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Pontifícia Universidade Católica De São Paulo PUC-SP

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Academic year: 2022

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Tatiana Rute Pontes Lima

Neoliberalismo e sofrimento psíquico: aspectos da questão da moradia na cidade de São Paulo e no Brasil

Mestrado profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais

São Paulo 2022

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Tatiana Rute Pontes Lima

Neoliberalismo e sofrimento psíquico: aspectos da questão da moradia na cidade de São Paulo e no Brasil

Mestrado profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais

Trabalho Final apresentado à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE PROFISSIONAL em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais, sob a orientação da Profa. Dra. Natália Maria Félix de Souza.

São Paulo 2022

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Ficha Catalográfica

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Tatiana Rute Pontes Lima

Neoliberalismo e sofrimento psíquico: aspectos da questão da moradia na cidade de São Paulo e no Brasil

Trabalho Final apresentado à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE PROFISSIONAL em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais, sob a orientação da Profa. Dra. Natália Maria Félix de Souza.

Data da aprovação: ______/______/______

BANCA EXAMINADORA:

______________________________________________

Profa. Dra. Natália Maria Félix de Souza (Orientadora) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

______________________________________________

Profa. Dra. Cláudia Alvarenga Marconi – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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Profa. Dra. Lara Martim Rodrigues Selis – Universidade Federal de Uberlândia

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Este trabalho não seria possível sem o constante apoio, crença e parceria de Aline Honorato, que escolheu partilhar a vida comigo e enfrentar os desafios da sociedade juntas.

Aline é meu encontro comigo mesma, minha fuga de um mundo que nos assoberba e nos faz acreditar que não somos capazes. Aline é força, potência e resistência e me faz acreditar que podemos encontrar uma saída ao desemparo pelo afeto. Aos nossos filhos de quatro patas Malaquias e Nilo que não estão mais conosco, Panqueca, Amora, Athena, Zaya, Chico e Zarthur. Agradeço, também, ao Guilherme Ramos parceiro de mestrado e fofoqueiro convicto que me acompanhou e apoiou durante os momentos de dúvidas e angústias que é a vida acadêmica. Ao meu eterno pai José Luiz de Campos Salles, meu ponto de tranquilidade e paz, que sempre acreditou em mim e me possibilitou estar onde estou hoje, sem ele não teria tido as oportunidades que tive. À minha mãe Luciana Reggiani Pontes e ao colo sempre disponível nos momentos de ansiedade. À Natalia Maria Félix de Souza que me orientou sempre pacientemente.

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Resumo

Esta pesquisa lança luz à direta conexão entre neoliberalismo e sofrimento psíquico na questão da moradia. Para construir essa conexão, esta pesquisa começa abordando as consequências materiais do neoliberalismo e as suas maneiras de inserção em economias locais. Trata-se de um processo globalmente observável que altera a configuração do Estado e representa uma constante violação dos direitos da população. Em um contexto de desemparo, observa-se o local no qual se encontra o sofrimento psíquico. Para entender o sofrimento psíquico, esta pesquisa discute os conceitos de subjetividade neoliberal e articulação de desejos dos indivíduos. As consequências materiais do neoliberalismo servem como o contexto social no qual se analisa a questão do sofrimento psíquico. Para essa análise é resgatado o conceito de subjetividade neoliberal na qual o sujeito se encontra em uma constante lógica de competitividade em sua vida psíquica e seus desejos são pautados pela lógica neoliberal. Logo, traz-se a questão da moradia como uma localidade onde esses processos se exprimem e demonstram uma lógica predatória neoliberal. Por fim, a pesquisa observa o resgate da coletividade por meio do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto como saída de um lugar de passividade para um lugar de resistência.

Palavras-chave: neoliberalismo, sofrimento psíquico, subjetividade neoliberal, moradia.

Abstract

This research sheds light on the direct connection between neoliberalism and psych suffering in the housing issue. To build this connection, this research begins by addressing the material consequences of neoliberalism and the ways in which it is inserted in local economies in a process that is observed globally that alters the configuration of the State and represents a constant violation of the rights of the population. In a context of helplessness, is possible to observe the psychic suffering. To understand psychic suffering, a rescue is made of the concepts of neoliberal subjectivity and the articulation of individuals' desires. The material consequences of neoliberalism serve as the social context for the psychic suffering. For this analysis, the concept of neoliberal subjectivity is rescued, in which the subject finds himself in a constant logic of competitiveness in his psychic life and his desires are guided by the neoliberal logic.

Therefore, the issue of housing is brought up as a location where these processes are expressed and demonstrates a neoliberal predatory logic. Finally, the rescue of the collectivity is observed through the Landless Worker’s Movement as a way out of a place of passivity to a place of resistance.

Keywords: neoliberalism, psychic suffering, neoliberal subjectivity, housing.

1 Bacharel em Relações Internacionais e mestranda em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais pela PUC-SP. E-mail: tatianarute@hotmail.com.

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1. Introdução ____________________________________________________________________________________ 6 2. Consequências materiais do neoliberalismo ________________________________________ 11 2.1. Alteração do espaço físico: instalação de empresas transnacionais e especulação imobiliária ________________________________________________________________________ 15 2.2. O Estado como garantidor da ordem neoliberal ____________________________________ 17 2.3. Financeirização da economia ___________________________________________________________ 20 3. Consequências subjetivas do neoliberalismo: sofrimento psíquico _____________ 22 3.1. Subjetividade neoliberal _________________________________________________________________ 24 3.2. A patologia dos dissidentes _____________________________________________________________ 27 4. Aspectos da moradia: junção das consequências materiais e subjetivas do neoliberalismo ___________________________________________________________________________________ 31 4.1. Moradia e especulação imobiliária ____________________________________________________ 31 4.2. Estado e moradia __________________________________________________________________________ 33 4.3. Financeirização da economia e especulação imobiliária _________________________ 34 4.4. Minha Casa Minha Vida: onde neoliberalismo, Estado e desejo se encontram 35 4.5. Moradia e sofrimento psíquico _________________________________________________________ 38 4.6. Saídas da passividade: MTST, a luta coletiva como encontro de si e cura ______ 39 4.7. Entrevista ___________________________________________________________________________________ 40 5. Considerações finais ______________________________________________________________________ 43 6. Referências Bibliográficas ______________________________________________________________ 47

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1. Introdução

Entender as formas de sofrimento e opressões que conduzem as relações sociais atuais é um esforço que muitos buscam no decorrer de sua caminhada acadêmica e profissional. Nesse sentido, a presente pesquisa se apresenta como uma forma de demonstrar as maneiras pelas quais o sofrimento psíquico toma uma nova forma sob o neoliberalismo, maneiras que são pouco discutidas no discurso hegemônico sobre neoliberalismo. Lançar luz à conexão entre neoliberalismo e sofrimento psíquico é essencial para que possamos identificar o que de fato nos torna/faz doentes, ao mesmo tempo em que endereça de fato os problemas atuais e possibilita uma nova forma de pensarmos uma saída possível de um local de apatia para ação.

A questão da moradia, portanto, se torna um ponto de partida essencial para entendermos, no cerne da vulnerabilidade, as articulações impostas pelo neoliberalismo atualmente e como os interesses econômicos se tornam uma ferramenta neoliberal que articula Estado, lucro e desejos. A moradia adequada é considerada um direito humano universal. Na Constituição Federal do Brasil, ela é estabelecida como direito no artigo 6º:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma deste Constituição. (EC nº 26/2000, EC nº 64/100 e EC nº 90/2015). (BRASIL, 1988, Art. 6º).

A moradia, nesse sentido, deve ser observada como um direito básico de subsistência.

É por meio da moradia que o indivíduo cria laços comunitários, possui sensação de pertencimento e segurança, bem como constrói sua família e sua estabilidade social. Sem o direito a uma moradia adequada, o indivíduo se encontra em uma situação de vulnerabilidade social crítica (BOULOS, 2015).

É possível observar mundialmente o crescimento do déficit habitacional: de acordo com o Banco Mundial, até 2025 mais de 1.6 bilhões de pessoas serão afetadas pela escassez habitacional (TRIVENO; NIELSEN, 2021). Um estudo realizado pelo Lincoln Institute of Land Policy identificou que, dentre as 200 cidades pesquisadas, 90% são inacessíveis pelo poder aquisitivo das pessoas, considerando o preço da moradia e a média da renda familiar (WORLD FINANCE, 2021). Outro estudo, realizado em 2021 pelo Fundo Monetário internacional, demonstra que o preço da moradia cresceu mais rápido do que a renda em diversos países do

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mundo. Esse processo ao redor do mundo é reflexo de um imbricamento entre neoliberalismo e Estado que promove mundialmente o crescimento da desigualdade e a violação constante de direitos humanos em prol de uma economia próspera.

No Brasil, esses dados são ainda mais alarmantes. Existem no país cerca de 22 milhões de pessoas – 10,35% da população brasileira – em situação de moradia não adequada, ou seja, são em torno de 6.940.691 famílias sem casa. Esse número é ainda mais preocupante quando se observa que existem no país aproximadamente 6.052.000 imóveis vazios ou permanentemente desocupados (BOULOS, 2015). Em outras palavras, existe quase um imóvel

“disponível” por família para habitação adequada.

Portanto, lançar luz aos processos pelos quais o neoliberalismo se materializa em localidades distintas do mundo e traz consigo consequências materiais específicas, dados os contextos sociais, políticos, históricos e econômicos, é essencial para analisar como internacional e local estão cada vez conectados. As Relações Internacionais já possuem vasta literatura que aborda a relação entre o global e o local. No entanto, pouco se fala sobre o que essa conexão representa quando falamos de sofrimento psíquico. Mobilizar a relação entre global e local e como essa perspectiva tem direta influência na vida psíquica do sujeito é essencial para elucidar como o internacional também é constitutivo do sujeito, do Eu.

Elucidar esses movimentos sob a perspectiva da moradia é, portanto, situar a articulação entre neoliberalismo e sofrimento psíquico em uma localidade pouco discutida, tanto na literatura crítica sobre moradia quanto na literatura crítica sobre neoliberalismo. A escolha de olhar esses processos no Brasil e na cidade de São Paulo também não são aleatórias. A construção de um novo centro financeiro na cidade de São Paulo, em meados dos anos 1990, e o programa Minha Casa Minha Vida, criado em 2009, são dois contextos cruciais para entender as articulações globais e locais impostas pelo neoliberalismo, tanto em suas consequências materiais quanto subjetivas.

Entende-se por sofrimento material o aumento da desigualdade, o empobrecimento da população, o aumento do desemprego, os processos de expulsões territoriais, a privatização de empresas públicas, o aumento do policiamento, o encarceramento em massa, entre outros. Tais processos se acentuam globalmente, dada a ascensão mundial do neoliberalismo. Por meio desses processos o sujeito se constrói em um meio no qual a justificativa moral do neoliberalismo se instala de tal maneira que acaba por construir uma forma específica de sofrimento psíquico. O que se coloca aqui é que não somente o neoliberalismo se instaura de

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maneira impositiva por meio dos processos materiais, mas também produtiva, sútil, de produção de sujeitos. É nesse contexto que entendemos o sofrimento psíquico, isto é, um contexto de desamparo e de recrudescimento de direitos. A questão da moradia, portanto, se torna um local onde é possível observar todos os processos pelos quais o neoliberalismo se articula material e subjetivamente.

Abordar esses processos de forma clara é parte fundamental para se pensar saídas de um complexo predatório de relações impostas pelo neoliberalismo. Com isso em mente, esta pesquisa se apresenta como uma forma de explorar análises críticas ao neoliberalismo e trazê- las para o campo do sofrimento psíquico sob o aspecto da moradia no Brasil, em geral, e na cidade de São Paulo, em particular. Elucidar a relevância desses processos é de suma importância para compreendermos as manifestações psíquicas que o neoliberalismo nos impõe e como podemos endereçar propriamente nossas aflições e angústias, para assim buscar um movimento de resistência.

Adotar a questão da moradia como um ponto de análise é uma forma de alocar os processos neoliberais que nos cercam e endereçá-los. A moradia é um direito básico de sobrevivência e, se mesmo o básico não é garantido, é possível observar esses processos como diretamente conectados com o sofrimento moderno. Logo, analisar a questão da moradia no contexto brasileiro é uma forma de alocar nacionalmente os processos pelos quais o neoliberalismo altera contextos nacionais e impactam diretamente vidas locais. Isso é possível ao trazer para um contexto histórico, econômico, social e político as consequências específicas do neoliberalismo dentro desses contextos – é pensar local e global concomitantemente, mas em suas particularidades.

As dinâmicas entre global e local nunca estiveram tão conectadas como atualmente, e pensar problemas e suas soluções requer um olhar crítico e holístico para o que se enfrenta atualmente na sociedade. Compreender a maneira pela qual o neoliberalismo se instala localmente e se alastra mundialmente é essencial para elucidar os processos de sofrimento que observamos na sociedade, tanto materiais quanto subjetivos.

Diante disso, a presente pesquisa pretende explorar as consequências materiais e subjetivas do neoliberalismo por meio da questão da moradia. Entender os processos pelos quais o neoliberalismo articula seu discurso para além do âmbito econômico é essencial para que possamos identificar as raízes dos problemas atuais e buscar soluções possíveis. A questão da moradia apresenta-se como uma localidade na qual podemos analisar todos os processos pelos

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quais o neoliberalismo acaba por alterar espaços e destruir vidas, com a pretensa justificativa de distribuição de riquezas.

Em meados dos anos 1990, a cidade de São Paulo, por exemplo, teve um forte crescimento de empresas transnacionais, cuja vinda para a cidade trouxe uma forte alteração de seu espaço físico. O aumento da presença dessas empresas em bairros como Berrini e Água Espraiada fomentou a especulação imobiliária local, o que acabou por alterar drasticamente o espaço físico dessa região na cidade. Nesse contexto, comunidades locais foram expulsas de suas casas à força em processos violentos de reintegração de posse pela polícia militar paulista.

Não obstante, aqueles que não foram removidos à força tiveram que sair de suas casas em decorrência do aumento do custo de vida local (FIX, 2001). Portanto, o processo de construção da atual cidade de São Paulo é uma localidade clara das consequências materiais impostas pelo neoliberalismo.

Outro processo importante de analisarmos é a criação do programa federal Minha Casa Minha Vida (MCMV). O programa lançado em 2009 pelo governo do Partido dos Trabalhadores (PT), na figura do então presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi uma forma de salvar as grandes construtoras brasileiras – e seus investidores estrangeiros – e o setor imobiliário das consequências da crise do subprime dos Estados Unidos. Em face à bancarrota mundial causada pelo estouro da bolha imobiliária nos EUA, as grandes construtoras e o setor imobiliário brasileiros viram uma oportunidade de salvarem seus negócios por meio do maior programa habitacional do Brasil (ROLNIK, 2019).

Analisar os processos e os motivos da criação do MCMV são essenciais para elucidar como o neoliberalismo, aliado ao Estado brasileiro, conseguiu de maneira bem-sucedida articular desejo e interesses econômicos em detrimento do bem-estar do cidadão. Sendo assim, compreender a dinâmica desses processos é crucial para observamos como nasce o sofrimento psíquico sob o aspecto da moradia.

Nesse sentido, a presente pesquisa divide-se em quatro seções de análise, além desta introdução e das considerações finais. Na segunda seção, explora-se as consequências materiais do neoliberalismo, identificando como processos globais se materializam em localidades específicas. Na terceira seção, desenvolve-se as consequências subjetivas do neoliberalismo. A partir do desenvolvimento do conceito da subjetividade neoliberal, o neoliberalismo deixa de ser tratado apenas como um discurso econômico e é analisado como produtor de sujeitos que articula desejos, emoções e sofrimento. Em seguida, na quarta seção, analisamos a patologia

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dos dissidentes, isto é, como os sujeitos que não se adaptam à lógica neoliberal se encontram doentes e relegados à própria sorte. Por fim, na quinta seção, analisa-se como a questão da moradia é enxergada como uma localidade na qual os argumentos explorados anteriormente se encontram. Esta seção busca delimitar claramente a conexão direta entre neoliberalismo, sofrimento psíquico e moradia. Ainda nesta seção é explorada a questão da especulação imobiliária na cidade de São Paulo, em meados dos anos 1990, e o caso do lançamento do programa Minha Casa Minha Vida pelo governo federal brasileiro, em 2009. Ambos os casos demonstram como a lógica neoliberal consegue articular Estado, interesses econômicos e desejo da população por meio da promessa da casa própria.

Com essas pretensões a presente pesquisa explora conceitos elaborados por diversos autores de diferentes campos epistemológicos, em um diálogo que esclarece os contextos nos quais Estado, neoliberalismo e sofrimento psíquico se conectam na questão da moradia. Deste modo, articula-se conceitos elaborados por Léautier (2006), Laffey e Weldes (2005) e Sassen (2006; 2008; 2016) sobre temas como infraestrutura e comunicação, expulsões, territorialidade, direitos e autoridade. O que se busca ao usar as análises desses autores é entender os contextos sociais nos quais o sofrimento psíquico se instaura por meio do neoliberalismo. Para compreender a questão da moradia sob o aspecto das consequências materiais do neoliberalismo, utiliza-se as análises de Maria Fix (2001), Raquel Rolnik (2019) e Guilherme Boulos (2015), autores que versam sobre as consequências da especulação imobiliária na cidade de São Paulo, os contextos globais da questão da moradia e contextos da moradia no Brasil, respectivamente.

Em um segundo momento, ao abordar o neoliberalismo enquanto uma racionalidade formadora de subjetividades, a pesquisa se propõe a articular autores que versam sobre a formação de subjetividades atuais, como Brown (2015), Butler (1997), Foucault (2008), Dardot e Laval (2016), Laval (2020) e Casara (2021). Essa seção é fundamental para entender como o sofrimento psíquico se forma. Por fim, delineia-se o neoliberalismo é como gestor do sofrimento psíquico, por meio das reflexões dos seguintes autores: Safatle, Junior e Dunker (2021), Scharff (2016), Olivier (2015) e Oakes (2019).

A fim de avançar uma análise mais aprofundada, esta pesquisa também realizou uma entrevista com uma pessoa membro do MTST, como forma de trazer um exemplo vivo dos processos apresentados nesta pesquisa.

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Tendo como bibliografia central e ponto de partida o livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” organizado por Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior e Christian Dunker (2021), a presente pesquisa pretende desenvolver análises sobre o neoliberalismo que contextualizam o meio social no qual o indivíduo se constrói, para assim entender como certos tipos de sofrimentos psíquicos são gerados dentro da ordem neoliberal. Entender os meios pelos quais o neoliberalismo altera direitos e espaços é essencial para compreender sua direta conexão com o sofrimento psíquico. Portanto, busca-se nesta pesquisa lançar luz aos processos de expulsões pelos quais o neoliberalismo adentra as economias locais, alterando a configuração do Estado e os direitos dos cidadãos.

Da mesma maneira que o neoliberalismo se expressa de forma material, ele se expressa de forma psíquica. Neste sentido, advogar pelo psíquico em sua localidade física e em seus contextos materiais é essencial. Ao se debruçar sobre o sofrimento psíquico, esta pesquisa traz o esforço de se pensar localidades em um contexto global, compreendendo como o sofrimento se manifesta por meio de processos globais do neoliberalismo. O sofrimento psíquico, nesse caso, aparece como uma localidade não discutida no discurso hegemônico do neoliberalismo.

Retomar o lugar e as práticas sociais permite entender os processos materiais impostos pelo neoliberalismo, os quais afetam direta e globalmente diferentes formas de se viver e experienciar a vida (SASSEN, 2007).

2. Consequências materiais do neoliberalismo

Entendido como um discurso e prática econômica, o neoliberalismo teve sua primeira aparição em âmbitos acadêmicos e econômicos no Colóquio Walter Lippman, em agosto de 1938. Com seu surgimento no período entreguerras e em meio à crise do liberalismo com a ameaça do comunismo e do fascismo, os pensadores da época entenderam que era necessária uma nova forma de se gerir o capitalismo, uma maneira que advogasse por uma menor intervenção estatal na economia para que esta pudesse se conduzir livre de impedimentos estatais e, assim, gerir e distribuir riquezas à toda população (CASARA, 2021).

Um Estado com fortes políticas de bem-estar social – como leia-se acesso a saúde, previdência, direitos trabalhistas, moradia, transporte – sob a perspectiva neoliberal é visto como um impeditivo para o bom funcionamento da economia, assim como um interventor no próprio destino do cidadão. Nesta perspectiva, o cidadão deve ser livre para traçar seu destino

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e para conquistar seu sucesso material, e o Estado não deve interferir nessas decisões individuais. Ao oferecer ao cidadão políticas públicas básicas, o Estado estaria interferindo na liberdade do cidadão em buscar seu próprio destino (SAFATLE; JUNIOR; DUNKER, 2021).

O Estado, nessa visão, deveria servir apenas como legitimador das leis e garantidor do bom funcionamento da economia. Nesse aspecto, o Estado passa a ser uma grande empresa que funciona em prol de outras empresas (DARDOT; LAVAL, 2016). Muitos críticos do neoliberalismo entendem que esse discurso advoga pelo Estado mínimo, mas o que não se coloca em pauta nessa crítica é que o neoliberalismo não diminui o Estado, mas sim o altera para que ele sirva de suporte ao próprio neoliberalismo (DARDOT; LAVAL, 2016; SASSEN, 2006).

Para além das discussões teóricas do neoliberalismo, a implementação prática desse discurso se deu a partir dos 1980 nas figuras de Margareth Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Regan, nos EUA. A ascensão do neoliberalismo traz consigo mudanças drásticas na maneira como as economias se relacionam e como as relações sociais se constroem. Entender as consequências dessa ascensão e o que ela trouxe consigo é parte fundamental desta análise.

Como disse Margareth Thatcher, “A economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma” (DARDOT; LAVAL, 2016). É sobre o coração e a alma que se discute aqui.

A ascensão do neoliberalismo a partir dos anos 1980 se deu de maneira vertiginosa.

Cada vez mais economias nacionais se encontraram pressionadas a se adaptar ao novo modelo econômico – caso contrário, corriam o risco de ficarem relegadas ao atraso. O neoliberalismo trouxe consigo o aumento da interconectividade das economias, a intensificação da globalização com o crescimento das empresas transnacionais, o aumento da desigualdade e problemas de desenvolvimento. Esse processo se deu ao redor do mundo de acordo com dificuldades e especificidades das realidades locais. No entanto, pode-se observar que processos similares de redução de direitos, aumento das desigualdades e alteração do espaço ocorreram globalmente.

O neoliberalismo, ao articular o conceito da liberdade enquanto um direito irrevogável e de última instância, instaura em seu discurso uma moral na qual aqueles que discordam de sua prerrogativa são vistos como infantis, não civilizados, sem caráter (LAFFEY; WELDES, 2005; QUEREJAZU, 2021; SAFATLE; JUNIOR; DUNKER, 2021). Quando o neoliberalismo se coloca como o melhor modelo a ser seguido, aquele que traz consigo uma maior geração de riquezas e articula em seu discurso essa moralidade – ou seja, aqueles que discordam são

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pessoas sem caráter –, ele se coloca como um imperativo no qual aqueles destoantes do seu pensamento são vistos como violadores do direito da liberdade. Visto dessa maneira e articulando o discurso de distribuição de riquezas, o neoliberalismo se coloca como a solução para um mundo mais desenvolvido, rico e próspero.

Na esteira desse pensamento, portanto, para ser um país próspero e para se ter uma economia que distribui riquezas a todos, é preciso adentrar-se na economia neoliberal, pois ela seria a única forma de se inserir na economia global e distribuir riquezas a todos. Com isso em mente, economias locais vêem a necessidade de se inserir nesse modelo econômico de maneira mais competitiva e, para tal, são necessários certos tipos de estruturas e procedimentos para o bom funcionamento da economia. Esse processo é observado com clareza quando se analisa a inserção de empresas transnacionais ao redor do mundo.

A inserção dessas empresas em locais distintos do mundo se dá de maneira ordenada, pois elas exigem um modelo específico de infraestrutura e operação. Ou seja, uma empresa que já possui um modelo de operação específico precisa de uma infraestrutura específica para funcionar. Esse modelo de operação e estrutural é aplicado globalmente em todos os locais que essas empresas se instalam e, portanto, trazem consigo consequências específicas dessa alteração espacial (SASSEN, 2007). Quando se analisa a questão da moradia, o impacto da instalação dessas empresas é ainda mais drástico, causando uma alteração brutal do espaço físico das cidades, resultando no aumento da desigualdade e da segregação social.

O que se apresenta com essa exposição é que, ao se colocar como solução necessária para uma maior inserção na economia, o neoliberalismo muda estruturas locais em todo o mundo, trazendo problemas específicos em cada região de acordo com seus contextos sociais.

O global e o local estão cada vez mais interconectados e essa interdependência gera consequências específicas para as formas de sofrimento que observamos hoje em dia.

Entender o papel do Estado neste contexto é de suma importância, pois, em tese, seria o Estado que regularia a inserção dessas empresas localmente por meio de leis trabalhistas, impostos, regulação de estruturais locais, entre outros, para proteger sua população e defender seus direitos. No entanto, com a defesa do Estado mínimo e a visão de que o Estado deve ser apenas um regulador e/ou fornecedor de estruturas básicas para que a economia possa operar de maneira livre e desimpedida, o neoliberalismo traz consigo uma mudança na própria concepção do Estado. O que se observa na prática não é uma redução do Estado, mas sim uma alteração dele para que empresas possam operar de maneira livre e o Estado garanta os direitos

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das empresas, e não da população (DARDOT; LAVAL, 2016; SASSEN, 2007). Relegado à própria sorte e com a “liberdade” para traçar seu próprio destino e seu sucesso, o indivíduo se encontra em um ambiente de completo desamparo, descrença e falta de direitos. Compreender esse contexto de desamparo é uma maneira de entender o chamado sofrimento psíquico.

Ao analisar os processos de inserção de empresas transnacionais, busca-se argumentar como o neoliberalismo articula necessidades locais para inserção de economias distintas na ordem econômica vigente. O principal argumento desenvolvido nesta seção da pesquisa serve como base para entendermos, de forma prática, como o neoliberalismo se instala de maneira sutil com a pretensa justificativa de que, para se alcançar um bom desenvolvimento econômico, uma maior inserção na economia internacional e uma maior competitividade nesse quesito, empresas e economias nacionais precisam se adequar a padrões específicos (LÉAUTIER, 2006).

Com efeito, esse processo gera uma alteração do espaço físico local, causando uma reação em cadeia de consequências para a população mais pobre. Analisar as articulações usadas para essa inserção e o que ela acarreta auxilia na compreensão das as consequências materiais provocadas pelo neoliberalismo. Nesse contexto, analisar o papel do Estado é essencial para compreender como essas consequências materiais conseguem se dar de maneira que não protegem a população local, assim como o Estado se reconfigura por meio de uma lógica neoliberal para defender os direitos das empresas em detrimento dos direitos da população.

O ponto principal da análise exposta aqui é como o neoliberalismo consegue se articular de diversas formas nas quais ele cria um problema e, ao mesmo tempo, traz uma solução que acaba por servir como forma de sua própria manutenção, assim como gerenciamento, controle e inserção nas mais diversas facetas da organização e construção social. Tal padrão de comportamento é observado nesta pesquisa quando se fala de sofrimento psíquico.

Portanto, é possível afirmar que o neoliberalismo se articula, produz e gerencia consequências materiais e subjetivas poucos discutidas e criticadas em seu discurso hegemônico. A lógica neoliberal relega indivíduos à sua própria sorte em um ambiente de constante violência, abandono, desamparo, falta de esperança, fracasso, levando à manifestação do sofrimento psíquico.

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2.1. Alteração do espaço físico: instalação de empresas transnacionais e especulação imobiliária

Embora se possa observar uma tendência globalizada dos efeitos e desafios gerados pelo modelo econômico vigente, para que se possa analisar as consequências materiais no neoliberalismo é preciso resgatar as experiências locais onde o neoliberalismo se materializa.

O avanço do neoliberalismo trouxe consigo muitos desafios. Dentre eles, é importante salientar como o espaço físico das cidades e países se alteraram com o avanço tecnológico e pela pressão por uma maior inserção na economia internacional. Com o avanço tecnológico e a diminuição de distâncias por meio de novas ferramentas, como a internet, o mundo se viu em uma nova fronteira de conectividade.

Tornou-se cada vez mais necessário o uso da tecnologia para inserir-se economicamente. Por exemplo, processos como transações bancárias se tornaram mais virtuais e menos físicos. Esse avanço tecnológico significou que países sem a tecnologia necessária para fazê-lo funcionar estariam sempre relegados ao atraso (LÉAUTIER, 2006). Destacar a necessidade de uma forma de inserção na economia internacional é fundamental para entendermos como ela também se transpõe em outras situações.

Para inserir-se competitivamente no cenário internacional, dentro de um contexto de avanço tecnológico, países que não possuíam essa tecnologia se viram na obrigação de desenvolvê-la nacionalmente ou importá-la (LÉAUTIER, 2006). No entanto, para desenvolver essa tecnologia, seriam necessários anos de investimento e de conhecimentos que poderiam não ser rápidos ou bons o suficiente, visto que a tecnologia se transforma a cada minuto.

Nesse contexto, economias nacionais se encontraram pressionadas a aderir aos modelos tecnológicos vigentes e grande parte dessa inserção se deu por meio das empresas transnacionais de telecomunicação. Se o mundo se via mais interconectado, era preciso ter a tecnologia para se conectar. Portanto, empresas do setor de telecomunicação foram um dos pilares da expansão do neoliberalismo globalmente. Era essencial ter essa tecnologia para conseguir continuar dentro da economia. O que se observa aqui é que, ao mesmo tempo em que o neoliberalismo cria uma necessidade – de ter a tecnologia para inserir-se no mercado –, ele também provê uma solução – instalação de empresas transnacionais em diversos locais do mundo.

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Discutir a inserção de empresas transnacionais é de suma importância, uma vez que para a inserção física do neoliberalismo localmente é ocorre por meio de uma forte articulação de discursos, justificativas e políticas que se dizem neutras. A instalação dessas empresas traz consigo uma grande alteração do espaço físico no qual elas se instalam e expressa claramente a consequência material de como o neoliberalismo consegue se articular local e globalmente de maneira coordenada, centralizada e padronizada (LÉAUTIER, 2006).

Uma empresa transnacional que se instala localmente traz consigo modelos específicos de operação e infraestrutura. Logo, para ela conseguir funcionar, ela precisa que o local de sua instalação tenha características específicas, sejam elas de cabeamento, saneamento, transporte, estrutura física de um prédio, antenas, ou tudo aquilo que faz com que uma empresa funcione.

Esse processo é observado em vários outros setores da economia, como transporte, alimentos, tecnologia, energia, entre outros. Portanto, para além de refletir sobre a alteração operacional e estrutural que um setor provoca, é preciso entender que esses processos acontecem concomitantemente em outros setores da economia, ou seja, a alteração das localidades acontece de maneira exponencial.

Ao alterar locais específicos, essas empresas também geram uma remodelação da estrutura social local. Ao considerar que esse processo acontece mundialmente, observa-se que as consequências do neoliberalismo se materializam de maneira local em processos similares ao redor do mundo, ou seja, lugares distintos sofrem uma remodelação do espaço e as consequências disso se observam localmente de acordo com o contexto social local (SASSEN, 2007).

É importante ter em mente que. para além dessa remodelação espacial, as empresas transnacionais operam de maneira padronizada, centralizada. Elas podem ter inúmeras filiais ao redor do mundo, mas sua forma de operação é centralizada em uma sede que dita as regras que devem ser seguidas pela empresa. Logo, a importação do modelo operacional dessas empresas será igual em diferentes partes do mundo, pois existem normas e condutas específicas que devem ser seguidas em todas essas filiais.

O importante ao se pensar nessa materialidade das empresas transnacionais localmente é observar o contexto no qual ela acontece. Cria-se uma necessidade da importação desse modelo de operação: ao importar tal modelo, ele vem com formas específicas de operação, mas as consequências materiais que esse processo acarreta são vistos como necessários para posteriormente se ter uma economia mais próspera e competitiva internacionalmente. O que

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não se é questionado geralmente são as consequências que essas alterações locais trazem para a população e o que isso implica em contextos sociais específicos (SASSEN, 2007).

Tal processo de alteração física do espaço necessita de uma atenção redobrada. A instalação de empresas transnacionais em economias locais causa uma cadeia de reações que impactam diretamente na forma de vida dos cidadãos, especialmente nas cidades e centros urbanos. Para além da reestruturação física do local, o estabelecimento local dessas empresas pressiona o setor imobiliário local, causando uma série de consequências para os trabalhadores.

2.2. O Estado como garantidor da ordem neoliberal

Em meio aos processos elucidados acima, é preciso compreender o papel do Estado dentro dessa dinâmica. Ao contrário do que muitos afirmam, o neoliberalismo não é possível sem um Estado forte. No entanto, a diferença reside no fato de que o Estado não diminui com o neoliberalismo, pois ele é uma ferramenta sem a qual o neoliberalismo não consegue se sustentar (SAFATLE; JUNIOR; DUNKER, 2021; SASSEN, 2007).

O argumento central do neoliberalismo defende um Estado mínimo que não interfira nas atividades econômicas e que deixe o mercado livre para se autorregular, gerando mais riquezas e, portanto, uma distribuição maior dessas riquezas. Muitos críticos da visão neoliberal entendem que o Estado mínimo representa uma violação dos direitos da população, sendo que o Estado existe justamente para garantir esses direitos. Parte desta literatura entende que esse discurso binário no qual Estado e globalização são mutuamente excludentes é uma forma simplista de se pensar como o neoliberalismo opera para e por meio do Estado. Nesse quesito, o Estado não se encontra diminuído pelo neoliberalismo, tampouco se encontra inalterado dentro das novas configurações econômicas mundiais.

O Estado, nesse contexto, está remodelado, reconfigurado por meio da lógica neoliberal.

Ele se torna um instrumento do neoliberalismo por meio de um processo de novas configurações/emaranhados de território, autoridade e direito (SASSEN, 2008). O Estado enquanto garantidor de direitos de sua população se constrói por meio desses três conceitos:

território, autoridade e direito. O território é a delimitação do Estado e local onde sua população

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vive, a autoridade é o poder do Estado e suas leis, e os direitos são as prerrogativas que a lei faculta a alguém.

Esses três conceitos são partes fundamentais do estabelecimento do Estado-nação no qual os indivíduos se relacionam para com o Estado e estabelecem seus deveres e direitos. Essa formação histórica do Estado-nação se deu pertinentemente de acordo com a criação do próprio Estado, dados os seus contextos históricos, sociais, políticos e econômicos. Com o avanço do neoliberalismo, observa-se que esse âmbito puramente nacional de construção histórica entre Estado-nação e população, agora é permeado por lógicas transnacionais/globais. Logo, “the global can also be constituted inside the national” (SASSEN, 2008, p. 63).

O que essa nova configuração demonstra é que o Estado enquanto garantidor de direitos se altera para instrumentalizar a lógica neoliberal. Logo, os direitos garantidos são aqueles da ordem neoliberal que expressam um interesse específico, relegando a população a uma sensação de desamparo e abandono. Nesse processo, o Estado se torna um instrumento de implementação de políticas neoliberais, e essa mudança acontece com a justificativa moral de prosperidade, desenvolvimento econômico, defesa da liberdade e distribuição de riquezas.

Para compreender melhor essa reconfiguração do Estado é necessário elucidar alguns pontos. Ao se articular enquanto um modelo a ser seguido e imperativo para uma maior distribuição de riquezas, o neoliberalismo estabelece um modo de operação que justifica sua inserção ao redor do mundo. Como demonstrado acima, a sua lógica ensina que, para se ter uma economia próspera, é preciso que se tenha as tecnologias necessárias, tecnologias essas de empresas transnacionais que se instalam em lugares diferentes defendendo apenas seus lucros sem pensar nas consequências materiais que sua instalação trará para a população local. Essa inserção causa consequências drásticas à população local, como demonstrado acima.

Para essas empresas se instalarem, é necessário que o Estado permita. De maneira geral, como essa instalação trará avanços tecnológicos e uma maior prosperidade econômica, não há razão para que se impeça esse processo. Logo, é necessário que as leis nacionais permitam que essa instalação ocorra, ou seja, o aparelho jurídico nacional e o Estado de Direito que antes eram específicos do contexto nacional agora se vêm permeados pela lógica neoliberal. Diante disso, para permitir a ação de empresas transnacionais, o Estado altera suas leis para garantir os direitos dessas empresas (SASSEN, 2008).

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O que se observa nessa dinâmica é o câmbio de defesa de interesses, antes voltado para a população e agora voltado para empresas transnacionais que não exprimem necessariamente vontades da população local.

Legal frameworks for rights and guarantees, and more generally the rule of law, were largely developed in the context of the formation of national states.

But now some of these instruments are strengthening a non-national organizing logic. As they become part of new types of transnational systems, they alter the valence of older national state capabilities. Further, in so doing, they are often pushing these national states to go against the interests of national capital. (SASSEN, 2008, p. 64).

Em outras palavras, as empresas transnacionais se instalam, alteram configurações estruturais, políticas, espaciais, econômicas e sociais do território nacional e o Estado garante o direito das empresas em detrimento dos direitos de sua população. O território, portanto, se encontra nitidamente alterado pela lógica neoliberal com a anuência do Estado, e a população deve se adaptar. Logo, o Estado de Direito, historicamente construído para garantia de direitos da população, agora se adapta à lógica neoliberal. Isso representa uma mudança do próprio Estado de Direito, assim como uma adaptação do Estado ao neoliberalismo.

É importante compreender que esse processo não acontece de maneira impositiva – o neoliberalismo se coloca como necessário para o bom desenvolvimento econômico e o Estado se altera para abarcar essa pretensa prosperidade econômica. As condições para a alteração do Estado são geradas, assim como a necessidade de implementação das empresas e mercados transnacionais (SASSEN, 2008).

Ao problematizar os processos acima, fica claro que o neoliberalismo não enfraquece o Estado, mas se constitui por meio dele para realocar agências e interesses econômicos. Assim, o que esse processo apresenta é uma desnacionalização de âmbitos estatais que agora são voltados para a construção de interesses neoliberais dentro do âmbito nacional. Portanto, funções nacionais são constitutivas do neoliberalismo e não excludentes. A materialização desse processo na questão da moradia e na alteração do espaço físico na cidade de São Paulo será melhor esclarecida na seção 5.2 desta pesquisa.

Portanto, esses processos irão produzir novos tipos de desigualdades sistêmicas que transpassam diferentes âmbitos da sociedade. Nesse contexto, a desigualdade, enquanto consequência direta desses processos, se torna um ponto focal para analisarmos como essas lógicas neoliberais se adentram por meio do Estado e produzem lógicas de expulsões que irão afetar vidas de diferentes formas, como se observa a seguir.

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2.3. Financeirização da economia

Com os conceitos apresentados acima, busca-se nesta seção detalhar as consequências materiais colocadas pelo neoliberalismo. Essas consequências são observadas como resultado claro do imbricamento entre neoliberalismo e Estado pontuado anteriormente. Assim, será possível contextualizar de forma ampla como o sofrimento psíquico é gerado nesses contextos materiais que o neoliberalismo impõe. As consequências materiais colocadas pelo neoliberalismo não são apenas um resultado das ações desse modelo econômico, mas sim processos gerados pelo próprio neoliberalismo. Elas são agudas, acontecem em diferentes locais e são resultados diretos dos processos elencados acima.

Tendências globais podem ser observadas, como o constante empobrecimento da classe média, que perpassa países com diferentes construções históricas; o aumento da desigualdade;

o deslocamento da população para as margens; o encarceramento e o deslocamento em massa;

o aumento da pobreza; processos de espoliação de terras; a concentração de terras e renda nas mãos de poucos; o aumento das privatizações; o recrudescimento de direitos; a terceirização de serviços; a financeirização da economia, entre tantos outros. São inúmeros os processos que podem ser elencados, todos observados em localidades distintas do mundo por meio de processos similares (SASSEN, 2016).

Um dos processos expostos e que vale dar mais ênfase é a constante financeirização da economia. A economia, durante o período keynesiano, era claramente voltada para um fortalecimento e crescimento da classe média para que a população tivesse poder econômico para fazer a economia funcionar. Baseado principalmente no desenvolvimento da produtividade e infraestrutura, o período keynesiano – com todos os seus problemas – ainda tinha o consumidor como ponto focal de moção da economia. Ou seja, uma população com um bom poder aquisitivo era imperativo para uma boa economia (SASSEN, 2016).

O que se observa nesse período é que houve um grande aumento da classe média globalmente e uma pequena diminuição na desigualdade de renda, de forma que se criou uma classe social que seria um “meio termo” entre detentores do capital e proletários. É importante ter esse processo em mente, uma vez que grande parte da narrativa neoliberal é que todos são

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livres para criar a própria riqueza, isto é, o conceito de meritocracia se instala nessa perspectiva como uma justificativa de que todos podem chegar lá.

No entanto, com a ascensão do neoliberalismo a partir dos anos 1980, observa-se que os interesses econômicos mudam. O setor financeiro se tornou a maior fonte de geração de riquezas e, portanto, o maior interesse da economia. A ascensão da economia financeirizada fez com que a especulação do valor de algo seja o que movimenta a economia. Logo, uma população com poder aquisitivo já não é imperativo para uma boa economia. Para a manutenção desse setor, a economia então se volta para a securitização dos recursos, ou seja, é mais importante securitizar recursos do que fomentar o bem-estar das pessoas (SASSEN, 2016).

O processo de securitização é uma prática comum do setor financeiro, e se refere a uma espécie de um seguro das dívidas de uma empresa. Uma empresa que possui muitas contas a receber precisa investir em seus projetos, mas não quer esperar receber as dívidas de seus devedores. Logo, essa empresa aciona instituições financeiras que emitem títulos negociáveis, uma forma de adiantamento do valor daquelas contas a receber, ou um empréstimo, que será pago assim que a empresa receber suas contas. Esses títulos são então vendidos a investidores que serão pagos pela empresa com uma taxa de juros acima do mercado. Os investidores compram esses títulos com a garantia de que terão maiores rendimentos no futuro, visto que as empresas que emitem são sólidas e confiáveis. No entanto, esse dinheiro ainda não existe ou não está na conta da empresa que emitiu os títulos, mas crê-se que estará em breve.

O que isso implica é que existe uma especulação do valor desse dinheiro, uma promessa de que ele chegará e será pago com um valor do que aquele que foi investido. Quando se transpõe a questão da securitização para os recursos naturais, esse aspecto se torna ainda mais alarmante, visto que é esperado que aquele recurso tenha um valor mais alto, pois ele foi securitizado e deve valer mais no futuro. Portanto, a lógica da securitização/especulação se resume ao suposto valor futuro de um recurso.

O que se coloca em voga é que cada vez mais o consumidor e o trabalhador se tornam

“fatores dispensáveis” para a economia. Nesse cenário, não é mais interessante, do ponto de vista econômico, ter um trabalhador com poder de compra para movimentar a economia. Assim, a população, enquanto consumidora, tem cada vez menos papel na obtenção de lucros das grandes empresas. O setor financeiro está mais interessado em securitizar recursos do que necessariamente produzir mercadorias para o consumo.

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Observa-se, assim, que cada vez mais o global afeta o local e as populações se encontram cada vez mais sem capacidade de endereçar esses problemas de maneira objetiva, uma vez que a capilaridade desses processos é descentralizada e existem múltiplos atores em jogo. São inúmeros setores econômicos envolvidos, pois não há um centralizador desses processos que possa ser o “culpado” pelos sofrimentos materiais observados, e existe todo um sistema de formações predatórias no qual não se sabe localizar quem articula essas dinâmicas (SASSEN, 2016).

Esse aspecto de financeirização é crucial para o que se coloca na questão da moradia.

Com o aumento da especulação imobiliária, a habitação vai ficando cada vez mais cara e coloca os cidadãos em situações de vulnerabilidade e abandono ainda mais agravantes. Esses aspectos são abordados de forma detalhada na seção 5.3 da pesquisa.

3. Consequências subjetivas do neoliberalismo: sofrimento psíquico

A exposição acima buscou evidenciar os processos de espoliação impostos pelo neoliberalismo que fazem com que sujeitos se construam em meio a um cenário de constante desamparo. Para além disso, é importante ressaltar formas de sujeição, ou seja, processos pelos quais um indivíduo passa para que ele se identifique como ser vivente com suas dores, angústias e felicidades. Grande parte do esforço teórico exposto até aqui foi demonstrar a maneira impositiva e discursiva pelas quais o neoliberalismo se instala localmente em processos similares ao redor do mundo. No entanto, pouco se discute como esse processo se manifesta, também, de maneira psíquica na construção do sujeito. Além das consequências materiais existem consequências psíquicas, e são elas que queremos demonstrar aqui. Ao usar do discurso de justeza moral e imperativos da racionalidade humana, o neoliberalismo consegue modificar o coração e alma por meio da economia.

As consequências materiais do neoliberalismo expostas acima não abordam diretamente os meios pelos quais o neoliberalismo vem a ser uma racionalidade política2. O que isso implica

2 Entende-se por racionalidade política uma forma de compreensão do mundo que defende valores específicos pelos quais condutas e pressupostos de comportamentos são justificáveis ou não. Seria uma

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é que, para além de um modelo econômico que molda o Estado para os seus interesses, o neoliberalismo se embrenhou de tal forma nos moldes de vida atual que ele não pode ser analisado apenas como um modelo econômico. Autoras e autores irão aprofundar essa questão e analisar o neoliberalismo como um gestor de condutas e produtor de sujeitos. Como afirma Brown (2015, p. 21): “Neoliberalism is a distinctive mode of reason, of the production of subjects, a ‘conduct of conduct,’ and a scheme of valuation”.

Wendy Brown (2015) mune-se dos argumentos de Michel Foucault em Nascimento da Biopolítica (2008) para investigar como o neoliberalismo é uma racionalidade que se torna uma conduta de condutas. Brown (2015), assim como Sassen (2016), também postula que o neoliberalismo não se resume ao Estado mínimo, como muitos argumentam. Nesse contexto, o neoliberalismo usa o Estado em prol da economia para facilitar a competição econômica e o crescimento, regulando, assim, a sociedade pelo mercado (BROWN, 2015).

No entanto, para além do aparelhamento do Estado, é importante delinear o efeito que esse imbricamento entre Estado e a racionalidade neoliberal pode causar na subjetividade contemporânea para além da materialidade de desigualdades e processos de expulsões. Tanto Brown (2015) quanto Foucault (2008) analisam as estruturas nas quais a subjetividade se constrói em meio à financeirização da economia e a crescente falta de importância do ser humano enquanto consumidor para esta mesma economia. Ademais, é importante ressaltar a diferença entre o sujeito liberal consumidor e o sujeito neoliberal da empresa e da produção.

Nesse sentido, o sujeito passa a ser uma empresa de si mesmo: sua existência é moldada pela racionalidade neoliberal na qual seu modo de se posicionar na sociedade replica aquele de uma empresa, na qual o indivíduo deve ser sempre melhor que o outro, o self-made man, mais competitivo, mais produtivo e diferenciado. Além de um sujeito que se constrói a partir dessa matriz competitiva é possível observar a individualização do fracasso, isto é, o sujeito que não prospera nesse ambiente é responsável por seu próprio fracasso. Miranda e Chamon (2017) exploram como a lógica neoliberal se manifesta subjetivamente por meio de uma lógica competitiva constante na qual indivíduos que prosperam são responsáveis pelo próprio sucesso e os que fracassam são igualmente responsáveis pela sua derrota. Nesse cenário, é evidente a despolitização dos contextos sociais que cercam o indivíduo.

forma de pensar e agir através de discursos e normas específicas pautados em uma razão/forma de ver o mundo tida como a correta (CASARA, 2021).

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In our work with neoliberalism, we see these mechanisms working through a norm – or, rather, culture – of competition, in which the subject’s worth as a human being is measured through a meritocratic staging of competitions, in which subjects are individualized and detached from their social and political surroundings, and either celebrated for their own personal success, or blamed for their own individual failures – and pushed to ‘try harder’. (MIRANDA;

CHAMON, 2017, p. 7).

O que isso demonstra, para além da produção desse sujeito, é a constante lógica de competitividade que permeia a sociedade e a construção do sujeito. Essa lógica difere daquela do liberalismo em que a premissa era a troca. Com a razão neoliberal, podemos observar a substituição da lógica econômica de troca liberal para uma lógica de competição neoliberal (BROWN, 2015). Para entender essa diferença, pode-se pensar na troca de maneira corriqueira:

se eu tenho algo que uma outra pessoa quer e a pessoa tem algo que eu quero, nós podemos trocar essas coisas e ambos estarão satisfeitos. Para essa troca acontecer, ambos os sujeitos, independentemente de seu histórico, estão em pé de equivalência.

A razão neoliberal, no entanto, irá substituir essa troca por uma lógica de competição.

A competição por sua natureza já define que, em qualquer resultado, sempre haverá um perdedor, ou seja, os sujeitos que antes estavam em pé de equivalência agora estão sempre em pé de desigualdade. Logo, a desigualdade se torna uma lógica sem a qual o neoliberalismo não consegue funcionar: a desigualdade é a premissa e sustenta esse modo de operação da razão neoliberal, seja ela material ou subjetiva. Nas palavras de Brown (2015, p. 64): “[…] when the political rationality of neoliberalism is fully realized, when market principles are extended to every sphere, inequality becomes legitimate, even normative, in every sphere”). Em outras palavras, a desigualdade é legitimada até psiquicamente.

Portanto, tendo a desigualdade como premissa, é importante entender como ela se apresenta de diferentes maneiras na construção do sujeito. Para seguir com esse diálogo, é preciso apresentar, de antemão, o que se entende como subjetividade, e a partir disso entender como o neoliberalismo introjeta a sua lógica de competitividade no sujeito.

3.1. Subjetividade neoliberal

Entende-se por subjetividade o processo pelo qual o sujeito passa a se reconhecer enquanto Eu. Ao nascer, o sujeito se encontra em um meio permeado por normas, signos,

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discursos e, a partir deles, o sujeito constrói seu Eu. As normas nada mais são que contextos específicos de códigos culturais compartilhados, como linguística, contexto familiar, signos, tradições, cultura etc. Essas normas são a matriz de produção do sujeito, que se constrói por meio delas, seja para negá-las, mudá-las ou aceitá-las. A negação das normas muitas vezes resulta no quadro de sofrimento psíquico (BROWN, 2015).

Logo, é importante entender como o neoliberalismo se constrói e se reinventa para entrar nessa lógica de produção de subjetividades, de produção de sujeitos pelos valores, códigos e cultura. Quais são os valores, códigos de conduta e signos que o neoliberalismo coloca em pauta e faz com que os sujeitos se construam por meio deles?

Autores como Guattari e Rolnik (1996) defendem que os valores do capitalismo entraram na produção do sujeito de tal maneira que construíram uma subjetividade capitalística.

Dessa maneira, o neoliberalismo conseguiu identificar e captar a produção de subjetividade de tal maneira que ele mesmo se adapta a subjetividades diversas, ou seja, ele gerou uma nova forma de subjetividade. O neoliberalismo conseguiu entender os desejos humanos e captá-los dentro de sua lógica. Dessa forma, o sujeito é construído por meio da lógica neoliberal onde seus desejos e a identidade de si se exprimem por meio do neoliberalismo. Ou seja, o sujeito se identifica e tem seus desejos satisfeitos a partir e por meio da lógica neoliberal. Isso se exprime quando observamos a questão do consumo e do sucesso profissional, por exemplo. O sujeito se identifica e encontra sua felicidade a partir de sua diferenciação e/ou superioridade em relação ao outro. O que isso demonstra é que os valores colocados em pauta na sociedade são valores de reconhecimento de si e de pertencimento que reforçam a lógica da competição neoliberal.

O sujeito se encontra em uma realidade na qual ele se constitui em meio a uma lógica de competitividade. Isso significa que a única maneira de um sujeito se sentir pertencente e digno se revela por meio dessa lógica. Um exemplo disso é a busca do sucesso profissional, na qual o sujeito se identifica como produtivo e digno por meio do trabalho. Nesse sentido, o trabalho não é tratado somente uma forma de fazer dinheiro, mas como uma forma de identificação e de valor de si. No entanto, alcançar o sucesso por si só significa que outros não o alcançaram e, nessa lógica, há sempre que existir aqueles que “não chegaram lá”

(GUATTARI; ROLNIK, 1996).

Ter uma carreira de sucesso implica que você estará sempre acima de alguém. Logo, para se sentir completo ou satisfeito, o sujeito sempre precisará estar em um lugar que signifique estar acima de alguém, em um lugar de comando, já que sua forma de raciocínio se sobrepõe a

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do outro de alguma maneira, mesmo que inconscientemente. Em outras palavras, o sujeito sempre busca ser diferente, ter destaque, alcançar uma posição de “sucesso”. Nesse cenário, a desigualdade é latente e sempre presente como uma forma de validação individual, pois o sujeito precisa estar em desigualdade com o outro para se sentir bem.

Os processos de instalação das empresas transnacionais se tornam essenciais para o que se busca nesta seção da pesquisa. Isto porque, para além dos processos de mudanças materiais no cotidiano do cidadão, observa-se uma mudança clara na forma com a qual o indivíduo se relaciona com a sua empresa. Antes, no modelo fordista, o sofrimento psíquico era visto como um impedimento para a produtividade, ao passo que, com o neoliberalismo, o sofrimento se torna uma forma de lucro, uma nova barreira de exploração do trabalhador (SAFATLE, 2021).

A mudança fundamental aparece de maneira significativa quando abordamos a questão da centralidade das operações das empresas transnacionais. Como mencionado acima, elas se instalam globalmente em culturas locais, mas continuam seguindo ordens e culturas empresariais de sua matriz. Esse aspecto é fundamental para o que se busca aqui. Sendo o sofrimento psíquico uma nova forma de lucro, ele próprio se torna uma nova forma de se gerenciar o trabalhador e despolitizar a luta trabalhista.

Com a descentralização da lógica neoliberal por meio de instalações das empresas transnacionais ao redor do mundo, para além da alteração do espaço físico observa-se também uma alteração na relação trabalhador-trabalho. A narrativa neoliberal, ao entender o sofrimento psíquico como uma nova barreira de lucratividade, assume que esse aspecto pode ser explorado.

Esse processo irá impactar diretamente nas novas narrativas dentro das empresas, de maneira que, diretamente dos setores de recursos humanos dessas empresas, nasce a nova narrativa de identificação e reconhecimento, cultura empresarial, cooperação, comunicação, capital humano (SAFATLE, 2021).

Nesse ponto, nasce a falsa promessa de “trabalhe com o que você ama e você nunca terá que trabalhar um dia na vida” e narrativas como “você pode ser quem você quiser se trabalhar o suficiente”. Diante dessa mudança narrativa, o trabalho se torna um lugar de identificação de si, de sucesso, de vitória. Essa mudança da narrativa será essencial para entendermos o sofrimento psíquico como o vemos atualmente.

Outro ponto muito importante dentro desta análise é compreender o molde dos desejos dos sujeitos. Para além da lógica de competitividade, o neoliberalismo introduz a lógica do

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consumo. Atualmente, a forma pela qual o sujeito buscar identificar-se ou diferenciar-se é ligada intimamente à estética do consumo. Isso se reflete na maneira como o sujeito busca se vestir, decorar sua casa, por meio da busca de uma identidade, de um Eu. O neoliberalismo soube introjetar e captar esse aspecto de maneira muito bem-sucedida na produção da subjetividade – existe um desejo pelo neoliberalismo, uma vez que ele nos provê um senso de si que nos faz sentir identificados por meio do consumo (DARDOT; LAVAL, 2016).

Os desejos se instauram pelo sistema de consumo, no qual existe uma noção de que, ao consumir algo ou se ter alguma representatividade em uma compra – como uma decoração, roupa etc. –, o seu Eu estaria mais representado e mais reconhecido enquanto identidade única.

No entanto, a noção de si pelo consumo não se acaba, mas acaba fomentando a noção de que cada vez mais precisarei de outra decoração, outra roupa, ou outra forma de identificar-se que me represente de maneira adequada. Não há limite ao desejo: o sujeito está sempre precisando de algo que não tem para se sentir completo. Nesse quesito, a lógica do neoliberalismo representa uma eterna frustração do sujeito, ou seja, estamos sempre descontentes (DARDOT;

LAVAL, 2016).

O desejo sob a ótica neoliberal se torna uma ferramenta de articulação de emoções da população pelo poder público, o que demonstra uma forte articulação entre Estado e interesse econômico. Esse aspecto é elaborado de forma mais detalhada na seção 5.4 desta pesquisa.

3.2. A patologia dos dissidentes

A epidemia depressiva, portanto, nasce nesse contexto de constante abandono. Os sujeitos que não se sobressaem e que não se encontram nessa lógica neoliberal acabam por desenvolver doenças como depressão e ansiedade. Autores da psicanálise como Safatle, Junior e Dunker (2021) fazem um esforço de compreender o neoliberalismo enquanto gestor do sofrimento psíquico.

É identificado que sujeitos que não se adequam ao modus operandi do neoliberalismo desenvolvem doenças psíquicas diversas. Miranda e Chamon (2017) destacam a questão da patologização dos sujeitos improdutivos. O desenvolvimento dessas doenças se dá pela

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constante frustração de não se alcançar o sucesso, de ser um perdedor, de nunca encontrar essa felicidade ou satisfação “prometida” pelo neoliberalismo:

These losers that can’t seem to be able to meet the criteria of the success and happiness or who can’t seem to be able to handle the pressure of the staging of competitions are stigmatized, marginalized and medicalized. These subjects, then, have their demands for recognition frustrated, and end up putting in question their own worth as human beings. (MIRANDA;

CHAMON, 2017, p. 16).

Como analisado nas seções anteriores, ao se colocar enquanto um discurso moral, o neoliberalismo deixa de ser apenas um modelo econômico e passar a ser um imperativo para cidadãos de bem, uma moral a qual aqueles que não a possuem ou a defendem são vistos como pessoas sem caráter e não confiáveis. Essa mudança de discurso se torna uma excelente ferramenta de inserção do neoliberalismo em diferentes âmbitos da vida social, inclusive o âmbito psíquico (SAFATLE, 2021).

O discurso neoliberal articula a questão da liberdade de maneira completamente despolitizada, de forma que o neoliberalismo se articula enquanto uma engenharia social que advoga pela liberdade a todo custo. Nesse pensamento, a liberdade é vista como direito inviolável – pode-se dizer até sacro. A liberdade, portanto, dentro do discurso neoliberal, é realizada por meio do “exercício livre da propriedade” (SAFATLE, 2021, p. 9). Assim, a economia deve se ver livre de restrições estatais para operar da maneira que bem entender. O discurso neoliberal justifica esse livre agir da economia com a falsa promessa de se alcançar uma maior distribuição de riquezas em que ambos empregador e empregado sairiam satisfeitos de suas relações de trabalho.

Essas promessas, como é observado nas páginas seguintes da pesquisa, se manifestam de maneiras múltiplas, seja nos movimentos de reintegração de posse pelo poder público na cidade de São Paulo, seja na promessa da casa própria pelo programa MCMV. A população mais pobre é sempre afetada na promessa de uma economia mais forte, inclusiva e distribuidora de riquezas, da casa própria. No entanto, o que se observa na prática é o constante jogo de interesses neoliberais em detrimento do bem-estar da população.

Ao analisar o neoliberalismo enquanto discurso moral, é preciso compreender como ele se manifesta de maneira psíquica. Tendo como premissa que o neoliberalismo funciona enquanto o gestor do sofrimento psíquico que não somente gerencia, mas produz esse

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