegui-la, e a tolerância provisória ao desprazer. No entanto, o

princípio de prazer continua sendo ainda por muito tempo o modo de trabalhar

próprio das pulsões sexuais, as quais são mais dificilmente “educáveis”. Assim,

sempre volta a ocorrer que, a partir das pulsões sexuais ou a partir do próprio Eu, o

princípio de prazer consegue sobrepor-se ao princípio de realidade (...) (Freud,

1920, p. 137).

É bem verdade que não se pode atribuir a esta substituição (princípio do prazer pelo princípio da realidade) todas aquelas vivências desprazerosas e insatisfatórias. De acordo com Freud (1920), os próprios conflitos do Eu promovem a liberação do desprazer.

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insuportável e que poderia ocasionar danos ao aparelho. Essa separação se daria pelo processo do recalque, mantendo em níveis inferiores esse material intolerável. A princípio, essas pulsões ficariam impossibilitadas de alcançar suas metas, ou seja, a satisfação.

Entretanto, caso consigam (...) pelejar até chegarem por desvios diversos a obter

uma satisfação direta ou ao menos uma satisfação substitutiva, esse resultado, que

normalmente teria sido uma possibilidade de sentir prazer, será sentido pelo Eu

como desprazer (...) Em conseqüência de um antigo conflito psíquico que acabou

por resultar em um recalque, o princípio de prazer volta a sofrer uma nova ruptura

quando certas pulsões, justamente na obediência a esse princípio, tentavam obter

novamente prazer (...) Não há dúvida de que todo prazer neurótico é dessa espécie:

um prazer que não pode ser sentido como tal (Freud, 1920, p. 138).

Neste artigo, Freud tenta elucidar como se dariam os fenômenos oníricos daqueles que sofrem de neurose traumática. Com muita freqüência, esses indivíduos sonham com o evento traumática, com o acidente para, logo em seguida, despertar assustado e, muitas vezes, angustiado.

Freud (1920) acrescenta que essa vivencia traumática, devido sua intensidade, sempre retorna ao sujeito, sendo em sua vida corriqueira ou em suas produções oníricas. Ele, segundo o autor, estaria fixado no trauma; o que pode, também, ocorrer na histeria. De acordo com ele, os histéricos sofrem de reminiscências (Freud, 1893).

(43)

e que, em estado de vigília, esses indivíduos não despendem de seu tempo para retomar essas vivências traumáticas. O autor, numa tentativa explicativa, supõe tendências masoquistas inerentes ao Eu.

Em 1924, em seu texto “O Problema Econômico do Masoquismo”, Freud trará uma discussão significativa sobre o fenômeno do masoquismo. Em artigos anteriores tais como, “Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade(1905), “Pulsões e suas Vicissitudes” (1915) e “Bate-se numa Criança” (1919), o masoquismo é tido como uma conseqüência de um sadismo anterior; não se considera ainda a idéia de um masoquismo primário. Esta noção vai ser esboçada a partir do conceito de pulsão de morte debatido em seu artigo “Além do Princípio do Prazer” (1920). É importante afirmar que se nesse momento anterior havia um esqueleto desse masoquismo primário e, neste artigo de 1924, isso vai ser tomado como certo.

A idéia de um masoquismo inicial é fundamentada na “fusão” e “defusão” das duas classes de pulsão: pulsão de vida e pulsão de morte. Neste intuito, o autor demonstra que esse masoquismo erógeno conduz a duas possibilidades: uma delas pode ser chamada de “feminina” e uma outra que pode ser denominada de “masoquismo moral”.

(44)

Nesse contexto, a função do princípio de Nirvana seria a de advertir contra as

reivindicações das pulsões de vida – isto é, da libido – que insistem em interferir no

intencionado curso da vida. No entanto, agora essa afirmação nos parece

necessariamente equivocada. Tudo indica que os aumentos e as diminuições das

magnitudes de estimulação são diretamente percebidos como uma seqüência de

sensações de tensão e obviamente há tensões que são sentidas como prazerosas, bem

como distensões percebidas como desprazerosas (...) Tivemos de nos dar conta de

que, no curso do desenvolvimento dos seres vivos, houve uma modificação que

transformou o princípio de Nirvana, associado à pulsão de morte, no princípio de

prazer. Portanto, a partir de agora não mais consideraremos o princípio de Nirvana

e o princípio de prazer como uma mesma coisa (Freud, 1924, p. 106).

Tem-se, neste sentido, que o princípio de Nirvana revela a tendência da pulsão de morte; o princípio de prazer representa a sua mudança em reivindicação libidinal e, por fim, o princípio de realidade, a influência externa. Eles, é bem verdade, não se destituem entre si; eles, pelo contrário, convivem juntamente, apesar dos conflitos, por vezes, serem inevitáveis, já que uma parte leva em consideração a redução quantitativa da excitação, outra parte, a qualidade da diminuição dessa carga e, uma terceira, um adiamento do escoamento das excitações acumuladas, exigindo uma aceitação temporária da tensão ocasionada pelo desprazer (Freud, 1924).

(45)

situação tipicamente feminina, isto é, ser castrado, objeto de coito ou dar à luz. E, é justamente, no momento de culpa no masoquismo feminino que deriva o masoquismo moral. É importante reafirmar que o masoquismo feminino é fundamentado pelo masoquismo primário.

A função de exercer a moralidade e a consciência moral está sob os encargos do supereu, instância herdeira do complexo de Édipo.

Ocorre que, ao longo do tempo, as pessoas que deixaram de ser objeto das moções

libidinosas do Id passaram a atuar no supereu como instância da consciência moral.

Contudo, elas pertencem ao mundo real externo do qual, aliás, foram extraídas.

Portanto, o poder dessas pessoas – atrás do qual se escondem todas as influencias

do passado e da tradição – foi outrora para a criança uma das manifestações da

realidade mais perceptíveis. Assim, é graças a essa coincidência que o supereu,

substituto do complexo de Édipo, pode também se tornar o representante do mundo

real externo e, portanto, um modelo a ser seguido pelos esforços do eu” (Freud,

1924, p. 112-113).

No final do artigo, Freud (1924) vai fazer uma afirmação fundamental que revela que mesmo no processo destrutivo há um quantum de satisfação pulsional e libidinal.

Depois das considerações sobre o masoquismo, voltemos às questões suscitadas no texto de 1920 – “Além do Princípio do Prazer”.

(46)

A criança estava segurando um carretel de madeira enrolado com um cordão (...)

atirava o carretel amarrado no cordão com grande destreza para o alto, de modo

que caísse por cima da beirada de seu berço cortinado, onde o objeto desaparecia

de sua visão, ao mesmo tempo que pronunciava seu ‘o-o-o-o’ significativo; depois,

puxava o carretel pelo cordão de novo para fora da cama e saudava agora seu

aparecimento com um alegre ‘da’ (Freud, 1920, p. 141).

Freud interpretou esse joguete com a renúncia pulsional que a criança conseguiu alcançar – renúncia a satisfação pulsional, por permitir que o Outro se retirasse e, em seu lugar, pudesse brincar de fazer “aparecer e desaparecer”. É importante notar que o fort-da traz, em si mesmo, uma experiência que fora desprazerosa para criança – desaparecimento do Outro (‘fort’); apesar do brincar possibilitar o “retorno”, o aparecimento do Outro (‘da’). Freud nota que apenas um ganho de prazer poderia justificar essa brincadeira. Desta maneira, ao repetir a vivência desprazerosa no joguete, haveria um ganho prazeroso, uma satisfação que seria de outra ordem e, ao mesmo tempo, vinculado a esse modelo de repetição.

(47)

Neste sentido,

(...) surge a questão de como se estabelece a relação do princípio de prazer com a

compulsão à repetição, que é a manifestação da força do recalcado. É claro que

quase tudo que a compulsão à repetição consegue fazer o paciente reviver outra vez

causa muito desprazer ao Eu, pois nesse processo as atividades de moções

pulsionais recalcadas são expostas. Mas (...) trata-se de um desprazer que não

contradiz o princípio de prazer, pois é ao mesmo tempo desprazer para um sistema e

prazer para outro (Freud, 1920, p. 145).

Outro ponto importante é que a qualidade de conservação das pulsões induz a busca por um estado inorgânico primevo. Ao se pensar que tudo o que está vivo retorna, em algum momento, ao inorgânico – morte – é possível afirmar que : “o objetivo de toda vida é a morte (...) O inanimado já existia antes do vivo (...) Essas pulsões que preservam a vida na verdade foram originalmente serviçais da morte (Freud, 1920, p. 161 - 162).

(48)

A pulsão traz consigo a marca da repetição. Ela é o que se repete. É importante dizer que não se trata de repetição do mesmo, mas sempre de uma produção, algo do acaso, que traz o novo, a criação e que implica em incitação de diferença (Roza, 2004). Neste sentido, o autor recusa a idéia da pulsão de morte como uma tendência à repetição. É possível encará-la como uma vontade de destruição, não implicando a agressividade – mesmo que esta possa ser um efeito da primeira. Deve-se entender que isso não implica uma noção de maldade ou crueldade.

A aceitação de uma destrutividade autônoma, não derivada da sexualidade ou não

ligada a ela, era de difícil aceitação por parte de Freud (...) O verdadeiro além do

princípio do prazer vamos encontrar (...) exposto em O Mal-estar na Cultura, sob a

afirmação da plena autonomia da pulsão de morte entendida como pulsão de

destruição (Roza, 2004, p. 133).

(49)

Essa onipresença da destrutividade custava Freud reconhecê-la. Ou melhor, não era

tanto a sua onipresença que provocava a resistência de Freud, mas, acima de tudo,

sua autonomia. Reconhecer uma pulsão destrutiva como algo totalmente

independente da sexualidade, era reconhecer a maldade fundamental e irredutível

do ser humano. Não se trata mais de uma sexualidade que, regida pelo princípio do

prazer, lança mão da agressividade para atingir seu objetivo, mas sim de uma

disposição pulsional autônoma, originária, do ser humano (Roza, 2004, p. 134).

Ainda segundo Roza (2004), a pulsão de morte seria, para Lacan, anti-natural, enquanto que anti-cultural, de acordo com a concepção freudiana. Isto não significa afirmar que seu alvo era a destruição da natureza ou da cultura, mas sim no sentido de questionar ambas, de recusar-se à insistência do mesmo, ou seja, de instigar tanto nas formas naturais como culturais a emergência de novas produções e criações. De acordo com as noções trazidas por Lacan, a pulsão deteria uma dimensão histórica. Em si mesma, a pulsão estaria na posição do a-histórico. Contudo, é fundamental pensar que a pulsão só é considerada como tal devido ao simbólico. Para que seja apreendida numa dada rememoração fundamental, é necessária a cadeia significante, na qual esta rememoração é viável. Ao ser capturada pela cadeia significante, a pulsão alcança sua dimensão histórica. É importante mencionar que aquilo que não é capturado mantém-se como potência dispersa, indeterminado e não- memorável.

(50)

a não-união, advinda do Eros. Por assim dizer, tem-se que a cultura marca a presença de Eros, enquanto uma tentativa de reunião de indivíduos, anulando-se as diferenças e constituindo uma totalidade que é a própria humanidade. A singularidade particular seria “reduzida” à humanidade totalizante.

Ora, se entendermos o desejo como pura diferença, o projeto de Eros seria o da

eliminação da diferença e, portanto, do desejo, numa indiferenciação final que é a

humanidade. A pulsão de morte, enquanto potência destrutiva (e princípio

disjuntivo) é o que impede a repetição do mesmo, isto é, a permanência de

totalidades, provocando pela disjunção a emergência de novas formas. Ela é,

portanto, criadora e não conservadora, posto que impõe novos começos ao invés de

reproduzir o ‘mesmo’. A verdadeira morte – a morte do desejo, da diferença –

sobrevém por efeito de Eros e não da pulsão de morte (Roza, 2004, p. 136-7).

Por fim, tem-se que não tendo objeto próprio, o objeto será ofertado pela fantasia; isto implica afirmar que a caracterização do sexual só é possível via articulação significante e a submissão pulsional. “Anteriormente a essa submissão, o sexual carece de significado. É em termos de significantes que o sexual vai se constituir como diferença. Não há pulsão sexual. A sexualidade constitui-se a partir da captura das pulsões pela rede significante” (Roza, 2004, p. 144).

(51)

A pulsão recalcada jamais renuncia à sua completa satisfação, a qual consiste na

repetição de uma experiência primária de satisfação. Todas as formações

substitutivas ou reativas, bem como as sublimações, são insuficientes para remover

sua tensão contínua. É da diferença entre prazer efetivo obtido pela satisfação e o

prazer esperado que surge o fator impelente que não vai permitir ao organismo

estacionar em nenhuma das situações estabelecidas, mas ao contrário, (...)

‘indomado, sempre impele para adiante’ (Freud, 1920, p. 165).

Um aspecto importante a se pensar são as formações do inconsciente e o retorno do recalcado. Sendo o sintoma um exemplo, tem-se que não se trata apenas de um desejo inconsciente que fora recalcado, mas, também, de um quantum de satisfação na manutenção desse sintoma. Este traz em sua essência, tanto o prazer como o desprazer. De fato, na clínica, o sujeito comparece enredado em seus sintomas, dividido entre a ambição de livra-se e as dificuldades encontradas para tal. Isso está ligado ao aspecto inconsciente do sintoma e ao próprio trabalho do recalque que, em linhas gerais, busca afastar o desprazer. É possível afirmar que o quantum de prazer estaria relacionado, justamente, com a satisfação da pulsão e a realização parcial do desejo, nesse retorno do recalcado.

Há, na vida psíquica,

(...) uma tendência à repetição, uma tendência cuja pulsação se afirma sem levar

em conta o princípio de prazer, situando-se acima dele, impondo o sujeito a prova

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de que os instintos de morte possam ser obstáculo para o princípio de prazer,

manifestando-se por fenômenos repetitivos que geram o prazer na dor, leva Freud a

encara a existência de um masoquismo primário (...) (Valas, 2001, pp. 23 - 24).

2.3 Do indizível ao submetimento à Lei do desejo

Na teoria freudiana, a neurose está marcada na vivência passiva do infans no encontro com o sexual, com a sedução vinda de um outro5. A criança tem esse registro da irrupção do real sexual. Essa lembrança provoca uma elevação da tensão que não consegue ser descarregada. Dessa maneira, essa lembrança não se acopla ao sistema de representações. Trata-se de uma lembrança traumática que é vivenciada como uma ameaça a integridade do eu.

“É assim que a lembrança se torna traumatismo, ao mesmo tempo ferida e arma ferina que não se pode tolerar; dor e tortura de uma memória inconciliáveis com o eu (...) O sujeito (...) separa-se horrorizado dessa lembrança” (Braunstein, 2007, p. 21). De fato, o recalque traz consigo um afastamento; o que há de ser lembrado é que esse afastamento é parcial, já que o trauma não desaparece ou é esquecido, mas, pelo contrário, é eternizado.

O que ocorre é que o eu tem em si mesmo um inimigo; o desencadeante de situações inesperadas e indesejadas se colocado em liberdade. No entanto, para mantê-lo em cárcere, é necessário um dispêndio de energia e uma eterna luta contra esse material que insiste em querer fugir - o que acontece quando as defesas falham. O eu vira escravo de daquele conteúdo que ele próprio aprisionou. O traumático que antes era a experiência introduzida pelo Outro, passa a ser a lembrança em si.

Referências

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