Geometria como um saber a ensinar: uma análise dos saberes geométricos presentes nos livros didáticos para escola primária no Brasil (1880 – 1930)
Márcio Oliveira D’Esquivel
Resumo
O presente trabalho apresenta os resultados parciais de pesquisa de doutoramento que investiga o processo de constituição dos saberes geométricos para escola de ensino primário a partir da análise dos manuais escolares em circulação entre os anos 1880 e 1920. As obras analisadas fazem parte do acervo do Repositório de Conteúdo Digital de História da Educação Matemática. O estudo realizou uma classificação do conjunto de manuais escolares do período a partir dos saberes geométricos de modo a caracterizar como estes manuais apropriaram-se dos pressupostos do ensino intuitivo no período em análise. Como resultado produziu-se a categorização dos manuais escolares por tipos de abordagens de saberes geométricos, identificando-se edições em circulação e suas representações para o ensino desse conteúdo para escola de ensino primário.
Palavras Chaves: Saberes Geométricos, Manuais Escolares, Ensino Intuitivo.
Considerações iniciais
As pesquisas que tomam como fonte documental os livros e suas edições didáticas ganharam corpo e se diversificaram nas últimas décadas, conforme trabalhos de Valente (2002), Lorenz & Vechia (2004), Choppin (2004; 2009), Munakata (2012), Teive (2015). Tais estudos orientam-se na perspectiva da desnaturalização das abordagens que atribuíam às edições didáticas papel secundário na formação das mentalidades e nos processos de aculturação.
2 de sua materialidade: formatos, edições, editoras, estruturação dos tópicos, organização e sequenciamento de capítulos etc.; abordagens que o consideram a partir da análise dos seus conteúdos, ora interessando-se por uma crítica ideológica e cultural, ora interessando-se pela trajetória de constituição epistemológica ou propriamente didática de uma área do conhecimento específica. (CHOPPIN, 2004).
Seja um ou outro o enfoque que se pretenda pensar problemáticas de pesquisa que tome o livro didático como fonte documental, há de se assumir o fato de que este está imerso em uma conjuntura complexa em que, para entender o sentido que lhe é atribuído, importa considerar o lugar, a época, e o contexto sociocultural. Dito de outra maneira, as edições didáticas não estão isentas dos jogos estratégicos que moldam as relações sociais. Deles participam os autores na maneira que seleciona e fazem opções metodológicas, leitores que reinterpretam e apropriam-se de seu conteúdo, autoridades que ditam normas e estabelecem programas a serem seguidos.
O presente trabalho discute como os saberes geométricos1 se apresentam nos manuais escolares2 destinados à escola primária brasileira no final do século XIX e início do século XX, as primeiras décadas republicanas. O período do estudo caracteriza-se pelo ensino intuitivo. Grosso modo, o ensino intuitivo fundamenta-se na premissa de que, a partir dos objetos do cotidiano, “as coisas” do mundo real, a intuição infantil seria capaz de construir e expressar ideias. Implícita nessas novas concepções educacionais estava a rejeição à memorização como método de ensino; pretendia-se, assim, ao propagar a intuição, relegar a memória à capacidade intelectual inferior (VIDAL, 2005).
Busca-se compreender como e em quais manuais escolares são abordados os saberes geométricos. Analisa-se a maneira como eles são organizados na obra, os temas tratados, exercícios propostos de modo a caracterizar as diferentes propostas para o ensino de saberes geométricos que circulam nos manuais escolares do período.
1 Opta-se por usar o termo saberes elementares geométricos, entendendo-o como todos os conceitos,
definições, temas, propriedades e práticas pedagógicas relacionadas à geometria que estejam presentes na cultura escolar primária, seja, nos diferentes programas de ensino, nos manuais do ensino primário, em revistas pedagógicas e em outros vestígios da escolar primária.
2 Por manuais escolares entendem-se aqueles concebidos como ferramentas pedagógicas destinadas a
3 Assume-se como pressuposto a compreensão do manual escolar como um produto cultural que ao estabelecer modos de emprego, fabricam novos sentidos. (VALDEMARIN, 2010).
As obras analisadas fazem parte do acervo do Repositório de Conteúdo Digital de História da Educação Matemática3. O estudo realiza uma classificação do conjunto de manuais escolares do período a partir dos saberes geométricos de modo a caracterizar como estes manuais apropriaram-se dos pressupostos do ensino intuitivo no período em análise.
A intuição como método de ensino
É a partir da crença nas possibilidades humanas de domínio sobre a natureza, protagonizados pelos avanços da ciência que caracterizavam a segunda metade do século XIX, que os processos educativos veem-se impelidos a pensar métodos, que inspirados na ciência, pudessem promover o ensino infantil eficaz. Alie-se a esse fato o desenvolvimento industrial e a emergência do nacionalismo republicano, para os quais se considerava premente a formação escolar do indivíduo. “A crença no poder redentor da educação pressupunha a confiança na instrução como elemento (con)formador dos indivíduos” ( SOUZA, 1998, p.26). De pouco valorizada no inicio do século a escola passa a se configurar como estratégica para um futuro benfazejo. Na ordem do dia, a eficiência de seus métodos é cada vez mais exigida. Até então, objeto de críticas, pesa sob a escola a marca da ineficiência: desenvolvimento insuficiente de leitura e escrita, ensino de noções de cálculo insatisfatórias, excessivo uso da repetição e memorização, são algumas das razões pelas quais se postulavam novos métodos.
A modernização da educação de então assume como premissa, conforme principio do empirismo cientifico, de que se aprende pela observação e pela realização do trabalho. A observação educa e aperfeiçoa os sentidos preparando na criança a base sobre a qual se constrói o conhecimento humano. (SOUZA, 1998).
Não obstante haja apropriações diferentes para o uso dos métodos intuitivos no processo de ensino, é possível estabelecer princípios que as sintetizam: educa-se pelo
4 treinamento dos sentidos para bem observar, pelas coisas do mundo real e pela experiência. Estes princípios em maior ou menor medida irão compor as orientações pedagógicas das reformas educacionais e de manuais didáticos.
Tais princípios traduzidos em procedimentos didáticos propunha o chamado o método de marcha analítica: ensinar a partir do conhecido para o desconhecido, do concreto para o abstrato, do todo às partes. Se como princípio o método analítico deveria perpassar o ensino de todas as disciplinas, são com relação aos procedimentos de aprendizagem de leitura que ele propõe mudanças expressivas. Na nova proposta a unidade mínima da língua é a palavra e não a letra, assim os processos mentais envolvidos na atividade de leitura englobam o reconhecimento da forma visível das palavras, de suas combinações e associação delas às ideias. “Prescinde-se assim da memorização precedente das letras, sons ou sílabas.” (VALDEMARIM, 2004, p. 148) A marcha analítica parece se constituir por excelência o método didático do ensino intuitivo.
Para o ensino de saberes elementares de matemática e em particular para o ensino de saberes geométricos, Leme Silva (2016) aponta para necessidade de “estudos mais aprofundados sobre a temática, de modo a produzir nova representação do método analítico” (LEME DA SILVA, 2016, p. 318). A catalogação dos manuais escolares constantes do repositório se apresenta como uma iniciativa de investigação que se propõe a analisar as representações do intuitivo para os saberes geométricos constantes dos manuais em circulação.
Embora algumas das características da vaga intuitiva possam ser identificadas nos manuais catalogadas no acervo do repositório, não se constitui objeto desse trabalho a realização análises detalhadas dessas obras. Antes como objetivo pretendeu-se, elaborar categorias de análise que possibilitassem identificar quais abordagens para o ensino de saberes geométricos estiveram presentes em manuais escolares publicados entre os anos 1880 e 1930 indagando sobre sua circulação e características.
Saberes geométricos em Manuais Escolares
5 Antes de apresentar os primeiros resultados do processo de análise dos manuais escolares constantes do Repositório de Conteúdo Digital da História da Educação Matemática4, convém, em breves palavras, explicar esse ambiente virtual de pesquisa e suas potencialidades. O repositório se configura como um espaço virtual de armazenamento de documentos digitalizados. Constam no seu acervo além de livros didáticos e manuais escolares, legislações, revistas pedagógicas, relatórios de diretores de instrução pública, trabalhos publicados dentre outros documentos. Dentre as potencialidades que o ambiente digital oferece às pesquisas em história da educação matemática pode-se destacar: o grande número de documentos constantes de seu acervo. Organizado por uma rede de pesquisadores colaboradores de dezenove estados brasileiros, responsáveis pela inserção de documentos, o acervo conta com um banco de dados de conteúdo digital dinâmico. Considere-se ainda como potencialidade, o fato de que, os documentos constantes no repositório são de livre acesso. Permitem assim que, não só para quem produz o trabalho científico, mas também para quem o lê, ao tempo da produção ou da leitura, possam consultar os documentos que foram tomados como fonte. Ratificando-se ou contrastando análises possibilita-se produzir novas interpretações.
Dito dessa maneira, os manuais escolares catalogados para o presente estudo, pertencentes ao acervo do Repositório de Conteúdo Digital, embora não contemple toda a produção didática do período em análise, representam em boa medida a produção editorial deste tempo. As análises produzidas indicam possibilidades, e se configuram-se como hipóteconfiguram-ses. A plausibilidade, o regime de verdade e a avaliação dos pares são os crivos pelos quais toda produção deve submeter seus resultados. “Construir, desconstruir, reconstruir, são gestos familiares para o historiador” (RICCUER, 2012, p. 222)
As categorias de análise para classificação dos manuais escolares foram estabelecidas em um primeiro momento com o objetivo de selecionar obras editadas ou em circulação no período compreendido entre os anos 1880 e 19305, cujos saberes
4 Sobre o Repositório de Conteúdo Digital ver trabalho produzido por (RAMOS et al, 2016).
5 O recorte temporal adotado delimita de maneira imprecisa o período que historiadores da educação
6 geométricos figuravam como conteúdo de ensino. Para tanto estabeleceu-se como palavras chaves de busca dos manuais os termos: geometria, desenho. Essa primeira busca obteve como retorno 31 títulos, classificados por décadas conforme gráfico abaixo:
Gráfico 1
Fonte: elaborado pelo autor
A categorização inicial realizada para seleção dos manuais escolares indica o aumento no número de publicações a partir da segunda década do século XX. Corroboram com o que estudos em história da educação apontam como evidência, o fato de que no Brasil até a década de 1920, a maior parte dos livros didáticos era de
discursos pedagógicos que propunha o intuitivo como modelo de ensino, ganha corpo e se arrefece nos limites do recorte temporal adotado.
4 4 3 5 14 1880 -1890 1891 - 1900 1901 - 1910 1911 - 1920 1921 - 1930 Qt d . d e Tí tu lo s Décadas
7 autores estrangeiros, editados e expressos no exterior especialmente na França e em Portugal (GATTI JR, 2005).
A partir dessa primeira categorização nova reorganização dos dados foi realizada. Dessa vez promovendo o refinamento das buscas com vistas a melhor definir quais tipos de saberes geométricos estavam presentes nos manuais selecionados. Apenas os manuais escolares utilizados em escolas normais de formação de professores e escolas de ensino primário foram tomados para análise. Também compõe a coleção analisada, manuais escolares utilizados em escolas militares ou cursos profissionalizantes. A identificação do público para o qual o manual destinava-se foi feita a partir do título, informações da capa ou dos prefácios das obras.
Após uma análise das obras selecionadas, nova organização dos livros foi definida. Desta vez em categorias estabelecidas a partir da abordagem dada nos livros aos saberes geométricos. Estabeleceu-se como se segue: Categoria 1: Geometria, desenhos, aplicações e medidas. Para essa categoria foram selecionadas as obras em que os saberes geométricos são abordados a partir do ensino de conceitos elementares de geometria, seguidos da proposição de realização de construções de desenhos geométricos, aplicações (desenho a artístico etc.) e medidas. Categoria 2: Geometria. Obras que tratam exclusivamente do ensino de conceitos geométricos. Nesta categoria o recurso ao desenho, quando feito, é apenas ao desenho geométrico como auxiliar para o ensino de definições mais complexas. Categoria 3: Taquimetria. Obras em que o ensino de conceitos de geometria é tratado como aplicações da aritmética (cálculo de áreas, volumes etc.). A nova reorganização dos livros encontrados é apresentada no gráfico 2 abaixo:
8 Fonte: elaborado pelo autor
A partir desse primeiro esforço de categorização foram produzidas análises que se seguem.
Categoria 1 – Geometria, desenhos, aplicações e medidas
Diante do conjunto de manuais inventariados no repositório supracitado identifica-se a presença do que estamos considerando como saberes geométricos em estreita relação com outros saberes, como por exemplo, o ensino do desenho e o cálculo de medidas associado às figuras geométricas. Figuram na relação de livros catalogadas o livro Compêndio de Arithmética. A obra apresenta um capítulo intitulado Noções de
Geometria todo dedicado ao ensino de saberes geométricos. Muitos dos manuais
apresentam tal vínculo desde o título da obra, como é o caso dos três primeiros manuais elencados no quadro 1.
Quadro 1 - Manuais escolares - Geometria, desenhos, aplicações e medidas
Título Autor Público Edição
examinada 1 Elementos de
Desenho Linear
Ayres de Albuquerque
Gama Escola Normal 2
a edição (1880) 8 5 18 GEOMETRIA, DESENHOS, APLICAÇÕES E MEDIDAS GEOMETRIA TAQUIMETRIA Qt d . d e t ítu lo s Tipos de abordagens
9 2 Curso elementar de Desenho Linear Paulino Martins Pacheco Escola primária,
Escola normal 1881 3 Desenho Linear ou elementos de Geometria Prática Popular6
Abílio Cesar Borges
Barão de Macahubas Escola primária 8
a Edição -1882
4 Elementos de
Geometria Sabino da Luz Escola primária 1895
5
Noções Intuitivas de Geometria
Elementar Gabriel Prestes
Segundo ano da Escola primária 1895 6 Compêndio de Arithmética para
uso das aulas preliminares, 2ª
edição, 1920.
Não consta Ensino primário 1920
7 Geometria Heitor Lyra da Silva Primário e
profissional 1923 8 Primeiras Noções de Geometria
Prática7
Olavo Freire Escola primária 35a edição - 1930 Fonte: Elaborado pelo autor
Nos livros agrupados nesta categoria, os saberes geométricos são abordados conjuntamente com diferentes propostas de ensino de desenho. Todos tiveram sua primeira edição publicada no final século XIX. Quanto ao público-alvo, como se observa no quadro, os manuais possuem públicos diferenciados, porém foram agrupados por terem algum vínculo com a escola primária do final do século XIX. O manual de Ayres de Albuquerque Gama8 traz na capa a indicação de “Compendio approvado pela Escola Normal de Pernambuco para o uso dos alunos-mestres” e assim foi classificada como destinada à Escola Normal. Entretanto, a sua 3a edição do ano
6A primeira edição do Livro de Abílio Cesar Borges é datada de 1876. A edição que consta no
repositório refere-se a 8ª edição publicada em 1882
7A primeira edição do Livro de Olavo Freire é datada de 1894. A edição analisada que consta no
repositório refere-se a 35ª edição publicada em 1930.
10 1888, é o único livro que consta do catálogo de livros aprovados para o ensino de Desenho nas escolas publicas primárias do Distrito Federal do Rio de Janeiro em 1891 e publicado na Revista Pedagogica do mesmo ano.
No que diz respeito aos saberes geométricos identificados nos seis manuais, pode-se dizer que todos abordam as noções primitivas de geometria, figuras geométricas planas e espaciais. No entanto, os cinco primeiros manuais apresentam as definições geométricas, de maneira formal com todas as características que exige uma definição. Somente o manual de Prestes discute os conceitos, propriedades, mas não os define, apresenta noções e algumas vezes convida os alunos a descobrirem propriedades. A abordagem de privilegiar na escola primária as noções das figuras, ao invés de suas definições e propriedades, de evidenciar a observação dos alunos pelos sentidos, encontra-se em acordo com os princípios do método intuitivo, trata-se também do único manual que agrega no título o termo “noções intuitivas” de geometria. Segundo Prestes, o manual é destinado ao segundo ano e considera que no primeiro ano o aluno tenha trabalhado com o desenvolvimento da percepção pelo ensino intuitivo das formas geométricas. Pode-se ainda inferir que o manual de Prestes como um manual inovador (Chervel, 1990), na medida em que se distingue dos demais, na proposição de se apropriar do método intuitivo, tendo assim um diferencial visível no conjunto de manuais de um mesmo período.
A outra característica comum ao grupo de manuais é a presença do desenho em conjunto com os saberes geométricos. A familiaridade dos saberes geométricos e de desenho já foi apontada em estudos anteriores que tomou como fonte os programas de São Paulo (Leme da Silva, 2014), reforçando a tendência dos manuais em atender os programas de ensino, em especial, o programa de São Paulo, estado considerado como vanguarda no modelo de criação dos grupos escolares no final do século XIX.
11 enfatiza que o professor deve fazer os desenhos no quadro, antes do aluno e no primeiro capítulo apresenta todos os instrumentos empregados no desenho linear, como régua e compasso, designação empregada no título da obra. Novamente neste aspecto, há dois manuais que se destoam dos demais. O manual de Pacheco que defende a necessidade de iniciar o ensino do desenho com o que o autor denomina de “desenho linear à vista”, ou seja, o desenho das figuras geométricas sem instrumentos, à mão livre, para somente num segundo momento, fazer uso dos instrumentos, denominado como desenho linear propriamente dito. O manual de Prestes faz menção aos desenhos de figuras geométricas, mas com régua, barbantes e esquadro, sem o uso do compasso.
Ainda outra característica comum dos manuais de Gama, Pacheco e Borges, diz respeito às aplicações dos desenhos, geralmente na parte final dos livros, como desenho de florões, estrelas, mosaicos, arcos, entre outras aplicações, algumas, inclusive, relacionadas à arquitetura. E finalmente, a presença do estudo das medidas relacionadas aos saberes geométricos. Somente os manuais de Luz e de Freire trazem problemas e exercícios de cálculo de áreas de figuras geométricas, na verdade o manual de Luz discute somente áreas de figuras planas e o de Freire aborda áreas e volumes, o que configura a apropriação do que Rui Barbosa designou como taquimetria, ou seja, a “concretização da geometria. É o ensino da geometria pela evidência material, a acomodação da geometria às inteligências mais rudimentares: é a lição de coisas aplicadas à medida das extensões e volumes” (BARBOSA, 1947, p. 290).
Como análise da categoria 1, pode-se dizer que o predomínio dos manuais inventariados articula os saberes geométricos com o ensino de desenho geométrico e com a definição de conceitos de geometria, sem evidenciar em tais conteúdos os princípios do método de ensino intuitivo. O destaque como diferenciador se observa no manual de Prestes, que merece estudo mais aprofundado. Em síntese, os saberes geométricos, assim como nas normatizações, também se encontram atrelados a outros saberes, e em especial, ao desenho, como uma representação fundamental para o estudo inicial dos saberes geométricos.
12 Nos manuais analisados nessa categoria o ensino da geometria se da de forma axiomática e as abordagens se organizam segundo a proposição de definições, corolários e teoremas. O desenho geométrico, quando figura, se apresenta como auxiliador na enunciação de conceitos mais complexos. Um exemplo dessa forma de abordagem pode ser encontrado no livro Compendio de Geometria Theorico e Prática
de Carlos F. de Paula, edição de 1924. Há nessa obra, a título de exemplo, a indicação
de construções com régua e compasso de elementos geométricos tais como: traçar um
ângulo igual a outro dado ou ainda por um ponto dado fora de uma reta traçar uma perpendicular a essa reta. . Diferentemente da Categoria 1 não há referência ao
desenho artístico. Uma característica comum nestes livros diz respeito ao grande número de exercícios propostos. No quadro 2 abaixo estão elencados os manuais escolares encontrados no repositório que se enquadram nessa categoria:
Quadro 2 - Geometria
Título Autor Público Edição
examinada 1 Elementos de Geometria André Perez y Marin e
Carlos F de Paula Escola Normal 3ª Edição - 1920 2 Apontamentos de
Geometria Antônio Ferreira de Abreu Escola Normal 2ª Edição - 1921
3 Curso Completo de Matemática Elementar, vol. 5, - Geometria Liberato Bittencourt Ensino primário/escolas militares 1922 4 Compendio de Geometria Theorico e Pratica Carlos F. de Paula Escolas técnicos - profissionais primárias e instituto de ensino prático9 2ª edição - 1924 5 Problemas de Colleção de Geometria
Antônio Ferreira de Abreu Escolas normais 1924
9 O ensino técnico no Brasil se consolida no ano 1906, mas é a partir dos anos 1927 que passa a se
constituir como oferecimento obrigatório no país. Objetiva-se o ensino pré-vocacional e profissional das
classes menos favorecidas. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/centenario/historico_educacao_profissional.pdf acessado em: 15
13 Fonte: elaborado pelo autor
Categoria 3 - Taquimetria
Nesta categoria estão as obras cuja abordagem dos saberes geométricos é realizada exclusivamente como aplicações dos conhecimentos de aritmética para o cálculo de medidas, áreas e volumes, aproximando-se da taquimetria. Nas obras analisadas estes temas são tratados nos capítulos finais do livro. Exceção que merece alusão refere-se ao livro Arithmetica Intuitiva – Curso Complementar a 2ª edição de 1911. Nesta obra as aplicações da aritmética ao cálculo de medida, áreas e volumes figura no primeiro capítulo do livro. Nas obras catalogas no repositório no período não foi encontrada abordagem semelhante. A taquimetria parece se configurar como uma das possíveis representações do intuitivo para o ensino primário. Tal hipótese toma como referência, a possível característica “prática” atribuída às atividades de taquimetria pelos manuais escolares. Tais atividades figuram geralmente em tópicos constantes na parte final do livro intitulados aplicações. O grande número de publicações sobre aritmética, sobretudo a partir dos anos 1920 em que os temas de geometria são tratados como conteúdos de taquimetria, pode ter contribuído para o estabelecimento de representações escolares para geometria estritamente ligadas a “aritimetização” dos saberes geométricos.
Quadro 3 - Manuais escolares - Geometria, desenho geométrico e aplicações
Título Autor Público Edição examinada
1 Curso Elementar de Mathematica - Arithmetica
Reis Aarão e Luciano Reis
Ensino primário e
escolas normais 2ª Edição - 1892. 2 Regras Metricas Jeronymo José
d'Oliveira Ensino primario 2ª Edição - 1898 3 Segunda Aritmética
para meninos
José Theodoro de Souza Lobo
Ensino primário e
escolas normais 9ª Edição - 1893 4 Arithmetica Primária Cezar Pinheiro Ensino Primário 2ª Edição - 1902 5 Elementos de
Arithmetica
João José Luiz
Vianna Colégio Militar 11ª Edição - 1906 6 Matemática – Teórico, Curso Elementar de
prático e aplicado
Reis Aarão e
Luciano Reis Ensino primário e
14 7
Arithmetica elementar pratica: collecção de
regras, exercicios e problemas, III parte
Professores da Escola Gratuíta S.
José” Ensino primário 5ª Edição - 1911 8 Arithmetica Intuitiva –
Curso Complementar
Olavo Freire
Ensino primário 2ª Edição - 1911 9 Aritmética para as
escolas primárias
Professores da “Escola Gratuíta S.
José” Ensino primário 6ª Edição - 1914 10 Aritmética
Complementar
Tito Cardoso de
Oliveira Ensino primário 8ª Edição - 1920 11 Problemas de Arithmetica Maria do Carmo Vidigal Pereira Neves Escolas normais 1921 12 Arithmetica Elementar Illustrada
Antônio Trajano Ensino primário e
escolas normais 92ª Edição - 1922 13 Arithmetica Elementar
- livro III
George Augusto
Büchler Ensino primário e escolas normais 2ª Edição - 1923 14 Segunda Arithmetica Jose Theodoro de
Souza Lobo Ensino primário e escolas normais 25ª Edição - 1926 15 Primeira Arithmética
para Meninos
Jose Theodoro de
Souza Lobo Ensino primário e escolas normais 36ª Edição - 1926 16 Elementos de
Arithmetica F.T.D. Ensino primário 1927
17 Primeira Arithmética para Meninos
Jose Theodoro de
Souza Lobo Ensino primário e escolas normais 37ª Edição - 1927 18 Primeira Arithmética
para Meninos
José Theodoro de
Souza Lobo Ensino primário 39ª Edição - 1930 Fonte: Elaborado pelo autor
Nota-se que nos manuais catalogados acima figuram aqueles cujas reedições “atravessam” o século. Autores como José Theodoro de Souza Lobo, Antônio Trajano dentre outros tiveram suas obras reeditadas um número expressivo de vezes. É possível pensar, conforme nos aponta Chervel (1990), que tais obras “modelizam” conteúdos e didáticas de ensino.
Conclusões
15 circularam no período compreendido entre 1880 a 1920. Embora, a realização da classificação dos manuais escolares por si só não nos permita estabelecer representações para o que poderia se configurar como uma abordagem intuitiva dos saberes geométricos, a análise realizada permite estabelecer novas questões que podem melhor delinear a problemática de investigação.
O “desaparecimento” nas décadas iniciais do século XX da referência ao termo “desenho linear” dos títulos dos manuais publicados nas décadas finais do século IX pode indicar não só a mudança de nomenclatura, mas também transformações das abordagens que viam no ensino de saberes geométricos uma ferramenta para o ensino de desenho. O que corrobora com estudos de Leme Silva (2014) que defende a progressiva “separação” entre o desenho e a geometria nos programas de ensino. O desenho que, ao que tudo indica se constituiu uma das ferramentas principais da abordagem intuitiva dos saberes geométricos, parece ceder lugar a novas didáticas.
A análise das edições ainda parecem nos indicar que progressivamente os alunos e não preponderantemente os professores passam a constituir o público alvo dos manuais. O aumento do número de problemas e exercícios para o atendimento de alunos parece ser um indicativo dessas mudanças. Igualmente as inscrições nas capas e prefácios dos manuais escolares indicam uma diversidade de público atendido pela circulação das obras, desde escolas de ensino primário a escolas normais de formação de professores, cursos profissionalizantes e escolas militares.
Algumas questões podem ser postas a partir desse primeiro esforço de análise cujas investigações posteriores podem apontar caminhos para pesquisa: como identificar nas especificidades e materialidade dos manuais escolares, proposições do método intuitivo? Em que medida marcos temporais adotados pelos historiadores da educação pode dizer-nos a respeito de saberes específicos? Quais didáticas para o ensino de saberes geométricos se estabilizam a partir dos anos 1940? Qual geometria circula nos manuais escolares dos cursos de formação de professores? Essas e outras questões se constituem em pistas para os próximos passos da realização da pesquisa.
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