Tribunal da Relação do Porto Processo nº 0431758
Relator: PINTO DE ALMEIDA Sessão: 15 Abril 2004
Número: RP200404150431758 Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
DIVÓRCIO LITIGIOSO DEVER DE COABITAÇÃO DOS CÔNJUGES
CESSAÇÃO
Sumário
A data da cessação da coabitação entre os cônjuges só pode ser fixada na sentença que decretou o divórcio, não podendo ser fixada em momento posterior, no processo de divórcio (por via incidental) ou noutra acção.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.
B... intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra C... .
Pediu que se declare e que a Ré seja condenada a reconhecer:
a) que os efeitos patrimoniais do divórcio decretado entre Autor e Ré
retroagem à data de 01/12/1996, data a partir da qual cessou a coabitação entre os mesmos;
b) que a Ré não tem quaisquer direitos relativamente à herança aberta por óbito da mãe do Autor, nem são comunicáveis à Ré os bens que dessa herança caibam ao Autor;
Como fundamento, alegou, em síntese, que, por sentença proferida em 03/12/1998, pelo Tribunal Superior de New Jersey, Estados Unidos da América, foi decretado o divórcio entre A. e R.; o processo de divórcio foi
instaurado em 07 de Agosto de 1998; tendo a Ré invocado como fundamento do divórcio, a separação de facto do A. e da R. há mais de 18 meses, iniciada cerca do dia 01/12/1996. A referida sentença considerou provado este
fundamento. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão transitado em julgado, concedeu a revisão e confirmação dessa sentença.
Nesta não foi determinado que os efeitos do divórcio retroagissem à data da cessação da coabitação, tendo o Autor nisso interesse porquanto, após a separação definitiva de ambos, em 25 de Junho de 1997, faleceu a mãe do Autor, D... .
Na sua contestação, a Ré pugna pela improcedência da acção, na medida em que a acção não tem fundamento de direito, porquanto nem a sentença do Tribunal Superior de New Jersey nem o acórdão do Tribunal da Relação do Porto se pronunciaram quanto à culpa dos cônjuges pela cessação da
coabitação, não podendo, pois, o A. à posteriori e fora do processo de divórcio requerer a este tribunal que os efeitos de divórcio se retrotraiam à data da separação dos cônjuges, sendo pacífico que a culpa dos cônjuges quanto à cessação da coabitação tem de ser declarada no próprio processo e não em processo autónomo.
O Autor apresentou réplica, na qual, segundo refere, responde às excepções invocadas pela Ré.
Requereu ainda a ampliação do pedido, no sentido de ser declarado que a coabitação cessou por culpa exclusiva da Ré.
A Ré respondeu pronunciando-se pela inadmissibilidade da réplica.
Por despacho de fls. 102 e 103 foi julgada inadmissível a réplica apresentada, não se admitindo também a requerida ampliação do pedido.
Seguidamente, por se julgar habilitado a conhecer do mérito da causa, o Sr.
Juiz proferiu sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
Discordando desta decisão, dela interpôs recurso o Autor, de apelação, tendo apresentado as seguintes
Conclusões:
1. Na contestação a recorrida defendeu-se por excepção ao invocar que pelo facto de no processo de divórcio não ter sido declarada a culpa dos cônjuges pela cessação da coabitação e não ter sido pedida a retroacção dos efeitos no
processo de divórcio, tal seria impeditivo do direito invocado pelo recorrente (artigo 487º nº 2 do CPC).
2. Assim, não há fundamento para a réplica não ser admissível e para,
invocando-se a sua inadmissibilidade, não se admitir a ampliação do pedido, nos termos do artigo 273º do CPC.
3. Sem prescindir, ainda que se entendesse que a recorrida não se defendeu por excepção, a Réplica sempre teria que ter sido admitida porque a
admissibilidade da réplica para ampliação da causa de pedir ou do pedido depende apenas de o processo a admitir, e o processo ordinário admite a existência de Réplica (art. 273º do CPC).
4. Num processo ordinário o autor pode, seja qual for o tipo de defesa articulada pelo réu, socorrer-se da réplica para ampliar o pedido e para ampliar a causa de pedir.
5. Deve ser admitida a Réplica e a ampliação do pedido, permitindo-se a realização de prova sobre os factos alegados na Réplica referentes à culpa da recorrida na cessação da coabitação.
6. A Lei confere a "qualquer dos cônjuges" o direito de requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data em que cessou a coabitação "Se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo" (artigo l789º n° 2, do CC).
7. O único pressuposto deste direito de requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data em que cessou a coabitação é que no processo de divórcio tenha ficado provada a falta de coabitação dos cônjuges, o que no caso se verifica (al. C) da matéria de facto provada).
8. A Lei não preceitua que seja ou tenha que ser feito no mesmo processo de divórcio o pedido da retroacção dos efeitos do divórcio ou que ali seja decidida a quem pertence a culpa da coabitação ter cessado.
9. Pelo que ao recorrente assiste o direito que pretende exercer e que poder exercê-lo no presente processo.
10. O entendimento da sentença recorrida de que o artigo 1789°, n° 2, do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que unicamente na acção de divórcio que pode ser requerida a retroacção dos efeitos do divórcio à data da cessação da coabitação e ser declarada a culpa da Ré, viola o direito de
defesa, o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva que assistem ao recorrente, consagrado no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
11. Deve ser revogada a sentença recorrida, ordenando-se a prossecução do processo para prova da matéria de facto referente à invocada culpa da
recorrida na cessação da coabitação.
12. A sentença viola o disposto nos artigos 273º, 487º, n° 2, do CPC, artigo
1789º, n° 2, do Código Civil e artigo 20º da CRP.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, com as consequências legais.
A Apelada contra-alegou, suscitando a questão do âmbito do recurso
interposto, que não abrange o despacho que julgou inadmissível a réplica; no mais, concluiu pela improcedência da apelação.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Os Factos
Os factos a considerar são os que constam da respectiva decisão da 1ª
instância, para a qual se remete, nos termos do art. 713º nº 6 do CPC, uma vez que a mesma não foi impugnada, nem existe fundamento para a sua alteração.
III. Mérito do recurso
Discute-se no recurso:
- pressupostos da retroacção dos efeitos do divórcio;
- inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional.
Como questão prévia, suscitada pela Recorrida, importa tomar posição sobre o âmbito do recurso interposto.
1. Questão prévia
A Recorrida defende que a Recorrente interpôs recurso de apelação da
sentença que julgou a acção improcedente; não o fez em relação ao despacho de fls. 102 e 103 que julgou inadmissível a réplica e a ampliação do pedido.
Tem razão, como parece evidente.
No requerimento de interposição do recurso o Recorrente indicou claramente o objecto deste: não concordando com a sentença proferida que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do peticionado vem dela interpor recurso de apelação.
Nesse requerimento nada referiu sobre o despacho que não admitiu a réplica e ampliação do pedido, despacho que, proferido embora na mesma data da sentença, é distinto e autónomo desta.
Assim, não foi interposto recurso desse despacho – que teria de ser recurso de agravo (arts. 691º e 733º do CPC) – pelo que o mesmo transitou em julgado –
arts. 677º e 672º do CPC.
Mesmo a não se entender assim, é manifesta a falta de razão do Recorrente, no que respeita à admissibilidade da réplica e ampliação do pedido (e da causa de pedir) – conclusões 1ª a 5ª.
Sustenta o Recorrente que a Ré se defendeu por excepção ao alegar que, pelo facto de no processo de divórcio não ter sido declarada a culpa dos cônjuges pela cessação da coabitação e não ter sido pedida a retroacção dos efeitos no processo de divórcio, tal seria impeditivo do direito invocado pelo Recorrente (artigo 487º nº 2 do CPC) – concl. 1ª.
A questão, assim posta, está nitidamente invertida.
Sobre o Autor impende o ónus de alegação e de prova dos factos constitutivos do direito que pretendia fazer na acção – art. 342º nº 1 do CC.
A Ré tem o ónus de prova das excepções – nº 2 do mesmo preceito.
O Réu defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados na petição ou quando afirma que esses factos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor; defende-se por excepção quando alega factos que obstam à apreciação do mérito da acção ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor,
determinam a improcedência total ou parcial do pedido – art. 487º nº 2 do CPC.
A excepção peremptória consiste na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor – art. 493º nº 2 do CPC.
Quer dizer, a excepção peremptória consiste na invocação de factos que, embora aceitando os alegados pelo autor, se destinam a impedir, modificar ou extinguir os seus efeitos jurídicos.
A defesa por excepção, sem negar propriamente a realidade dos factos
articulados na petição, nem atacar isoladamente o efeito jurídico que deles se pretende extrair, assenta na alegação de factos novos tendentes a repelir a pretensão do autor.
Nesta defesa, como refere Alberto dos Reis [CPC Anotado, III, 24 e 25], o réu não ataca de frente a causa de pedir, não procura destrui-la; o seu ataque é de flanco: serve-se de um facto novo que, ou inutiliza a instância (excepção
dilatória), ou inutiliza o pedido (excepção peremptória). Quer dizer, o réu, para se defender, desloca-se para campo diverso daquele em que se encontra o autor e procura, por via transversal, obter o fracasso da acção.
Ora, não é esta a situação que se nos apresenta no caso.
A Ré alegou na contestação que o direito que o Autor pretende fazer valer na acção exige, como requisito, a definição da culpa dos cônjuges pela cessação da coabitação.
Assim, não há a alegação de um facto impeditivo do direito invocado pelo Autor, com o sentido previsto na parte final do citado art. 487º nº 2. A
alegação da Ré visou antes assinalar a omissão de um elemento essencial nos fundamentos invocados pelo Autor e que a este competia demonstrar.
Daí a inversão a que acima se aludiu.
Não se tratou da alegação de um facto que, supondo a completude dos elementos necessários à procedência do pedido, impede este efeito.
Com tal alegação, a Ré limitou-se a afirmar que, por falta daquele requisito, os factos articulados na petição não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo Autor.
Simples defesa por impugnação, portanto (citado art. 487º nº 2, 1ª parte).
Não sendo de qualificar a referida alegação como excepção, não haveria lugar a réplica, nos termos do art. 502º nº 1 do CPC.
E não sendo admissível a réplica, não poderia ser ampliada a causa de pedir e o pedido, como decorre claramente do disposto no art. 273º nºs 1 e 2 do
referido diploma.
Procede, pois, a questão prévia suscitada, improcedendo as conclusões 1ª a 5ª.
2. Retroacção dos efeitos do divórcio
O Recorrente defende que o único pressuposto do direito de requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data em que cessou a coabitação é que no processo de divórcio tenha ficado provada a falta de coabitação dos cônjuges, o que no caso se verifica (al. C) da matéria de facto provada).
Não seria assim necessário requerer no processo de divórcio que os efeitos deste se retrotraiam à data da cessação da coabitação, nem que ali seja decidido a quem pertence a culpa nessa cessação.
Dispõe o art. 1789º do CC:
1. Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da
respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.
2. Se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo,
qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença fixará, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro.
3. ...
Assim, em princípio, os efeitos do divórcio, quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, retrotraem-se à data da propositura da acção.
Contudo, se a coabitação entre os cônjuges cessou antes dessa propositura, qualquer dos cônjuges pode requerer que esses efeitos patrimoniais sejam reportados à data, provada no processo e fixada na sentença, em que cessou a coabitação entre os cônjuges por culpa exclusiva ou predominante do cônjuge requerido [Teixeira de Sousa, O Regime Jurídico do Divórcio, 104].
Decorre, com efeito, dos termos da disposição legal citada que a data da cessação da coabitação entre os cônjuges só pode ser fixada na sentença que decretou o divórcio, não podendo ser fixada em momento posterior, no
processo de divórcio (por via incidental) ou noutra acção.
Como se afirma no Ac. do STJ de 22.1.1997 [CJ STJ V, 1, 63], o nº 2 do art.
1789º exige, desde logo, que a falta de coabitação entre os cônjuges esteja provada no processo. Processo de divórcio, claro está.
Depois, é indispensável requerimento do cônjuge a pedir que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data da cessação da coabitação. Pedido que, necessariamente, terá de ser formulado no processo de divórcio, antes da prolação da respectiva sentença.
E isto porque essa data terá de ser fixada na sentença que decretar o divórcio, apurada que esteja a culpa exclusiva ou predominante do requerido na
cessação da coabitação.
Neste sentido se tem pronunciado a doutrina [Para além do Autor citado, cfr.
Pereira Coelho, Reforma do Código Civil, 47; também, embora sem analisar detidamente a questão, Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito de Família, I, 657; Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, IV, 2ª ed., 561;
Abel Delgado, O Divórcio, 2ª ed., 131] e, predominantemente,
a jurisprudência [Para além do Acórdão citado, cfr. os Acs. do STJ de 11.7.89 (JSTJ00022704) e de 6.2.92 (JSTJ00014226), da Rel. do Porto de 19.1.98
(JTRP00022691) e de 19.4.99 (JTRP00025762), em http://www.dgsi.pt; da Rel.
de Coimbra de 19.2.91, BMJ 404-519 e ainda da Rel. do Porto de 18.3.96, BMJ 455-570].
3. Inconstitucionalidade
Sustenta o Recorrente que o entendimento da sentença viola o direito de defesa e o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva que lhe assistem, consagrados no art. 20º da CRP, uma vez que se pretende restringir o exercício de um direito, limitando-o processualmente a um determinado tipo de acção ou processo – o processo de divórcio – quando a lei substantiva não faz qualquer restrição, nem há norma processual que a faça.
Não tem razão.
No citado art. 1789º nº 1 fixa-se a data em que se produzem os efeitos do divórcio, consagrando-se a regra, quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, de que esses efeitos se retrotraiem à data da proposição da acção.
No nº 2 do mesmo preceito estabelecem-se os requisitos de que depende a retroacção desses efeitos à data da cessação da coabitação (se anterior àquela propositura).
Requisitos que, como decorre da norma, devem ser verificados no próprio processo em que é decretado o divórcio.
Não parece que a norma, assim interpretada, viole os princípios constitucionais invocados pelo Recorrente.
Princípios consagrados no art. 20º da CRP e concretizados, na perspectiva aqui questionada, no art. 2º do CPC.
O direito de acesso aos tribunais implica, no seu âmbito normativo essencial, o direito de acção, entendido como direito público e traduzindo-se num
verdadeiro direito ao processo.
Para além desse direito de acção, implica ainda que o processo emergente do exercício desse direito decorra segundo determinados princípios ordenadores, muito em particular que a sua tramitação se subordine aos princípios do
contraditório e da igualdade processual ou igualdade de armas [Lopes do Rego, Comentários ao CPC, 10 e 13].
Ora, ao invés do que é defendido pelo Recorrente, é a própria norma – na interpretação que se nos afigura mais consentânea com a letra e espírito a mesma – que impõe a restrição apontada, exigindo que a culpa exclusiva ou predominante do cônjuge requerido, a cessação da coabitação e a respectiva data sejam definidas na sentença que decretar o divórcio. O que se
compreende pois, para além do que ficou referido, é na acção de divórcio que a situação dos cônjuges deve ser definida [Cfr. Teixeira de Sousa, Ob. Cit., 105].
Por outro lado, como afirma Gomes Canotilho [Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, 453 e 454], o referido direito ao processo postula um direito a uma decisão final incidente sobre o fundo da causa sempre que se hajam
cumprido e observado os requisitos processuais da acção ou recurso. Por outras palavras: no direito de acesso aos tribunais inclui-se o direito de obter uma decisão fundada no direito, embora dependente da observância de certos requisitos ou pressupostos processuais legalmente consagrados.
Por isso, a efectivação de um direito ao processo não equivale
necessariamente a uma decisão favorável; basta uma decisão fundada no direito quer seja favorável quer seja desfavorável às pretensões deduzidas em juízo.
Assim, o direito à tutela jurisdicional reconduz-se ao direito de obter uma decisão fundada no direito, mas desde que se cumpram os respectivos requisitos legais.
No caso, esses requisitos estão previstos ou decorrem da própria norma e contêm-se no âmbito da livre regulação do legislador, sendo certo que, pelas razões referidas, não são desnecessários, não adequados e desproporcionados.
Improcede, por isso, esta questão.
IV. Decisão
Em face do exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
Porto, 15 de Abril de 2004
Fernando Manuel Pinto de Almeida João Carlos da Silva Vaz
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo