TARCÍSIO E.P. BARROS FILHO1, REGINALDO PERILO OLIVEIRA2, NILSON RODNEI RODRIGUES3, EDUARDO FAIRBANKS VON UHLENDORFF4
RESUMO
São analisados 14 pacientes, com idade média de 6,7 anos, acometidos de fixação rotatória C1/C2 (síndro- me de Grisel), tratados no período de 1982 a 1992. Os pacientes foram classificados em relação ao tempo de queixa antes do início do tratamento, sendo até uma se- mana (11 casos), um mês (um caso), três meses (um ca- so) e quatro meses (um caso). Foram classificados tam- bém de acordo com a classificação de Fielding em tipo 1 (seis casos), tipo 2 (quatro casos), tipo 3 (um caso).
Quando o tratamento é iniciado precocemente e o desvio anterior de C1 sobre C2 é pequeno (Fielding tipo 1 e 2), a patologia tem evolução benigna e autolimitada. Quan- do o início do tratamento é tardio e/ou o desvio ante- rior de C1 sobre C2 é severo (Fielding tipo 3), o trata- mento deve ser mais agressivo, englobando tração cervi- cal, imobilização gessada prolongada e eventual artrode- se C1/C2.
SUMMARY
Grisel syndrome: retrospective study of 14 cases
An analysis is made of fourteen patients, mean age of 6.7 years, presenting C1/C2 rotatory fixation (Grisel syndrome) treated bet ween 1982 and 1992. Patients were classified according to the period of complaints prior to the beginning of treatment: 1 week (11 cases),
* Trab. realiz. no Grupo de Coluna Cervical do Inst. de Ortop. e Trau- matol. do Hosp. das Clin. da Fac. de Med. da Univ. de São Paulo (Serv. do Prof. João D.M.B.A. Rossi e Prof. Ronaldo Jorge Azze).
1. Professor Livre-Docente.
2. Assistente-Doutor.
3. Pós-Graduando.
4. Médico Residente.
1 month (1 case), 3 months (1 case) and 4 months (1 case). They were also classified according to Fielding’s classification: Fielding type I (6 cases), type II (4 cases), and type III (1 case). When treatment starts early for a small C1/C2 anterior tilt (Fielding types I and II), the pathology is benign and evolution is self-limited. When treatment starts late or in severe C1/C2 anterior tilts (Fielding type III), treatment should be more aggressive, including cervical traction, prolonged cervical immo- bilization with cast, and a possible C1/C2 arthrodesis.
INTRODUÇÃO
A listagem dos diagnósticos diferenciais relaciona- dos ao torcicolo em crianças é ampla e inclui as seguin- tes condições patológicas: torcicolo congênito, tumores do SNC e ósseos, siringomielia, malformação de Ar- nold-Chiari, torcicolo de causas oftalmológicas e a fixa- ção rotatória atlantoaxial, sendo esta última o tema do presente estudo.
Este trabalho baseia-se em um estudo retrospectivo de 14 casos de fixação rotatória C1/C2, tratados no IOT-HCFMUSP, entre os anos de 1982 e 1992.
HISTÓRICO E SINONÍMIA
A fixação rotatória C1/C2 em crianças é freqüente- mente referida como sindrome de Grisel, apesar de ser creditada a Bell a primeira descrição na literatura(4). Na- quela ocasião, o autor descreveu um caso de subluxação C1/C2, seguido da morte do paciente. A subluxação era secundária a uma ulceração sifilítica da faringe.
Existem inúmeras outras denominações para esta patologia, sendo as mais freqüentemente empregadas: lu- xação inflamatória C1/C2, luxação espontânea C1/C2, luxação espontânea hiperêmica, subluxação C1/C2 não traumática e desvio rotacional Cl/C2. Todos esses ter-
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mos denominam uma mesma patologia, em que se tem um desarranjo articular entre C1/C2, atribuído a uma incompetência ligamentar que será descrita a seguir.
Em nosso serviço, optamos por denominar a síndro- me de Grisel como fixação rotatória C1/C2, pois na maior parte das vezes não existe uma real luxação ou subluxação entre o atlas e o áxis, mas sim a fixação de Cl rodado sobre C2, dentro dos limites normais de am- plitude de movimento destas vértebras (2,4).
CASUÍSTICA E RESULTADOS
Foram analisados 14 pacientes, todos crianças, com idade variando de três a 13 anos, com média de 6,7 anos, sendo sete pacientes do sexo feminino e sete do masculino. Todos os pacientes apresentavam queixa de cervicalgia e em onze casos existe relato de deformida- de cervical com inclinação lateral da cabeça para um la- do e rotação da mesma para o lado oposto. Todos os pacientes foram internados, para que pudessem ser rigo- rosamente avaliados.
O tempo de duração dos sintomas até que o pacien- te fosse avaliado e o diagnóstico feito variou de 12 ho- ras a quatro meses, sendo 11 diagnosticados na primei- ra semana do início do torcicolo e os demais diagnostica- dos tardiamente, na seguinte ordem: cinco semanas, três meses e quatro meses.
A presença de trauma associado ao início da sinto- matologia ocorreu em apenas três pacientes (21,5%), sen- do em dois pacientes relatado um trauma leve e em um, trauma mais grave (fratura de mandíbula e fêmur). É necessário frisar que neste último caso o paciente não apresentava queixa cervical prévia, tendo evoluído com a deformidade internado.
Onze paciente (78,5%) apresentaram história de IVAS anterior ou concomitante ao início dos sintomas.
Vale salientar que três pacientes apresentaram tanto trau- ma como IVAS previamente. Em outros três pacientes (22,5%), não foram observados fatores predisponentes.
Somente um paciente apresentou déficit neurológi- co associado a síndrome de Grisel, composto por paresia do deltóide e do tríceps unilateral.
Utilizamos a classificação de Fielding e Hawkins(2,3), com o intuito de quantificar e qualificar o desvio de Cl sobre C2, avaliando-se o espaço entre a arco anterior do atlas e o processo odontóide na radiografia de perfil.
Nessa classificação, temos os seguintes tipos: 1) desvio
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Fig. 1 — Classificação de Fielding & Hawkins (2)
rotatório sem anteriorização de Cl sobre C2; 2) desvio rotatório com anteriorização de C1 sobre C2 menor que 5mm; 3) desvio rotatório com anteriorização de Cl so- bre C2 maior que 5mm; 4) desvio rotatório com posterio- rização de Cl sobre C2.
Em nossa casuística, encontramos seis pacientes clas- sificados como Fielding tipo 1, quatro pacientes Fielding tipo 2 e um caso Fielding tipo 3 (figs. 2 a 5). Em três ca- sos, não foi possível boa visualização radiográfica da co- luna cervical alta, não sendo, portanto, passíveis de clas- sificação.
O tratamemo utilizado foi bastante variável; em no- ve pacientes (64,2%), baseou-se apenas no uso de colar de Schanz, analgésicos e repouso, havendo cura comple- ta em período variável de três dias a um mês. Neste gru- po, cinco pacientes eram Fielding tipo 1, três pacientes Fielding tipo 2 e um paciente não classificável.
Em dois casos, o uso do colar de Schanz não apre- sentou benefícios (período de uma semana), sendo subs- tituído pela tração mentoneira por um período de dez dias, seguida de gesso tipo minerva por seis semanas.
Um dos pacientes era classificado como Fielding tipo 1 15
Fig. 2 – Radiografia transoral mostrando assimetria e superposição
das massas laterais Fig. 3 – Radiografia inicial mostrando aumento de distância C1/C2
Fig. 4 — Radiografia transoral após artrodese C1/C2
e o outro como tipo 2, tendo tido este último um diag- nóstico tardio (três meses de história).
Em um paciente, utilizou-se diretamente do gesso tipo minerva pelo período de seis semanas, sem uso pré- 16
Fig. 5 – Radiografia de perfil mostrando consolidação da artrose
vio de colar ou tração mentoneira, pois o mesmo apre- s e n t i v a u m a f r a t u r a d e m a n d í b u l a a s s o c i a d a . Em dois pacientes, optou-se pela instalação de ha- lo craniano para tração cervical, com posterior artrode-
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se C1/C2 (figs. 2 a 5). Um dos pacientes era Fielding ti- po 3 e o outro apresentara-se para o tratamento com quatro meses de evolução da patologia.
O método de imagem utilizado para o diagnóstico foi o RX simples da coluna cervical (transoral e perfil), o qual se mostrou ineficiente, pois em três casos não foi possível boa avaliação, devido à dificuldade em se posi- cionar o paciente adequadamente.
Não encontramos complicações pós-tratamento nos 14 pacientes estudados. No único caso que apresentava déficit neurológico, o mesmo resolveu-se espontaneamen- te com o tratamento (paciente classificado como Fiel- ding 1).
DISCUSSÃO
A anatomopatologia da síndrome de Grisel é bastan- te estudada, mas ainda se mantém obscura. Parke &
col.( 5 ), estudando crianças que morreram logo após o
nascimento, comprovaram que as veias da região farín- gea perfuram a fáscia pré-vertebral e drenam para os ple- xos venosos periodontóides. Isso demonstra uma pos- sível via de disseminação de processos inflamatórios farin- gianos para a articulação atlantoaxial. Uma vez acometi- dos pelo processo inflamatório, os ligamento dessa re- gião se enfraqueceriam ao nível de sua inserção óssea, como postularam Greig & Watson Jones(5). O principal ligamento estabilizador desta articulação é o ligamento transverso(4) e pequenos traumas ou mesmo um movi- mento vigoroso dentro da amplitude normal da articula- ção poderiam predispor uma interposição capsulo-sino- vial na articulação interfacetária, promovendo o bloqueio articular. O espasmo muscular cervical ocorreria secunda- riamente, na tentativa de correção da deformidade de rotação-inclinação lateral(3).
A síndrome de Grisel é uma patologia eminentemen- te pediátrica, apesar de existirem casos relatados em adul-
tos( 4 ). Nossa casuística apresentou idade média de 6,7
anos, muito próxima da de Phillips(6), 7,6 anos, e da de Marar & Balachandran( 5 ), 7,4 anos. Para explicar essa maior incidência na população infantil, temos a maior incidência de IVAS nesta faixa etária e a clássica hiper- mobilidade articular das crianças.
Vários autores(2-4,6) enfatizam a raridade da sindro- me de Grisel; concordamos com eles, pois em dez anos nosso serviço diagnosticou e tratou apenas 14 pacientes.
Entretanto, não podemos esquecer a possibilidade de
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não diagnóstico pelo médico, por considerar o caso co- mo ‘‘simples torcicolo”.
Fielding(2), ao propor sua classificação, afirmou que os tipos 1 e 2 eram os mais freqüentes, sendo os tipos 3 e 4 mais esporádicos. Phillips(6), estudando 23 crianças, somente encontrou os tipos 1 e 2; nossa casuística é se- melhante, sendo somente um caso Fielding tipo 3 e to- dos os demais 1 e 2.
Apesar de classicamente descritos como fatores pre- disponentes, a IVAS e o trauma leve podem faltar. Nos- sa casuística apresentou três pacientes (21,5%) nos quais não se caracterizou a presença de fatores predisponentes.
Phillips(6) apresentou quatro pacientes (17,3%) em que a patologia teve início espontâneo.
Existe muita discussão na literatura a respeito do melhor método de imagem para o diagnóstico da fixação rotatória C1/C2. Em nossos pacientes, utilizamos ape- nas o RX simples da coluna cervical em duas posições (frente transoral e perfil). Fielding(2,3) propõe a cinerra- diografia cervical na posição de perfil. Mathern(4) preco- niza a tomografia computadorizada, a ressonância nu- clear magnética e a cintilografia óssea. Phillips(6) acredi- ta que a tomografia computadorizada estática não é um bom método diagnóstico, pois a fixação pode estar dentro dos limites normais de movimentação da articula- ção; propõe a tomografia computadorizada dinâmica, em que se observaria a ausência patológica de movimen- to rotatório de C1 sobre C2. Não temos opinião conclu- siva sobre o assunto, porém concordamos com todos os autores quando reconhecemos que o RX não é um bom método diagnóstico.
A descrição de déficit neurológico associado à sín- drome de Grisel é variável de acordo com a literatura.
Radiculopatia isolada, mielopatia e até mesmo morte sú- bita devida a compressão medular pelo odontóide foram descritos. Em nossa casuística, encontramos apenas um caso de radiculopatia leve. Phillips( 6 ), em seu estudo, não encontrou nenhum paciente com déficit neurológi- co. Discordante desta opinião, Mathern(4) acredita ser de 15% a incidência de déficit neurológico associado à síndrome de Grisel. Concordamos com Fielding(2), que acredita ser o déficit neurológico mais freqüente no ti- po 3, em que o desvio rotatório e anterior são concomi- tantes, havendo, dessa forma, redução significativa dos forames vertebral e intervertebral.
Segundo a literatura, a evolução da síndrome de Grisel, via de regra, é benigna, havendo melhora comple- 17
ta dos sintomas com o simples uso de colar e repouso.
Isso ocorreu em 64,2% de nossos pacientes. Apesar dis- so, concordamos com Fielding( 2 ), quando este afirma que, havendo fixação rotatória, a estabilidade C1/C2 es- ta comprometida e mesmo pequenos traumas podem ter conseqüências catastróficas, especialmente quando o des- vio anterior esta presente (tipo 3). Phillips(6) utilizou tra- ção mentoneira em todos os seus pacientes, seguida de imobilização gessada; somente dois dos nossos pacientes utilizaram a tração mentoneira, seguida de gesso miner- va por seis semanas.
Concordamos com Mathern(4), que reserva terapêu- tica mais agressiva para pacientes com desvio anterior mais pronunciado (tipo 3) ou para pacientes em que o diagnóstico é feito mais tardiamente (após três meses).
Em nossa casuística, o paciente classificado como Fiel- ding tipo 3 e o paciente com diagnóstico mais tardio (qua- tro meses) necessitaram de tração cervical com halo cra- niano, seguida de artrodese posterior C1/C2. Outro pa- ciente com diagnóstico tardio (três meses) necessitou de tração mentoneira seguida de gesso minerva por seis se- manas.
Phillips(6) encontrou taxa de 21,7% de recidiva, sen- do que estes pacientes eram mais velhos e na sua maio- ria com diagnóstico tardio (após um mês). Todos esses casos foram classificados como Fielding tipo 2. Não en- contramos nenhum caso de recidiva em nossos pacientes.
CONCLUSÕES
1) O RX simples não é um bom método para o diag- nóstico e avaliação da síndrome de Grisel;
2) A fixação rotatoria C1/C2 é uma patologia rara e de evolução benigna quando o diagnóstico e o trata- mento são precoces;
3) Pacientes com diagnóstico e início do tratamen- to tardio e/ou desvio anterior de C1 sobre C2 pronuncia- do necessitaram de tratamento mais agressivo, utilizan- do-se de tração cervical, seguida de imobilização gessa- da prolongada ou artrodese cervical alta.
REFERÊNCIAS
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Fielding, J.W. & Hawkins, R.J.: Atlanto-axial rotatory fixation. J Bone Joint Surg [Am] 59: 37, 1977.
Fielding, J.W., Hawkins, R.J., Hensinger, R.N. & Francis, W.R.:
Atlanto-axial rotatory deformities. Orthop Clin North Am 9: 955, 1978.
Mathern, G.W. & Batzdorf, U.: Grisel’s syndrome. Clin Orthop 244: 131-146, 1989.
Parke, W.W., Rothman, R.H. & Brown, M.D.: The pharyngoverte- bral veins: an anatomical rationale for Grisel’s syndrome. J Bone Joint Surg [Am] 66: 568, 1987.
Phillips, W.A. & Hensinger, R.N.: The management of rotatory atlanto-axial subluxation in children. J Bone Joint Surg [Am] 71:
664-668. 1989.
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