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Rev. Bioét. vol.25 número2

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Academic year: 2018

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1. PhD francisco_passos01@hotmail.com – Universidade de Brasília (UnB) 2. Doutora shimizu@unb.br – UnB 3. PhD garrafavolnei@ gmail.com – UnB, Brasília/DF, Brasil.

Correspondência

Francisco José Passos Soares – Rua Cônego Antônio Firmino de Vasconcelos, 138, apt. 301, Jaiúca CEP 57036-470. Maceió/AL, Brasil. Declaram não haver conlito de interesse.

Código de Éica Médica brasileiro: limites

deontológicos e bioéicos

Francisco José Passos Soares 1, Helena Eri Shimizu 2, Volnei Garrafa 3

Resumo

A evolução tecnocieníica tem imposto desaios à sociedade e, paricularmente, à medicina. Mudanças sociais nas relações médico-paciente e entre proissionais da saúde demandam novas formas de regulação dessas relações. O atual Código de Éica Médica adota o modelo principialista norte-americano como referencial éi-co, universalista, baseado na autonomia, em descompasso com a emergente bioéica laino-americana, que tem como pressupostos teóricos a pluralidade dos sujeitos morais e a práica muli, inter e transdisciplinar, orientada para saúde pública e coleiva e defesa dos mais vulnerados. O texto relete sobre aspectos históricos conformadores das proissões e seus códigos e as razões do descompasso da evolução da bioéica no Brasil e da revisão do Código de Éica Médica. Igualmente, relete sobre os desaios contemporâneos para o poder médico, que impõem ampliação do debate éico para elaboração de formatos mais democráicos dos códigos

proissionais, tendo como eixo estruturante a Declaração Universal sobre Bioéica e Direitos Humanos.

Palavras-chave: Teoria éica. Códigos de éica. Éica médica. Bioéica.

Resumen

Código de Éica Médica brasileño: límites deontológicos y bioéicos

La evolución tecnológica y cieníica le ha impuesto retos a la sociedad y, en paricular, a la medicina. Los cambios sociales en la relación médico-paciente y entre los profesionales de la salud requieren nuevos for-matos regulatorios para estas relaciones. El actual Código de Éica Médica adopta el modelo norteamericano principialista como marco éico, universalista, basado en la autonomía, fuera de sintonía con la bioéica lai-noamericana emergente, que iene como presupuestos teóricos la pluralidad de sujetos morales y las prácicas muli, inter y transdisciplinarias orientadas a la salud pública y coleciva, y a la defensa de los más vulnerables. El texto relexiona sobre los aspectos históricos coniguradores de las profesiones y de sus códigos, sobre las razones de las diferencias en la evolución de la bioéica en Brasil y de la revisión del código. Asimismo, relexio-na acerca de los desaíos contemporáneos del poder médico, que imponen la ampliación del debate éico para el desarrollo de formatos más democráicos de los códigos profesionales, basados en la Declaración Universal

sobre Bioéica y Derechos Humanos.

Palabras clave: Teoría éica. Códigos de éica. Éica médica. Bioéica.

Abstract

The Brazilian Code of Medical Ethics: Ethical and bioethical limits

The technological and scieniic evoluion has imposed challenges on society and especially on medicine. Changes in the doctor-paient relaionship and among healthcare professionals require new regulatory formats to such relaionships. The current Brazilian Code of Medical Ethics adopts the principialist North American model as a universal ethical framework, based on autonomy that is out of step with the emerging bioethics in Lain America, whose theoreical assumpions on the plurality of moral subjects and muli-inter-transdisciplinarity are oriented to public health and the defense of the most vulnerable. The text relects on the historical aspects that organize professions and their codes, and on the reasons for the gap in the evoluion of bioethics in Brazil and the revision of the code. Equally, the text considers the contemporary challenges to the medical authority, which imposes the extension of the ethical debate to drat more democraic formats of

professional codes, considering the UniversalDeclaraion on Bioethics and Human Rights as the structural axis.

Keywords: Ethical theory. Codes of ethics. Ethics, medical. Bioethics.

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O mundo contemporâneo se caracteriza por conlitos gerados pela acelerada evolução tecnológica e cieníica no campo biomédico e

das comunicações. Além disso, a globalização, a

hegemonia do capital neoliberal, e questões sa-nitárias e ambientais locais com repercussão planetária têm grande impacto na saúde humana. Paralelamente, reconhece-se, não sem conlitos, a airmação dos direitos individuais, em especial das mulheres e crianças, e, no campo da saúde, o surgimento da igura do paciente como sujeito

moral, não mais subordinado a autoridade ou pa

-ternalismo do médico 1.

Na área da saúde, têm sido ideniicadas dis-torções relacionadas à inacessibilidade das camadas mais pobres da população tanto aos beneícios do desenvolvimento cieníico e tecnológico como a bens básicos de consumo sanitário indispensáveis para uma vida digna 2.

O Código de Ética Médica (CEM) 3, de

natureza tradicional deontológica, revisado recente-mente, teve como referência a bioéica principialista estadunidense, insuiciente para responder aos ma-croproblemas em saúde dos países periféricos ou

em desenvolvimento 2. Outros formatos, contudo,

são possíveis – por exemplo, aqueles que levem em

consideração fundamentos pluralistas propostos por

autores e grupos acadêmicos da América Laina 4.

A bioéica laino-americana aponta os caminhos do pluralismo histórico e da muli, inter e transdis-ciplinaridade para a renovação do debate éico, priorizando os princípios de jusiça e equidade no mundo da saúde.

Este arigo propõe releir sobre essa possibili-dade. Considera aspectos históricos conformadores das proissões e de seus códigos, além das razões do descompasso da revisão do CEM e da evolução da bioéica no Brasil. Igualmente, contempla os de-saios contemporâneos para o poder médico, que impõem a ampliação do debate éico para elaborar formatos mais abrangentes e inclusivos dos códigos proissionais.

A éica proissional na saúde

Uma proissão na área da saúde é deinida, no senido mais restrito da éica proissional, como organização reguladora que controla o ingresso nos papéis ocupacionais. Ceriica formalmente que os candidatos adquiriram conhecimento e perícia necessários, a serem usados moralmente para be-neiciar os pacientes 5. Três interesses proissionais

deinem conceitualmente uma proissão, segundo Testa: domínio de certo conhecimento, monopólio

do mercado de trabalho e formalização de normas

de conduta 6.

O primeiro desses interesses refere-se às caracterísicas do conhecimento proissional, siste-maizado, adquirido e sancionado cieniicamente em insituições de ensino. Pretende ser complexo, inaingível e incompreensível para leigos, o que pode se estender aos códigos regulamentadores. O segundo, conforme o mesmo autor, diz respeito à delimitação e exclusividade do mercado de traba-lho; os proissionais se organizam em insituições

de representação de interesses para pressionar o

Estado. O terceiro elemento, a autorregulação, é

considerado imprescindível para padronizar a con

-duta do proissional com seu par, com o concorrente e com o cliente, conferindo idenidade, compromis-so pescompromis-soal, interesses especíicos e lealdades gerais. Proissões em saúde regulamentadas especiicam e impõem obrigações que asseguram competência e coniabilidade proissionais, correlatas aos direitos das outras pessoas 5.

Para Testa, a visão mais ampliada de práica proissional implica considerar tanto a ciência como as proissões além do campo das formalidades le-gais, no âmago da concepção histórica de Estado como coninente global das práicas sociais. Portan-to, admite-se que o médico cumpra duas funções: concreta, resultado de formação especíica e de

trabalho concreto, e outra abstrata, social e inde

-pendente de formação cieníica, resultado de seu trabalho abstrato, ideniicada com a mais-valia, e que se desenvolve como consequência das condi-ções sociais que o Estado gera para essa práica 6.

Testa airma que as transformações do tra

-balho atual situam a medicina entre as práicas

proissionais, cuja função, ao não fazer parte das re

-lações diretas de produção entre capital e trabalho, se encontra no terreno da ideologia, do conjunto das

classes que consituem a sociedade 7. O trabalho so

-bre o corpo das pessoas posiciona a medicina como

um dos elementos de controle exercido pelo Estado sobre o mesmo, completando os procedimentos de

controle exercidos pelos demais aparelhos ideo

-lógicos do Estado para legiimar sua existência 8.

O sucesso da medicina está associado ao poder que a proissão tem de promover a dependência do paciente/cliente em relação ao conhecimento e à competência do médico 9.

Essa dependência, entretanto, é

cons-truída ideologicamente ao longo do processo

histórico. Para dar conta da alienação, da negação

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e do distanciamento autoimposto pelos médicos,

desideniicados com o proletariado, Testa propõe

que o corpo social formado pelos corpos vivos das

pessoas em relação é o verdadeiro objeto do tra

-balho médico 10. Para o autor, comete-se um erro

fundamental quando se considera como objeto de trabalho médico o corpo de um indivíduo isolado, pois são perdidas as determinações (históricas) que

lhe conferem suas caracterísicas únicas e irreversí

-veis: vida e humanidade 11.

Enquanto nos códigos deontológicos da área, inclusive o médico, o objeto do trabalho é o corpo doente, o corpo sadio também é objeto das prái-cas em saúde, incorporando medidas de prevenção e promoção de saúde. A redeinição do objeto do trabalho médico como o processo saúde-doença propõe considerar essa unidade indissociável, o sig-niicado social da medicina como processo ligado à vida das pessoas em relação e sujeito às transforma-ções da história 2,6.

O papel dos códigos no exercício proissional

O código proissional representa declaração formal do papel moral dos membros da proissão, especiicando também regras de eiqueta e res-ponsabilidade internas 5. Se na organização social

moderna uma proissão não prescinde de código de normas orientadoras da práica proissional, sa-bemos também que a moralidade inclui mais que obrigações. Na ocorrência de conlitos morais, re-conhece-se, nos traços de caráter das pessoas que devem julgar, tanta importância quanto nas obriga-ções expressas nos princípios e nas regras 5.

Considerando a aplicação da éica ao exercício proissional em saúde, é possível entender o moi-vo de se elencar certas virtudes. No mundo atual, globalizado, complexo e plural, a virtude mais

im-portante é a aceitação do outro, de acordo com o

contexto ambiental, cultural, políico e econômico. Isso implica reconiguração conceitual e práica do conceito de virtude encarado como conjunto que engloba jusiça, solidariedade, responsabilidade e autenicidade, para conferir igualdade políica e iguais oportunidades econômicas e sociais 12.

Virtudes esimulam o indivíduo a agir

cor-retamente por convicção, e não por obrigação.

Então, para evitar que vícios inluenciem a ai-tude do profissional, os códigos de ética, de fundamentação deontológica, transformam em deveres as virtudes inerentes à proissão. O códi-go de éica das proissões, portanto, materializa

exigências legais às quais todos os proissionais devem obediência sem quesionar o porquê, pois,

do contrário, serão punidos 5. O código de éica

proissional impõe face prescriiva à teoria éica normaiva deontológica.

No entanto, proissionais agem também de acordo com a consciência individual, corresponden-te a relaivização moral ou corporaivismo simplista que pode ter origem no processo de formação e,

posteriormente, mais fortemente nas trocas sobre

regras do código deontológico com colegas médicos e não médicos no coidiano da práica do cuidado em saúde. Outros fatores também podem inluen-ciar, como valores próprios à religião professada e ao contexto geral cultural, hoje, em geral, expresso

na mídia.

A obediência ao CEM é, portanto, relaiva, e depende dessas trocas judiciais, interproissionais, muitas vezes conliivas, e com pacientes ou

fa-miliares. Depende igualmente dos valores sociais

expressos pela mídia, que podem provocar movi-mentos de airmação ou negação, com respostas dos conselhos proissionais que vão do silêncio à sindicância com arquivamento de processo ou ad-vertência, ou punição mais severa com cassação deiniiva do registro 13. No atual momento histórico de reconhecimento da autonomia privada dos su

-jeitos, o CEM preceitua equilíbrio com a autonomia privada do médico 3.

Proissionais de saúde no Brasil lidam com re-visões periódicas de seus códigos e testemunham revisões de diferentes sistemas de códigos e leis para outros aspectos da vida pessoal e proissional. Essas

revisões foram retomadas com o processo de rede

-mocraização do país, e tornadas campo de conlitos em razão do desenvolvimento das proissões, da ciência e da tecnologia, e da hegemonia do capital em sua face atual neoliberal que monetariza a vida. Cada mudança no sistema de códigos proissio-nais deve releir, portanto, a maturidade corporaiva proissional para compreender as mudanças mais gerais nos códigos de leis que devem proteger toda

a nação. Deve também dialogar com conhecimen

-tos oriundos das humanidades para que, em bases democráicas, garanta a consituição do laço social, ampliando os direitos e a proteção necessária dos mais vulneráveis. No entanto, a deontologização do conjunto dos dilemas éicos relacionados ao desenvolvimento acelerado e mercadológico das tecnociências parece exagerada e é criicada como vontade de monopólio da decisão. A redução dos problemas éicos a questões de éica proissional não mais se jusiica 14.

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Compreensão sócio-histórica da éica proissional e do Código de Éica Médica

A face deontológica prescriiva ainda distan-ciada dos direitos do paciente no Código de Éica Médica, e mais ainda do processo saúde-doença, será melhor compreendida acompanhando-se sua evolução sócio-histórica. A humanidade tem

tes-temunhado diferentes versões de regras, normas

e códigos regulamentadores da proissão médica ao longo de uma história que data do início da era cristã, quando as primeiras regras deontológicas médicas surgem, mantendo a inluência religiosa na formulação até hoje 15.

Inicialmente na forma de juramentos e invoca-ções, sob a inluência do juramento de Hipócrates, foi somente no século XVI que a Royal College of Physician of London modiicou a denominação de “Código penal para médicos” para “Código de éica”. Distanciava-se assim do ainda mais anigo Código de Hamurabi, rei de Babilônia, primeiro a insituir um código civil e criminal para todos, que versava inclu-sive sobre a práica médica 16.

A inluência da éica hipocráica paternalista, baseada no princípio da beneicência verical ou imposiiva, permaneceu hegemônica até recente-mente, na gestão do corpo que só podia ser realizada por alguém qualiicado, como o médico 5,15. Esse mo-delo sobreviveu na cultura ocidental, dominante em

relações sociais e políicas, quando súditos apenas obedeciam sem qualquer poder de intervenção no governo e na gestão pública.

Durou até o século XVI, quando, com o adven-to da Reforma Protestante, que desaiou os dogmas da igreja de Roma, reconheceram-se as diferenças de valores e crenças para o convívio social. Nessa época, funda-se o princípio da tolerância e o concei-to de liberdade de consciência.

No século XVII, materializa-se a elaboração dos direitos humanos básicos: direito a vida, saúde, liberdade, propriedade, o que pressupõe, de

cer-to modo, o reconhecimencer-to da aucer-tonomia para os

indivíduos gerirem sua vida. As conquistas liberais alcançadas em seguida, em 1789, com a Revolução

Francesa, caracterizada pelo pluralismo e pelo auto

-governo, não foram suicientes para aingir o espaço de governabilidade do próprio corpo.

Ou seja, a medicina não foi aingida e médi-cos coninuaram a decidir em nome dos pacientes,

mantendo a postura paternalista até a metade do

século XX. Esse modelo é denominado “monárqui-co” ou “verical” 16.

No im do século XVIII, ocorre o nascimen-to da clínica caracterísica da medicina moderna, fundamentada na experiência à beira do leito e de-pendente do olhar perscrutador do médico práico sobre o cadáver, agora com permissão para ser ex-plorado. A respeito Foucault airma:

Seria preciso conceber uma medicina suicientemen

-te ligada ao Estado para que, de comum acordo com ele, fosse capaz de praicar uma políica constante, geral, mas diferenciada de assistência: a medicina

torna-se tarefa nacional e Menuret, no início da revo

-lução, sonhava com cuidados gratuitos assegurados

por médicos que o governo indenizaria, entregando

--lhes as rendas eclesiásicas. Seria, por isso mesmo, necessário exercer um controle sobre esses médicos: impedir os abusos, proscrever os charlatães, evitar, pela organização de uma medicina sã e racional, que os cuidados em domicílio não izessem do doente uma víima e não expusessem ao contágio os que o cercassem. A medicina deverá receber do Estado testemunho de validade e proteção legal: a ele cabe estabelecer a existência de uma verdadeira arte de curar… A medicina pronuncia, com toda soberania,

seu julgamento e seu saber. Torna-se centralizada 17.

Em 1803, Thomas Percival usou a expressão “éi-ca médi“éi-ca” na obra “Medi“éi-cal ethics: a code of insitutes

and precepts adapted to the professional conduct

of physicians and surgeons”, sendo a ele atribuída a elaboração do primeiro código de éica médica, que inluenciaria modelos ainda na atualidade. Essa obra

representou a transição da hegemonia tradicional hi

-pocráica para uma éica menos doutrinária e mais normaiva. Abordava a conduta médica nos diferentes espaços proissionais da época, a clínica paricular e o hospital público, a relação entre colegas e os demais proissionais da saúde, a relação com o paciente e a inter-relação entre a medicina e o direito 16.

No início do século XX, ocorre a transição para o modelo oligárquico de decisão comparilhada en-tre proissionais sem a renúncia da relação verical com o paciente. Em decorrência de fatores externos à medicina, secundados por mudanças na políica, na família e nos avanços cieníicos e tecnológicos acelerados e comportamentais reivindicatórios de

direitos, passa a ocorrer a horizontalidade da clínica

nas úlimas décadas daquele século. Como

resulta-do, o paciente foi incluído na tomada de decisões,

houve democraização das relações sanitárias, com a paricipação aiva de usuários, superando-se o paternalismo e abrindo-se espaço à autogestão dos corpos. Os critérios morais são harmonizados à ra-cionalidade cieníica e secular.

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Nesse momento surgem, então, o código de direito dos doentes, o consenimento informado, o direito à escolha, à informação, à recusa ao tra-tamento, à educação em saúde, à qualidade dos

serviços etc 5,15,16. No inal do século XX, nasce a

bio-éica, a qual inluencia fortemente a elaboração dos

novos códigos de éica em todo o mundo, que, no

entanto, permanecem ainda limitadospela orienta

-ção principialista anglo-saxônica. Embora pensados como documentos de conhecimento público, para orientação éica de proissionais, categorias e pes-soas, há muitos aspectos não previstos nos códigos que demandam revisões periódicas, com acréscimos e subsituições adaptáveis aos avanços técnico-cien-íicos e de costumes em cada época.

Isso sugere ao proissional compromeimento éico pautado no código especíico à sua categoria e para além dele, em regras tácitas construídas e obedecidas no coidiano do exercício proissional. Nessa abertura para o ainda não regulamentado e prescrito, admite-se para o diálogo interproissional

o papel das virtudes, do bom senso, da atualização

éica teórica, do posicionamento políico, assim como maior abertura para o diálogo com o paciente e seus familiares ou representantes e com a própria sociedade. Ou seja, abertura inclusiva, dialógica, dialéica, emancipadora, que supere a marca da tradição deontológica paternalista e ouse desaiar a marca principialista imposta 14.

Desde a época de Hipócrates, médicos criaram códigos sem exame ou aceitação por parte dos pa-cientes e do público 5,15,16. Hoje, mais que mudança

epistêmica, é necessária mudança políica para uma éica que formule os direitos dos não médicos, em

especial dos doentes e dos grupos e comunidades

vulneradas. Uma éica que amplie seus direitos à

autonomia na gestão dos corpos e dos processos de

vida e morte, na defesa do público sobre o privado,

e na consideração da sociedade em geral na revisão

dos futuros códigos 14,18.

Outro aspecto histórico ainda a ser conside-rado é a posição do paciente como sujeito kaniano na relação com o médico, entendendo-se este, no contexto atual, como agente da saisfação das ne-cessidades sanitárias do primeiro 19.

Bioéica laino-americana: referência para ampliarlimites deontológicos

Desde seu advento, no século XX, a bioéica tem evoluído, adquirindo, no mundo ocidental, ca-racterísicas peculiares. Consitui-se, em especial,

em três sistemas disintos: o anglo-saxão, principia-lista, pioneiro e de forte inluência sobre os demais sistemas; o humanista-europeu, orientado pelos direitos e deveres inerentes à pessoa humana; e o laino-americano, que prioriza as questões sociais e considera as consequências previsíveis. Enquanto os dois primeiros sistemas, individualistas, têm como eixos dominantes a éica da relação médico-paciente e a éica da pesquisa, sustentando-se na autonomia dos sujeitos sociais, para a bioéica laino-americana o eixo dominante é a éica pública e coleiva.

A bioéica, em especial a laino-americana, in-corpora a éica biomédica, mas não se limita a ela e às fronteiras deontológicas próprias das relações entre proissionais e pacientes 2,20. Nos países

desenvolvi-dos, a bioéica ainda apresenta limitações conceituais e práicas, priorizando discussões para situações--limite decorrentes do desenvolvimento cieníico e tecnológico 2. Após seu advento na década de 1970 e

sua difusão na década de 1980, a bioéica passou por etapa de revisão críica compreendida entre a década seguinte e os primeiros anos do século XXI.

Admitem-se disinções socioculturais visíveis

nos movimentos de reconhecimento de direitos po

-líicos de negros, mulheres, homossexuais, indígenas

e outros grupos, além de se buscar o enfrentamento

éico de questões sociais e sanitárias básicas como exclusão social e equidade. A etapa mais atual de

ampliação conceitual ocorreu com a homologação

da Declaração Universal sobre Bioéica e Direitos Hu

-manos (DUBDH) da Unesco,em 2005 21. A DUBDH

conirma o caráter pluralista e muli, inter e trans-disciplinar da bioéica, ampliando a agenda temáica para além da área biomédica/biotecnológica, no senido dos campos sanitário, social e ambiental 2.

Embora críicas ao universalismo e à ênfase na autonomia do modelo norte-americano, principia-lista, esivessem em pauta, essa bioéica manteve forte inluência no CEM, que, nessa mesma época, era revisto pelo Conselho Federal de Medicina. A sincronia das etapas de críica e revisão do mode-lo bioéico principialista e do código não superou o

descompasso do desconhecimento ou da negação

dos avanços da bioéica laino-americana. Fez pre-valecer, na proposição inal do CEM, a autonomia como princípio “inovador” e “principal contribui-ção à sociedade” para inaugurar novo tempo na relação médico-paciente 3. Essa inovação

para-doxalmente conservadora reairma os limites do código deontológico na ação individual proissional, diferentemente da ênfase difundida na bioéica laino-americana, de natureza plural e com foco no paciente e nas questões sociais.

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A bioéica brasileira desenvolveu-se tardia-mente por aparecer de modo orgânico apenas nos

anos 1990; daí em diante, mostra vigor inusitado. Se

até 1998 a bioéica brasileira ainda era cópia coloni-zada dos conceitos vindos dos países anglo-saxônicos do hemisfério Norte, a parir do surgimento e da consolidação de vários grupos de estudo, pesquisa e pós-graduação pelo país, sua história começou a

mudar 22,23. A bioéica laino-americana, ainda hoje, em consolidação conceitual e distante de reconheci

-mento ampliado, acadêmico e social, não foi a base dos fundamentos da revisão do CEM e dos códigos das demais proissões em saúde 3,23-25.

Segundo Garrafa 26, a bioéica,

diferentemen-te da éica proissional e deontológica, de cunho

legalista, não tem por base a proibição, limitação

ou negação, atuando com base na legiimidade das ações e das situações e na ação airmaiva, posiiva. Para ele, na bioéica, a essência é a liberdade, com compromisso e responsabilidade individual, pública e planetária. Em outros textos, o autor quesiona o papel que a bioéica já desempenha e poderá vir a

ampliar na evolução das representações/organiza

-ções políicas e sociais do mundo atual 18,22.

Até 1998, a bioéica priorizou temas e/ou problemas/conlitos biomédicos mais individuais do que coleivos. A parir de então, o campo ex-pande suas pautas, incluindo, nas análises sobre a qualidade da vida humana, questões até então

apenas tangenciadas. Questões como preservação

da biodiversidade, initude dos recursos naturais planetários, equilíbrio do ecossistema, alimentos transgênicos, racismo e outras formas de discrimi-nação. Incluiu igualmente o tema da priorização na

alocação de recursos escassos, o acesso das pesso

-as a sistem-as públicos de saúde e a medicamentos etc 2,23. Garrafa airma que:

Neste início de século XXI, portanto, a questão éica

adquire idenidade pública. Não pode mais ser con

-siderada apenas como questão de consciência a ser

resolvida na esfera da autonomia, privada ou par

-icular, de foro individual e exclusivamente ínimo. Hoje, ela cresce de importância no que diz respeito

à análise das responsabilidades sanitárias e ambien

-tais e na interpretação histórico-social mais precisa dos quadros epidemiológicos, sendo essencial na determinação das formas de intervenção a serem programadas, na priorização das ações, na formação de pessoal… Enim, na responsabilidade do Estado frente aos cidadãos, principalmente aqueles mais

frágeis e necessitados, bem como frente à preser

-vação da biodiversidade e do próprio ecossistema,

patrimônios que devem ser preservados de modo

sustentado para as gerações futuras 27.

A DUBDHtem sido a baliza éica que uniica

e universaliza disintas teorias bioéicas contem-porâneas não principialistas, tendo a dignidade humana como núcleo axiológico e fundamento éi-co-normaivo de proteção à pessoa 21,28. A bioéica

laino-americana tem feição própria e pode ofere-cer às categorias proissionais em saúde elementos

importantes para o reconhecimento e a defesa am

-pliada de direitos humanos. Tem como balizas éicas não apenas os quatro princípios de Beauchamp e Childress 5, mas o conjunto de valores, princípios, regras e normas desenvolvidas pelos estudiosos

da bioéica e apresentadas na DUBDH, de forma contextualizada 21,29.

Pelo menos três correntes bioéicas laino--americanas têm seu campo teórico-epistemológico deinido: bioéica de proteção 24,30, bioéica de

in-tervenção 22,23,31 e bioéica dos direitos humanos 25.

Feitosa e Nascimento 31 teorizam sobre a bioéica

de intervenção (BI), genuína bioéica brasileira, sur-gida no Programa de Pós-Graduação em Bioéica da Universidade de Brasília. Assinalam que, durante sua primeira década de existência, a BI conseguiu, com base em sua fundamentação teórica e na colaboração com as demais bioéicas brasileiras e laino-america-nas, assegurar, em âmbito internacional, a aceitação da dimensão políica na formulação e na práica bio-éica ao estabelecer, como eixo agluinador dessa dimensão, o paradigma dos direitos humanos 31.

Essa aceitação internacional reclama, no Bra-sil, o reconhecimento da BI e das demais correntes para, então, se propor a revisar conceitos e práicas proissionais e insitucionais. Com a úlima revisão

ocorrida em 2008, ainda sob grande e assumida

inluência da bioéica anglo-saxã, principialista, e diante dos avanços teóricos de bioéicas com carac-terísicas epistêmicas e políicas laino-americanas, perguntamo-nos se não seria prudente à corrente e necessária revisão do CEM ter como base essas relexões.

Éica deontológica e bioéica: antagônicas ou complementares?

A deontologia como teoria éica proissional é considerada, a parir do século XIX, como a éica do dever de Kant, cuja maior contribuição à teoria deontológica deveu-se à ênfase na autonomia do su-jeito e à formulação do princípio da universalidade,

materializado no imperaivo categórico: age de tal

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modo que trates a humanidade tanto em tua pes

-soa como na pes-soa de todos os outros sempre ao mesmo tempo como um im, e jamais simplesmente

como um meio 32. Pode ser deinida como teoria na

qual o que torna as ações corretas ou erradas são ca-racterísicas intrínsecas às ações, e não apenas suas consequências 33.

A palavra “deontologia” foi criada por Jeremy Bentham em 1834, dando ítulo à obra “Deontology or science of morality”, publicada em Londres, dois anos após sua morte. As palavras “deontologismo” e “escola deontológica” designam mais paricular-mente a doutrina dos moralistas ingleses do inal do século XIX e do início do século XX que se opõem às escolas ontológica e uilitarista e defendem que o imperaivo é exterior ao sujeito 20. As éicas

deonto-lógicas são uma espécie de éica normaiva. Buscam

fornecer diretrizes ou princípios gerais e se ocupam com o estudo (logos) dos deveres morais (deon) 33.

Beauchamp e Childress 5 criicam a deontologia

kaniana como teoria para a vida moral, apontan-do algumas falhas: 1) obrigações conlitantes – ao

tornar todas as regras morais absolutas, Kant pa -rece obrigar ao impossível para realizar ações em

conlito; 2) superesimando a lei, subesimando os

relacionamentos, em obrigações legais e contratos –

a vida familiar, entre amigos, não é experimentada

em formas de relacionamento moral reduzidas a tro

-cas governadas por leis; 3) limitações do imperaivo categórico, considerado obscuro e pouco funcional na vida moral; 4) abstração sem conteúdo de con-ceitos de bases fracas para conjunto determinado de

regras morais, como racionalidade e humanidade.

No entanto, os autores airmam que contri-buição signiicaiva da teoria kaniana foi sustentar decisão moral obrigatória em circunstâncias simi-lares e de modo relevante. Quando juízo moral é

sustentado por boas razões, essas razões são boas

para todas as circunstâncias de modo relevante 5.

Ligada ao exercício das proissões liberais

tradicio-nais, como medicina, direito e enfermagem, entre

outras, a deontologia designa, em geral, o conjunto

de deveres vinculados reunidos sob a forma de re

-gras em código de éica ou moral 16.

Campo do conhecimento específico, a éti

-ca proissional, de natureza predominantemente deontológica, com alguma frequência incorpora o conceito de bioéica dissociado do exigido rigor teó-rico da disciplina, requerendo, portanto, deinição de limites teórico-conceituais e de aplicação. A apli-cação da teoria deontológica à éica proissional tem gerado conlitos e impasses desde o surgimento da bioéica, que tem procurado deinir seus limites com

essa tradição universalizante e, simultaneamente,

impulsionar a relexão e abertura ao diálogo para a tomada de decisões morais complexas,

caracterísi-cas da hipermodernidade. Segundo Garrafa:

Há, e de certo modo, esta é uma constatação quase consensual, uma ligação entre a bioéica e os estudos

ligados à éica proissional. Ambas lidam com a éi

-ca, a moral, os valores, as regras de conduta, enim,

temas ligados ao bem-viver na humanidade. A dife

-rença, no entanto, é que a bioéica, diferentemente dos estudos perinentes à éica proissional – isto é, aqueles baseados nos estatutos, nos códigos, nas leis

ou, mesmo, em mandamentos – não procura respos

-tas deiniivas e absolu-tas para os conlitos morais

surgidos no desenvolvimento das proissões ou na re

-lação dos proissionais de saúde com seus pacientes. Enquanto a éica proissional traz, na sua trajetória, histórias de respostas e fórmulas preestabelecidas para os conlitos, com base, principalmente, nos chamados códigos de éica proissional, a bioéica

se caracteriza por uma análise processual dos con

-litos a parir de uma éica minimalista que permita

a mediação e a solução pacíica das diferenças. As

-sim, diferentemente da éica proissional, o papel da bioéica não é a obrigatória resolução do conlito, mesmo porque existem conlitos (como o aborto, por exemplo) que, à luz do pluralismo moral – que é uma das bases de sua sustentação teórica, simplesmente não são solucionáveis sob a óica de uma éica que

se queira universal 34.

O mundo globalizado se caracteriza pelo do

-mínio, no campo da políica, da defesa dos ideais democráicos, o que implica viver em sociedades pluralistas. Com isso, insituições são compelidas a modiicar suas práicas em perspeciva não corpora-iva e moralmente plural. A medicina, em paricular, tem sido alvo permanente de críicas e pressões para mudanças em seu código éico proissional, permis-sivo ainda de modelo de relação médico-paciente oligárquico, vericalizado, paternalista, porque ba-seado na bioéica principialista. Esse modelo deve ser ultrapassado por um mais democráico, que

res-peite a dignidade da pessoa, autônoma nas decisões

sobre seu corpo e seu desino, e equilibre interesses individuais e da coleividade nas decisões em saúde, privilegiando, no entanto, a saúde pública como di-reito consitucional 2,14,15,18.

Conceitos e práicas em saúde modiicam-se ao longo da história. Na atualidade, o mundo capitaliza-do investe na inanceirização da vida, transformancapitaliza-do o corpo em objeto negociável e a saúde em bem para trocas comerciais. Os avanços tecnológicos de

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alta complexidade e alto custo necessários à

saú-de individual competem com ações em atenção

primária, drenando recursos para maior alcance e resoluividade dos problemas coleivos em saúde. Além disso, observa-se a expansão acelerada e desi-gual de insituições prestadoras de serviços à saúde, invadindo o campo da gestão pública da saúde. Nes-se contexto, pacientes organizam-Nes-se para reivindicar direitos, e a saúde torna-se campo de judicialização. O acesso livre ao conhecimento em saúde

amplia as reivindicações a direitos e o debate sobre

questões restritas antes aos médicos, e a educação

médica estabelece como prioridade o ensino de

competências para a atenção primária em saúde. Os limites interproissionais têm sido quesionados com

reivindicações das demais categorias pelo direito ao

diagnósico e à prescrição de medicamentos, en-quanto a transição epidemiológica impõe o debate sobre alocação de recursos. Por im, reconhece-se, hoje, a saúde como resultante da interação de to-das as demais áreas de atuação humana: educação,

trabalho, lazer, espiritualidade, ecologia, nutrição,

segurança etc 2,6,7,13-15,18.

Todas essas questões de caráter políico-social e o surgimento da bioéica, a parir da década de 1970, têm modiicado a percepção de uma deon-tologia médica corporaivista para outra, aberta às contribuições de todos os segmentos da socie-dade, objeivando reformular as regras éicas do exercício da medicina. O atual CEM, vigente desde 2010, foi inluenciado pela bioéica principialista,

com a contribuição de propostas de mudanças de

750 médicos 3. Presume-se que, entre esses, havia

representantes do setor de serviços em saúde, e

nenhuma contribuição da sociedade em geral foi re

-latada. Esse fato pode ser corrigido na revisão atual do CEM, com possibilidade de mais ampla paricipa-ção da sociedade civil 35.

A complexidade da biomedicina contemporâ-nea exige abertura da éica médica para abordagem bioéica mais avançada que a principialista, assim como um novo código que considere também

con-tribuições de diferentes segmentos sociais, não

médicos. A formulação de problemas éicos, em termos exclusivamente deontológicos, garante a in-dependência do médico e a sua opinião em relação às pressões políicas, sociais, econômicas etc. No entan-to, se o espírito dessa éica não está conforme com as declarações de direitos humanos, essa independên-cia não confere garanias nem se consitui como força de resistência moral em países ou contextos em que haja violação de princípios democráicos 14.

A complexidade dos fenômenos da vida não permite o monopólio das decisões, ainda mais quan-do neles reconhecemos a natureza políico-social e as múliplas possibilidades de funcionamento segun-do a lógica segun-do mercasegun-do. Portanto, nem a vontade de monopólio da decisão nem a redução dos problemas éicos a questões de éica proissional se aiguram jusiicadas 2,14,15,20,33. Airmam Hotois e Missa:

É a esta situação que o ponto de vista bioéico pre

-tende fazer jusiça, ao abrir o debate éico e ao

deinir a deontologia e a éica médica stricto sensu

como um aspecto limitado da problemáica éica

geral colocada, hoje em dia, pelas práicas biomédi

-cas cujas fronteiras com as biotecnologias tornaram

pouco claras. A deontologia e a éica médica abor

-dam-nas do ponto de vista dos médicos e dirigem-se

exclusivamente aos médicos 14.

Recorrendo à prudência (posição deonto-lógica), à prevenção de erros nos experimentos cieníicos, sua respeitabilidade e desino huma-no, o Comitê Consulivo Nacional de Éica para as Ciências da Vida e da Saúde francês airma, segundo

Durand 20, que não são o conhecimento e a

medi-cina que consituem ameaça, e, sim, o poder e o desejo. O desenvolvimento das tecnociências e da

biomedicina confere novos poderes a médicos e pes

-quisadores, o que gera a possibilidade de ameaças às liberdades individuais, e a necessidade de apelo aos direitos humanos para regulá-los.

A deontologia, como código, apresenta-se diante desse quadro de necessária vigilância e de estabelecimento de limites como força coerciiva, por isso mesmo fechando-se a interpretações mais restritas, diferentemente da bioéica. Por isso, não é democráico deixar aos membros de uma única proissão as decisões que implicam escolhas sociais importantes 14,20.

A éica clínica se refere, sobretudo, aos crité-rios da deontologia médica tradicional. No entanto, outros enfoques podem ser explorados, menos nor-maivos, com visão éica ampliada, contextualizando a realidade das demandas locais em saúde e

con-siderando as características da distribuição dos poderes e seus efeitos resultantes no acesso e na alocação de recursos.

A práica clínica, na atualidade, adquiriu novas caracterísicas e personagens: a muliplicidade de in-terlocutores tornou obsoleto o “colóquio singular”, e o poder tecnológico abre espaço à incerteza, aber-tura inevitável a questões ilosóicas mais amplas (a medicina do desejo de bem-estar subjeivamente

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deinido e ilimitado e as repercussões sociais presen-tes e futuras inevitáveis das escolhas singulares) 20,36.

O reconhecimento de que a deontologia

mé-dica tradicional se transforma lentamente em ramo

da ilosoia moral, da éica práica, não nos impede de predizer e prevenir o caminho conlituoso dessa transformação. Não apenas o CEM precisa ser revisto

e atualizado para incorporar as contribuições dos dis

-intos segmentos sociais, na direção de uma bio éica laino-americana, mas as disintas insituições de saúde necessitam transformar seus comitês de éica. Esses comitês são geralmente compostos

totalmen-te, ou em grande partotalmen-te, por médicos, e orientados

para a normaização da pesquisa, em comitês bio-éicos, com a paricipação igualitária de diferentes proissionais e representantes da comunidade.

Vivemos momento de grande inluência bio-éica nos debates sobre questões ampliadas da saúde, em que se delineiam posições tomadas a parir de casos concretos e singulares. Esses casos são passíveis de uso como exemplos de consenso, se

consideram problemas da desigualdade social e de

iniquidade dela decorrentes e se buscam soluções com perspeciva éico-políica laino-americana e

nacional distanciadas do principialismo.

A herança colonialista anglo-saxã e as pres-sões do mercado impõem-nos cegueira moral que

nos impede de considerar valores e princípios ne

-cessários e reais a nos guiar: os verdadeiramente democráicos. Sugere-se, para revisões dos códigos proissionais, considerar os princípios democrá-icos constantes na DUBDH 21. Essa é a relexão

necessária para superar interesses corporaivistas e entender que nossos atos não são desituídos de valores ou reféns de uma éica que nos determina e ultrapassa, mas que pode e deve ser reparada. Além disso, essa relexão leva a absorver contri-buições das disintas áreas do conhecimento para inseri-las no debate éico, plural, voltado à

constru-ção das novas realidades.

Gracia sugere que, para superarem modelos de relação proissional absoluista, beligerante, ou libe-ral de táica de neutlibe-ralidade, as proissões devem adotar aitude deliberaiva sobre valores inclusive no campo insitucional com a deliberação coleiva sobre objeivos comuns. O modelo mais recente, liberal, reduz o encontro médico a aividade mercanil re-gulada pela competência e pelas leis 37.

É a ariculação de vozes, no coro plural em de-fesa dos direitos humanos à saúde, como direitos ampliados às questões biotecnológicas e ambientais, de enfrentamento de iniquidades resultantes das

injusiças sociais e de proteção às gerações futuras, que confere dignidade aos nossos atos e, simulta-neamente, à pessoa sob cuidado.

Considerações inais

A sociedade enfrenta dilemas na atualidade

na ordem das fronteiras individuais, proissionais, sociais, de nação e planetários, impostos pelo acelerado desenvolvimento tecnocieníico, pela

horizontalização de relações e decisões, e pela he

-gemonia do capital neoliberal. Nascimento, vida

e morte sofrem intervenções legitimadas pelas

contribuições dos disintos campos de pesquisa cieníica, nem sempre consideradas éicas. No pla-no individual, a despoliização, os comportamentos homogêneos e o individualismo têm induzido o con-sumismo sem relexão, obsessão pela juventude,

pela busca de longevidade, do corpo perfeito, da

felicidade planejada. Como consequência, geram angúsia e medo do outro, distanásia, xenofobia e

desastres ambientais.

No plano social e no contexto da saúde, em países de economia frágil e sistemas políicos ins-táveis, dependentes e explorados por outros de

economia mais forte, os efeitos incorrem na insu

-iciência e má distribuição dos recursos alocados, diicultando o acesso das camadas mais vulneráveis da população a serviços essenciais à manutenção da vida com qualidade.

Ao lado do ressurgimento ou agravamento

das situações persistentes, relacionadas à exclusão

social, esses países devem gerir situações emer

-gentes relacionadas ao desenvolvimento cieníico (engenharia genéica, uso terapêuico de células tronco, doações e transplantes de órgãos, fecun-dação assisida e descarte de embriões, eugenia,

barrigas de aluguel, cirurgias de redesignação se

-xual, clonagem, biossegurança etc.) adequando-as à pressão por parcos recursos exercida pelos gru-pos de saúde suplementar.

A complexidade da vida, o acúmulo de conhe-cimento cieníico com a contribuição das ciências

humanas e sociais, a necessidade de reconhecimen

-to e a ampliação dos direi-tos humanos exigem que, para a tomada de decisões, além da éica

indivi-dual, nos responsabilizemos pelo desenvolvimento

de uma éica pública e planetária. Isso permiiria a

proteção da vida individual, de grupos sociais minori

-tários e gerações futuras, além da gestão sustentável

do meio ambiente.

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O documento indicado para balizar essas res -ponsabilidades, na gestão do presente e na criação

de possibilidades de futuro com dignidade, e que deve incidir também na éica proissional, é a DUBDH.

O CEM brasileiro, inluenciado e limitado pela bioéi-ca principialista anglo-saxã, encontra-se distanciado de princípios mais amplos que permitem a relexão contextualizada e aprofundada de questões locais e nacionais, que priorizam os grupos mais vulnerados.

Os códigos éicos proissionais devem se ade-quar à própria realidade social, econômica e políica, priorizando valores, princípios e normas que

salva-guardem e ampliem os direitos, em comunhão com

a saúde pública e coleiva. O ser humano é o úni-co senido e meta para o desenvolvimento; desse modo, somente ele deverá ser sujeito de qualquer regulamentação que se pretenda democráica, par-icipaiva e verdadeiramente bilateral.

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Arigo elaborado por Francisco José Passos Soares a parir de ideia de Volnei Garrafa, que, assim como Helena Shimizu, também paricipou da análise e revisão inal do texto.

Recebido: 28.11.2015 Revisado: 13.12.2016 Aprovado: 29. 1.2017

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