Karina Joelma Bacciotti
Direitos Humanos e Novas Tecnologias da Informação
e Comunicação: O Acesso à Internet como
Direito Humano
MESTRADO EM DIREITO
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP São Paulo
Karina Joelma Bacciotti
Direitos Humanos e Novas Tecnologias da Informação
e Comunicação: O Acesso à Internet como
Direito Humano
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito, sob orientação do Prof. Livre-docente Wagner Balera.
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
Ainda que se trate de uma obra individual, uma Dissertação de Mestrado
não é um trabalho solitário. Meus agradecimentos, portanto, a todos que me acompanharam
nesta instigante tarefa de analisar o direito de acesso à Internet e contribuíram, direta ou
indiretamente, para a elaboração deste trabalho.
Ao Professor Wagner Balera, orientador dedicado e paciente, diuturno
incentivador desta pesquisa, notável cultor dos Direitos Humanos.
Ao Professor Willis Santiago Guerra Filho, cujo conhecimento e
compromisso com a reflexão filosófica do Direito foram estímulo e exemplo.
Aos Professores Carolina Alves de Souza Lima e Eduardo Dias de Souza
Ferreira, pelos ensinamentos ministrados em classe e valiosas contribuições no exame de
qualificação.
À Professora Roberta Alves Barbosa, pela amizade e encorajamento nos
estudos dos Direitos Humanos.
Aos meus pais, pela compreensão da ausência em momentos difíceis.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
“Pois o respeito à dignidade humana implica o reconhecimento de todos os homens ou de todas as nações como entidades, como construtores de mundos ou co-autores de um mundo comum. Nenhuma ideologia que vise à explicação de todos os eventos históricos do passado e o planejamento de todos os eventos futuros pode suportar a imprevisibilidade que advém do fato de que os homens são criativos, de que podem produzir algo novo que ninguém jamais previu”.
RESUMO
Diante das inúmeras inovações tecnológicas do século XX que atuam diretamente sobre a
informação e comunicação, a Internet, em especial, tem influído diretamente sobre o homem e
a sociedade, de modo que o acesso à Rede se tornou uma necessidade de nossa época e vem
declarado pela ONU como direito humano. Assim, a presente pesquisa objetiva examinar a
natureza jurídica do acesso à Internet e investigar se é possível considerá-lo um novo direito
humano relacionado às tecnologias informativas. Na construção do trabalho – resultado de
análise bibliográfica, normativa e jurisprudencial – foram abordados aspectos essenciais aos
Direitos humanos, à Internet, à relevância da Rede para os Direitos Humanos, seguidos de
considerações finais sobre o acesso. Como resultado, conclui-se que a Internet não se resume
na definição técnica de rede de transmissão de dados, nem pode ser vista apenas como meio
de comunicação, pois se tornou um verdadeiro locus onde todos os homens devem ter a possibilidade de ingressar e participar da vida comunitária. Portanto, o direito de acesso à
Internet vai além do mero acesso à infraestrutura necessária para a conexão, traz incorporado
o acesso a todo conteúdo e à capacitação ou alfabetização digital. Trata-se, enfim, de um
direito humano, exigência ideal de que cada homem e todos os homens possam ser
reconhecidos como pessoa neste novo espaço social.
ABSTRACT
Considering the many technological innovations of the Twentieth Century that act directly on
information and communication, the Internet in particular has directly influenced man and
society, so that the access to the Net has become a necessity of our time and was declared by
the UN as a human right. Thus, this research aims to examine the legal nature of Internet
access and investigate whether is possible consider it as a new human right related to
information technologies. While developing this study – result of bibliographic, normative
and jurisprudential analysis – essential aspects were addressed human rights, Internet’s
relevance for Human Rights, followed by concluding remarks on access. As a result, it is concluded that the Internet is not just the technical definition of a data transmission network,
nor it is only a communication means, it has become a true locus where all men should have the possibility to live and participate in community life. Therefore, the right to Internet access
goes beyond the mere access to the necessary infrastructure to get connected, has incorporated
access to all content and training or digital literacy. We are dealing with a Human Right, an
ideal requirement that every individual and all mankind can be recognized as a person in this
new social space.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...10
PARTE I - PRESSUPOSTOS ESSENCIAIS DOS DIREITOS HUMANOS ...15
CAPÍTULO 1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E HISTÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS ...15
1.1. PESSOA HUMANA: FUNDAMENTO PRIMEIRO DOS DIREITOS HUMANOS ...15
1.1.1. Escorço filosófico sobre o conceito de pessoa a fundamentar os Direitos Humanos . ...16
1.2. PERSPECTIVA CRONOLÓGICA DA AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. ...30
1.2.1 A primeira fase dos Direitos Humanos - o individualismo...33
1.2.2 A segunda fase dos Direitos Humanos - a questão social contraposta ao individualismo...36
1.2.3 A terceira fase dos Direitos Humanos - a fraternidade. ...39
CAPÍTULO 2 DIREITOS HUMANOS - IDEAL BALIZADOR DA NORMATIZAÇÃO...43
2.1. DIREITOS HUMANOS- NORMAS IDEAIS INERENTES À PESSOA HUMANA...43
2.2.A PREVALÊNCIA DIREITOS HUMANOS. ...47
2.3. DIREITOS FUNDAMENTAIS - ENFOQUE RELACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E SUA POSITIVAÇÃO...51
2.4.O RECONHECIMENTO DE NOVOS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO ESTATAL. ...55
2.5. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - CRITÉRIO IDENTIFICADOR DE NOVOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS ...58
2.6.CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS HUMANOS. ...63
PARTE II - NOVAS TECNOLOGIAS INFORMATIVAS E DIREITOS HUMANOS: O ACESSO A INTERNET COMO UM DIREITO ESSENCIAL ...70
3.1. ANÁLISE HISTORICA SOBRE A ORIGEM DA INTERNET: INDÍCIOS DE UMA TECNOLOGIA
TRANSFORMADORA DO HOMEM E DA SOCIEDADE...70
3.2.INTERNET - DE SUA DEFINIÇÃO TÉCNICA A UM CONCEITO SOCIAL ...78
3.3. RELEVÂNCIA DA INTERNET PARA A SOCIEDADE - MEIO HABILITADOR PARA O EXERCÍCIO DE DIREITOS HUMANOS ...84
3.3.1. Democracia e Internet ...85
3.3.2. A Internet e as Liberdades ...88
3.3.2.1. Liberdade de Comunicação e Internet ...93
3.3.2.2. Liberdade e Informação e Internet ...96
3.3.2.3. Liberdade de Expressão e Internet...100
3.3.3. A Internet e sua Relação como o Direito ao Desenvolvimento ...103
3.3.4. Brecha o Digital - fator prejudicial ao Desenvolvimento ...111
CAPÍTULO 4 RECONHECIMENTO DO ACESSO À INTERNET COMO UM DIREITO ESSENCIAL DO HOMEM DO SÉCULO XXI ...115
4.1.INTERNET COMO UM NOVO ESPAÇO DE VIVÊNCIA ...116
4.2.O DIREITO DE ACESSO À INTERNET ...118
4.2.1. Acesso à infraestrutura ...120
4.2.2. Acesso ao conteúdo ... 122
4.2.3. Acesso à Capacitação ...124
4.3. RESTRIÇÕES DE ACESSO À INTERNET- VIOLAÇÕES DE DIEITOS HUMANOS...128
4.3.1. Restriçoes de acesso de caráter preventivo...129
4.3.2. Restrições de acesso de caráter repressivo ...132
4.3.3. Restrições de acesso à internet - a legitimidade em questão...133
4.4.O TRATAMENTO OFERTADO AO ACESSO À INTERNET NO DIREITO COMPARADO...137
4.5. O ACESSO NO MARCO CIVIL DA INTERNET E EM OUTRAS INICIATIVAS NORMATIVAS BRASILEIRAS ...150
CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O DIREITO HUMANO DE ACESSO À INTERNET ...161
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, o avanço da tecnologia tem provocado agudas
transformações na vida do homem em sociedade. Sem menosprezar os mais importantes
marcos históricos do processo evolutivo da técnica, é possível afirmar que a imersão do
homem em um mundo digitalizado – a sociedade da informação ou comunicação– representa
uma transformação de categoria e de traços culturais que permite às pessoas se situarem e
reconhecerem neste novo locus social.
Deste modo, a situação do homem e da vida em sociedade, em face do uso
da Internet, tornou-se um novo paradigma para o Direito. A Rede Mundial trouxe consigo a
necessidade de reinterpretar as noções de privacidade, intimidade, proteção de dados pessoais,
honra, propriedade, liberdade, dentre tantos outros direitos até então relacionados apenas a
situações do mundo material.
Se a maior parte das pesquisas jurídicas relacionadas à Internet trata apenas
de aspectos penais ou civis pertinentes ao uso da tecnologia, cumpre trilhar um caminho
diverso: tomar como ponto de partida os Direitos Humanos. A Rede das Redes, antes de
representar um obstáculo ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, deve ser interpretada
como instrumento de promoção social e individual.
Neste trabalho objetiva-se examinar a natureza jurídica do acesso à Internet
e investigar se é possível considerá-lo um novo direito humano relacionado às tecnologias
informativas, nos moldes em que foi apresentado na Declaração Conjunta sobre Liberdade de
Expressão e Internet (2011), subscrita por instituições de vanguarda como as Nações Unidas
(ONU), a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), a Organização dos
Estados Americanos (OEA) e a Comissão Africana dos Direito Humanos e dos Povos
A tarefa empreendida nesta Dissertação resume-se ao estudo de noções
elementares fundamentais à compreensão do direito humano de acesso à Internet. Embora
claro e direto, o tema pode ser considerado complexo, não apenas por serem escassas as
fontes legais, jurisprudenciais e doutrinárias, mas também, em virtude da relevância e
atualidade da matéria.
A estrutura do trabalho reflete as etapas de desenvolvimento da pesquisa
realizada no âmbito do núcleo de estudos em Direitos Humanos, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Os fundamentos apresentados na primeira parte coincidem com o
temário de disciplinas como Direitos Humanos, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais e
Filosofia do Direito, cursadas a partir do primeiro semestre. Por sua vez, as noções
apresentadas na segunda parte destinam-se a elucidar conceitos referentes à Internet, esta
nova tecnologia revolucionária, e a relacioná-los com os temários discutidos no início do
estudo.
Os dois capítulos que integram a primeira parte dispõem sobre os
pressupostos essenciais dos Direitos Humanos. O capitulo inicial traz considerações acerca
dos pressupostos filosóficos e históricos dos Direitos Humanos, que têm na pessoa humana o
seu fundamento primeiro. São apresentadas as principais orientações filosóficas sobre a
pessoa humana, estrutura da evolução dos Direitos Humanos na história moderna.
Apresenta-se, em sínteApresenta-se, como a pessoa humana – ser social por essência – era compreendida e a
repercussão desta perspectiva na construção dos Direitos Humanos.
A afirmação dos Direitos Humanos dá-se na era moderna e encontra na
liberdade, estribada no pensamento individualista, sua primeira expressão. Ganhou novos
matizes com o passar do tempo, quando fundidas a igualdade advinda da compreensão da
pessoa como um ser social e as responsabilidades da vida em sociedade.
Contudo, a ampliação do catálogo de direitos é fruto de um movimento
evolutivo pendular, que permitiu incrementar a promoção da pessoa humana mesmo após um
grave período de retrocesso das garantias fundamentais. O despontar de novos direitos
esteia-se no reconhecimento de que todos os homens contêm em si uma centelha humana que os faz
O estudo desenvolvido no capítulo segundo busca identificar o papel dos
Direitos Humanos na formulação das normas jurídicas. Enquanto ethos do direito, os Direitos Humanos são exigências ideais que encontram fundamento na própria natureza humana – na
dignidade inerente a toda pessoa humana – e da qual também decorrem deveres ideais
correlatos às exigências. Portanto, observa-se especial relação com o direito natural e com a
ideia de justiça, entendida no sentido indicado por São Tomas de Aquino, como uma virtude
direcionada à convivência humana, que requer de cada homem uma atitude de respeito à
dignidade da pessoa humana.
Tomados os Direitos Humanos como normas ideais, expressão atual dos
direitos naturais, possuem em si um caráter prevalente que impele o legislador a observá-lo
quando da formulação do direito positivo. Daí advém especial relação entre Direitos
Humanos e direitos fundamentais, enquanto expressão positiva dos direitos ideais ínsitos à
natureza humana, na norma jurídica mais importante de um sistema jurídico – a Constituição
Federal.
Inerentes à própria essência natural do homem, à história dos direitos
humanos e de seu correlato na ordem positiva estatal, os direitos fundamentais encontram-se
em constante transformação: a proteção da dignidade da pessoa humana, em face da dinâmica
social, requer o aprimoramento contínuo dos estatutos jurídicos. Assim, o conceito de
dignidade serve ao direito como elemento moderador dos anseios sociais, que nem sempre se
conformam com o fim do Estado, no que toca à proteção e promoção do desenvolvimento de
toda pessoa humana.
Da dignidade inerente a toda pessoa humana, deflui também um rol de
caracteres que conferem aos Direitos Humanos – e a seu correlativo no âmbito constitucional
– peculiaridades únicas, que tornam possível identificar um direito como essencial ao homem.
Concluídos os estudos preliminares, a segunda parte da pesquisa conjuga
novas tecnologias informativas e Direitos Humanos, com o objetivo de promover o
reconhecimento do direito humano de acesso à Internet. Portanto, no capítulo terceiro,
importa estudar relevantes aspectos da Rede Mundial de Computadores. Discorre-se,
inicialmente, sobre a origem da Internet, para demonstrar os indícios ideológicos que a
de transmissão de dados é superada pelo conceito social que revela o homem, não a
tecnologia em si, como elemento essencial das conexões em rede. Ou seja, não são as
máquinas que estão conectadas, mas as pessoas que se relacionam no entorno digital por meio
da Internet.
A Internet ampliou sensivelmente as liberdades humanas de comunicação,
informação e expressão. Tornou-se, assim, um catalisador de transformações sociais capaz de
fortalecer o processo democrático, ampliar o contato entre pessoas, aproximar os cidadãos dos
órgãos estatais, aperfeiçoar a prestação de serviços públicos e facilitar o acesso a documentos
e informações contidas em bibliotecas virtuais.
É evidente o importante papel desempenhado pela Rede Mundial na
promoção direta do direito ao desenvolvimento, expressão valorativa do processo de
apropriação de direitos humanos, ao libertar o homem das situações opressoras que impedem
sua plena existência. Entretanto, inúmeras barreiras físicas, políticas, econômicas e sociais
dificultam ainda o acesso à Internet em inúmeras localidades.
No quarto e último capítulo, a Internet deixa de ser vista como simples meio
de comunicação por onde transitam dados de uma parte a outra, para se firmar como um
verdadeiro espaço de convivência. Um novel domínio público, lugar da palavra e da ação1,
onde o homem pode revelar seu valor diante dos outros e assim buscar o próprio
aprimoramento; um espaço de convivência, onde o ser humano desenvolve suas mais
rotineiras atividades.
A partir de este olhar sobre a Internet erige-se o direito ao acesso à Rede
como o direito de tomar parte neste novo locus. Porém, como se verá, o acesso não se restringe à conexão, não representa mero direito de acesso a um serviço, mas possibilidade
concreta de participar dos acontecimentos que se desenvolvem no ciberespaço. O acesso, que
deve ser universal, compreende três dimensões: acesso à infraestrutura; acesso ao conteúdo e
acesso à capacitação. Se o acesso ao conteúdo é dimensão fundamental para estar na Rede, as
restrições parciais ou totais, preventivas ou repressivas, impostas por Estados em geral não
democráticos, são de duvidosa legitimidade e possivelmente configuram uma real violação a
direitos.
Tratando-se de um trabalho jurídico, cumpre analisar as iniciativas
normativas que dispõem sobre este novo direito humano. Diante de iniciativas legislativas
concretas e de manifestações das principais organizações internacionais de promoção dos
Direitos Humanos, favoráveis ao reconhecimento do acesso à Internet como um direito
fundamental, resulta oportuno e necessário dedicar maior atenção ao tema. Devem ser
examinadas nesta Dissertação de Mestrado, as principais noções sobre o direito fundamental
ao acesso à Internet, que veiculadas em periódicos internacionais e consignadas em relatórios
sobre Direitos Humanos, são também taxativamente apresentadas nas legislações da Estônia,
Costa Rica, Peru e Finlândia.
Importante analisar, ainda, como o direito de acesso à Internet figura no
ordenamento jurídico brasileiro e em propostas legislativas. É sabido que a Lei nº.
12.965/2014 (Marco Civil da Internet), promulgada recentemente, menciona expressamente o
direito de toda pessoa ter acesso à Rede. Na atualidade, tramitam também duas Propostas de
Emenda à Constituição2, cujo objetivo é incluir o acesso à Internet no rol de direitos
fundamentais da Carta Maior.
Em síntese, os estudos empreendidos têm por meta analisar a natureza
jurídica do acesso à Internet e opinar sobre sua afirmação como direito humano e/ou
fundamental.
PARTE I – PRESSUPOSTOS ESSENCIAIS DOS DIREITOS HUMANOS.
CAPÍTULO 1 – CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E HISTÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS.
O estudo acerca dos Direitos Humanos encontra suas bases na pessoa
humana. Assim, este capítulo procura apresentar as principais orientações filosóficas sobre a
pessoa humana, em estudo que embora não seja exaustivo, pretende contribuir para uma visão
dos Direitos Humanos ao longo da história moderna, tema que sofreu os influxos da
compreensão da pessoa no decorrer dos séculos.
1. 1. PESSOA HUMANA, O FUNDAMENTO PRIMEIRO DOS DIREITOS HUMANOS.
Falar em Direitos Humanos é falar de direitos que decorrem diretamente da
natureza humana. A compreensão dos Direitos Humanos perpassa primeiramente pela
intelecção do homem, da pessoa humana, pois só a partir deste conhecimento da essência do
ser humano poderá existir e desenvolver-se plenamente. Sem este entendimento, o homem
usará mal sua humanidade, e consequentemente, a sociedade não funcionará, pois como
ensina Arthur Kaufmann, o direito é o resultado da própria ideia de homem3.
A pessoa é o eixo em torno do qual serão desenvolvidos os preceitos
éticos, os direitos naturais e, pois, os direitos humanos. Mas a intelecção deste conceito não é
extraída do sentido jurídico da palavra, de sujeito das relações jurídicas e, portanto, do sujeito
dos deveres jurídicos e dos direitos subjetivos, antes, o fundamento para que o homem seja
considerado um sujeito de direitos e deveres, está na Filosofia.
De acordo com a Filosofia, a pessoa é a expressão da essência do ser
humano, essência que não pode ser apreendida pelo estudo do ser, mas pela conjugação da
ontologia com a filosofia moral, pela participação do homem no mundo dos valores éticos,
como o ser sobre o qual pesa sempre um dever ser, uma missão moral de auto realizar-se, por
sua própria conta e responsabilidade. É do ponto de vista ético que a pessoa é definida como
ser com dignidade, ser com fins próprios que deve realizar-se por sua própria decisão4.
Ao longo da história do pensamento filosófico, o conceito de pessoa
adquire diferentes matizes. Não se pretende aqui esgotar o estudo do tema, apenas demonstrar
como ao longo do tempo o homem foi compreendido por alguns pensadores, tendo por termo
a pessoa contida na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, marco da cultura
jurídica do pós-guerra.
1. 1. 1. Escorço Filosófico sobre o Conceito de Pessoa a Fundamentar os Direitos Humanos.
Durante longos séculos, o ser humano foi considerado um ser racional,
pensante, individual e autossuficiente. Esta primeira etapa do pensamento filosófico apresenta
apenas dimensões parciais da pessoa, posteriormente complementadas pelo estudo do homem
como ser um ser no mundo, um ser que se relaciona com o mundo, com o outro e também
com o absoluto.
Fábio Konder Comparato, ao estudar a situação do homem no mundo,
identificou na filosofia grega os primeiros estudos sobre o tema5.
4
Cfr. SICHES, Luis Recaséns. Tratado general de filosofia del derecho. 19ª ed., México: Editorial Porruá, 2008. pp. 244-245.
Retrocedendo ao período do pensamento pré-socrático (séculos VII a V
A.C.), vê-se que as investigações filosóficas se centram na distinção dos elementos básicos do
universo, buscam compreender a origem de todas as coisas e as mutações sofridas pelo devir.
O ser humano não vem abordado com precisão nas cogitações metafísicas, como se vê, v.g.,
em Tales de Mileto, para quem o homem era um ser racional e consciente de seu próprio ser e
de suas potencialidades e de seu destino. Consoante o filósofo grego, a alma humana era
automotivadora, impulsionava o agir do homem6.
Ao final do período pré-socrático, os sofistas abandonaram a metafísica, em
busca de uma verdade absoluta e objetiva, concentrando esforços em uma reflexão crítica a
respeito do conhecimento humano. Adentraram, de certo modo, na análise da racionalidade
humana ao questionar a possibilidade e a certeza do conhecimento. Protágoras, partindo da
premissa de que o homem é a medida de todas as coisas, das que existem e das que não
existem, tomou-o como a medida do conhecimento, da ética, das crenças religiosas, tornando
dispensável a existência de leis divinas, alheias à consciência humana. Visão que o levou a
defender e ensinar a relatividade diante de todas as coisas, inclusive, quanto ao aspecto ético,
que para ele é subjetivo – a minha noção de ética é só minha e a tua é só tua – e tudo se torna
igualmente válido. Em Heráclito, e sua doutrina do Logos (razão), vê-se no homem a
existência de uma razão universal que lhe confere conhecimento, no entanto, essa razão é uma
dádiva divina.7 Interessante destacar que esta doutrina foi posteriormente resgatada e
aprimorada pelos estóicos e pela teologia cristã.
Neste momento inicial é possível observar que a sofistica, ao introduzir o
problema dos fundamentos do conhecimento (gnosiologia), trouxe o homem para o centro da
questão filosófica.
No período clássico grego, que congrega as contribuições de Sócrates,
Platão e Aristóteles, o homem permanece como a grande indagação filosófica.
Sócrates faz do homem o epicentro de suas investigações, quanto conhecimento ao valor. Reagindo ao ceticismo e ao relativismo sofistas, o grande filósofo ateniense defende que a característica primeira do ser humano é a sua capacidade cognoscível.
6 Cfr. CHAMPLIN, Russel Norman; BENTES, João Marques. Enciclopédia de bíblia, teologia e filosofia. Editora e Distribuidora Candeia, São Paulo, SP. 1991, V. 2, p. 780; V. 6., p. 396.
Dotado de uma mente universal, através do raciocínio o homem pode alcançar o
conhecimento verdadeiro e universal. Ao ser capaz de formular conceitos, consegue revelar o
que vem a ser a verdade sobre as coisas naturais e abstratas, consegue expressar o que é
sabedoria, a coragem, a justiça, as virtudes morais. Sócrates, por tratar o conhecimento como
uma virtude, percebe que a realidade humana só pode ser explicada pela razão e pelo espírito.
Essa dimensão espiritual leva-o a desenvolver uma ciência do espírito, cuja função é
disciplinar a conduta humana em direção ao “bem” – pois só aquele que age de acordo com as
regras do bem (quem age com bondade e justiça) torna-se um homem melhor. Introduz,
então, os valores como uma nova dimensão da realidade humana8.
Platão, discípulo de Sócrates, parte do princípio de que o conhecimento não
pode ser encontrado no mundo sensível (da percepção dos sentidos, das opiniões), só é
alcançado no mundo das ideias (que para ele faz parte da razão pura e equivaleria a Deus) e o
acesso a este mundo se dá por meio de um processo mental de contemplação, de educação,
que é capaz de conduzir o homem à descoberta da verdade e dos valores absolutos (bem,
bondade, beleza). Em Platão, a natureza humana decorre de sua espiritualidade, do domínio
que o ser humano exerce sobre seus sentidos, de modo que o conduza ao absoluto, ao
conhecimento de Deus, e consequentemente, ao conhecimento dos valores absolutos
(bondade, verdade e beleza), já que para ele o conhecimento não está a serviço da apreciação
das coisas, mas para que através dele o homem se torne melhor9.
Em Aristóteles, a questão humana adquire maior protagonismo. Desde sua
metafísica, ao observar que a substância é preponderante à forma – ao dizer que Sócrates é
um homem, mas é mais do que seu corpo material – impõe a existência de uma dimensão
superior que distingue os homens das demais coisas materiais. Esta dimensão superior lhe foi
dada por deus e é ela que conduz o homem em seu conhecimento, no exercício de sua
racionalidade, tornando-o capaz de discernir o que é universal, e assim descobrir a essência
das coisas. Deste modo, a principal virtude do homem é sua razão, que deve conduzi-lo
sempre à busca da verdade, que é a mais alta felicidade. Segundo o pensamento aristotélico, já
agora em um plano ético, o telos da vida humana é a virtude, e não o prazer. Virtude alcançada por meio do disciplinamento da razão, de modo que o homem virtuoso é aquele que
evita extremos, que se pauta pela justiça. Em sua política, vemos pela primeira vez a
8Cfr. CHAMPLIN, Russel Norman; BENTES, João Marques. Enciclopédia de bíblia, teologia e filosofia. V. 2, p. 780; V. 6., pp. 322 - 325.
afirmação de que o Estado existe visando o bem do homem, de modo que a vida social
aparece como objetivo da existência humana, pois isolado o homem não é autossuficiente.
Cada ser humano, cada indivíduo, possui diferentes habilidades e cada um deve exercer as
habilidades que tem em favor da vida comunitária; do mesmo modo, cada homem deve ser
tratado pela justiça de acordo com as suas diferenças10.
Na filosofia clássica, percebe-se que o homem é considerado como um ser
de natureza racional, que se realiza em um contexto comunitário, na polis11. Desse modo, constata-se que o homem é um elemento dentro do universo do Estado e, portanto, a noção de
pessoa relaciona-se às funções e atividades desempenhadas pelo individuo na sociedade
(prosopon) e não à sua essência de ser humano.
Os estóicos foram os responsáveis por introduzir a palavra pessoa na
filosofia. Explica Fábio Konder Comparato, o pensamento estoico introduziu a oposição entre
prosopon (função social, traduzida pelos romanos em um sentido de máscara teatral – persona
– que designa um personagem) e hypóstasis, a essência do individual de cada ser humano (posteriormente denominada personalidade).12 O pensamento estoico organizou-se em torno
das ideias de unidade moral do ser humano e dignidade do homem, de sua filiação divina
(filho de Zeus), em razão da qual passa a ser “possuidor de direitos inatos e iguais em todas as
partes do mundo, não obstante as inúmeras diferenças individuais e grupais” 13. Alude a uma
unidade substancial do ser humano, deixando de lado a função social de cada homem na
sociedade, e serve de fundamento para o conceito atual de pessoa.
Inegável, também, a grande contribuição da tradição judaico-cristã. Assim
como os estóicos, os judeus defendiam a filiação divina do homem. Com o advento do
cristianismo, a tradição judaica é cindida, não há mais no plano espiritual um povo escolhido
para receber a benesse de ser filho de Deus e herdar sua essência; a filiação divina passa a ser
comum a todos os homens, sejam gregos ou judeus, escravos ou homens livres, homem ou
10Cfr. CHAMPLIN, Russel Norman; BENTES, João Marques. Enciclopédia de bíblia, teologia e filosofia. V. 2, p. 780; V1, pp. 275-278.
11
Cfr. MONDIM, Battista. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica. Trad. José Maria de Almeida, São Paulo: Paulinas, 1997, p. 400.
mulher14. O conceito de pessoa atrela-se à filiação divina, a razão seria então uma centelha da
imagem de Deus em nós, a conferir dignidade que é comum a todos os homens.
Inequivocamente, o conceito contemporâneo de pessoa encontra no
pensamento medieval de Santo Agostinho, Boécio e São Tomás de Aquino, o seu berço.
Valle Labrada Rubio afirma que o conceito de pessoa nasce com o
cristianismo. Os primeiros autores cristãos viram-se obrigados a explicar a identidade de Deus
revelada por Jesus Cristo. Deus é Uno e Trino, três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro.
Afirma o professor espanhol que o conceito de pessoa parte, portanto, da filosofia e da
teologia cristãs15. Do mistério de Deus, passa-se ao mistério do homem. A existência de um
Deus pessoal, que se faz homem, Jesus Cristo, não só explica a essência humana, mas que
Jesus Cristo em sua natureza humana dignifica toda pessoa humana16.
Santo Agostinho apresenta um rigoroso conceito de pessoa. Para o eminente
teólogo, o ser humano não é uma substância individual, mas a união de corpo e alma,
substância material individual e espírito divino, imagem e semelhança de Deus. O homem
segundo Santo Agostinho tem que ser considerado a partir da relação que tem com Deus.
Em minucioso estudo sobre Santo Agostinho, Joel Gracioso aponta dois
tipos de origem, gerada de ipso, quando Deus gera algo a partir de sua própria substância (o que ocorre no interior da Trindade), e gerada ex ipso, que se refere ao ato de Deus dar o ser. Em lapidar explicação o homem é apresentado como um grande bem, apenas atrás do Sumo
Bem que é Deus:
“(...) Assim, a origem ex ipso das criaturas as coloca entre Deus (o ser) e o nada (não-ser). Mas, apesar disso, eles não deixam de ser e de ser um bem, pois, se tudo o
14 A filiação divina no contexto bíblico é apresentada de dois modos: i) no livro do Gênesis (1: 26-28) os homens (incluindo toda a espécie humana) são criados à imagem e semelhança de Deus, ou como diz no livro dos Atos ( 17: 28) são “geração “de Deus; e ii) nos livros de João (8: 44), Romanos (8:29), é apresentada mediante a fé, por isso não há mais um povo escolhido, mas agora todos os que creem em Cristo são considerados filhos de Deus. 15
Na obra Por um Humanismo Cristão, Jacques Maritain afirma que a “... expressão ‘filosofia cristã’ não designa simplesmente uma essência, mas um complexo: uma essência tomada sob certo aspecto. (...) A filosofia cristã não é uma doutrina determinada, (...). É, ao contrário, a própria filosofia enquanto posta naquelas condições de existência e de exercício absolutamente característicos, onde o cristianismo introduziu o sujeito pensante, de maneira que ela veja certos objetos, estabeleça validade certas asserções, que, em outras condições, lhe escapariam mais ou menos”. (in. MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo Cristão. Coleção Ensaios Filosóficos, São Paulo: Paulus, 1999, pp.85-86).
16 Vid. RUBIO, Valle Labrada. Introducción a la teoria de los derechos humanos; fundamento, história,
que existe procede de Deus, único princípio e sumo bem, então tudo é um bem, não havendo, portanto, nada que seja mau em si mesmo. (...) O bispo de Hipona entende que Deus é o princípio de toda medida (modus), de toda forma (species) e de toda ordem (ordo), os quais são predicados gerais, presentes em todas as criaturas, tornando-as, assim, coisas boas. Qualquer que seja a criatura analisada, corporal ou espiritual, Deus lhe concedeu a medida, a forma e a ordem. De acordo com o grau desses atributos, a criatura que os possui será um grande ou um pequeno bem. Onde encontramos essas três coisas em grau elevado temos grandes bens; onde em grau inferior, temos pequenos bens e onde em grau zero não há bem algum17.
Battista Mondim esclarece que a intenção do bispo de Hipona18 era
encontrar um termo que pudesse se aplicar diretamente ao Pai, ao Filho, e não ao Espírito
Santo, sem correr, de uma parte, o risco de fazer deles três deuses, e de outra parte, sem
dissolver a sua individualidade. Ele mostra que os termos essência e substância não possuem
esta dupla virtude. Ao contrário, pertence ao termo grego hypóstasise e ao seu correlativo latino persona, que não significa uma espécie, mas algo de singular e de individual. Analogamente, este vocábulo aplica-se também ao homem: singulus quis que homo una persona est19.
Retomando os estudos de Santo Agostinho, e firmando um diálogo com a
filosofia grega, Boécio apresenta a pessoa como a substância individual de natureza racional;
deixando de lado a exterioridade da função social, a pessoa passa a ser a própria substância do
homem, “num sentido aristotélico: ou seja, a forma (ou fôrma) que molda a matéria e que dá
ao ser de determinado ente individual as características de permanência e invariabilidade” 20.
A pessoa é um indivíduo único, diferente de tudo e de todos os demais, em razão da
consciência que tem de si próprio, da capacidade de pensar, de sentir e de relacionar-se com
outras pessoas, mas sobretudo, por sua essência espiritual – pela alma – que conduz suas
ações. Deste modo, o homem não é qualquer tipo de ser vivente: ele é uma pessoa.
São Tomás de Aquino, no século XII, revisita as lições de Boécio, e parte da
premissa de que o homem é um ser de natureza racional, porém, julga mais adequado utilizar
o termo “substância completa”, em oposição à “substância racional”. Daí dizer que a pessoa é
17
GRACIOSO, Joel. A Relação entre o problema de Deus e a questão do mal no livro VII das Confissões de Agostinho de Hipona, 2003. Dissertação (mestrado em filosofia), Universidade de São Paulo, São Paulo, pp.57-58.
18
Como conhecido Santo Agostinho, por haver sido ordenado bispo de Hipona, cidade argeliana, no ano de 391, assim tendo permanecido até a sua morte, em 430,
19Vid. MONDIM, Battista. O homem. Quem é ele? Elementos de antropologia filosófica. Trad. R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, São Paulo: Paulinas, 1977, p. 286.
“uma substância completa, em si mesma subsiste, com independência de outro sujeito” 21. O
homem é considerado pessoa porque tem consciência do que o leva a agir; diferentemente dos
animais, é um ser livre e autônomo. Consciência atribuída à razão, que para São Tomás é a
expressão da imagem de Deus nos homens. Ressalta o Doctor Angelicus, três tendências
fundamentais no homem, traduzidas na conservação do próprio ser; na conservação da
espécie, e na vida social e cultura22.
A contribuição relevante do pensamento tomista é que o homem enquanto
criatura divina é o mais perfeito de todos os seres, pois, em razão de sua semelhança com
Deus, caracterizada pela racionalidade, é livre e responsável por eleger seu destino. Portanto,
constitui em si um valor absoluto, é um fim em si mesmo. Diante dessa posição, o Estado
deve reconhecer a personalidade humana e colocar-se a serviço de todos os homens, não
cabendo à comunidade identificar quais homens serão considerados cidadãos, e portanto
pessoas, e quais serão tratados como coisas. As lições de São Tomás de Aquino representam
os fundamentos do cristianismo que até hoje são relembrados e aprimorados pela Filosofia23.
Em linhas gerais, na Filosofia antiga o conceito de pessoa foi empregado
para designar o ser racional como indivíduo consciente, com vistas a aplicá-lo
fundamentalmente ao homem. A pessoa era definida como uma substância indivisa da
natureza racional, ou como aquele que é um por si, ou o indivíduo de natureza racional. Ainda
de acordo com o ilustrado jurista, filósofo e sociólogo, nos primeiros tempos da Filosofia
moderna há defensores da pessoa como um ser racional reflexivo e autoconsciente; no
entanto, as definições construídas no período antigo tratam de expor a pessoa - enquanto o
próprio ser humano – como uma coisa, uma substância que se diferencia das demais, em
virtude de características especiais (indivisibilidade, racionalidade, vontade). Ainda assim,
uma coisa, um de tantos outros entes no mundo, distinto dos demais por peculiares
dimensões: seria uma substância (portanto, como as outras substâncias), mas indivisível, com
racionalidade e com vontade. É dizer, insere-se a pessoa no plano da ontologia clássica, como
21
TOMÁS DE AQUINO. Santo. Suma teológica. Madrid/Barcelona: BAC, 1957, III, q. 16, a. 12, ad 2, p. 231. 22
Cfr. RUBIO, Valle Labrada. Introducción a la teoria de los derechos humanos: fundamento, história, declaración universal de 10.XII.1948. p.35.
um ser entre os outros seres que, embora com traços privativos que o diferenciam dos demais,
tem dimensões comuns com estes24.
A compreensão substancial do homem permitiu a escravidão, a servidão
existente e aceita na Grécia e na Roma Antiga, adentrando todo o período medieval até o
século XVIII. Porém, forçoso frisar que a partir deste primeiro olhar ontológico há o início de
uma noção de igualdade fundada na individualidade, na função exercida por cada indivíduo
na sociedade.
Mas o pensamento cristão, principalmente de São Tomas de Aquino, ao
investigar a pessoa em paralelo com o Deus criador, influenciou o pensamento filosófico do
século XX, a exemplo de Jacques Maritain.
Em Maritain o ser humano é indivíduo e pessoa. Enquanto indivíduo faz
parte de um mundo maior, do universo, tal qual qualquer outro ser (animais, plantas,
minerais) e se sujeita às leis da natureza, porém, enquanto pessoa é um ser espiritual, que não
existe apenas fisicamente, mas sobre-existe espiritualmente em conhecimento e em amor, de
tal modo que em algum sentido é um universo por si, um microcosmo no qual pode ser
compreendido todo o universo: “(...) a pessoa humana possui estas características porque, em
definitivo, o homem, esta carne e este osso transitórios que um fogo divino faz viver e agir,
existe ‘desde o útero ao sepulcro’, por obra mesma de sua alma que domina o tempo e a
morte” 25.
A religião exerceu papel fundamental na defesa da pessoa, notadamente o
catolicismo que, através da fé, na crença em Deus e nos homens, teve larga influência no
mundo ocidental. O principal documento que se tornou um marco no cristianismo
contemporâneo foi a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, promulgada pelo Concilio Vaticano Segundo, que tem por fundamento o homem e sua dimensão pessoal. “Trata-se, com
efeito, de salvar a pessoa do homem e de restaurar a sociedade humana. Por isso, o homem
24Cfr. SICHES, Luis Recaséns. Tratado general de filosofia del derecho. p. 246.
será o fulcro de toda a nossa exposição: o homem na sua unidade e integridade: corpo e alma,
coração e consciência, inteligência e vontade” 26.
Na Encíclica Pacem in Terris, o Papa João XXIII afirma que, em “... uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser
humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão,
possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria
natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e
inalienáveis” 27.
Ainda, ressalta o Papa João Paulo II, na Encíclica Redemptor Hominis, essa singular realidade do ser e do agir, da inteligência e da vontade, da consciência e do coração
— “porque é pessoa” —, com uma própria história da sua vida e, sobretudo, uma própria história da sua alma28.
Feita esta breve incursão sobre a pessoa no pensamento cristão, cumpre
retroceder para atentar como, após as lições de São Tomás de Aquino, evolui a reflexão
filosófica sobre o homem/pessoa.
No Discurso do Método, Descartes rompe com os anteriores pressupostos filosóficos, ao ressaltar haver conhecido que era uma substância cuja completa essência ou
natureza consistia em pensar. Na formulação penso, logo existo, reconhece que “para pensar, é preciso existir” 29, erigindo a consciência ou o pensamento em causa da existência.
26
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral sobre a igreja no mundo contemporâneo: Gaudium et Spes. Disponível em http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html> acesso em 03de novembro e 2012.
27 PAPA JOÃO XXIII. Carta Encíclica Pacem in Terris. Disponível em
<http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xiii_enc_11041963_pacem_po.html> acesso em 30de Julho e 2013.
28 PAPA JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Redemptor Hominis. Disponível em <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_04031979_redemptor-hominis_po.html> acesso em 28de fevereiro de 2014. Enfaticamente proclamado pelo Papa Bento XVI, na Encíclica Caritas in Veritate, “... que o autêntico desenvolvimento do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões.” (Capítulo I, n.11). disponível em <http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_po.html> acesso em 27 de agosto de 2013.
29
Immanuel Kant trouxe a discussão sobre o homem para o plano da moral, da
ética. Para o pensador de Königsberg, não é possível compreender o que é a pessoa se
examinamos só o seu ser; há que considerar inerente ao próprio homem uma ideia ética, já
que é um ser capaz de possuir a si mesmo e manifestar-se de acordo com sua razão. Nesse
sentido, defende que a personalidade é liberdade e independência do mecanismo de toda a
natureza, e que os seres racionais são denominados pessoas por constituírem um fim em si
mesma, melhor dizendo, algo que não deve ser empregado com um mero meio, algo que em
virtude de sua relação com a ética, contém uma vontade que a torna um ser extremamente
diverso das coisas, diverso em razão de sua posição e dignidade30.
As ideias de posição e de dignidade representam algo inteiramente novo em
comparação às demais coisas; não são apenas características especiais localizadas no plano do
ser do homem, não derivam do especial modo de ser, senão que se depreendem de uma
consideração ética, ou seja, a pessoa é definida não só por sua especial dimensão de um ser
(racional e individual), mas descobrindo nela a projeção do mundo da lei moral (liberdade).
Em razão desta lei moral projetada na pessoa, ela passa a ter um fim próprio a cumprir, e deve
cumpri-lo por determinação própria. Esta lei moral está sintetizada no imperativo que diz:
“age de tal maneira que possa usar a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de
qualquer outro, sempre e simultaneamente com fim e nunca como meio” 31.
Assim, a pessoa é aquele ser que tem fim em si mesmo, e precisamente por
isso, possui dignidade, a diferença de todos os demais seres e das coisas – que têm um fim
fora de si – que servem como meio para lograr fins alheios e, portanto, possuem um preço. A
pessoa por ser sujeito da lei moral autônoma, é o único ser que não tem um valor somente
relativo, ou seja, um preço (que é próprio de todas as coisas), mas antes um valor em si
existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas seguia-se mui evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria qualquer razão de crer que eu tivesse existido; compreendi por aí que era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é” (in. DESCARTES, René. Discurso do Método, Meditações, Objeções e Respostas, As Paixões da Alma, Cartas. vol. XV, São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp.54-55).
30 Cfr. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos costumes e outros escritos. trad. Leopoldo Holzbach, 2ª. reimp., São Paulo: Martin Claret, 2011. p. 58.
mesma (dignidade), que constitui um auto-fim32. Pode-se dizer então que, para Kant, o
homem é considerado pessoa em virtude de sua eminente dignidade33.
Karl Marx considera a pessoa como resultada da socialização do homem.
De acordo com sua ideologia o homem só será emancipado ao tomar consciência de classe.
Para Marx, o homem:
“(...) por mais que seja um indivíduo particular, e justamente é a particularidade que faz dele um indivíduo e um ser social individual efetivo — é, na mesma medida, a
totalidade, a totalidade ideal, o modo de existência subjetivo da sociedade pensada e sentida para si, do mesmo modo que também na efetividade ele existe como intuição e gozo efetivo do modo de existência social, quanto como uma totalidade de exteriorização da vida humana34.
Contrapondo-se ao racionalismo idealista de Kant, o existencialismo propõe
identificar-se a pessoa humana com a sua existência, com as suas circunstâncias. Sartre,
afirma representar o existencialismo ateu, ao declarar que,
“(...) se Deus não existe, pelo menos há um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que se chama de subjetividade, e o que nos censuram sob este mesmo nome. Mas que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais nada, é o que se lança a um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro” 35.
32Cfr. SICHES, Luis Recaséns. Tratado general de filosofia del derecho. pp. 246 -247. 33
“Kant define a pessoa humana como liberdade contra mecanicismo. Por esta razão, tem sido afirmado que descoisifica o conceito de pessoa, porque a define no plano da ética, isto é, não a examina em seu ser, como fizeram os autores anteriores, destacando de uma ou outra forma sua racionalidade, mas Kant afronta a acepção de pessoa humana no âmbito de sua capacidade de agir. Kant, portanto, ressalta a liberdade como faculdade específica do homem, porque o distingue dos demais seres que atuam mecanicamente, guiados por leis necessárias e de cumprimento forçado, enquanto o homem se caracteriza por estar capacitado para eleger a regra de suas ações” (in. RUBIO, Valle Labrada. Introducción a la teoria de los derechos humanos: fundamento, historia, declaración univesal de 10.XII.1949. p.35).
34
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos, Terceiro Manuscrito, Os Pensadores, vol. XXXV, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.16.
Em Max Scheler, a pessoa humana é apresentada como um ser concreto e
essencial que traz em si mesmo a base do lado espiritual e intencional em seus atos. É dizer, o
que identifica o homem é sua espiritualidade. A dimensão espiritual do homem compreende a
sua razão, emoções, vontades e intuições, definida a pessoa como “o centro ativo no qual o
espírito aparece no interior das esferas finitas do ser, em uma diferença incisiva em relação a
todos os centros vitais funcionais que, considerados por dentro, também se chamam centros
anímicos” 36.
De acordo com Scheler, a pessoa é o homem, que não pode ser reduzido a
apenas atos racionais e volitivos; sua natureza espiritual torna-o capaz de realizar a si próprio,
de modo que cada pessoa representa uma individualidade concreta e singular, cada pessoa é
um universo, um microcosmo (como diria Jacques Maritain), com suas particularidades e
percepções. Para o filosofo alemão, o homem não pode ser um objeto em razão de sua
natureza espiritual. Destaca, ainda, cada pessoa é uma medida de valor, que não deve ser
interpretada como estimativa subjetiva, senão como uma dimensão ideal do valor, ou seja,
cada pessoa, em razão de sua realidade e de sua situação concreta, é chamada a cumprir
determinados valores relativos à sua essência e existência37.
Nicolai Hartmann38 partilha do entendimento de que só pelas relações com
o mundo que o rodeia é possível compreender o homem, pois só a ele é peculiar um plexo de
atos que transcendem as meras necessidades animais, i.e., só a pessoa humana tem seu agir direcionado a um querer ou desejar conscientes. Para o filósofo, o agir é uma atividade
dirigida ao próximo, ao outro, é uma conduta frente a pessoas ou a coisas relacionadas a
pessoas, não determinada tão somente pela situação em que o homem se encontra, pelas leis
da natureza, ou pelos instintos; pressupõe que o agente esteja determinado por um algo a
mais, por exemplo, pelo bem ou pelo mal das pessoas a quem dirigida a ação. Ou seja, a
pessoa é um ser que age moralmente, tendo em vista valores (podendo persegui-los por meio
do agir racional ou afrontá-los ao agir somente segundo suas inclinações sensíveis). Esses
valores não se encontram fora do homem, nem lhes foram outorgados por uma divindade
como dons, mas ele extrai esses valores de si mesmo, de forma que o imperativo moral não é
36
Vid. SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 36.
37Vid. SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. pp. 36 – 37.
hipotético, não depende de nenhuma condição para que seja válido. De acordo com o
pensador alemão, os valores morais não determinam por si só o homem, a função que lhes
cabe é de iluminar a conduta humana, que é livre39 para escolher o caminho que irá seguir.
No século XX, a filosofia dos valores influi na formação da escola
personalista que tem por premissa a relação da pessoa com a sociedade. O personalismo
revela o homem como um ser sempre direcionado ao outro, desde a mais tenra infância, pois a
criança tende a reproduzir e aprender as atitudes realizadas por outra pessoa, e isto se
prolonga em todo processo formativo. Ao agir, imitando ou não o outro, a pessoa
comunica-se, e isto a faz crescer, porquanto, não existe senão para os outros, não se conhece senão pelos
outros e não se encontra se não for pelos outros40. A relação com o outro aparece como um
meio especial de desenvolvimento das possibilidades humanas e de sua personalidade.
Emmanuel Mounier, um dos maiores expoentes deste movimento, defende
que o homem é uma existência incorporada, de modo a evidenciar que entre o sujeito e o
corpo existe uma unidade, uma única experiência. Outra tese por ele defendida é a da
transcendência da pessoa em relação à natureza: o homem destaca-se da natureza por ser o
único a conhecer o universo que o circunda e o único capaz de transformar a natureza. Por
estar inserido em um espaço amplo, em que habitam outros indivíduos, a questão relacional é
imperiosa e se dá por intermédio da comunicação41. A comunicação é a própria essência da
natureza social do homem.
Segundo explica Battista Mondin, “o homem é sociável e, por isso, tende a
entrar em contato com os seus semelhantes e a formar com eles certas associações estáveis;
porém, começando a fazer parte de grupos organizados, ele torna-se um ser político, ou seja,
membro de uma polis, de uma cidade, de um estado, e, como membro de tal organismo, ele adquire direitos e assume certos deveres”42.
39
A liberdade deve ser entendida “como autonomia da pessoa em contraposição à autonomia dos valores. Uma força positiva que radica na pessoa, é o princípio que determina finalisticamente o homem”. Vid. DEL VALLE, Agustín Basave F.. Filosofia do homem: fundamentos de antroposofia metafísica. Trad. Hugo Di Primo Paz, São Paulo: Convívio, 1975, p. 152.
40
Cfr. MOUNIER. Emmanuel. O personalismo. Trad. Vinícius Eduardo Alves, São Paulo: Centauro, 2004, p. 46.
41Cfr.Ibidem, p. 44.
As ideias de sociabilidade do homem e do reconhecimento no outro de uma
extensão do “eu”, conduzem à criação de um sistema de justiça e de valores fundamentais
para que a “unidade da humanidade43” esteja preservada.
O sentido de humanidade una e indivisível está contido na ideia moderna de
igualdade, que encontra guarida na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.
Segundo explica Norberto Bobbio44, é a ideia de que todos os homens devem ser tratados e
considerados iguais, com respeito às qualidades que constituem sua essência, à natureza
humana que o distingue de todos os demais seres, à sua dignidade.
Battista Mondim, após longo estudo sobre quem é o homem, define-o
pessoa, como “um indivíduo dotado de autonomia quanto ao ser, de autoconsciência, de
comunicação e de auto transcendência45”. Partindo desta sucinta explicação, que condensa o
pensamento do filósofo e teólogo italiano, a pessoa humana pode ser compreendida como um
ser que se desenvolve em um processo dinâmico, não é um ser pronto como os demais seres,
não é mera substância, mas ser em perene construção, de modo que sempre está a conquistar a
sua existência.
Como síntese desta breve digressão histórico-filosófica, a pessoa humana é
o conjunto de seus aspectos existenciais – consciência, liberdade, espiritualidade. No homem
é possível reconhecer valores que lhe conferem características exclusivas, que o distinguem
de tudo que possa existir no universo. A esse conjunto de valores que há em todos os seres
humanos convencionou-se chamar de dignidade. Assim, a pessoa é o ser humano apreciado a
partir de sua dignidade46.
Destarte, identificar o homem como pessoa é reconhecer sua eminente
dignidade, e portanto, como centro de reconhecimento e convergência de valores sociais,
43 Uma das ideias chave do personalismo é a unidade da humanidade, no espaço e no tempo. Esta ideia já havia perscrutado o pensamento da antiguidade e ganhou mais forma com a tradição cristã, que pregava não haver cisão entre senhor e escravo, judeus e pagãos, cidadãos e bárbaros, homem ou mulher, pois todos são criados à imagem e semelhança de Deus e todos são chamados à salvação por intermédio de Jesus Cristo. Vid.
MOUNIER. Emmanuel. O personalismo. p. 55.
44Vid. BOBBIO, Norberto. Igualdad y libertad. Trad. Pedro Aragon Rincón, Barcelona: Paidos e Instituto de Ciências de la Educación de la Universidad Autônoma de Barcelona, 2000, p. 69
45
MONDIN, Battista. O homem: quem ele é? Elementos de antropologia filosófica. p. 297.
46 Cfr. GUARDIA, Andrés F. T. S.. Homem, pessoa e dignidade: da antropologia filosófica à Corte
primeiro passo para admiti-lo como sujeito de direitos47. Esta constatação é fruto do processo
evolutivo de integração social do homem cidadão da antiguidade clássica para o homem
indivíduo das revoluções norte-americana e francesa do século XVIII, que pode ser resumido,
como bem faz Miguel Reale, em dois fenômenos complementares: numa lenta mas
progressiva atribuição de “poderes autônomos e iguais aos indivíduos como tais, e a
constituição de uma estrutura jurídica superior capaz de garantir essa autonomia” 48.
1. 2. PERSPECTIVA CRONOLÓGICA DA AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS.
Muito embora a unidade da natureza humana e a sua dignidade tenham sido
reconhecidas desde os tempos antigos, como visto no breve escorço filosófico do conceito de
pessoa, a ideia da existência de direitos inerentes à natureza humana - direitos que por
encontrarem seu fundamento na pessoa humana são anteriores à própria constituição estatal -
aparece só na era moderna, no momento em que os valores próprios dos direitos humanos
foram inseridos na positividade. Daí o decorrente caráter histórico dos Direitos Humanos49.
Reconhecer o caráter histórico dos Direitos Humanos também implica em
aceitar que há um direito originário, um justo natural a congregar os princípios de justiça
prepositivos que serão revelados progressivamente, fazendo uso da realidade e das
circunstâncias que circundam a própria existência humana.
47 Conforme as lições de Miguel Reale, “... o Direito é uma ordenação bilateral atributiva das relações sociais, na medida do bem comum. Isto quer dizer que, em toda relação jurídica, duas ou mais pessoas ficam ligadas entre si por um laço que lhes atribui, de maneira proporcional ou objetiva, poderes para agir e deveres a cumprir. O titular, ou seja, aquele a quem cabe o dever a cumprir ou o poder de exigir, ou ambos é que se denomina sujeito de direito” (in. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25ª. ed., 22ª. tiragem, São Paulo: Saraiva, 2001. p. 212).
48
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. p. 214. 49