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Vista do REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS E INCLUSÃO ESCOLAR NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM BIBLIOTECA

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REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS E INCLUSÃO ESCOLAR NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM BIBLIOTECA

EVERYDAY REPRESENTATIONS AND SCHOOL INCLUSION IN THE SUPERVISED INTERNSHIP IN LIBRARY

Maria Aparecida Rodrigues de Souza1 Maria Aparecida de Castro2 Maria Angélica Peixoto3

Resumo: Objetiva-se com o artigo, a luz das representações cotidianas de um estudante com deficiência intelectual, relatar e refletir sobre as atividades desenvolvidas durante o estágio supervisionado, ocorrido na Biblioteca de um dos Institutos da Rede Federal de Educação Profissional Tecnológica. A teoria das representações cotidianas forneceu a base metodológica e analítica que contribuiu no sentido de compreender o indivíduo e suas representações, o que possibilitou um entendimento mais profundo de suas dificuldades concretas e sua interpretação, com seus efeitos, sobre a instituição escolar e os obstáculos encontrados por ele. A metodologia de pesquisa utilizada foi a entrevista interpretativa e observação relacional. Na sociedade da informação e do conhecimento, as bibliotecas, naturalmente, agregam aparatos tecnológicos para dar acessibilidade às pessoas à informação e apropriação do conhecimento. As bibliotecas contam com laboratórios de informática, acervo digital e equipamentos de informática para gerenciamento de acervo e de usuários, e principalmente com equipe de multiprofissionais no atendimento ao público. Nesse sentido, a biblioteca e o estagiário da área da Ciência da Computação ganham mutuamente com a prática do estágio curricular supervisionado. Ao receber um estagiário com deficiência intelectual a biblioteca passou a ser um espaço de inclusão, de flexibilização de prática pedagógica e acolhimento concretizado num processo bilateral no qual excluídos e a sociedade buscam, em parceria, efetivar a equiparação de oportunidades para todos e todas, construindo uma sociedade mais democrática, diversa, que busca a inclusão e reconhecimento político das diferenças. Conclui-se que o conhecimento adquirido em sala de aula e posto em prática no ambiente da biblioteca durante o estágio supervisionado propiciou, por meio da tutoria de pares, que os estudantes fossem agentes pró-ativos nas suas realidades com o propósito de transformação dessa e conquista de plena participação e inclusão social. A socialização da experiência de supervisão de estágio de um estudante com deficiência intelectual em biblioteca, no contexto da educação profissional da rede federal, oportuniza reflexões aos Núcleos de Acessibilidade acerca da possibilidade de implementação de procedimentos metodológicos e pedagógicos na inclusão escolar.

Palavras-chave: Inclusão. Deficiência intelectual. Estágio Supervisionado. Tutoria entre pares.

Representações Cotidianas.

Abstract: The objective of the article, in the light of the everyday representations of a student with intellectual disability, is to report and reflect on the activities developed during the supervised internship, which took place in the Library of one of the Institutes of the Federal Network for Technological Professional Education. The theory of everyday representations provided the methodological and analytical basis that contributed towards understanding the individual and their representations, which enabled a deeper understanding of their concrete difficulties and their interpretation, with their effects,

1 Doutora em Educação/USC, bibliotecária-documentalista/IFG, maria.souza@ifg.edu.br.

2 Doutora em Ciência da Religião/PUC, bibliotecária aposentada/IFG, mar.apareci.c@gmail.com.

3 Doutora em Ciências Sociais/UFG, Professora/IFG, maria.peixoto@ifg.edu.br.

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on the school institution and the obstacles encountered. by him. The research methodology used was the interpretive interview and relational observation. In the information and knowledge society, libraries naturally add technological devices to give people access to information and knowledge appropriation.

The libraries have computer labs, digital collection and computer equipment for managing the collection and users, and especially with a multi-professional team serving the public. In this sense, the library and the intern in the area of Computer Science gain mutually with the practice of supervised curricular internship. By receiving an intern with an intellectual disability, the library became a space for inclusion, flexibility of pedagogical practice and reception implemented in a bilateral process in which the excluded and society seek, in partnership, to effect the equalization of opportunities for everyone, building a more democratic, diverse society that seeks inclusion and political recognition of differences. It is concluded that the knowledge acquired in the classroom and put into practice in the library environment during the supervised internship provided, through peer tutoring, that students were proactive agents in their realities with the purpose of transforming this and achievement of full participation and social inclusion.

The socialization of the experience of supervising the internship of a student with intellectual disabilities in a library, in the context of professional education in the federal network, provides opportunities for reflections to the Accessibility Centers about the possibility of implementing methodological and pedagogical procedures in school inclusion.

Keywords: Inclusion. Intellectual disability. Supervised internship. Peer tutoring. Everyday Representations.

Introdução

Este artigo deriva do desenvolvimento de uma pesquisa em representações cotidianas de um estudante de ensino superior com necessidades educacionais específicas e de seu desenvolvimento durante o estágio supervisionado na área da Ciência da Computação realizada em uma biblioteca de um dos Institutos da Rede Federal de Educação, Ciência e Tecnologia. O referido estágio envolveu dois estudantes, um deles com deficiência intelectual (DI).

A oferta de duas vagas para o estágio possibilitou a aplicação da tutoria de pares.

Esta metodologia permitiria às supervisoras do estágio perceber a complexidade que há nas relações humanas e convívio social. Ambos estagiários foram supervisionados por duas bibliotecárias-documentalistas e orientados por uma docente da área de Informática.

O estágio curricular, no caso em estudo, visa ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional, objetivando o desenvolvimento do estudante para o trabalho, previsto no Edital 004/2019 de processo simplificado para seleção de estágio curricular. Então apresentamos a questão: Como coadunar os objetivos do estágio supervisionado com as necessidades de um estudante com DI?

No Edital 004/2019 foram previstas atividades relacionadas à área da Ciência da Computação pertinente às competências trabalhadas nas disciplinas ofertadas no

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Curso Sistemas de Informação, bem como descrita a carga horária e o prazo de execução do estágio. A duração do estágio do estudante com necessidades educacionais específicas foi superior ao período previsto e algumas atividades foram redimensionadas, conforme suas habilidades desveladas ao longo da supervisão.

Fundamentação teórica

Os direitos da pessoa com deficiência a educação, cultura e lazer são garantidos pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015). Em seu Art. 2º:

Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2015).

A pessoa com DI, segundo a Lei Nº 13.146/2015, são afetadas por barreiras físicas e de convívio que impedem seu desenvolvimento humano e acadêmico.

Buscando contribuir com a teoria e prática dos estudantes na área de Tecnologia da Informação, em diálogo com as concepções da inclusão escolar, a biblioteca de um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás abriu campo para estágio supervisionado na área da Ciência da Computação. Foi oferecida uma vaga por meio do Edital de processo simplificado para seleção de estágio curricular. Neste Edital, um dos critérios de avaliação para seleção o estudante portador de necessidades educacionais (PNE) teria direito prioritário, em observância a Lei Nº 13.146/2015. Atendendo aos critérios pré-estabelecidos no Edital foi selecionado um estudante do Curso Superior em Sistemas de Informação com DI.

A execução do estágio pelo estudante com DI se apresentou como um desafio para a prática do estágio supervisionado, por sua idiossincrasia que foge à, entre aspas, normalidade. Ante este desafio, recorremos ao acolhimento fraterno, ao afeto, preconizado pela psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999), uma precursora da luta antimanicomial no Brasil, que usou o afeto e a liberdade como força motora de seus estudos e sua ferramenta de trabalho.

Lavor (2021), destaca o poder da resistência de Nise da Silveira, que enfrentou o cenário adverso de sua época e conseguiu se impor, diante do higienismo e do

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controle, como uma voz pioneira e dissonante, que trouxe o afeto à terapêutica e entendeu a importância das imagens para compreensão do inconsciente.

Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), as principais causas das deficiências tanto intelectuais, quanto físicas no Brasil são a nutrição inadequada de mães e crianças, doenças infecciosas, acidentes e acontecimentos anormais nas fases pré-natais e pós-natais e problemas sociais, violência, acidentes, baixo nível socioeconômico, falta de conhecimentos, uso de drogas, exclusão e abandono social. A DI não é considerada uma doença ou um transtorno psiquiátrico, e sim um ou mais fatores que causam prejuízo das funções cognitivas (HONORA;

FRIZANCO, 2008).

Neste contexto, torna-se importante a análise das representações cotidianas, pois sua compreensão aponta para entender melhor os agentes envolvidos nesse processo (pessoas com DI, professores, especialistas, funcionários, entre outros). A análise das representações cotidianas é importante para compreender elementos da consciência manifestados pela população em sua vida cotidiana. Isso inclui tanto a maioria da população que não é especialista no trabalho intelectual (cientistas, técnicos, artistas, entre outros) quanto esses referidos especialistas (que em sua área de formação buscam ultrapassar as representações cotidianas, mas que fora dessas áreas também reproduzem tais representações) e os especialistas em trabalho intelectual fora de sua especialidade.

Todos nós desenvolvemos representações cotidianas sobre os mais diversos fenômenos que não pesquisamos. O entendimento das representações cotidianas é importante para a compreensão sobre nossas decisões diárias na vida cotidiana, a posição e ação política da maioria da população, a impressão sobre os mais variados fenômenos sociais que geram ação. As representações cotidianas são mobilizadoras, bem como as outras formas de consciência, mas são mais presentes na cotidianidade.

São, igualmente importantes, para entender indivíduos e grupos e suas decisões e ações, tanto sobre questões sociais mais gerais quanto mais específicas.

Nesse contexto, as representações cotidianas dos indivíduos ajudam a entender não só como observam aspectos da realidade e o mundo circundante, mas também suas ações, sendo que representações e ações são indissoluvelmente ligadas. As representações cotidianas são o que alguns autores denominaram “senso comum”

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(BACHELARD, 1972; DURKHEIM, 1978) ou, ainda, “representações sociais”

(MOSCOVICI, 1978), “representações coletivas” (DURKHEIM, 2005).

Porém, a teoria das representações cotidianas se distingue das concepções acerca do “senso comum”, em suas várias formas de manifestação (VIANA, 2008). Ao contrário do que pensam aqueles que abordam o senso comum como pensamento falso, contraditório, confuso, ou aqueles que julgam que ele é verdadeiro, a teoria das representações cotidianas aponta para as duas possibilidades. As representações cotidianas podem ser falsas ou verdadeiras e é através da análise de determinada manifestação concreta delas que se pode saber se estão equivocadas ou não.

As representações cotidianas são, por conseguinte, as representações que os indivíduos produzem sobre a realidade ou aspectos dela, podendo ser falsas ou verdadeiras, e que se caracterizam por reproduzirem a cotidianidade em sua percepção do real: a simplificação, a naturalização e regularização (Viana, 2008;

2015). Assim, elas existem na vida cotidiana e devem responder sua imediaticidade e por isso são perpassadas pela simplificação, pois não é possível realizar grandes reflexões sobre todas as demandas diárias, assim como pela naturalização e regularização, que são complementares e exigência das relações sociais. As representações cotidianas, formalmente, carregam em si convicções e opiniões (VIANA, 2008; VIANA, 2015).

As convicções são os valores fundamentais, os sentimentos profundos e concepções mais arraigadas criadas pelos indivíduos e que são determinantes nas consciências individuais, convivendo com opiniões, ideias volúveis que se alteram de acordo com as correntes de opinião, meios oligopolistas de comunicação, discursos científicos ou técnicos etc.

No capitalismo, as representações cotidianas acabam reproduzindo os elementos da sociabilidade gerada por tal sociedade. O elemento determinante da cotidianidade é a sociabilidade capitalista, marcada pela burocratização, mercantilização e competição social (VIANA, 2008; VIANA, 2015). Esses elementos apontam para a constituição de uma mentalidade dominante que gera convicções marcadas pela simplificação, naturalização e regularização das relações sociais mercantis, burocráticas e competitivas. Porém, as representações cotidianas concretas são perpassadas pelo modo de vida específico de cada classe social, pelas demais divisões sociais e posição do indivíduo na sociedade, tanto na divisão de

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classes quanto nas demais relações sociais, além de ter vínculos com tradições, família, e outros elementos específicos do processo histórico de vida dos indivíduos.

Assim, o entendimento das representações cotidianas de um indivíduo remete para a análise de sua história de vida, sua inserção na sociedade, sua origem de classe e familiar, e para compreendê-las é preciso buscar descobrir os seus valores, sentimentos, concepções em geral, bem como as representações sobre determinados fenômenos. A análise das representações cotidianas permite uma percepção mais ampla, global e profunda das representações de indivíduos, grupos, classes, coletividades. Desta forma, a teoria das representações cotidianas é fundamental para analisar como DI percebem a instituição escolar e o ensino, e no caso específico do estágio supervisionado, a pesquisa em representações cotidianas nos auxilia na compreensão das potencialidades e limites do que compõe o processo de desenvolvimento escolar do estagiário.

Procedimentos metodológicos

A metodologia utilizada na pesquisa utilizou os instrumentos apontados pela teoria das representações cotidianas (VIANA, 2008; 2015), especialmente a análise interpretativa de documentos, observação relacional, bem como análise dialética.

Consideramos essa abordagem apropriada por permitir explorar o procedimento pedagógico de tutoria entre pares defendida por Torres (2020).

Nas tutorias entre pares, segundo Torres (2020, p. 2. Tradução nossa), “[...] é preciso educar para conviver e participar a partir do reconhecimento da diferença e da diversidade”. E isso implica um olhar amplo sobre a alteridade e as interações para cultivar estratégias que conduzam pelos caminhos da descoberta, da pesquisa, do aprendizado das experiências humanas, dos vínculos com a vida.

[...] Conceitualmente, a tutoria de pares, em geral, pode ser pensada como um sistema de ensino em que os alunos ajudam-se mutuamente no processo de aprendizagem dos conteúdos acadêmicos. Bowman-Perrott acrescentam que, na tutoria entre pares, os alunos auxiliam uns aos outros a aprender o conteúdo por meio da repetição de conceitos-chave. A tutoria de pares pode, ainda, ser definida como uma série de práticas e estratégias que colocam os pares executando o papel de 'professores' em uma relação do tipo face-a- face, para fornecer particularmente a instrução, a prática, a repetição e o esclarecimento dos conceitos (FERNANDES; COSTA, 2015, p. 40).

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Enxergamos na tutoria entre pares a possibilidade de iguais (nível de formação) ampliar o conhecimento a partir do entendimento do outro, e ao mesmo tempo, na diferença (intelectual) o respeito mútuo e a inclusão escolar.

A formação entre pares no ambiente educacional configura diversidade, é um espaço de diálogos imperfeitos, expressa o lugar da experiência, soa como finitude e, ao mesmo tempo, como esperança. Ou seja, em um determinado tempo e espaço, limitado, contingente, finito, mas também um momento oportuno para o treinamento (TORRES, 2020, p. 13. Tradução nossa).

Além de aplicar o método da teoria de tutoria entre pares, foi utilizado um trabalho de mediação das bibliotecárias com momentos de formação e de interação com toda equipe da biblioteca.

Resultados e discussões de uma prática de formação flexibilizada e adaptação curricular

A formação por meio da tutoria entre pares possibilitou às supervisoras de estágio tornar a biblioteca um lugar de experiência no contexto da inclusão escolar.

Portanto, os estagiários mantiveram seus diálogos no processo de execução das atividades de maneira colaborativa.

Antes de relatar e refletir sobre as atividades desenvolvidas no estágio supervisionado por um estudante com DI, apresentamos a análise das representações cotidianas desse estagiário a partir do estudo de Peixoto (2019).

A análise das representações cotidianas pressupõe um entendimento dos indivíduos que elaboram as representações, seu processo histórico de vida, sua condição de classe e outras características importantes para sua compreensão.

O estagiário entrevistado é um jovem com 28 anos, que faz o curso Sistemas de Informação, na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Ele é um indivíduo oriundo de uma classe social inferior e que vive em condições de grande vulnerabilidade social. A bagagem cultural dos pais é mínima, a mãe é semianalfabeta e o pai não participou de seu desenvolvimento. Suas condições de vida são precárias, pois não tem casa própria, carro, propriedade, e não trabalha, embora afirme ter computador e conexão com a internet.

A biografia do referido jovem é marcada por violência e sofrimento. Ele nasceu na Bahia e viveu vários problemas com os pais, que eram alcoólatras, e por isso foi

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necessário a intervenção do conselho tutelar e sua avó – hoje falecida -- assumiu a sua guarda (atualmente, tal guarda está sob a responsabilidade de sua genitora). Saiu do interior da Bahia e veio para Goiás, em 1993, com menos de um ano de idade.

Hoje tem 28 anos de idade. Passou por cinco (5) escolas públicas diferentes.

A formação cultural do estagiário é precária, o que não é de estranhar, tendo em vista suas condições de vida. Afirma ser católico e frequentar a Igreja. Ao ser questionado sobre política, apenas afirma ter votado em Jair Bolsonaro para presidente. A respeito dos seus valores, afirma que saúde e educação são as coisas mais importantes da vida e reafirma isso ao dizer que seu sonho é se formar em Sistemas de Informação. Certifica que o sentido da vida é “ter uma vida mais longa”.

Ao ser indagado sobre o que mais gosta, garante que é “jogar videogame” e sobre que tipo de arte mais gosta assevera que é “lavar roupa, lavar tênis também e tomar banho”. Depois, quando perguntado sobre qual manifestação artística mais gosta, falou que é desenhar e ao ser indagado novamente reconheceu que é “Monalisa”. A coisa que disse que não gosta é “jogar bola”.

Assim, a bagagem cultural do estudante é bastante restrita4 . A sua formação foi toda em Escola Pública, sua família é desprovida de maior bagagem cultural (mãe semianalfabeta e pai analfabeto), e tem dificuldade de entender certas perguntas, tal como se observa em suas respostas sobre questões de arte. Apresenta formação política restrita e sua preferência eleitoral é, pelo menos nesse caso específico, conservadora.

Revela alguns valores: gosta de videogame e não gosta de jogar bola. Isso significa que prefere atividade que não exige esforço físico ao invés de atividade física.

Outro elemento é se definir como católico e frequentador de igreja. Mas é importante destacar um ponto que não deve ser negligenciado: as relações conflituosas com os colegas. O estagiário já viveu situações de bullying e esse é um dos elementos mais importantes na percepção sobre a escola e que revela uma situação que deve ser comum a inúmeros indivíduos com deficiência intelectual nas instituições escolares.

O bullying gera sofrimento psíquico, insegurança, medo. Ele pode ser identificado

4 Entenda-se por “bagagem cultural” um termo semelhante ao de “capital cultural”, desenvolvido por Bourdieu (BOURDIEU; PASSERON, 1982). No entanto, bagagem cultural é uma concepção mais próxima do marxismo (VIANA, 2018) e que não tem o inconveniente de usar termo oriundo da ciência econômica (“capital”) para tratar de questão extraeconômica.

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como um dos aspectos que mais geram afastamento de deficientes intelectuais da escola.

As dificuldades de aprendizagem são outro motivo para ansiedade e ampliação das dificuldades já existentes. No plano das ações escolares, o acompanhamento psicológico e estrutura adequada para o trabalho dos psicólogos com o estudante se tornou fundamental. Tem se desenvolvido o esforço de uma política institucional de acolhimento dos estudantes com deficiência intelectual, o que tem se mostrado fundamental, mas também com os pares no sentido de diminuir o preconceito, o bullying, as relações conflituosas, embora o alcance disso seja limitado, já que remete para questões sociais e culturais mais amplas. Por fim, a necessidade de acompanhamento especial para os deficientes intelectuais, pois sua maior dificuldade requer maior atenção e processos específicos de ensino. A concretização disso depende tanto de políticas educacionais e recursos quanto de questões internas em cada instituição escolar, no âmbito administrativo e pedagógico. Mas, se limitar apenas às instituições escolares, o alcance e possibilidades de ampliação e melhoramento são bem restritas.

Diante da compreensão mais ampliada das representações cotidianas do estagiário, coube às supervisoras de estágio pensar em estratégias metodológicas que fossem mais adequadas ao desenvolvimento e garantisse um efetivo aprendizado para o estudante. Neste sentido a “tutoria de pares” apresentou-se como uma importante estratégia para o desenvolvimento da prática de estágio supervisionado.

Por “tutoria de pares” entenda-se o processo de ajuda mútua entre pares, processo marcado pela colaboração entre colegas de mesma sala ou não necessariamente de mesma sala.

A análise das representações cotidianas do estagiário mostrou-se de suma importância, pois ajuda a compreender o indivíduo em questão e suas dificuldades. A sua história de vida e suas representações cotidianas mostraram que além da deficiência intelectual, o estagiário teve diversas dificuldades familiares, afetivas, financeiras, e, por conseguinte, possuía uma bagagem cultural limitada (oriunda da bagagem cultural restrita dos pais e condição de classe que dificultava ampliação do mesmo), o que dificulta a inserção nos meios educacionais de qualquer pessoa e, ainda mais, de pessoa com deficiência intelectual. Esse processo histórico de ajuda a explicar suas representações cotidianas e essas, uma vez existentes, pode contribuir

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com a ampliação ou diminuição de suas dificuldades na vida e no processo educacional, pois elas são mobilizadoras.

O elemento mais importante das representações cotidianas é a parte composta pelas convicções. Assim, as diversas perguntas realizadas sobre sua história de vida, suas preferências, etc., visavam descobrir quais são os seus valores fundamentais, sentimentos mais arraigados e concepções mais profundas. O resultado da análise aponta para um indivíduo que tem convicções marcadas pelo conservadorismo (geral e político), predomínio dos valores hegemônicos e retraimento. O conservadorismo e valores hegemônicos apontam para compreender um pouco de suas representações cotidianas e seus objetivos (inclusive com a educação escolar). O retraimento, também oriundo de suas relações sociais - o bullying e outros elementos de suas relações sociais fora da escola - é um resultado de sua experiência de vida e se reflete em suas representações cotidianas, tal como se observa em sua preferência por videogame e não gostar de jogar bola, pois o primeiro pode ser praticado individualmente e sem contato social direto e o segundo pressupõe relações com outros indivíduos de forma direta.

Assim, a história de vida joga luzes para se compreender suas representações cotidianas e essas ajudam a entender as preferências, opções e decisões do indivíduo. Uma vez que o indivíduo desenvolve representações cotidianas, especialmente no âmbito de suas convicções, isso vai afetar a sua vida em geral. Daí a importância da análise das representações cotidianas, o que, no caso aqui tratado, permite não só compreender melhor o indivíduo e suas representações, mas também suas preferências, ações, o que, consequentemente, permite uma percepção mais ampla que é base fundamental para agir em relação ao seu caso. Ao entender as causas de sua dificuldade de inserção no ambiente escolar, como ele reproduz e potencializa isso, como as relações do passado e do presente atuam e reforçam determinadas representações e ações, torna-se possível uma intervenção mais eficaz e profunda, bem como apontar propostas no sentido de minorar ou superar os problemas existentes.

Relatamos, a seguir, as atividades realizadas pelos estagiários durante o período de estágio curricular obrigatório, que se configuraram tutoria entre pares.

O estudo da ferramenta tecnológica Mkahawa Cyber Manager instalada no laboratório de informática da Biblioteca para controle de acesso dos usuários foi uma das

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atividades propostas aos estagiários. As supervisoras ao observarem a habilidade de utilizar tradutor de texto do estagiário com DI elas o incumbiram a traduzir para o português os comandos do software que estava no idioma inglês. No processo de compreensão do que foi traduzido o outro estagiário auxiliou na tentativa de facilitar a operacionalização do programa para cadastro de usuários. A mediação das supervisoras nesse processo foi fundamental para que os estagiários chegassem ao consenso de que a simples tradução do programa não seria suficiente para seu uso e aplicação.

Desse estudo foi necessário organização e participação em reunião com técnico em Tecnologia da Informação da instituição, para ver qual a melhor forma de implementação de um software de gerenciamento do laboratório de informática da biblioteca.

Uma outra atividade que a tutoria em pares contribuiu para o desenvolvimento da pró-atividade do estagiário com DI foi a criação de material de divulgação das atividades culturais da biblioteca nas redes sociais (INSTAGRAM e FACEBOOK).

Para isso, o estagiário com DI contou com o apoio do outro estagiário para inserção de conteúdo no template de divulgação das novas aquisições da Biblioteca utilizando o site CANVA. O material criado em coautoria foi impresso e fixado nos murais do Campus.

Da reunião dos estagiários e com as supervisoras e com um dos autores do The Status Quo of Systems-of-Information Systems para discussão e apropriação do conteúdo sobre revisão sistemática foi o momento de identificação da importância da linguagem e da pesquisa científica, bem como o conhecimento de outras línguas, no caso do idioma inglês. Essa foi mais uma das oportunidades para os estagiários interagirem e desenvolverem a linguagem oral e a negociação de ideias. Um fruto desse estudo sobre revisão sistemática foi sua participação na Semana de Educação, Ciência e Tecnologia, na Semana do Livro e da Biblioteca, na Feira de Ciências e na Semana da Consciência Negra, realizada em sua Instituição, em novembro de 2019, ministrando workshop sobre Bioeconomia. Os estagiários tiveram a oportunidade de apresentar o artigo nos eventos supracitados.

Para desenvolvimento da comunicação escrita as supervisoras do estágio propuseram aos estagiários a participação em oficinas de produção de texto, evento promovido pela Biblioteca. Para registro da oficina os estagiários ficaram incumbidos

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de elaborar, aplicar e tabular o questionário de avaliação da atividade usando planilha eletrônica gerada no Google Forms e compartilhada com a equipe da biblioteca pelo Google Drive.

Ambos os estagiários participavam mensalmente de reuniões com a equipe da biblioteca. O objetivo dessa participação era estabelecer um convívio diário com a equipe e compreender toda dinâmica de trabalho da biblioteca. Essa também foi uma estratégia de aproximação entre pares, entrosamento social e tomada de decisão.

O estagiário com DI demonstrou grande interesse e habilidade com jogos eletrônicos.

Desse interesse demandamos dele a ajuda para montar peças de um xadrez gigante:

pintar, colar e estudo da lógica de como se joga xadrez. Esse trabalho envolveu toda equipe da biblioteca, desde a idealização, confecção e disponibilização do material na Feira de Livros promovida pela Instituição aberta à comunidade.

Os estagiários tiveram a oportunidade de serem atores participando na gravação de um vídeo de divulgação de vagas de estágio na Biblioteca. Isso elevou a autoestima e a inclusão desses jovens.

As habilidades na área de informática de ambos permitiram uma boa comunicação entre eles e a equipe da biblioteca na criação de: infográfico com as fotos de ação de extensão promovida pela Biblioteca; compartilhamento das atividades realizadas com demais estagiários da biblioteca e com supervisoras do estágio utilizando o Google Drive e, por fim, conseguirem concluir o estágio com uma boa desenvoltura.

A estratégia metodológica de tutoria entre pares, a partir das representações cotidianas, fez grande diferença no desempenho do estudante com necessidades educacionais especiais. O convívio com o outro estagiário, colega de curso, que se mostrou bastante acolhedor, aceitando e orientando com paciência e carinho seu colega especial, sempre que solicitado, foi uma grata surpresa para as bibliotecárias supervisoras, esse acabou por se tornar além de um monitor, um amigo do colega com deficiência intelectual.

Conclusões

A biblioteca ao ser campo de estágio supervisionado possibilitou ao estudante com deficiência intelectual e transtorno mental, para além de realizar as atividades

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descritas no edital de estágio curricular, vivenciar a teoria que conseguiu apreender na sala de aula na prática, desenvolvendo a interpessoalidade. Além disso, pode aplicar os conhecimentos de informática nas atividades requisitadas pela instituição concedente, no caso a biblioteca.

O desenvolvimento da linguagem oral, quesito importante na comunicação, na sociabilidade, foi outro ganho para o estagiário. O estagiário colocou em prática conhecimentos na área de informática, como por exemplo: analisar a aplicação e usabilidade de um software nas atividades rotineiras de uma biblioteca; compreender a importância de um software livre para gerenciamento do laboratório de informática;

uso da informática para recuperar a informação com mais rapidez; compartilhar informação utilizando o Google Drive.

Todas essas atividades, foram avaliadas pelas supervisoras do estágio levando em conta a ação do tutor e a especificidade do estagiário considerando suas representações cotidianas, o que permitiu uma compreensão mais profunda dos indivíduos com suas necessidades específicas. A partir da compreensão das representações cotidianas foi possível entender melhor as dificuldades dos estagiários e forneceu elementos para atuação no sentido de tentar remover alguns dos obstáculos para a superação dos seus problemas. Podemos afirmar, que o estagiário com deficiência intelectual e transtorno mental teve um significativo crescimento nas suas relações interpessoais e em certa medida, até mesmo um crescimento teórico, durante o estágio na biblioteca. Sua relação com o colega de curso e com as bibliotecárias nas atividades cotidianas da biblioteca, foi também um ganho para sua vida, em termos de afeto, acolhimento e inclusão social.

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_____. Senso comum, representações sociais e representações cotidianas.

Bauru: Edusc, 2008.

Referências

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