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Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras. URI:

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Academic year: 2022

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Autor(es): Mancelos, João de

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras URL

persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23925 Accessed : 17-Dec-2021 06:26:11

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HARTCRANE:

EMPRESTAR A DEUS UM MITO

JOÃO DE MANCELOS

"Admirável aquele cuja vida é um contínuo relâmpago"

Matsuo Bashô, "O Gosto Solitário do Orvalho"

Marcámos encontro com o espírito de Hart Crane, poeta modemista estadunidense. Num qualquer bar de South Street, junto às docas, contem- plando navios - e marinheiros. Ou no 110 de Columbia Heights, perto das gaivotas do East River. Ou ainda fazendo barquinhos de papel onde navegar, nas horas de tédio, num escritório de publicidade. Talvez o encontremos no mar dos Sargaços, jogando aos dados com o fantasma de Melville. E possamos escutar um poema à sua ponte mais amada - a Brooklyn Bridge - construção simbólica do progresso americano, altar do mito. A musa da modernidade que levou Crane a sua obra mais ambiciosa:

The Bridge.

Filho do século, "o rapaz dos rugidos" como lhe chamavam os amigos, Crane teve uma vida tão efémera quanto conturbada. Eis alguns marcos do percurso biobibliográfico deste poeta, contemporâneo de Pound e Eliot:

1899 - Nasce a 21 de Julho, em Garrettsville, Ohio, Harold Hart Crane, filho único de Clarence e Grace Crane. Com um pé no século XIX, como gracejava. A infância será passada em Warren e marcada por desen- tendimentos entre os pais. Anos mais tarde, Crane confessar-se-ia marcado pela "avalanche de amargura que me invadiu desde os meus sete anos e problemas familiares que foram a minha destruição desde os oito quando o meu pai e a minha mãe começaram a discutir" (HORTON, 1937: 20).

1908 - A famt1ia Crane muda-se para Cleveland. Harold ocupa, no terceiro andar, um quarto com uma torre circular. Aí, na sua torre de marfim, entregar-se-ia a coleccionar livros, discos e ilustrações reprodu- zindo quadros de pintores. Escreve os primeiros poemas.

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1916 - Vive na Isle of Pines, perto de Cuba, onde a avó e proprietária de uma plantação. Publica um poema "C-33", alusão à cela de Oscar Wilde, no Bruno's Weekly uma pequena revista da Greenwich Village, proprie- dade do boémio Guida Bruno. Confidência a um amigo: "Creio ter encontrado o trabalho da minha vida" (HORTON, 1937: 25). Com a separação dos pais, o poeta opta por se chamar Hart, por afeição à sua mãe.

Vive só, em Nova Iorque. O ambiente era de guerra. Pacifista, H. C. pro- testa, em carta à mãe: "Desfiles, desfiles! Já não os suporto: já vi desfiles de enfermeiras, desfiles de cães, desfiles de gatos" (HORTON, 1937: 39).

1922/23 - Labora nos poemas que constituirão a sua primeira obra:

White Buidings. Um dos textos, "For the Marringe ofFaustus and Helen", é publicado e obtém apreço de vários cóticos. Corresponde-se com Tate e Wright e frequenta o meio artístico de Patterson, Nova Iorque. Colabora com diversas revistas. De temperamento irrequieto, intercala trabalhos variados com peóodos de desemprego. Matthew Johnson conta que, quando Crane trabalhava como publicitário, lhe foram pedidos textos sobre cosméticos. Como motivação, os seus superiores colocaram na secretária diversos frascos de perfume. Um dia, o poeta, ainda não recuperado de uma ressaca e nauseado pela multiplicidade de fragrâncias, lança os perfumes pela janela fora (HALL, 1981: 283).

1924 - Habita um quarto no 110 de Columbia Heights, onde o arquitecto da ponte, John; Augustus Roeblin vivera. Entusiasmado com a descoberta, Crane escreve a Waldo Frank: "Repare no endereço acima mencionado e constatará que vivo na sombra da ponte. É tudo tão sossegado, aqui; ( ... ) E eis a gloriosa dança do rio, visto da janela das traseiras ( ... ) o porto, o horizonte de Manhattan, meia-noite, manhã ou entardecer, faça chuva, neve ou sol, tudo está lá, desde as montanhas, aos muros de Jerusalém, Nineveh, tudo em harmonia, e em verdadeiro contacto com as imutáveis águas em redor" (HORTON, 1937: 167).

1925 - O banqueiro Otto Khan concede-lhe uma bolsa que Crane usará para trabalha na sua obra-prima: The Bridge.

1926 - Publica White Buildings pela editora Bani e Liverigh. O poemário é bem recebido pela cótica. Dedica-se à escrita deA Ponte, na Isle ofPines.

1928/29 - Regressa a Brooklyn. Posteriormente, (graças à herança de

$ 5,000 da avó visita a Europa: Londres, Paris, Sul de França. É preso por desacatos.

1930 - Ponte é lançada, pela Liveright, em Nova Iorque. Algum tempo depois, surge pela Black Sun Press, em Paris. O acolhimento da cótica não é entusiástico.

1931 - Passa os três primeiros meses do ano com o pai, em Chagrin Falls, Ohio. Ganha, em Maio, uma bolsa atribuida pela fundação Guggen-

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heim, para trabalhar no México. Instala-se em Mexicoac. Katherine Anne Porter nota os seus cada vez mais comuns estados de embriaguês. Confes- sava não ser capaz de sentir coisa alguma, excepto sob choques de brutalidade e violência. Por vezes, gritava: "Sou Baudelaire, sou Whitman, sou (Christopher) Marlowe, sou Cristo" (HALL, 1981: 288). Paralela- mente, começa a falar com frequência em suicídio. Considera o de Harry Crosby como imaginativo, o acto de um poeta. Continua a envolver-se em desacatos. Ao álcool junta-se o consumo de estupefacientes. Porém, encontra Peggy Baird e alguma quietude. Escreve os poemas que serão integrados em Key West, a última lombada de poesia. Da colectânea, destaca-se, "Broken Tower", reflexo de uma vida martirizada pela carên- cia, a frustração e a angústia.

1932 - Decide regressar a Nova Iorque, com o propósito de se internar no mundo dos negócios. A 26 de Abril, o paquete Orizaba, no qual viaja, faz escala em Havana. Na madrugada seguinte, Crane, que se envolvera numa briga, suicida-se, lançando-se do parapeito do navio. Uma passagei- ra, Gertrude V oigt, relata, nestes termos, os últimos instantes do poeta:

"Pouco antes do meio-dia, alguns de nós estávamos reunidos no convés, à espera de saber os resultados do sorteio de bordo ( ... ) Nesse momento, surgiu Crane, vestido ... com pijama e sobretudo; tinha um olho negro e parecia ter sido bastante sovado. Caminhou para a balaustrada, tirou o casaco, dobrou-o cuidadosamente e deixou-o sobre o varandim ( ... ).

Silenciosos, contemplámo-lo, com curiosidade. Depois, subitamente, salt- ou (por cima da balaustrada, para o mar: Durante cinco segundos, que pareceram cinco rninutos,ninguém se mexeu; então, escutaram-se os gritos de «homem ao mar». Por um instante, vi-o nadar, vigorosamente. Depois, nada" (HALL, 1981: 288-289).

O corpo de Crane nunca foi encontrado. O mar, que o poeta cantara em textos diversos - "Voyages", "At Melvine's Tomb", "O Carib Isle", etc- jamais o devolveu. O escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade, recorda Crane, nestes termos:

"Jack London René Crevel Stefen Zweig Vachel Lindsay Walter Benjamin Virginia Woolf Sá Carneiro Hart Crane Cesare Pavese Raul Pompeia

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e disse apenas alguns de tantos que escolheram o dia, a hora, o gesto o meio

a dissolução".

Nos anos vinte ou trinta, «moderno» queria dizer, não sem alguma ar- rogância, «americano».

Conscientes disso, os colaboradores da revista Seven Arts, pretendiam conciliar a inovação com a tradição. No âmbito desta síntese modernista, defendida por Van Wyck Brooks, vão demandar o chamado "usable past", o passado histórico utilizável (HORTON, 1937: 42).

Ora, também Crane vai recuperar alguns dos mitos do passado ameri- cano (nomeadamente os relaccionados com os índios -cf. poema "Dança") e combiná-los com elementos da nova era, marcada pelo comércio, indús- tria e máquina. O poeta tinha consciência de que "enganamo-nos, ao julgar que podemos atingir definições através da referência frequente a aranha- -céus, antenas de rádio, apitos ou outros fenómenos superficiais do nosso tempo. Tal seria apenas pintar uma fotografia", afmna-nos em Propósitos Gerais e Teorias (WEBER, 1966: 219). Com efeito, o importante era aclimatizar, naturalizar a máquina, volvê-la em elemento poético tão aceitável quanto qualquer pormenor lírico. O ideal era regenerar o mito, regenerar a palavra poética.

Este processo insere-se no conceito de nação. A América é a única com capacidade para ser modema, original e liderar a Humanidade: a verdadeira

"city upon the hill", de John Winthrope, o farol do mundo.

Assim, à semelhança do que fez Walt Whitman, Crane vai tentar assimilar os valores da modernidade, através da poesia, a força universali- zante por excelência. Nesta linha, o leitor notará que, nos poemas seleccio- nados, há termos ligados à economia e à indústria, referências a máqui- nas e ao meio urbano. Ao lado destes, coabitam alusões ao campo, ao passado e a mitologias tao diversas quanto milenares. O presente e o pas- sado.

A matéria é - nos apresentada a partir de uma visão contemporânea -

"sempre em termos do presente", explicou Crane ao banqueiro Otto Khan.

Com efeito, achava que a antiga cultura fora obscurecida pelas alusões poéticas feitas no século anterior.

O estilo apresenta com um curioso toque épico-lírico. E até alguns traços de burlesco e sarcasmo (GILES, 1986: 58-59), pois Crane sabia que a América, como terra prometida havia falhado. Os Americanos tinham seguido a doutrina judaico-cristã, ao invés de procurarem a verdade na fusão da natureza com a tecnologia (WOLF, 1986: 1).

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A selecção dos poemas apresentados foi feita tendo em conta o pouco espaço disponível e a modesta ambição de um trabalho que mais não pretende que divulgar alguma da produção de Crane.

Os critérios gerais para a escolha foram, basicamente, três: a) unidade:

todos os textos pertencem à obra-prima de H. C. - A Ponte - e apresentam características estilísticas e temáticas semelhantes; b) ideologia: as linhas de força são, também, as mesmas: a fusão do passado e do presente, a ligação de mitos, para cantar uma nova América; c) qualidade: foram poe- mas em relação aos quais os críticos não manifestaram grandes reservas (excepção, parcial e injustamente, quanto a mim, feita em relação a "A Dança").

Outros motivos, mais específicos, concorreram para a determinação da escolha: a) o "Proémio: À Ponte de Brooklyn" é um texto relevante, já que abre a colectânea, funcionando como introdução, dedicatória, invocação à ponte, e proposição (a ideia é mostrar a importancia de uma América, que até é capaz de emprestar a Deus um mito, - verso com que finda o primeiro poema e que também serve de título a este meu trabalho); b) "Alvorada no Porto" é um texto de rara beleza, em que o mito do antigo, do solo americano - personificados por Pocahontas, a Princesa India - surge já ligado ao despertar industrial; c) "A Dança" - um dos textos preferidos de Crane- apresenta, de forma inequívoca, a fusão de mitos e civilizações.

Uma selecção faz-se, naturalmente, com sacrifício de textos tanto ou mais preciosos em termos literários. Que este ensaio sirva para entusiasmar à leitura de "Ave Maria", "The River", "Cape Hatteras" ou "Anantis" - ou- tros excelentes poemas induídos em The Bridge, - ou os já consagrados

"For the Marriage of Faustus and Helen" (de White Buildings) e"The Broken Tower" (de Key West).

As traduções foram, naturalmente, a componente mais problemática e árdua deste breve e modesto ensaio. A dificuldade de verter acentua-se quando se trata de poesia, marcada pelo estranhamento e pela fecundidade plurissignificativa. Há que respeitar o funcionalismo e o funcionamento da língua, com os seus ritmos secretos; observar os conceitos como integrados na época e no espaço; interpretar a fundo, para compreender as temáticas dentro da produção autoral; atender à identidade estilística do poeta.

Na especificidade de Crane, o bardo modernista, muitos foram os obstáculos encontrados. Apenas mencionarei alguns: as ambivalências sexuais; a plurissignificação de termos, com uma face muitas vezes ligada à economia; os jogos rítmicos e fónicos de que Hart sempre se serve; frases extensas e de sintaxe invulgar; referências culturais à mitologia índia e a vocábulos do mundo financeiro e comercial (ex: marcas comerciais), etc.

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Traduttore, traditore, "sei bem.

Terei traído com beleza ? E com propriedade?

Que justiça pude fazer a Crane?

Soube trocar de rosa, como diz Eugénio de Andrade? Sucedi em trazer o seu rio para este novo leito?

Ao leitor e ao crítico-leitor, sempre, a palavra última.

1 "PROÉMIO À PONTE DE BROOKLYN': O CAPITALISMO MITI- FICADO

Proémio. Procura. PRÓlogo ao poEMA. "À Ponte de Brooklyn", assim se intitula o primeiro texto, exórdio à colectânea.

A ponte, construção vanguardista de enormes proporções, foi inaugu- rada em Maio de 1883, e constituiu, na época, um prodigioso feito da engenharia norte-americana. Curiosamente, Hart Crane ocupava, no edi- fício Columbia Heights, um apartamento que havia pertencido a Roebling, o arquitecto responsável pelo colosso (TÉTREAU, 1989: 7). Das janelas do arranha-céus assistiu, deslumbrado, à imponência deste símbolo do arro- jado progresso técnico estadunidense. O fasCÍnio leva o poeta a conceber um projecto literário ímpar. Era seu objectivo sublimar a materialidade do artefacto arquitectónico (BROOKS, 1973: 2214) e encará-lo como uma metáfora da ligação entre o mito passado e o mito presente, o sagrado e o profano capitalista. Só através dessa junção se poderia regenerar espiritual- mente a nação americana.

Assim sendo, ao nível do conteúdo, a obra deveria ser uma "mística síntese da América. História, factos, locais, etc, ... fundidos para atingir o clímax - da ponte, símbolo do nosso futuro construtivo, danossa identidade única, na qual se incluem igualmente as nossas conquistas científicas e os feitos de amanhã" (QUINN, 1963: 71).

A magnitude do texto impressiona-nos: 1200 versos de uma ambição grandiloquente, um épico eivado de lírico, susceptível de atemorizar o próprio autor: "Por vezes, o projecto afigura-se-me terrivelmente sem esperança; e eis que de súbito, qualquer coisa acontece dentro de mim, e quer o tema, quer a matéria da concepção me parecem muito mais brilhantes e reais que anteriormente! Na pior das hipóteses o poema será um enorme fracasso" (QUINN, 1963: 72).

A ligação sagrado / profano é uma das traves mestras do "opus", e a sua presença constata-se desde logo no "Proémio". A ponte é tratada na segun- da pessoa do singular e surge-nos com características divinas: ela é "harpa"

e "altar", palavra poética e presença sagrada. Mesmo os seus atributos são

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celestes: dar recompensa, aclamar, conceder - amnistia e perdão. Desta forma, o texto volve-se numa espécie de prece com vista à concretização da

"aliança do profeta": elogiar a construção, invocá-la, implorar para que através dela a vontade humana atinja o supremo.

o

próprio cenário é simbólico. Com efeito, a intersecção de diversos planos parece desenhar sucessivas cruzes: a ponte sobre o rio; a verticalida- de solar sobreposta ao tabuleiro horizontal (EDELMAN, 1987: 196-197);

os pilares suportando, a faixa de rodagem, que aqui faz as vezes de madeiro.

o

tempo é apropriado e concomitante ao mito: o Inverno novaiorquino e a noite podem sugerir-nos a época natalícia, o nascimento de Cristo. Em carta ao seu protector, o banqueiro Otto Khan, datada de 18/03/1926, Crane confirma: "(o poema) conclui-se à meia-noite - no centro da ponte de Brooklyn" .

Mesmo a linguagem nos remete para o campo semântico do sagrado:

"promessa", "oração", "grito", "aliança", "imaculado", "rosário de con- tas", "eternidade", harpa, altar. Mais subtis serão as alusões ao acetileno, gas luminiscente e sem cor que alguns críticos identificam com a grandeza espiritual (GILES, 1986: 131), ou ainda as múltiplas referências a formas curvas, normalmente associadas à perfeição, de que são paradigma o arco da ponte, o "looping" da ave. Intrometem-se, porém, no texto, clementos profanos de raiz capitalista: o mais óbvio é Wall Street, rua de Manhattan, Nova Iorque, e centro financeiro dos Estados Unidos.

A encruzilhada, a sobreposição entre sagrado e terreno, é-nos expressa logo na segunda estrofe, através do voo parabólico da gaivota que lembra mergulhar nas páginas de cálculos comerciais, burocráticos.

Não estão ausentes, na mitologia da ponte, os sacrifícios: o lunático da quarta estrofe é, no original, um "bedlarnite" -louco do hospício de Maria de Belém. O nome da instituição pode levar-nos a interpretar o paciente como sendo uma espécie de Cristo cuja queda do tabuleiro equivale a uma simbólica crucificação (GILES, 196: 229). O gracejo tombando da cara- vana pode ser duplamente concebido: será o riso do lunático durante o voo mortal e redentor? Ou um qualquer comentário jocoso proferido por um dos espectadores da cena, na hora de ponta, à saída dos empregos? Também o arquitecto fora vitimado pela construção da ponte ...

Divino ou profano? Eis o poema:

Quantas auroras, enregeladas pelo ondulante poiso, As asas da gaivota a hão-de mergulhar e rodopiar,

Derramando brancos anéis de tumulto, construindo nas alturas, Sobre as agrilhoadas águas da baía, a Liberdade -

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Depois, numa imaculada curva, desertam os nossos olhos, Aparições como velas que atravessam

Qualquer página de números a arquivar;

- Até que os elevadores nos descem do nosso dia ...

Penso em cinemas, panorâmicos passes de magia, Com multidões debruçadas sobre uma brilhante cena, Nunca revelada, incessantemente revisitada,

Profecia para outros olhos, na mesma tela;

E tu, cruzas o porto, em passos de prata,

Como se o sol te tomasse por degrau, deixando porém Algum nunca esgotado movimento nessa caminhada - A tua liberdade assim te erguendo !

Saído de alguma vigia de metro, cela ou sótão, Um lunático lança-se para os teus parapeitos,

Ali, momentaneamente inclinado, a camisa gritando, enfunada, Um gracejo tomba da emudecida caravana.

Wall Street abaixo, da plataforma até à rua, escorre o meio-dia, Buraco de dente arrancado ao acetileno celeste;

Toda a tarde, levados de nuvens, os guindastes giram ...

Os teus cabos sorvem a acalmia do Atlântico Norte.

E tão obscura como o paraíso dos judeus É a tua recompensa ... O tempo não iguala A aclamação que do anonimato ofereces, A vibrante amnistia e o perdão por ti concedido.

Ó harpa e altar, em fúria fundidos,

(Como poderia o simples labor alinhar o coro das tuas cordas !) Terrível limiar da aliança do profeta,

Oração de pária, grito de amante, - De novo os semáforos varrem esse veloz Indiviso idioma, imaculado suspiro estelar,

Rosário de contas no teu caminho - condensando a eternidade:

E assim se ergue a noite nos teus braços.

Sob as tuas sombras, junto aos pilares, eu esperei;

Só na escuridão é clara a tua sombra.

Os flamejantes pacotes da Cidade desembrulhados, Um ano de ferro já submerso pela neve

Insone como o rio sob ti,

Montando o mar, a onírica turfa das pradarias, Vem, desce à nossa humildade,

E da curvatura empresta um mito a Deus.

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2 "ALVORADA NO PORTO": UMA BALADA MARÍTIMA Alvorada no Porto é o texto inicial e iniciático de uma série de poemas intitulados "A Filha de Powhatan". Esta referência remete-nos, esguia- mente, para a tradição literária americana.

Dilucidemos: na primeira década do século XVII, Powhatan era o líder de cerca de vinte das tribos que ocupavam a Virgínia. Em 1607, diversas embarcações britânicas entraram na baía de Cheasapeake, transportando os colonos que iriam fundar Jamestown. Entre eles, contava-se o audacioso Capitão John Smith. Quando este explorava o Rio Chickahomini, é subita- mente emboscado e feito prisioneiro. Tinha já a cabcça sobre a pedra, preparado para uma morte cruel, quando a bela Pocahontas, a princesa de treze anos, o salva, no instante decisivo. Ora, Smith não só obtém o perdão, como apaixona pela filha do rei.

O episódio feérico, é contado pelo próprio Capitão, de forma mais ou menos exagerada, na General Historie of Virginia, New England and SummerIsles(1642)(HlGH, 1991: 158). Uma espécie de versão actualiza- da de Teseu salvo por Ariadne, a filha do Rei Minos. O desenlace do evento será, no entanto, menos consolador. Em 1609, Smith regressa a Inglaterra, e Powhatan é raptada. Converte-se a uma seita de inspiração cristã, sendo baptizada de Lady Rebecca. Apaixona-se por John Rolfe, com quem casa, vindo a falecer de doença, poucos anos depois.

É precisamente Pocahontas que Crane usará como "mitológico sím- bolo natural escolhido para representar o corpo físico do continente, o solo ( ... ) As cinco subsecções da segunda parte [entre as quais se encontra o poema em causa, "Alvorada no Porto"] ocupam-se da exploração gradual deste «corpo» cujo primeiro possuidor foi o índio".

Na verdade, o bardo modernista conhecia bem a lenda, presente em inúmeros manuais escolares, como o poema "Van Winkle" bem deixa transparecer. Registe-se ainda que, nos anos 20, Pocahontas era pratica- mente um "cliché" da cultura popular, ao ponto de ser alvo da sátira do dramaturgo burlesco John Brougham, na peça Po-Ca-Hon-tas ou a Gentil Selvagem (GILES, 1987: 57-58).

Porém, Hart Crane vai bastante mais longe. Uma leitura atenta do poema leva-nos a crer que o sujeito poético pratica um acto amoroso com Pocahontas, a América "que nossos pés percorrem", a deusa maternal, a fértil Heartha (EDELMAN, 1987: 207). Pocahontas fecundará a semente, a visão poética, tal como o autor anuncia em carta a Otto Khan: "O motivo amoroso, em itálico, traz em si o simbolismo da vida e das idades do homem (o lançar da semente)".

O próprio tempo do poema é carregado de significação. Lexemas como

"visco", "estrela" ou "alvorada" apontam pala a época natalícia, tradicional-

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mente associada ao nascimento ou à regeneração cíclica da espiritualidade - neste caso, o renascer do Mito Americano.

Com efeito, o sono de invernia, erótico, semiconsciente, semi-idllico, da primeira estrofe (UROFF, 1974: 87) é lentamente perturbado por um despertar industrial. As sonoridades das sirenas de nevoeiro, os ruídos da maquinaria, as vozes dos marinheiros, o tilintar das bóias, emergem-nos distantes, veladas e imbuídas de misticismo: "gongos", "sobreplizes",

"mortalhas" ... A própria imagem "maré de vozes" sugere-nos, no âmbito do campo religioso de que o poema se impregna, um cântico eclesiástico.

Celebração do corpo de uma América que se ergue para empunhar a luz, tal como a Estátua da Liberdade, no cenário-palco do poema - Manhattan. O feixe é agora o deslumbramento sonoloso do progresso, a lei mecânico, messiânico anúncio da nova ela.

Na verdade, durante os anos 20, o conceito de modernidade estava entranhado no de desenvolvimento científico, no pragmatismo americano.

Porém, o canto do triunfo da máquina na poesia e na literatura em geral, não mereceu, nos Estados Unidos, o apreço esperado. E talvez por isso Ezra Pound, outros se tenham seduzido pelo apelo Europeu. O próprio Crane argumenta, com cautela e reticências: acreditarmos que as definições se podem alcançar por nos referirmos mera e frequentemente a arranha-céus, antenas de rádio, apitos ou outros fenómenos evidentes na nossa era, não é mais do que pintar uma fotografia (WEBER, I 966: 219). Daí, talvez, a necessidade que o poeta cumpre ao espiritualizar a máquina, a nova América, o chão sagrado onde pisam os coturno, não de coros gregos, mas de aço. New Jerusalém, U.S.A..

Uma alvorada marcada pela indefinição e neblina, donde a qualquer momento poderá surgir um Colombo travestido de Dom Sebastião.

Insistentemente, no sono, uma maré de vozes - Encontram-te à escuta, em teu pleno sonho,

Esses longos, fatigados sons, ruídos ilhéus de neblina:

Gongos em brancas sobreplizes, amortalhados gemidos, Longínquo soar de sirenes de nevoeiro, sinais dispersos véus.

E eis que uma carga será fardo para lá do cais

Enquanto o guincho começa a vibrar num qualquer convés, Lá em baixo, os gritos e as passadas de um estivador bêbado Ressoam à superfície, através da obscura neve.

E se acaso te roubam o sono, por vezes De novo te o devolvem. Suaves bolsas de som , Ve1am o porto escurecido, a baía aconchegada;

Algures lá fora, no nada, o vapor

Em vapor se derrama, e vagueia, levado-lavado

- perturbado pela sonoridade fria dos silvos, enredemoinhado Por entre distantes e tilintantes bóias -à deriva. O céu Fresco rebanho de plumagem, suspende, destila

400 anos ...

mais de 400 anos ...

ou será da margem silenciosa do sonho que o tempo

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Esta flutuante donnência ... Vagarosamente-

Desde tempos imemoriais, ajanela, a semi-nua cadeira Mais não pedem que esta baínha de pálido ar.

E tu, a meu lado, abençoados agora, enquanto sereias Cantam para nós, e furtivas, nos entretecem o despertar - Serenamente, agora, antes que o dia reclame os nossos olhos, Teus frescos braços em munnúrios me enlaçam.

Enquanto miríades de nevadas mãos são cachos nas vidraças - as tuas mãos em minhas mãos são feitos;

minha língua na tua garganta - cantando braços cerrados; olhos abertos; no

escuro certo

bebem a alvorada - uma floresta treme em teu cabelo!

Sem - pressa, a janela se enloura. A geada se levanta.

De ciclópicas torres, através das águas de Manhattan - Duas - três brilhantes vigias faíscam, disco O sol liberto - ao alto, com gaivotas se confunde.

O nevoeiro repousa um instante último sobre o parapeito, sob visco dos sonhos, uma estrela -

Como se fora juntar-se-nos nalguma distante colina, Devolve-nos o despertante Ocidente e vai dormir.

3 "A DANÇA": OS MITOS DE UM FAUNO AMERICANO

te faz voltar para o teu amor

num

sonho acordado para fundir a tua semente

com quem ?

Queméa mulher connosco na aurora ? ..

de quem é o corpo que nossos pés percorrem?

"A Dança", foi pela primeira vez publicado em The Dial, em Outubro de 1927, sob o título de "A Filha de Powhatan". O texto, que Hart Crane declarou como "sólido e válido" (BRUNNER, 1985: 153), oferece-se ao leitor como uma encruzilhada, um "cocktail" de mitos, com débito a tra- dições da Antiguidade Clássica, referências judaico-cristãs e o inevitável panteísmo naturalista dos "native americans".

O poema é arquitectado num crescendo que tem como pináculo o fre- nesim de uma dança a dois - ponto de fusão de uma série de binómios, ou pares de opostos, de relativa complexidade e simbolismo. Por um lado, ara- ça índia, íntima da terra, crente em rituais determinados pelos ciclos da na- tureza; na outra margem, o americano branco, o conquistador que habita a urbe, divorciado da natureza, e carente de espiritualidade (QUINN,1963: 88).

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É também nesta riba que se situa o poeta, desejoso de ser a ponte que permeia duas civilzações e um par de tempos: o ontem e o presente. A relevância e o objectivo desta ligação é duplamente justificável. Na perspectiva do poeta, o homem moderno, materialista, necessita de espi- ritualismo. Com efeito, a era da máquina tem urgência em conectar-se com o passado, sob pena de não se mitificar. Recorde-se que o mito é, por definição, um "continuum", uma corrente tanto mais forte quanto a sua imemorial ancestralidade. Ora, pretende-se não apenas ligar a tradição americana, como fazer também a necessária regeneração do verbo poético.

Como condição primeira para a junção dos extremos, impõe-se que o poeta se aparte do mundo conhecido, da tribo dos brancos, e penetre no

"locus" tribal. Uma viagem iniciática que tem por alibi o encontro com a natureza:

Deixei a aldeia em busca do cornisolo

É, afinal, o percurso do sol e dos nómadas índios, em busca da caça (SHERMAN, 1972: 218) e o de Crane, qual fauno americao, procurando a inspiração. Esta musa é Pocachontas, que já em "Alvorada no Povo", nos era identificada com o solo, o continente, a deusa, numa perspectiva de fer- tilidade. Não raras vezes, era apresentada como o cavalo, que seria objecto de respeito, se não mesmo de culto, para os indígenas (WOLF, 1986: 67).

Para ligar as pontas ao mito, o poeta deverá acasalar com a filha de Powhatan: miscigenação de raças, de masculino com feminino, de tempos e civilizações. O "processus" envolve a assunção, a transmutação de Hart Crane em Maquokeeta, Um feiticeiro e líder índio, através de um ritual de dança e purificação pelo fogo. Esta cerimónia é provavelmente inspirada na da sucessão dos sacerdotes, perto do lago Nemi ou na tripla qualidade de Orfeu: elo sagrado, bardo e vítima de sacrifício (WOOLF, 1986: 66). O próprio W. W., em "Song ofMyself', diz: "Eu sou o homem, eu sofri, eu estive lá". O poema constitui-se, assim, como espécie ele canto, ditirambo moderno, celebração da fertilidade (WEBER, 1966: 306-307).

Crane / Maquokeeta sofrerá a polé do poste, o que é prova de amor por Maquokeeta e processo para atingir uma plenitude espiritual- as flechas no flanco evocam o martírio beatificante de S. Sebastião.

Nem tudo será, porém, assim tão líquido, já que, para se apropriar da sua musa, o poeta tem de contar com a sombra do comandante amante, o ubiquitório Walt Whitman (EDELMAN, 1987: 213-214). Nesta linha, o sacrifício é também um processo de submissão ao bardo por excelência da modernidade, a aprendizagem do acto poético como ritual doloroso, sem o qual Crane não poderá igualar, defrontar ou superar o mestre. Provavel- mente, o poeta inspirou-se em Nietzsche, sobre o qual chegou a redigir um breve e incipiente ensaio. Este defendia que os rituais de morte correspon- diam à necessidade de o homem criar uma memória pala si mesmo ou

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deificar os antepassados, as figuras paternais: uma homenagem a Walt Whitman (SUNDQUIST, 1977: 383).

Por outro lado, o sacrifício parece reflectir a teoria barthiana da morte do autor, para o parto da obra; a morte do arquitecto John Augustus Roebling, vítima de acidente durante a construção da ponte de Brooklyn -preço a pagar pela grandiosidade da obra ?

Os sociólogos têm, ao longo dos tempos, afirmado que os rituais de sacrifício correspondem a uma necessidade de reconhecimento.

Tudo se parece encaixar na vontade de Crane prestar tributo a Whit- man e de obter reconhecimento: o habitual duelo adoração / negação já vindo de anteriores poemas.

Sendo o feiticeiro / poeta ligação entre os homens .e Deus - ou seja, literalmente, o mito - o sacrifício deve enquadrar-se numa época simbólica.

Hart Crane optou não pelo calendário solar, seguido pela religião cristã, mas antes pelo sazonal, indicado pelas mudanças na vegetação (WOLF, 1986: 72,74-75). Compreende-se, assim, as múltiplas referências a plantas e árvores, algumas das quais vidificam na Primavera / Verão: comisolo, lariço, vidoeiro, etc. Este último está associado ao vinho, aos rituais em homenagem a Baco / Dionísio, e também a fustigação dos pecadores (WOLF, 1986: 74-75): a fertilidade e o sacrifício em concomitância.

O poema evolui da Invemia, referindo a Primavera e o Verão já idos (cf. o milho), passando pelo Outono. Queda-se na Primavera, mais precisa- mente em Maio, o tempo do poema. Este mês era consagrado à deusa Flora, ou similares: Mai, Maya, Maria e era uma época de castidade em que os templos se limpavam para os casamentos veraniços (WOLF, 1986: 72).

Pocahontas emerge na estrofe inicial / iniciática, como um glaciar, possível símbolo da frigidez da infância, antes da adolescência e do despertar da sexualidade (SHERMAN, 1972: 217). Lentamente, o leitor assiste a um processo de descongelamento. A princesa índia liquefaz-se, a água percorre as rinchantes gargantas (cf. o mito da deusa-cavalo), irriga o solo e proporciona a fertilidade. Da diluição do gelo resultará igualmente a árvore cantante, a palavra poética. O gesto mágico e bíblico que faz brotar a água da pedra, nota, perspicaz, Uroff (UROFF, 1974: 88). O responsável por esta entrada na puberdade, antecâmara do desenvolvimento sexual, será a "carne viva", metáfora para o índio.

É precisamente neste ponto que a dança se inicia - porém, ainda a solo.

Um curioso bailado tão elegante quanto tentativo:

"( ... ) percorreu as rinchantes gargantas,

Jorrou os braços, e com o milho se ergueu - para morrer".

Sendo a adolescência uma idade de ambivalências, entre a puerilidade e a adultícia, não nos surpreendem as referências a zonas intermédias ou transitórias. O baço crepúsculo, por exemplo. Tal com a inominável mulher

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de "Cruzeiro do Sul", também Pocahontas é associada a uma estrela, no lusco-fusco, entre os já mencionados pares de opostos temporais, míticos e civilizacionais: uma espécie de ponte ou arco-íris, importado da Aliança do Novo Testamento. Uma outra alusão ambígua surge na expressão "leito de folhas e interrompida ledice": a soar tanto a sonolento túmulo, como a agitada cama de núpcias.

Daqui concluo que Pocahontas é fusão entre Maria (inocência e infância), Eva (descoberta e adolescência) e Madalena (consciência e adultícia), sem porém perder a faceta de uma selvagem virgindade, uma espécie de inatingível independência, de insubmissão, miticamente própria de quem está acima do homem mortal. O solo americano manter-se-á

"virgem até ao último dos homens". Uma pureza que se fixou apesar dos invasores, dos caçadores, dos pesquisadores de ouro (que o poema seguinte refere), etc.

Escreveu e. e, cummings "um não é metade de dois. É duas metades de um". Pocahontas é o feminino. Maquokeeta I Crane o masculino, numa acepção mais sensual que a masculinidade de Rip Van Winkle ou Cortez.

Os índios acreditavam que a harmonia só adviria da junção de ambos os sexos. Numa observação curiosa, Alan Trachtenberg (cit. por BRUNNER:

1985: 154-155) refere que também a ponte resultava de uma de forcas opostas, espécie de yin e yiang: por um lado, os cabos em tensão; por outro, os suportes em compressão.

À dança individual da mulher - corresponderá um bailado a solo de Maquokeeta, ao qual Hart Crane simbolicamente se une. Preambulada pela viagem de busca, iniciática, a coreografia desencadeia-se com o troar do trovão, a recordar o som dos instrumentos de percussão dos índigenas:

"Uma núvem distante, um trovão germinou - cresceu,

Escutei os acolchoados pés no interior dessa coberta dos céus"

É só na última estrofe, que a junção ocorre. Maquokeeta, a serpente (sabedoria) e Pocahontas, a águia (orgulho) unem-se e originam a serpente emplumada, a terra e os céus, a globalidade de um mito de extremos final- mente atados.

Eis o poema:

A carne viva, um rei do Inverno -

Quem, descendo dos céus, escoltou a esposa do glaciar?

Ela que toda a Primavera percorreu as rinchantes gargantas, Jorrou os braços, e com o milho se ergueu - para morrer.

E na secura Outonal, de quem são as lustrosas mãos Que com mineral prudência desvendaram a pedra

E depois vê-Ia-ás verdadeiramente o teu sangue recordando a primeira invasão do seu íntimo,

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Onde pregadores, esquecidos, percorreram as areias do planalto? os iniciais Ele detém o baço crepúsculo, o trono perpétuo. encontros com a tribo, Vimos míticas frontes apartarem-se - relutantes,

Perturbadas, fadadas, para a mais densa verdura.

Saudando-nos, no juramento da flecha:

Agora, o retomo a esses tempos é impossível Havia um leito de folhas e interrompida ledice;

Havia um véu de noiva sobre ti, Pocahontas,

Nupciais flancos e olhares escondiam teu fulvo orgulho, Ó Princesa de moreno colo, virgem Maio.

Deixei a aldeia em busca do comisolo. Perto da canoa, Lutando sob a corrente do moínho, vislumbrei O afiado crescente do teu cabelo correndo, e a primeira Mariposa azul do entardecer furtivamente tomar asas.

Que ridentes cadeias a água teceu e lançou!

Aprendi a apanhar o suspiro luarento da truta;

Vagueei por incontáveis horas, mas, prescutando, Vi aquele rápido jovem crescente fenecer.

E uma estrela, solitária substituiu-o, Moldada aos lariços do desfiladeiro -

Até que, imortalmente, sangrou para a alvorada ...

Deixei o meu esguio barco, pastar a erva da margem ...

Tomei a subida da portagem, e depois escolhi No vale um apartado abrigo; Impossivel parar.

Os pés, bocais nas águas dos riachos superiores;

Um véu imaculado desceu, tempestuoso, do cume.

Ó Apalache Primavera! Cheguei à orla;

Precipício, inacessível sorriso que voltado para este Alcança o norte, nessa cunha violácia

Das Adirondacks (3), insignificantes sob o domínio azul-celeste.

Quantas escarpas, lagoas, ribeiros, eu percorri!

- E me reencontrei no íntimo de alguma cativa penumbra:- Cinzentas tendas, tufando na distância os outeiros azuis, O vento redemoinhando pela acastanhada clareira.

Uma núvem distante, um trovão germinou - cresceu, Escutei os acolchoados pés no interior dessa coberta dos céus, Ouvi até que o seu ritmo arrancou

A água negra da quente e escura raíz do coração.

o seu comandante amante ... a sua sombra que assombra os lagos e colinas

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Um ciclone conturba-se, na crista do vórtex,

Arremetendo em asas aquilinas pelo teu dorso abaixo;

Aprende, Maquokeeta, a saudação; conhece o melhor da morte, Tomba, líder, severo como o lariço!

Um vidoeiro se ajoelha. Todos os seus sibilantes dedos voam.

O bosque de carvalhos circunda uma queda de folhas;

O longo queixume de uma dança atravessa o céu.

Dança, Maquokeeta: Pocahontas angustia-se.

E cada tendão se junta aos sons agudos De luz triangular sobre o teu cabelo-sabre.

Agora estala a dureza de cada dente; vermelhos caninos E oblíquas línguas espalham-se pela atmosfera azul.

Dança, Maquokeeta! serpente dos antepassados, Que liberta a pele e vive mais além! Cresce, tentáculo!

Faísca, dente! Curandeiro, compaixão, elixir- Mente-nos, dança para nós no tribal amanhecer!

Lanças e ajuntamentos: negros tambores arremetendo- Ó gritos de guerra -. Também eu já fui vassalo Dos arcos-íris, que limpam cada pulsante osso:

Dominei e dançei mesmo depois do cerco.

E cercado de abutres, gritei do poste;

Impossível arrancar as flechas do meu flanco.

Envolto nesse fogo, vi mais escoltas surgirem,

Lançando-se, vacilantes, em maré, pelas arestas da colina.

Ouvi o rumor da lava combatendo os teus braços, E os dentes de veado espumarem na garganta da presa;

Inflamadas cataratas em ferventes enxames,

Ornando as argolas de teu tornozelo até ao cair do dia.

Assisti aos inícios da tua mutação, Oh, qual camaleão no furor do meio-dia, A diluir os membros e cores no sol,

- Rindo, pura serpente, tempo e lua de seu destino!

E vi-te mergulhar para beijar aquele fado,

Como um branco meteoro, sacrossanto e mesclado, Finalmente, com tudo quanto é livre e consumado -

Ali, onde o primeiro e o último dos deuses guardaram a tua tenda.

Musculoso de luz, ferrada de trovão e elegância, Vê! Por que infinitas estações tu fitas,

Através de que acampamentos dessa irada mortandade, Contemplas, imortal, tua noiva no labirinto.

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Totém e inflamação, pirâmide entorpecida Embora outros horários agora regulem o céu, A tua liberdade, Príncipe, é a sua oferenda e oculto Nos caminhos que tão bem conhecias, tu a conquistaste.

Nas alturas, no Labrador -, o sol incide livre Sobre o emudecido sonho de neve,

E de novo perturbada, ela e torrente e árvore cantante;

Virgem até ao último dos homens.

Oeste, oeste e sul! a ventania sobre Cumberland A ventania através das pradarias de liano conquista A morna sibilância do seu cabelo, os seios reanimados,

Oh, a corrente que pelos socalcos e vinhas desce - até desabrochar!

E quando o caribú se inclina para o sal,

Serão as flechas sedentas e céleres ? Brilharão, alerta, As armações, engatilhadas como estrelas

Ao lusco fusco? - E será suas perfeitas frontes para ti ? Dançámos, O Bravo, dançámos para lá das herdades, Em recônditos desertos de cobalto prestámos juramento ...

Agora, eis a forte prece tombada nos teus braços, A serpente com a águia nos ramos.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

I - TEXTOS DE HART CRANE

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ll-TEXTOS DE OUTROS POETAS

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BASHO, Matsuo, 1986. O Gosto Solitário do Orvalho. Tradução de Jorge de Sousa Braga.

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Referências

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