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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL

04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI

GT 29 - Ciências Sociais & Cinema: entre narrativas, políticas e poéticas

CINEMA, ANTROPOLOGIA E AIDS: POR UMA ANTROPOLOGIA DAS IMAGENS

ESMAEL ALVES DE OLIVEIRA

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Bolsista CNPq esmael_oliveira@yahoo.com.br

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CINEMA, ANTROPOLOGIA E AIDS: POR UMA ANTROPOLOGIA DAS IMAGENS

O presente artigo tem o intuito de problematizar acerca do uso de imagens fílmicas na pesquisa antropológica. É deste modo que, através da análise do filme “Mãe dos Netos” (2008) produzido pela cineasta moçambicana Isabel Noronha, em co-autoria com a cineasta brasileira Vivian Altman, sobre a questão do HIV/SIDA1 em Moçambique, tento apresentar a proposta de um campo antropológico através de imagens-filme, em outros termos, uma antropologia da imagem que toma como base metodológica a análise de filmes. A intenção é debruçar-me exclusivamente sobre a mise-en-scène2 do próprio filme ficando atento às questões que o mesmo aponta e interpela. Para isso evoco algumas reflexões que tem sido apresentadas por diferentes autores que tem pensando o uso de imagens na Antropologia.

Na história do pensamento antropológico o uso de imagens como recurso metodológico se configurou como uma prática recorrente entre os clássicos da antropologia. Atendo-nos apenas a alguns exemplos, podemos citar as imagens captadas por Bronislaw Malinowski sobre os nativos da Nova Guiné e anexadas ao final da obra Argonautas do Pacífico Ocidental (1922), ou mesmo ao trabalho de Margaret Mead e Gregory Bateson com fotografia e filmagem acerca das práticas performática dos Balineses (1942). Se em Malinowski a fotografia tinha a intenção de marcação da “verdade” dos fatos observados e etnografados pelo antropólogo em campo - “estive lá” (Samain, 1995), em Mead e Bateson a fotografia não é tratada apenas como um recurso ilustrativo, mas problematizada enquanto um instrumento analítico dentro do método antropológico de pesquisa (Samain, 2004). Limitações à parte em ambos os usos e propostas, estava posta para a antropologia o desafio de pensar a imagem como recurso metodológico.

Desde então, a imagem e seus diferentes modos de captação da realidade etnográfica (fotografia, vídeo/filmes, sons) tem ocupado grande destaque nas novas metodologias da pesquisa antropológica. Contudo, cabe destacar que a centralidade que o uso de imagens como ferramenta e/ou objeto de análise antropológica não se

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No contexto moçambicano a sigla para “Síndrome da Imunodeficiência Adquirida” segue a classificação terminológica de língua portuguesa (SIDA) e não a terminologia americana (AIDS) – ao contrário do que ocorre no Brasil.

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Mise-en-scène (colocação em cena) se refere a todo o conjunto de componentes que ajudam a

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operou de modo imediato. Há que se considerar, portanto, conforme Ilka Boaventura Leite, que mudanças de paradigmas tem sido operadas no campo antropológico, sobretudo pela transformação teórica do arcabouço conceitual da disciplina, abrindo, assim, a possibilidade para a análise de novos fenômenos (2007). Assim, o desafio deste artigo consiste em usar a antropologia visual como ferramenta para a análise de imagens cinematográficas tornando-as objeto de reflexão antropológica, em que pese seus limites e possibilidades. Deste modo, proponho, a partir da análise sobre um filme produzido no contexto moçambicano, pensar alguns aspectos que ajudam a compor o cenário etnográfico através de uma antropologia da imagem.

Há que se destacar a centralidade e a importância de trabalhos e autores que usaram como método a análise de imagens-filme seja no campo antropológico ou fora dele. Especificamente dentro do campo da antropologia brasileira, este trabalho não se constitui como novidade. Artigos e teses utilizando-se de análise de filmes são bem recorrentes na contemporaneidade, vale citar Rose Hikiji (1998), Fernando de Tacca (2002), Sônia Maluf (2002), dentro outros.

Rose Hikiji (1998), escreve sua dissertação de mestrado se propondo fazer usos de filmes como objetos de análise antropológica. Tendo em vista que até então a antropologia visual tinha em conta o uso dos recursos audiovisuais enquanto técnicas de pesquisa, Hikiji se propõe o desafio de pensar estes recursos não enquanto técnica, mas enquanto objeto de reflexão e análise. Do mesmo modo, Sônia Maluf (2002) ao analisar um dos personagens presentes no filme “Tudo sobre minha mãe” (Agrado), de Pedro Almodóvar, busca compreender através do recurso fílmico as relações de gênero, corpo e corporalidade que vão se constituindo através do personagem Agrado ao longo da trama. Fernando de Tacca (2002), por sua vez, também se colocou o desafio de tentar pensar a construção exótica do indígena como "selvagem" através de imagens fílmicas produzidas pela Comissão Rondon sobre os índios Bororo. Deste modo, acreditamos que nosso trabalho também se constitua como uma possibilidade analítica e metodológica no campo antropológico à medida em que tomamos os filmes de Isabel Noronha também como “material etnográfico” que podem ser lidos e compreendidos e, portanto, enquanto produtos culturais (de um tempo e espaço específico).

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Partimos, assim, da idéia de que o filme é um produto cultural, prenhe de significados não apenas simbólicos (éticos e estéticos), mas políticos e sociais. O filme de Isabel Noronha e Vivian Altman são reflexos de seu tempo, de seu contexto histórico, de suas preocupações e visões de mundo. Deste modo, nos confrontam com uma contextualização em que estão em jogo aspectos sócio-histórico-relacionais, aspectos caros à pesquisa antropológica. Dai perguntamos sobre os aspectos que ajudam a compor sua mise-en-scène: O que “Mãe dos Netos” mostram? Como mostram? Por que mostram? O que permanece como central? O que permanece como ponto de fuga? Conforme Freire e Lourdou (2009),

Um filme não é tão somente o produto de um olho neutro, mecânico e implacável, ele é, mais que tudo, resultado de escolhas de mise en scène do cineasta. Em outros termos, ele é fruto de uma estratégia fílmica essencialmente elaborada, conscientemente ou não, pelo diretor durante a fase de registro das imagens (2009: 16).

Qual a mise en scène em questão?

O filme analisado, “Mãe dos Netos”, foi produzido em 2008 e tem com duração de 6 minutos e 50 segundos. Foi financiado pela ONG FDC (Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade), que é presidida pela ex-primeira dama moçambicana Graça Machel, e produzido pela Ébano Multimedia ao qual Isabel Noronha está vinculada.

Há que destacar que Isabel Noronha vem desenvolvendo nos últimos anos alguns trabalhos cinematográficos acerca da questão do HIV/SIDA no contexto moçambicano. Destaque para o premiado trabalho Trilogia das Novas Famílias (2007), em que através do relato de três situações distintas envolvendo crianças e adolescentes (“Caminhos do Ser”; “Delfina, Mulher, Menina”; e “Ali-Aleluia”), Isabel Noronha apresenta um panorama dos impactos da pandemia nas relações de parentesco e nas organizações familiares.3 É assim que mãe dos netos deve ser compreendido, como continuidade das reflexões e posicionamentos da cineasta

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Sobre a questão do impacto do HIV/SIDA em contexto moçambicano, consultar: MATSINHE, Cristiano. “Tabula Rasa”: Dinâmica da resposta moçambicana contra o HIV/SIDA. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e

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acerca dos dilemas que cercam a questão do HIV/SIDA em seu próprio país. No filme “A mãe dos Netos”, Isabel e Vivian narram a história de uma avó que, por causa da morte do filho e das noras, se vê na condição compulsória de tomar conta de 14 netos órfãos da SIDA.

O filme se passa numa aldeia de alguma província moçambicana e nos permite pensar a existência de outros lugares com as mesmas condições de sobrevivência e os mesmo problemas sendo deparados. Utilizando-se do recurso de montagem, em que mescla filme documentário com sequencias de animação, Isabel e Vivian contam a história de Elisa Mabesso e de sua rede de parentesco. O filme inicia mostrando uma senhora sentada sobre um tapete de bambus no meio de uma aldeia, sob a sombra de uma árvore frondosa, exercendo atividades que parecem ser de seu cotidiano e ao mesmo tempo relatando a história e os dramas de sua família. A própria configuração do lugar/espaço onde se desenrola a trama (ordenamento do espaço e das casas, a paisagem com uma grande concentração de árvores e mata nativa, ausência de elementos que remetam a um ambiente urbano) permite inferir que trata-se de uma comunidade rural tradicional, dissonante de uma grande cidade.

Há toda uma menção ao sistema de parentesco, o que desde o início ressalta a importância da tradição como aspecto de relevo na composição social do grupo retratado, além das questões de ordem étnica que remetem à uma forte questão identitária: “Nasci na Família Muianga”.

A personagem diz que após seu casamento veio morar junto a aldeia Hókwé da família Muchanga, o que nos dá a idéia da existência do um sistema de parentesco como mecanismo organizador do grupo. Após seu casamento teve um primogênito: Francisco. Depois de crescido, relata a senhora Mabesso, Francisco foi para a África do Sul (provavelmente desempenhar a atividade de mineiro, o que, segundo alguns relatos etnográficos, é uma prática comum em Moçambique), voltando depois para casar. Francisco, dentro de um sistema social em que é permitida a poligamia, adquiriu casamento com oito mulheres, resultando destes casamentos um grande numero de filhos. E continua o relato da velha senhora: “Elisa, a primeira esposa de Francisco, teve um filho – o Armando. Depois Francisco foi buscar a segunda esposa na família Mbanze, deste segundo casamento teve

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mais dois filhos: a Paulina e o Gustavo.” O que parece no primeiro momento ser a rotina de um grupo étnico africano com seu sistema de parentesco extenso, aos poucos vai dando espaço para os dilemas vividos pela família diante da perda gradativa de seus membros por conta da infecção do HIV/SIDA. “O meu filho adoeceu de SIDA”, diz a senhora. E continua: “E depois morreu. Tal como a primeira esposa, a Argentina também morreu. A Paulina e o Gustavo também vieram ficar comigo.”

(Créditos: Isabel Noronha e Vivian Altman, Mãe dos Netos, 2008)

O relato, porém não para por aí. O France, o Emídio e a Mistéria, filhos da terceira esposa de Francisco (Almerinda, que também faleceu), juntaram-se ao grupo dos netos adotados de Elisa. Alegria, a quarta esposa de Francisco, também ao morrer, deixou sua única filha (Vastinha) para avó. Elisa sintetiza o que acabou ocorrendo com quase todas as esposas de Francisco: “Todas as outras esposas de Francisco morreram”. Tristeza, a última esposa de Francisco e que ainda não tinha filhos, abandonou a família Muchanga após a morte do marido, deixando a velha Elisa sozinha com 14 netos. Em cena aspectos dramáticos da situação do núcleo familiar: um grande número de crianças pequenas, a idade avançada da avó, sua impossibilidade de ir para a machamba (roça) e de cuidar de todos os netos. Tudo isso expresso na preocupação da debilitada avó: “Como é que eles vão crescer?”.

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(Créditos: Isabel Noronha e Vivian Altman, Mãe dos Netos, 2008)

Ao final, o que parecia ser apenas uma “estória” de desenho animado, transformar-se em “realidade”, em história de vida. Todos os personagens retratados na trama em forma de animação, são visualizados em “carne e osso”. A estratégia de Isabel Noronha e Vivian se elucida ao final do filme com as mensagens de conclusão nele inseridas: “Todas as semelhanças entre esta estória e a história da família Muchanga são pura realidade. Qualquer semelhança entre esta estória e a tua própria história é uma possibilidade. Pára e pensa.” Ali a noção de “ficção” e “realidade” são reconfigurados, num jogo dialético de justaposição de imagens que mimetizam e metaforizam realidades sociais complexas.

O que este filme nos ajuda a pensar com relação à uma proposta de uma Antropologia da Imagem-filme? Tendo em vista a longa trajetória de discussão em torno dos métodos de pesquisa em Antropologia, bem como acerca do uso de imagens como método de análise antropológica, nossa proposta se apresenta como uma alternativa metodológica. Trata-se de uma proposta de alargar o horizonte dos métodos de pesquisa no campo antropológico. Assim, ao utilizarmos a imagem fílmica para pensar a questão do HIV/SIDA a partir do filme “Mãe dos Netos”, cuja a centralidade se dá em torno do HIV/SIDA, acreditamos na possibilidade de acesso a questões, através da análise de imagens, que estão para além de uma abordagem “positivista”, pragmática e que alargam os horizontes da pesquisa no campo antropológico. Ilka Boaventura Leite (1998), ao falar sobre a questão da sensibilidade no campo antropológico, chamava a atenção para a necessidade de “polir o olhar” e mais do que isso, “alargar o olhar”. Um duplo movimento, que convida a novas experimentações e possibilidades. Polir o olhar significa estar

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atento para os imponderáveis do mundo social, para a fugacidade dos fenômenos, para inapreensibilidade das vivências e experiências no mundo. Alargar o olhar, significa estar atento (não apenas racionalmente, mas sobretudo esteticamente) à “diferentes linguagens” e ver diferentes experiências sociais, e a própria etnografia, como uma imagem entre outras. Eis nosso propósito neste artigo.

Ao brincar com a noção entre “real” e “imaginário” ou entre “personagens de animação” e “personagens de realidade”, através da justaposição documentário/animação, Isabel Noronha e Vivian Altman nos apontam diretamente para uma questão já abordada por Gilbert Durand (2004) acerca da necessidade de se repensar tais antagonismos, tão marcados na história do Ocidente, e de levarmos em consideração que ambas as categorias são criadas e imaginadas. Neste sentido, o real é tão imaginado quanto o imaginário e vice-versa, sendo necessário, portanto uma análise que não se abstenha de pensar os conteúdos estilísticos e semânticos das formas estéticas das imagens. No filme, o duplo movimento de figuração dos personagens (entre animação e “corporificação”) se entrelaçam e relativizam os modos de retratar uma dada realidade social, abrindo portanto, novos horizontes para a pesquisa.

Estes novos horizontes apontam principalmente para a dimensão informativa de uma imagem. Este aspecto já havia sido desenvolvido por Roland Barthes com relação às imagens usadas em propagandas (Barthes, 1964). Para o autor, nas imagens de propaganda há um conjunto de intencionalidades que ajudam a compor os códigos a serem captados pelo receptor da imagem/mensagem. Neste sentido, chama a atenção para o caráter informativo de uma imagem. Assim, sem perder de vista a especificidade do objeto analisado por Barthes, acreditamos que sua discussão pode nos auxiliar na compreensão ideológica de construção de visualidades. Em “A retórica da imagem” (1964), o autor leva em consideração os aspectos ideológicos da imagem através da confrontação entre o que chama de aspectos “denotativos” (representação pura) e “conotativos” (os aspectos simbólicos) da imagem. Certamente podemos levantar algumas questões através da visualização do filme de Isabel Noronha e Vivian Altman. Neste sentido, é importante perguntar a intencionalidade do que é mostrado. Quem são os interlocutores? Os financiadores? Os aspectos retratados? O que está no foco das imagens? O que permanece em segundo plano? Quais textos/falas/discursos se seguem às

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imagens? São questões que a partir de Barthes somos provocados a pensar. Neste texto de 1964, Roland Barthes conclui que as imagens publicitárias são francas ou enfáticas, isto é, tudo nelas é construído de forma intencional de modo a não abrir desvio de interpretação ao receptor. É assim que o autor debruça-se sobre as condições de produção de sentido das imagens tentando perceber qual o seu valor retórico. E assim conclui que existe uma retórica da imagem, semelhante à retórica verbal. Contudo, nem tudo é “ideologicamente” determinado. Pelo contrário, em um texto posterior Barthes (1984) apontava para a dimensão subjetiva da imagem. Ou seja, se por um lado há uma produção de sentidos, por outro esses sentidos nem sempre são totalmente determinantes no processo de apropriação do sujeito que observa a imagem. Há ali espaço, conforme Barthes, para o “punctum”, para a afetação.

No filme produzido por Isabel e Vivian há todo um aparato político que não pode ser ignorado e que certamente a localiza num lugar socialmente estabelecido bem como sua perspectiva cinematográfica. Tomando como base as reflexões de Barthes sobre imagens de cunho retórico, somos provocados a compreender em “Mãe dos Netos” o complexo jogo de relações inseridas na produção de uma imagem (seja ela fílmica, fotográfica ou sonora) e que nos despertam para aspectos que somos tentados a ignorar com relação ao que se nos apresenta ao primeiro olhar. A financiadora da Produção é a FDC (Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade). Esta ONG tem atuado, entre outras coisas, em projetos voltados para o enfrentamento da pandemia de HIV/SIDA em Moçambique, desde sua criação em 1990.4 Deste modo, passamos a nos interrogar também sobre o que permanece como foco do que deve ser representado; sobre o que fica em segundo plano; o que se denuncia; o que se desvela, etc. Conforme os termos de Claudine de France (1998), somos desafiados e pensar a “mise-en-scène” que se delineia no ato de filmar, tendo em vista que ao mostrarmos alguma coisa ocultamos outra.

A intencionalidade das imagens (a partir da dinâmica do que é mostrado e do que é ocultado) nos aponta para a dimensão criativa e figurativa da imagem filmada. Ou seja, as imagens, tanto quanto outros elementos da cultura humana, estão submetidos a normas e a convenções culturais (Mauss, [1934] 2003; Novaes, 2008).

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E sob esta perspectiva há que se destacar os agenciamentos de seus produtores em torno que se considera como o mais relevante para ser mostrado, o mais significativo sob o seu ponto de vista. Mas nem tudo é intencionalidade. E aqui penso que reside a riqueza do filme como um objeto etnográfico, há também o elemento do inesperado. Ressalto aqui a dimensão “autônoma” que as imagens tem sobre os sujeitos que as recebem/veem a partir das relações subjetivas que são feitas do que é visto (Barthes, 1984; Novaes, 2008). O filme “Mãe do Netos” não é apenas uma descrição de realidade, mas uma metaforização da mesma. Está imerso dentro de um determinado imaginário social e, assim sendo, nos coloca diante de complexas redes de significado cultural e que podem vir a ser compreendidas e interpretadas pelo pensamento antropológico. Mas em que sentido se constitui como uma metáfora? Em 1929, Michel Leiris escreve um verbete para a Revue Documents intitulado metáfora. Segundo o autor,

“Metáfora. – ‘A Metáfora (do grego metafora, translação) é uma figura pela qual o espírito aplica o nome de um objeto a um outro, graças a um caráter comum que os faz aproximar e comparar.’ (Darmesteter). Todavia, não se sabe onde começa e onde termina a metáfora. Uma palavra abstrata se forma pela sublimação de uma palavra concreta. Uma palavra concreta, que jamais designa o objeto mais do que por uma de suas qualidades, não é ela própria mais do que uma metáfora, ou ao menos uma expressão figurada. Além do mais, designar um objeto por uma expressão que lhe correspondesse, não no figurado mas no próprio, exigiria o conhecimento da essência mesma desse objeto, o que é impossível, pois que não podemos conhecer mais do que os fenômenos, não as coisas em si.

Não somente a linguagem, mas toda vida intelectual repousa sobre um jogo de transposições de símbolos que podemos qualificar de metafórica. De outra parte, o conhecimento procede sempre por comparação, de maneira que todos os objetos conhecidos estão ligados uns aos outros por relações de interdependência. Não é possível determinar, para dois quaisquer dentre eles, qual é designado pelo nome que lhe é próprio e não é a metáfora do outro, e vice-versa. O homem é uma árvore móvel, tanto quanto a árvore um homem enraizado. Da mesma forma o céu é uma terra sutil, a terra um céu engrossado. E se vejo um cachorro correr, é também a corrida que cachorra. […] Esse artigo ele mesmo é metafórico. M.L.” (Revue Documents, n. 3, 1929).

Ao propor, portanto, “Mãe dos Netos” como uma metáfora da realidade moçambicana, estamos atentos a todo o caráter fugidio da linguagem, mas também à dimensão figurativa de uma imagem. Trata-se de uma transposição de símbolos locais para uma linguagem “global” (o cinema) que não resulta numa síntese, mas numa justaposição de imagens, códigos, sentidos e subjetividades e que permitem que realidades e questões de grande complexidade sejam apreendidas e compreendidas por outras perspectivas. A ordem da objetividade cede lugar para a

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dimensão criativa que a linguagem estética de uma imagem permite vislumbrar. A busca pela totalidade cede lugar para a consciência de uma percepção fragmentária e fugidia.

Seguindo estas pistas reflexivas nos colocamos outra questão: se desde seus primórdios o que tem caracterizado a prática antropológica tem sido a descrição e a reflexão a partir do observado, por que um filme (enquanto algo que assim como qualquer fato social também mostra e revela) não pode ser entendido como um campo a ser observado, descrito e analisado? Se o ponto de partida de uma etnografia é uma descrição, apontando para a expansão de horizontes analíticos e de perspectivas, podemos pensar que tanto a análise de uma aldeia per si quanto uma análise sobre um filme são possibilidades de pesquisa para se fazer uma etnografia. O que está em jogo, portanto, não são os “objetos” a serem analisados, mas as ferramentas analíticas a serem utilizadas. Vale lembrar que se num primeiro momento houve um mal estar na antropologia com toda a relativização do campo (estar lá/estar aqui),5 hoje novas relativizações e possibilidades reflexivas se impõem a partir da inserção de novos campos e métodos de trabalho. Neste sentido, tem sido paradigmático as questões colocadas pela Antropologia Visual. É assim que defendemos a idéia de que sob muitos aspectos a análise de imagens (cinema, fotografia, pinturas, sons) também pode ser considerada como objeto de investigação antropológica do mesmo modo que outros campos/objetos de investigação. Conforme France, “uma descrição fílmica minuciosa dos fatos e gestos oferece um suporte insubstituível à análise, independentemente do valor dramático do filme” (1998: 13).

Estas questões se impõem como deveras relevante no campo da antropologia contemporânea onde não só a utilização de imagens “clássicas” (fotografias e filmagens) se fazem cada vez mais presentes, mas também toda uma explosão de novas experiências com imagens e métodos com elas relacionados, basta lembrar o uso dos new media (Eckert e Rocha, 2006; Devos e Vedana, 2010). Sobre a ampliação do uso de imagens digitais/virtuais no campo antropológico, Devos e Vedana (2010) ao perguntarem sobre a especificidade do “documento hipermídia”, apresentam a complexidade e os novos desafios da utilização do website na

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pesquisa antropológica. Apontando para a noção de “hipermídia”, os autores destacam o caráter inventivo e relacional dos novos medias. Em cena, novas formas de ler, assistir e divulgar narrativas visuais, escritas e sonoras. Assim como Eckart e Rocha (2006), Devos e Vedana defendem a ideia de essa nova configuração hipermidiática apresentam novos desafios à própria antropologia, sobretudo pela aparente desordem e permanente transformação à que estão submetidos estas novas tecnologias digitais. Assim, o fazer antropológico se depara com a construção de um conhecimento cada vez mais fragmentado em que não apenas a imagem é instrumento de análise e reflexão, mas também a própria sonoridade.

George Marcus (2009) ao problematizar criticamente o método malinowskiano de se fazer etnografia (“cena malinowskiana”), dialoga conosco ao afirmar a necessidade de uma abertura para novos terrenos e circunstâncias de pesquisa incluindo as artes, o cinema e o teatro como campos férteis para isso. Portanto, este desafio de uma antropologia da imagem não está longe das problematizações teóricas da antropologia. Como um campo que tem privilegiado as experiências sensoriais, a antropologia trás em seu próprio cerne um dilema com relação aos sentidos e de modo particular a visão e, portanto, à imagem: o antropólogo é aquele que vê e etnografa. Roberto Cardoso de Oliveira (2000), se deteve em analisar o ver, o ouvir e o escrever na prática antropológica. Para o autor, tratam-se de atos cognitivos. Diante de uma imagem, de uma cena, ocorre não apenas um processo mecânico de captação de um dado, mas um de produção de sentidos. David MacDougall (2009) vai além, ao propor uma corporalidade das imagens. Para ele, antes de produzirem atos cognitivos, as imagens (fotográficas, fílmicas, artísticas) são pura sensibilidade. Nas palavras do autor, “imagens corporais não são apenas imagens de nossos corpos; elas são também imagens do corpo atrás da câmera e de suas relações com o mundo” (2009: 63).

Assim, acredito que o uso de imagens-filme se configura como um importante campo de análise antropológica à medida que nos permite ter acesso a informações significativas sobre o contexto em que se realiza e, além disso, como um texto a ser lido e compreendido. São muitos aspectos densos e cheios de significados que são postos em evidência através da lente de uma câmera. Em “Mãe dos Netos” não está uma descrição demasiado simplista da realidade narrada. Pelo contrário, podemos ter acesso à uma série de categorias e dados empíricos caros ao pensamento

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antropológico: sistema de parentesco, língua/oralidade, etnicidade, migração, doença/saúde, etc. A imagem que se expõe ali é, portanto, constituidora de conhecimento. É um “código” cultural com seu emaranhado de significados. No caso em questão, a análise do filme “Mãe dos Netos”, como produto de um contexto específico, nos permite: “(...) descobrir a maneira como os próprios africanos se vêem e julgam sua situação, sua história e seus contatos (...)” (Bamba, 2007: 82-83).6

Assim, problemas de ordem metodológica também se impõem. Se há na narrativa fílmica intencionalidades por parte de cineastas, não podemos ignorar o fato de que o próprio antropólogo também está imerso em um universo interpretativo de atribuição de significados. Contudo, não acredito que isto se torne empecilho para esta proposta metodológica de análise de imagens-filme. Afinal de contas, em uma experiência face to face, da clássica imagem do antropólogo em campo (“cena malinowskiana”, conforme Marcus), não impede que seus dados observados e registrados também não estejam imersos em significações e agenciamentos de seus nativos. O que permite então um uso adequado desta proposta analítica? Mais uma vez entram em cena as ferramentas analíticas possibilitadas pela teoria antropológica, e de modo particular pela antropologia visual, no que tange à questão do método em antropologia. Neste ponto a contextualização e a relativização se mostram como fundamentais tanto para um trabalho in locus, quanto para um trabalho in cena. Por limitações de ordem documental, não tivemos acesso a mais informações acerca do processo de produção do filme em questão, motivo pelo qual optamos em analisar somente o conteúdo por ele exposto. Contudo, não ignoramos a importância de tal contextualização. Ficam algumas interrogações que o filme nos faz pensar: como foi feito o texto? A partir de uma entrevista com a avó? Quem a entrevistou – Isabel Noronha ou a ONG? Quem faz o papel da avó é a avó “de verdade” ou uma atriz? Qual a diferença entre um processo metodológico e outro? A impossibilidade de responder tais questionamentos, antes de se mostrarem como um aspecto que tornaria precário ou mesmo impossível o uso de imagens fílmicas, nos provocam a pensar os limites da obviedade do que é visto, mostrado. Neste

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Cabe destacar que o termo africano, aqui utilizado, antes de evocar uma generalização essencializada, ontologizada e descontextualizada tem apenas a intenção de destacar a especificidade do cinema africano face às outras experiências cinematográficas mundiais e, nesse

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sentido, acreditamos que não apenas um material fílmico pode ter informações insuficientes para o antropólogo como também um trabalho de campo corpo a corpo. Afinal de contas, quem garante que o antropólogo em campo terá acesso a todas as informações que busca? É necessário levar em conta a própria dimensão evasiva, fluida, precária inerente ao trabalho antropológico. Isso nos ajuda a relativizar nossas categorias analíticas, os modelos comparativos que enfatizam as polaridades e os antagonismos e mesmo as técnicas de pesquisa (que nunca são um fim em si mesmas).

É necessário entender o contexto mais amplo. Buscar respostas para perguntas que talvez não sejam as nossas. Conforme Ferid Boughedir (2007), com relação a especificidade das produções cinematográficas africanas, “é a posição que cada diretor adota quando confrontado com os vários movimentos de sua sociedade que nos permite compreender os principais temas dos filmes africanos” (2007: 39). Não podemos esquecer também que um trabalho com antropologia visual nos confronta com as implicações éticas do trabalho do antropólogo, dilemas sempre novos. As imagens fílmicas estão inseridas dentro de situações específicas, retratam dilemas, conflitos, condições político-sociais, relações de poder e depois de etnografadas passarão a ser socializadas na comunidade científica e social podendo ter os mais variados usos e apropriações. Estas e outras questões também precisam ser levadas em conta no processo de utilização das imagens.

Enfim, sem querer esgotar a questão, nosso objetivo principal ao estabelecer uma reflexão a partir de uma imagem-filme, foi pensar os dilemas e possibilidades da utilização do método de análise fílmica em antropologia. Ao alçar mão de algumas discussões do campo da antropologia visual, nossa proposta foi a de defender a utilização de uma metodologia alternativa dentro deste campo, geralmente entendido apenas como produtor de imagens-foto/imagens-vídeo/imagens-sons, e ao mesmo tempo ressaltar que as condições e contradições de se fazer uma determinada antropologia não se dá pela forma com que lidamos com nossos objetos de pesquisa, com “nossos” nativos, interlocutores, mas pela capacidade crítica de reflexão sobre o método que utilizamos. Deste modo, acreditamos que não só uma antropologia da imagem é possível (na verdade ela já se faz há um longo tempo, basta lembrar que a antropologia visual já é um campo consolidado), mas também outras antropologias que não tenham medo de apostar

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em novos métodos e novos campos, acompanhados, contudo, de grande reflexividade e compromisso ético.

REFERÊNCIAS

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