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Criança, o botão da inocência : as roupas e a educação do corpo infantil nos "anos dourados"

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Academic year: 2021

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FERNANDA THEODORO ROVERI

CRIANÇA, O BOTÃO DA INOCÊNCIA:

AS ROUPAS E A EDUCAÇÃO DO CORPO INFANTIL

NOS “ANOS DOURADOS”

CAMPINAS

2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

FERNANDA THEODORO ROVERI

CRIANÇA, O BOTÃO DA INOCÊNCIA:

AS ROUPAS E A EDUCAÇÃO DO CORPO INFANTIL

NOS “ANOS DOURADOS”

Orientador(a): Profa. Dra. Carmen Lúcia Soares

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Educação na área de concentração de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA FERNANDA THEODORO ROVERI E ORIENTADA PELA PROFa. DRA. CARMEN LÚCIA SOARES Assinatura do Orientador

CAMPINAS 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

CRIANÇA, O BOTÃO DA INOCÊNCIA:

AS ROUPAS E A EDUCAÇÃO DO CORPO INFANTIL NOS “ANOS

DOURADOS”

Autora : Fernanda Theodoro Roveri

Orientadora: Profa. Dra. Carmen Lúcia Soares

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vii RESUMO

As roupas, como elemento da cultura material, constroem, compõem, fabricam aparências e, desse modo, contribuem para a compreensão da educação do corpo e de aspectos da vida em sociedade. Esta tese analisa o lugar das roupas na educação do corpo de crianças nos anos de 1950, tomando como fontes principais as revistas de circulação Manchete e Jornal das Moças e as revistas destinadas a um público infantil, O Tico-Tico e Cirandinha. No intuito de participar do ideal de uma nação próspera, moderna e urbana, as revistas delimitaram as aparências, os gestos e o comportamento em público, reforçando uma educação que diferenciaria as funções femininas e masculinas na vida social da criança. Nesse período, em que uma sociedade de consumo se consolidava no Brasil, a publicidade estimulava a aquisição de novos produtos e propagava, juntamente com outros meios de comunicação, as atitudes condizentes às “pessoas refinadas” e “elegantes”. A imagem da criança era veiculada em inúmeros anúncios e tanto atingia os adultos quanto dialogava com o público infantil. A análise do vestuário de meninos e meninas representado nessas publicações, no que se refere aos aspectos mais sutis da costura, como os tecidos, as cores, os cortes e os bordados, revela as narrativas e as definições sobre a infância e os sentimentos projetados nas relações entre crianças e adultos, tais como os da pureza e da inocência.

Palavras-chave: Roupas. Educação do corpo. Infância. Revistas infantis.

ABSTRACT

As an element of the material culture clothes can frame, compose and manufacture appearances, thus contributing for the comprehension of the education of the body and of aspects of life in society. This thesis analyses the place of clothing in the education of the body of children in the 1950s by using as main sources the magazines Manchete and Jornal das Moças, as well as magazines addressed to children, namely O Tico-Tico and Cirandinha. Aiming to participate in the ideal of a prosperous, modern and urban nation, magazines established the appearances, gestures and behaviors that should be performed in public, reinforcing an education that would differentiate female and male roles in the social life of children. In this period, when a consumer society established itself in Brazil, publicity stimulated the acquisition of new products and along with other means of communication propagated the suitable attitudes to people who were “refined” and “elegant”. The image of children was transmitted by numerous advertisements addressed for both adult and child audiences. The analysis of the children’s clothing for boys and girls that appeared in these magazines reveals in its most subtle aspects (such as tissues, colors, shape and embroidery) the narratives and definitions of childhood as well as the feelings projected in the relationships between children and adults, such as purity and innocence.

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Sumário

Introdução__________________________________________________________________ 1 Fontes e Arquivos___________________________________________________________ 6 Capítulo 1. Esperança, prazer e felicidade: notas sobre o consumo nos anos de 1950 ___ 14 Capítulo 2. Revistas infantis: discursos sobre e para crianças_______________________ 35 Um discurso instrutivo ______________________________________________________ 38 Um discurso recreativo _____________________________________________________ 43 Capítulo 3. Vestindo-se com distinção: Você sabe causar uma boa impressão? ________ 59 Seguindo a evolução da moda ________________________________________________ 64 O “bom gosto” nas tramas da infância _________________________________________ 72 Capítulo 4. Vestindo-se com inocência: Relações ofuscadas entre adultos e crianças ____ 99

Vivendo a magia da infância ________________________________________________ 113 Capítulo 5. Vestindo-se adequadamente: Meninos e meninas nas seções de costura____ 137

Mulheres e meninas bonitas usam calças compridas? ____________________________ 157 Conclusão: Levantando pontos tricotados _______________________________________ 175 Referências Bibliográficas ___________________________________________________ 180

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Escrever pode ser, ou é, a necessidade de tocar a realidade que é a única segurança de nosso estar no mundo – o existir. É difícil, se não impossível, precisar quando as coisas começam dentro de nós.

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Agradecimentos

Muitas foram as pessoas que me acompanharam ao longo desta pesquisa. Professores, funcionários, amigos e familiares, cada um a seu modo, compartilhando comigo as alegrias, as expectativas e os desafios desta conquista.

Em primeiro lugar gostaria de exprimir minha gratidão à querida Carmen Soares, minha orientadora. Obrigada pela dedicação ao trabalho, pela generosidade, pelo compromisso e pela parceria. Nesta relação de confiança, iniciada há onze anos, fui beneficiada por ensinamentos de vida e pela consolidação de uma amizade. Agradeço suas palavras que corrigem, encorajam e impulsionam o olhar para a seriedade e a delicadeza.

À Faculdade de Educação da Unicamp, instituição onde fui acolhida desde a graduação em Pedagogia.

À Prefeitura Municipal de Campinas, em especial à Secretaria Municipal de Educação, ao Departamento Pedagógico e ao Naed Sul, pelo reconhecimento de meu trabalho e pela concessão de licença nos meses finais da pesquisa.

Às professoras Agueda Bittencourt (FE-Unicamp), Andrea Moreno (UFMG), Eliana Ayoub (FE-Unicamp), Helena Altmann (FEF/FE-Unicamp), Heloísa Rocha (FE-Unicamp), Ivana Simili (UEM) e Marcia Gobbi (USP), pela disponibilidade na leitura por ocasião da defesa da tese.

Às professoras membros da banca de qualificação Heloísa Rocha (FE- Unicamp), Silvia Rosana Modena Martini (Arquivo Edgard Leuenroth – Unicamp) e membros suplentes Roseli Aparecida Cação Fontana (FE – Unicamp) e Andrea Moreno (UFMG), pela disponibilidade e pelas contribuições tão importantes para a finalização desta pesquisa.

Agradeço também aos professores: Edivaldo Góis Jr. (FEF-Unicamp), Kátia Danailof (Faculdade de Educação Física-Metrocamp), Margareth Rago (IFCH-Unicamp), Ângela Aisenstein (Universidad de San Andrés/Universidad Nacional de Luján), Jacques Gleyse (Université de Montpellier), pelas observações, sugestões de pesquisas e indicações bibliográficas.

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Aos Arquivos de Pesquisa da Unicamp “Edgard Leuenroth” (AEL), “Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio” (CEDAE), ao “Arquivo Público do Estado de São Paulo” e às Bibliotecas “Monteiro Lobato”-SP e “Prof. Asdrúbal Ferreira Batista” (FEF-Unicamp), pela disponibilidade das fontes de pesquisa tão imprescindíveis neste trabalho.

Meu sincero agradecimento pelo acolhimento e pela parceria de nosso grupo de Pesquisa, FOCUS – FE/Unicamp. Em especial pela amizade de André Dalben, Carolina Jubé, Daniele Medeiros, Douglas Dias, Evelise Quitzau, Franco Ruggiano, Ingrid Wiggers e Rachel Ramos, pelas contribuições na pesquisa, pela companhia em congressos e por compartilharem momentos alegres como os de nossas sinucas.

Às funcionárias da Faculdade de Educação da Unicamp, em especial Nadir, Cleonice e Rita, e à Dulce, bibliotecária da Faculdade de Educação Física da Unicamp, por toda atenção, gentileza e ajuda neste percurso.

Minha calorosa gratidão ao meu marido, Rodrigo, pelo incentivo, paciência, confiança e companheirismo ao longo desta caminhada, em especial pelo interesse em minha pesquisa, ouvindo, lendo, participando, acolhendo e me ajudando em todas as etapas. Seu envolvimento foi significativo para a concretização desta tese.

Minha gratidão aos meus pais, Sergio e Eleusa, fontes de instrução e conselhos, pela confiança, encorajamento e paciência no decorrer desta trajetória. Meu agradecimento caloroso pela afeição e pelo apoio de todos os meus familiares, por me compreenderem e tolerarem minhas ausências e correrias.

Às amigas professoras e companheiras, Cibele, Mariana, Helena, Josiane, Melissa, Adriana, Carmen, Caroline, Milena, Luciana, Cristiana, Simone, Ana Carolina, Maria do Carmo e Sandra, meu carinhoso agradecimento pelas trocas, conversas e alegres companhias.

Ao professor Izalto Matos, pelo incentivo e encorajamento desde minha formação no magistério.

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Aos amigos Caroline, Jefferson, Milena, Leandro, Pedro e Alexandre, pela prazerosa companhia e amizade.

À Leda, pela revisão, leitura cuidadosa e sugestões.

À equipe da CEI Dr. Manoel Affonso Ferreira,em especial pelos incentivos da diretora Regina Valverde, da orientadora Rosângela Delacqua e da coordenadora pedagógica, Margarete Montanhaur.

Meus agradecimentos à equipe pedagógica do CEFORTEPE-Campinas, pela valorização de meu trabalho, pela oportunidade oferecida para ministrar um curso de formação e poder discutir a pesquisa com os profissionais da rede municipal de ensino.

À Aliança Francesa de Campinas, pelo apoio e pela bolsa de estudos concedida em parceria ao “Projét École”. Meus sinceros agradecimentos ao diretor Jean Berteloot, às professoras que me acompanharam nestes cinco anos, Sevane, Sílvia, Fátima, Raquel, Lídia, Marta, e às funcionárias e aos colegas de estudos.

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xix Lista de Figuras

Figura 1 – Bombachinha para criança ... 1

Figura 2 – Capa do Jornal das Moças... 7

Figura 3 – Capa da revista Manchete ... 7

Figura 4 – Capa d’O Tico Tico ... 7

Figura 5 – Capa de Cirandinha ... 7

Figura 6 – Talco Gessy...20

Figura 7– Brancura Rinso...22

Figura 8 – Vestida para fazer compras ...23

Figura 9 – Ginkana Estrela ...27

Figura 10 – Publicidade do sabonete Dorly...31

Figura 11 – O Guloso ...35

Figura 12 – Capa de abril ...37

Figura 13 – Publicidade de Alginex ...44

Figura 14 – Capa de 1953...45

Figura 15 – Formiguinha ajuizada...47

Figura 16 – O noivo e a noiva ...48

Figura 17 – Diva...50

Figura 18 – Gente que não brilha ...52

Figura 19 – A menina boazinha...54

Figura 20 – Caxuxa ...57

Figura 21 – “Deux pièces” ...59

Figura 22 – Exposição Carioca...67

Figura 23 – Publicidade da loja Insinuante -1949 ...74

Figura 24 – Publicidade da loja Insinuante -1951 ...74

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Figura 26 – Publicidade da loja Insinuante -1955 ...75

Figura 27 – Publicidade da Casa do Bastos –1949...76

Figura 28 – Publicidade da Casa do Bastos –1953...76

Figura 29 – Publicidade de Gomalina Excelsior ...77

Figura 30 – Publicidade de Mesbla ...79

Figura 31 – Os trajes de Chiquinho ...82

Figura 32 – Publicidade de Cirandinha ...83

Figura 33 – Mamãe vai fazer para mim...84

Figura 34 – Caxuxa e seu avental...86

Figura 35 – Publicidade do sabão Portuguez...87

Figura 36 – Crianças do mundo...89

Figura 37 – Os pobres (Olavo Bilac)...90

Figura 38 – “Você sabe dar presentes?” ...91

Figura 39 – “Bom exemplo”...93

Figura 40 – Erros no bonde ...95

Figura 41 – Você causa boa impressão?...97

Figura 42 – Mãe e filha ...99

Figura 43 – Baile infantil do Botafogo...102

Figura 44 – Vestido acolchoado ...104

Figura 45 – Bonequinhas...106

Figura 46 – Companhia da mamãe ...108

Figura 47 – Avental para a mãe e para a filha ...114

Figura 48 – Vestido em linha princesa ...116

Figura 49 – Modelos de biquínis ...118

Figura 50 – Pat Hall e sua filha ...119

Figura 51 – Publicidade de Cobertores Parahyba...123

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Figura 53 – Publicidade do sabonete Lifebuoy ...126

Figura 54 – Publicidade de biscoitos Aymoré...127

Figura 55–Curativo para meninos ...128

Figura 56–Curativo para meninas...128

Figura 57 – General Dutra e sua neta ...129

Figura 58 – Capa de Manchete, 1952 ...133

Figura 59 – Djanira, os anjos e as crianças...133

Figura 60 – Pijama & Camisa ...137

Figura 61 – Lã e algodão...140

Figura 62 – Vestido de veludo...142

Figura 63 – Vestido de algodão fantasia ...142

Figura 64 – Vestido de flanela de lã ...142

Figura 65 – Tricô para crianças ...144

Figura 66 – Flanela para bebês...145

Figura 67 – Macacão para menino ...146

Figura 68 – Vestido de piquê verde...150

Figura 69 – Saco para bebê ...152

Figura 70 – Traje para dias esportivos...153

Figura 71 – Trajes para o frio ...155

Figura 72 – Pijama em estilo chinês...158

Figura 73 – Conjunto para menina ...159

Figura 74 – Trajes para o parque ...160

Figura 75 – Crianças no triciclo (capa) ...161

Figura 76 – Menina cavalgando (capa) ...161

Figura 77 – Menina na bicicleta (capa) ...161

Figura 78 – Crianças na gangorra (capa)...161

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Figura 80 – Macacão feminino...167

Figura 81 – Traje para sentir-se bem ...168

Figura 82 – Calça para jovens ...169

Figura 83 – Capa de 1958...170

Figura 84 – Passeios na praia ...173

Figura 85 – Molde de costura (detalhe)...175

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Introdução

Figura 1 – Bombachinha para criança

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Prezada(o) leitora(leitor),

Observe atentamente os modelos que aqui publicamos. Talvez você esteja curiosa(o), desconfiada(o) ou mesmo sorrindo, imaginando este “mimo de criança” à sua frente, não é mesmo? Ou ainda se lembrando das roupas que usava em sua infância e de costureiras exímias que saberiam exatamente o que é uma “casinha de abelha” ou uma “pala ovalada”...

Mas vamos aos desafios que esta página nos coloca... Você seria capaz de, num golpe de vista, compreender e costurar esta roupa? Saberia transpor o molde do que parece um simples desenho, às medidas de uma criança? Saberia ajustar a roupa ao corpo... ou dar corpo à roupa?

Esta pesquisa analisa e discute, de maneira geral, “modas e moldes”, “mulheres e crianças”, fato este que nos leva a advertir que trataremos, nas páginas seguintes, de rendas, botões, bonecas, caderno de pensamentos, quadrinhos, receitas, sabonetes, esparadrapos, biscoitos, sapatos, rádio, televisão etc., ou seja, de muitas dessas coisas que figuram nos campos das tolices e das banalidades. E, para que nossas(os) queridas(os) leitoras(es) não façam uma ideia errônea e precipitada deste trabalho e também não abandonem a leitura, explicamos melhor: pretendemos esboçar um olhar sobre a cultura material e a vida cotidiana ou, remetendo-nos aqui às ideias de Daniel Roche (2000, p.19), buscaremos compreender nossa relação com as coisas e com o mundo, pois “qualquer objeto, mesmo o mais comum, contém engenhosidade, escolhas, uma cultura. Um saber e um acréscimo de sentido estão ligados a todos os objetos”.

Nesta pesquisa, analisaremos a educação do corpo infantil por meio das roupas, buscando apreender como a vestimenta, em seus jogos de poder e distinção, pode constituir-se como um elemento de liberdade ou de sujeição dos corpos, definindo modos sutis de vivenciar a infância.

Fazemos, assim, um convite à leitura, tendo em vista que a tessitura desta narrativa deseja ser leve como a seda, macia como o veludo, fina e firme como o tafetá e densa como a casimira.

Uma breve história das roupas de meninos e meninas poderá ser tecida a partir de retalhos de um tempo diferente do nosso e, talvez, ajudar-nos a perceber sentimentos

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construídos sobre a infância e discursos empregados para ora separar as crianças do mundo adulto, ora projetá-las nesse mesmo mundo e convertê-las, já na tenra idade, em homens e mulheres, o futuro de uma nação.

Esta pesquisa procura, então, compreender, pelos modos de vestir as crianças, as representações de infância presentes em revistas de circulação entre os anos de 1950 e 1960. Não se trata de analisar se elas agiam e se vestiam de acordo com o que as revistas mostravam, mas, sim, de perceber as expectativas sociais em relação às atitudes de meninos e meninas, além das chancelas acopladas ao vestuário que permitiriam a um sujeito pertencer a um determinado grupo social. Buscamos, pois, analisar como as revistas desenham a roupa da criança e contribuem para a educação de um gosto, tecendo os limites do grosseiro e do galante, do sério e do frívolo, do adequado e do impróprio para esse período aclamado “Anos Dourados”.1

Elegendo neste estudo a década de 1950, acreditamos ser possível uma compreensão do valor atribuído ao vestuário num período de expressiva afirmação da vida urbana, momento este também em que a criança começaria a participar de diversos espaços de consumo. Um ideal de civilidade e progresso estimulava a aquisição de novos produtos considerados de prestígio e, a partir desse ideal de vida, não eram apenas a casa e seu mobiliário que precisariam ser refabricados, mas também a aparência, os gestos e o comportamento em público.

Ao estudar a formação de um mercado consumidor no Brasil nos anos de 1950, Martini (2011) procura mostrar como as pesquisas de opinião pública do Ibope contribuíram para a formação de um público em busca de novos produtos ofertados pela indústria brasileira e estrangeira. Analisando os relatórios de opinião pública do Ibope, Martini (2011, p. 271, grifos nossos) percebe que

[...] gradualmente, vão se inserindo na vida de cariocas e paulistanos uma gama de novos produtos – com suas devidas nuances: líquido, elétrico, semi-elétrico, para crianças – que ganham status de necessários à vida moderna. Junto com estes novos produtos surgem também novas formas de comercialização de

1 Assim fora chamada a década de 1950 pelos meios midiáticos, também capazes de produzir memória e

história. Não se trata aqui de dar ao clichê o status de verdade, mas de perceber as condições de surgimento e permanência de certos discursos. Uma análise da expressão “Anos Dourados” e da ideia evocada de um romantismo figurado pela estrela de cinema pode ser lida no trabalho de Meneguello (1996).

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mercadorias: a venda, o empório, a feira vão perdendo espaço e os supermercados, templos de consumo, vão se estabelecendo.

As promessas de um mundo de mais conforto e prazer pelo consumo se traduziriam nas páginas de inúmeras revistas, em que novas formas de educar começavam a cobrir o corpo com todo este anseio urbanidade.

Ao pensar na ideia de uma educação do corpo, Soares (2010) percorre um caminho que primeiramente nos remete aos tratados e manuais de boas maneiras, de pintura e de higiene, lembrando que, ao longo da história, discursos médicos, religiosos, filosóficos e pedagógicos elaboraram uma educação do corpo, prescrevendo detalhadamente sua higiene e sua disciplina. Esses manuais começaram a expandir-se a partir do fim do século XI, nos monastérios, e são parte de uma longa tradição de ideais de conduta, civilidade e bom comportamento. Neles são prescritas “regras claras e precisas que insistem em apagar um corpo para que outro, expressão de um tipo de civilização, possa surgir” (SOARES, 2010, p. 33). Neste processo contínuo que apaga o corpo, fazendo-o emergir novamente de acordo com as sensibilidades2de uma época, deparamo-nos com um imenso conjunto de imagens, gestos, formas e técnicas que educam, conforme nos ajuda a pensar a autora:

[...] Se as sociedades elaboram estratégias para inserir ou excluir os indivíduos em processos culturais, elas elaboram técnicas, pedagogias, políticas para tais ações. Assim, as muitas pedagogias do corpo e da saúde na longa duração, desde as formas como se representam a higiene, a alimentação, a vestimenta, as curas, o divertimento, as crenças seriam, certamente, maneiras de se educar os corpos (SOARES, 2010, p. 49, grifo da autora).

O corpo infantil fora também objeto de educação pelos manuais escolares já em circulação na Europa no século XVIII. Rocha (2000, p. 12, grifos da autora) lembra que, no Brasil, as transformações pelas quais a sociedade passou entre o final do século XIX e o início do século XX fizeram da escola palco de discursos de intelectuais que ambicionavam o progresso, a ordem e a civilidade:

2 Uma história das sensibilidades nos permite compreender as condições materiais que produziram os

sentimentos de uma época em particular. Para uma definição de sensibilidade, ver, por exemplo,Lucien Febvre (1989). A palavra “sensível” existe desde o começo do século XIV. No século XVII falava-se de sensibilidade ao verdadeiro, ao bem, ao prazer etc. No século XVIII a palavra designava uma maneira particular de ter sentimentos humanos como, por exemplo, piedade, tristeza etc. Ver também Brepol, Capraro e Garraffoni (2012); Claudine Haroche (2008); José Pedro Barrán (1990), entre outros.

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Na produção discursiva da escola como meio formador, capaz de corrigir e prevenir “imperfeições, excessos e eventualidades perigosas”, a criança é representada como massa moldável, justificando-se a vigilância higiênica sobre a instituição escolar, nos seus mais diferentes aspectos, a fim de evitar que, pelo seu regime, a escola viesse a produzir seres “definhados, entorpecidos, viciosos, doentes” [...], ou, em uma palavra, inúteis.

Códigos de conduta e maneiras de vestir-se eram ensinados a meninos e meninas não apenas pela escola, mas também pelas revistas de variedades. Brites (2000a), ao estudar as imagens de infância em periódicos brasileiros dos anos de 1930 a 1950, percebe que a criança aparecia ligada a questões de fragilidade, inocência e futuro da pátria. Os periódicos analisados pela autora – Vida Doméstica e Fon Fon! –, ao valorizar a puericultura, mostravam padrões de saúde, família, religião, comportamento e higiene a serem alcançados para o bem do País.

Havia, portanto, um modo de vida que era afirmado e reforçado para as leitoras como ideal, próximo das camadas mais privilegiadas socialmente, que apareciam como exemplos de elegância e beleza. As imagens da infância estavam sintonizadas com esse padrão adulto de viver o social, e atributos dos grupos sociais privilegiados também eram designados para o universo infantil (BRITES, 2000a, p. 166).

A autora também mostra como os diversos retratos de crianças enviados pelos leitores – sobretudo em momentos de solenidades – sugerem o status de filhos bem-criados, exemplos para a pátria e símbolos de uma classe social distinta. Nesses retratos em que a criança aparecia integrada ao mundo adulto, exibiam-se publicamente os privilégios da família, como se vê em inúmeras fotos de primeira comunhão, nas quais um cenário era disposto para salientar a espiritualidade e a pureza desejáveis à criança.

Eis então por que os trajes são um testemunho de como viveram as crianças em nosso país: a história da roupa permite olhar para a história social, tentando “observar como os modelos ideológicos, que coexistem e disputam a regulamentação das condutas e dos hábitos, interagem na realidade que pretendemos apreender” (ROCHE, 2007, p. 21).

Denise Sant’Anna (2004), ao problematizar o corpo como via de acesso à história, mostra-nos que um trabalho de pesquisa vem ao encontro de intolerâncias, receios e sonhos que nem sempre são os mesmos que os nossos. A autora discute também que, numa pesquisa centrada nos modos de conceber e cuidar do corpo, pode-se deparar não com uma

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única “história do corpo”, mas, sim, com a grande heterogeneidade da cultura corporal brasileira. Nesse sentido, é importante considerar o corpo no seu processo de refazer constante. Sendo assim,

no lugar de realizar uma “história do corpo”, ao invés de contar como era o corpo dos diversos povos e culturas, ou como eram os seus cuidados ao longo do tempo, seria interessante, em particular, analisar as pistas e vestígios sobre as condições sociais e existenciais que explicam, em cada situação, os seus usos e a sua importância (SANT’ANNA, 2004, p. 122, grifo da autora).

As “pistas e vestígios” sobre os modos de vestir meninos e meninas na década de 1950 ajudam-nos a compreender quais argumentos de poder definiram as maneiras adequadas de preparar as crianças não só para vivenciarem o tempo da infância em adequação ao que a sociedade esperava delas, mas também para que fossem bem recebidas pelo olhar do outro.

Paul Veyne (1989, p. 6) afirma, em seu livro O inventário das diferenças, que “a história apenas existe em relação às perguntas que lhe fazemos”. Para fazer as perguntas, é preciso ter consciência e decidir sobre o que falar. É preciso também imaginar e ter ideias. As indagações feitas no decorrer desta pesquisa também são suscitadas pelo encontro com as fontes. Partindo dessa perspectiva metodológica, apresentamos brevemente aqui o percurso desta pesquisa que busca, nas revistas da década de 1950, juntamente com as vozes de inúmeros autores, um olhar para as imagens de crianças desse período; crianças que, de algum modo, também se dispersam aqui, neste espaço imaginado no presente.

Fontes e Arquivos

As vias de acesso à temática da pesquisa desenharam-se a partir da busca de imagens do vestuário infantil da década de 1950 e, para tanto, colocaram-se, no horizonte de possíveis fontes, as revistas de variedades Jornal das Moças e Manchete, juntamente com as publicações dirigidas às crianças, O Tico-Tico e Cirandinha.3

3 No momento inicial da pesquisa de fontes para este trabalho, foram consultados alguns exemplares da

revista A Cigarra (RJ/SP), mensário de grande circulação no País de 1914 a 1954, e O Cruzeiro, revista de maior circulação nacional (1928-1975). Dessas fontes, serão analisados cinco anúncios publicitários no decorrer do capítulo 4.

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Figura 2 – Capa do Jornal das Moças

Fonte: Jornal das Moças, n. 2.111, 1 dez. 1955.

Figura 3 – Capa da revista Manchete

Fonte: Manchete, n. 1, 26 abr. 1952. Figura 4 – Capa d’O Tico Tico

Fonte: O Tico-Tico, Edição Comemorativa 50º aniversário, out. 1955.

Figura 5 – Capa de Cirandinha

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A revista Jornal das Moças foi publicada em maio de 1914 e era dirigida pelos Srs. Comandante Pereira e Ricardo Barboza. Quando surgiu, esse periódico era quinzenal e, dois anos após sua criação, passou a ser semanal; sua produção e circulação foram encerradas no ano de 1961. Nesta pesquisa, foram consultados 19 exemplares entre os anos de 1954 e 1958. A revista trazia contos, fotonovelas, vida das estrelas e dos famosos do rádio, algumas fotos de solenidades como casamentos e bailes de carnaval, modelos de roupas femininas, propagandas de produtos de higiene e beleza, além de diversos conselhos – sentimentais, culinários; sobre afazeres domésticos, comportamento e cuidados com os filhos, por exemplo. A partir de 1930, incorporou-se à publicação a seção de figurinos e bordados intitulada “Jornal da Mulher”.

Afirmando ser a revista inteiramente familiar, o texto assinado pela diretora Yara Sylvia, na ocasião em que a revista comemorava seus 24 anos de publicação, sublinhava: “JORNAL DA MULHER resistiu a essa onda de imoralidade, que está passando felizmente e continuou firme no papel de revista inteiramente do lar, da família e da sociedade em si” (JORNAL DAS MOÇAS, n. 2.042, 5 ago. 1954, p. 11).

Nas seções de correspondência, os leitores e as leitoras do Jornal das Moças opinavam sobre o comportamento masculino e feminino e sobre o perfil desejado para um bom casamento.4 Havia destaque para encontros familiares da elite, fotos de bailes de Carnaval e a vida de personalidades públicas. Abrantes (2006, p. 6) analisa a educação da mulher nas revistas femininas da Primeira República e, ao estudaro Jornal das Moças daquele período, observa que

entre os conselhos às mulheres, reforçava-se o seu papel na família, para que procurassem manter bem alto o nível do lar, considerado tão sagrado como o templo católico, pois sobre as mulheres pesava a responsabilidade pela conduta espiritual do homem. Considerando o dever de mãe e a missão civilizadora, deveriam procurar sempre o caminho da honra e do dever (ABRANTES, 2006, p. 6).

Desse modo, a partir da análise dos desenhos e das fotografias presentes no Jornal das Moças e no encarte “Jornal da Mulher”, foi possível unir alguns pontos e compreender

4A respeito dos papéis femininos fomentados pelo Jornal das Moças durante a década de 1950, ver pesquisa

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a costura de um vestuário disperso em inúmeras páginas, destinado às mulheres e às crianças, sobretudo.

A revista Manchete foi lançada no Rio de Janeiro em 1952, era semanal e de circulação nacional. Sua vigência foi até julho de 20005e, nos primórdios, conseguiu tomar o espaço antes liderado pela O Cruzeiro, criada em 1928 6. O editor de Manchete, Adolpho Bloch, investiu em aprimoramentos técnicos para superar a concorrente, inspirando-se nas publicações Paris Match e Life. Em pouco tempo, a editora Bloch conseguiu um prédio próprio na Lapa, no qual já havia um maquinário para imprimir 800 mil exemplares semanais. Reformulando a equipe editorial em 1956, Bloch contava com nomes como Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Orígenes Lessa, Manuel Bandeira, Lígia Fagundes Telles e muitos outros. Além disso, era irrestrito o apoio de Bloch a Juscelino Kubitschek, embora a revista fizesse algumas críticas às políticas da saúde e da educação. Com o uso de muitas fotografias que chegavam a ocupar páginas inteiras e capas coloridas fáceis de ler, Manchete chamava a atenção pela linguagem fotojornalística e também pela crônica, gênero de grande sucesso nos anos de 1950 7. Nesta pesquisa foram utilizados 13 números entre os anos de 1952 e 1959, os quais puderam ajudar neste estudo, sobretudo pela expressividade das imagens e dos discursos aliados a uma noção do que seria moderno e distinto.

As publicações infantis da editora O Malho, O Tico-Tico e Cirandinha, mostraram-se bastante pródigas em indícios e traços concernentes à temática estudada, pois eram locais onde discursos que definiam as crianças eram produzidos8.

5A circulação da revista foi suspensa nesta data devido à falência da Bloch Editores. Em 2001, um grupo de

ex-funcionários obteve o direito de publicação da revista e editou quatro edições especiais da Manchete. Ver Nascimento (2002).

6O Arquivo Público do Estado de São Paulo guarda a quase totalidade de exemplares desta revista Há, ainda,

os arquivos “Edgard Leuenroth”(AEL) da Unicamp e a Coleção Especial Prof. Antonio Boaventura da Silva, da biblioteca da Faculdade de Educação Física da Unicamp (FEF) , nos quais pudemos consultar os exemplares em papel utilizados nesta pesquisa.

7 Nesta época vários cronistas se tornavam conhecidos a partir de revistas de grande circulação, como

Manchete e O Cruzeiro. Para Lajolo e Zilberman (1985, p. 135), a crônica teria sido um fenômeno literário,

por tratar-se de “um texto mais ligeiro, de interpretação fácil e que fisga o leitor desacostumado a grandes voos literários”.

8A Biblioteca Monteiro Lobato - SP possui vasta coleção de revistas infantis da editora O Malho, onde foi

possível consultar grande parte do material aqui utilizado. Também serviram como fonte os exemplares disponibilizados nos arquivos “Edgard Leuenroth” e “Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio (CEDAE)” da Unicamp. Além destes acervos, encontramos grande parte dos exemplares de O Tico-Tico digitalizados e disponíveis no site da Fundação Biblioteca Nacional: <http://www.bn.br/portal/>.

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Na primeira década do século XX,O Tico-Tico era publicado no Rio de Janeiro como o primeiro periódico do País voltado ao público infantil (sobretudo para meninos alfabetizados). Com uma tiragem mensal, a revista trazia em suas páginas poesia, contos, jogos, referências a datas históricas, ciência, concursos diversos, quadrinhos, partituras e peças teatrais. Publicada por mais de cinquenta anos, a revista O Tico-Tico atingiu uma coleção de aproximadamente 2.097 exemplares, com tiragem entre vinte mil e cem mil exemplares. O último número dessa revista foi publicado em dezembro de 1958. Foram consultados, neste estudo, 12 exemplares d´O Tico-Tico entre os anos de 1949 e 1958.

Muitos escritores brasileiros colaboraram na constituição de uma literatura cívica para as crianças ou “homens pequenos”, considerados os futuros salvadores da pátria. Os leitores costumavam enviar muitas cartas para a editora, com perguntas, comentários e sugestões. Os editores d’ O Tico-Tico estabeleciam um diálogo com o público em inúmeras seções, como “Lições do Vovô”, “A gaiola d’O Tico-Tico” e “Dr. Sabetudo”, por exemplo. Esta última seria também um canal publicitário por meio do qual se recomendavam aos leitores os produtos que eram anunciados nas páginas da revista. Outras seções, como “Gavetinha do Saber”, “Troco Miúdo” e “Hoje Tem Sabatina”, abordavam dicas e curiosidades diversas. Em “Páginas Relembradas”, “Grandes Figuras do Mundo” e “O Brasil pela Imagem”, as crianças liam os acontecimentos do País e do mundo. Havia também seções didáticas que corroboravam diretamente o conteúdo escolar: “Gramática Infantil pela Imagem”, “Escudos e Bandeiras dos Estados” e “Noções de História Natural”, por exemplo (ROSA, 2002).

Folheando o exemplar d’O Tico-Tico de abril de 1951, encontramos a propaganda de uma nova revista infantil que a mesma editora lançaria naquele mês. Tratava-se de Cirandinha. O anúncio referia-se a ela como a primeira revista só para meninas no País. A pesquisa de Cardoso (2008, p. 4) nos mostra que, em 1905, na França, teria surgido a publicação para as meninas, La Semaine de Suzette. Desta revista, O Tico-Tico teria copiado, em seus primórdios, uma das capas e uma história em quadrinhos, publicadas no exemplar de número 44, o que nos permite considerar que os editores de Cirandinha

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também buscavam referências em outras revistas já existentes. No editorial 9d´O Tico-Tico de 1951, encontramos a seguinte referência à nova revista:

Meus netinhos,

Uma das alegrias mais vivas é a que sentimos quando, no seio da nossa família, surge mais uma criaturinha, a merecer carinho e afeição. A família aumenta e aumentam os cuidados, os trabalhos, os sustos e responsabilidades, mas todos sorriem contentes com a presença do novo ser. E todos querem ver e acompanhar os primeiros dias de vida da criaturinha que nasceu, observar seus progressos, cercando-a de atenções e desvelos.

Na vida de imprensa acontece coisa semelhante, quando é lançada uma nova publicação. Por isso estamos todos nós, da empresa editorial de “O Tico-Tico” emocionadíssimos com o aparecimento de uma nova revista, “Cirandinha”, a irmã mais nova deste mensário e de “Tiquinho”, e que se destina às meninas do Brasil. “Cirandinha” aparece numa época de incertezas, e seu lançamento representa, de certo modo, um gesto arrojado. Mas é que as meninas de nossa terra não tinham, até agora, uma revista só delas, feita para elas e como todas desejavam.

A nossa caçulinha vem satisfazer esse sonho das meninas, e como segue a mesma orientação sadia e criteriosa “d’O Tico-Tico” e de “Tiquinho”, estou certo que vai ser muito bem recebida e prestigiada pelos pais e professores.

Não é revista escolar, mas ensina muita coisa. Não é revista humorística, mas diverte. Sendo feita “para meninas”, vai agradar às jovens e aos meninos.

É qualquer coisa, enfim, como até hoje não se fez em nossa terra. E que colorido maravilhoso!! Por isso, no instante de seu aparecimento, estamos todos contentes e esperançosos, e assim, não posso deixar de mandar a vocês esta mensagem, principalmente às minhas netinhas de todo o Brasil:

- Procurem ver “Cirandinha”, cujo primeiro número acaba de aparecer! VOVÔ

A revista Cirandinha era publicada mensalmente, com cerca de 30 páginas no formato 16x22cm, e costumava estampar em suas capas ilustrações da menina em situações de cuidado com plantas e animais, brincadeiras de casinha, costura e outros afazeres domésticos. Nesta pesquisa consultamos 18 números de Cirandinha, dos anos de 1951 a 1958.

Os editoriais dialogavam com a leitora, reforçando modos de comportar-se para que fosse uma garota educada e prestativa. As seções consistiam em histórias e poesias,

9 O Editorial da revista é denominado “Lições de Vovô”, e a proposta é a escrita de um texto/carta

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culinária, “Nossas boas piadinhas”, curiosidades sobre utensílios domésticos, “Ideias práticas”, frases e pensamentos “para seu álbum”. Havia seções que ensinavam costura e bordado, decalque e outros trabalhos manuais “para as meninas executarem, ficando algumas horas ‘quietinhas’, como a mamãe gosta” (CIRANDINHA, ano VI, n. 64, jul.1956, p.11). As histórias em quadrinhos traziam como personagens principais Caxuxa e Maria Fumaça – ambas negras e com funções serviçais, apareciam de forma caricata, envolvidas em confusões e trapalhadas.

De maneira geral, podemos perceber que as histórias em quadrinhos das revistas da editora O Malho – Tico-Tico e Cirandinha – representavam uma inovação na literatura infantil do período10. Apesar da finalidade comum, as duas revistas se diferenciavam no conteúdo e na formatação. Ambas traziam desenhos em cores (principalmente cores primárias e secundárias), mas O Tico-Tico apresentava formato e número de páginas maior do que “a revista das meninas”. Diferentemente d’O Tico-Tico, não encontramos, nos exemplares analisados de Cirandinha, anúncios publicitários além daqueles feitos pela própria editora O Malho para divulgar os títulos de suas outras revistas infantis e adultas. No final de cada ano, a editora publicava um Almanaque especial, com a estratégia de oferecer à família uma opção para presentear os filhos no Natal.

Algumas questões poderiam ser aqui colocadas: Quais eram os trajes infantis veiculados nestas revistas? Quais modelos de comportamento eram difundidos aos leitores?

Poderemos, desse modo, pensar numa possível apreensão do que é sentenciado e também silenciado, daquilo que pode ser revelado nas estreitas frestas da linguagem. Seria possível visualizar, em traços, moldes, discursos e imagens, lugares, pertencimentos, passagens e marcas sociais que se desenharão nos corpos das crianças?

À vista disso, analisaremos, no primeiro capítulo, algumas transformações mundiais ocorridas na década de 1950, marcada por anseios, esperanças e novas formas de relações entre indivíduos, além de sentimentos e sensibilidades que se desenharam após a Segunda

10 A princípio O Tico-Tico, a primeira revista infantil, era destinada a meninos de até 12 anos, porém,

vislumbrando uma possibilidade de ampliação de mercado, a editora O Malho começaria a segmentar o público leitor a partir da década de 1950, lançando Tiquinho, revista para crianças menores, ou bebês, cujo conteúdo consistia em “histórias mudas ao alcance das crianças que não sabem ler”, e a revista para meninas,

Cirandinha, em 1951. Em 1954, a mesma editora publicaria Pinguinho, revista quinzenal de “histórias,

pequenas lições, ideias e muitos desenhos”, caracterizada por lições escolares, como alfabeto, leitura, cálculo e escrita.

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Guerra Mundial. Quais comportamentos eram esperados de homens, mulheres, crianças e jovens, terminado o tempo de conflitos e abstinências?

No segundo capítulo, abordaremos a literatura produzida para a criança nas revistas infantis O Tico Tico e Cirandinha, discutindo como determinadas representações da infância foram projetadas por esses discursos. As revistas que aqui analisaremos não estariam tomando uma “forma escolar” para educar mais profundamente esse público leitor infantil? Seria possível ler, nas páginas dessas revistas, um investimento educacional para além das fronteiras da escola?

No terceiro capítulo, analisaremos os enunciados empregados pelas revistas, que definiam o que era de bom gosto em uma vestimenta e as atitudes de “pessoas refinadas” e “elegantes”. Que educação do corpo era costurada nas tramas deste “novo estilo de vida urbano”?

O quarto capítulo tratará da aproximação entre adultos e crianças e da semelhança de suas vestimentas, a partir de imagens veiculadas tanto nas páginas de figurinos e em bordados quanto em reportagens variadas das revistas Manchete, Jornal das Moças e Cirandinha. Por essas análises, perceberemos como os universos infantil e adulto foram unidos um ao outro pelo botão da inocência.

O quinto capítulo discutirá os trajes escolhidos para as meninas e para os meninos nas seções de moldes e costura do Jornal das Moças e as ambiguidades de gênero construídas. Seria possível apreender as sensibilidades sublinhadas nas roupas infantis dessas revistas?

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Capítulo 1

Esperança, prazer e felicidade: notas sobre o consumo nos anos de

1950

Manchete nasce no momento exato em que nos consideramos aparelhados para entregar ao Brasil uma revista de atualidades, correta e modernamente impressa. Em todos os números daremos páginas a cores – e faremos o possível para que essas cores se ponham sistematicamente a serviço da beleza do Brasil e das manifestações de seu progresso. O Brasil cresceu muito, suas mil faces reclamam muitas revistas, como a nossa, para espelhá-las.Manchete será o espelho escrupuloso das suas faces positivas, assim como do mundo trepidante em que vivemos e da hora assombrosa que atravessamos. Neste momento os fatos nacionais e internacionais se sucedem com uma rapidez nunca antes registrada. Os jornais nunca tiveram uma vida tão curta dentro das vinte e quatro horas de um dia. Este é o grande, o sonhado momento dos fotógrafos e dos repórteres exercitados para colher o instantâneo, o irrepetível. Depois virão os historiadores. E agora prossiga, leitor... (MANCHETE, n. 1, 26 abr. 1952, editorial).

Folhear uma revista pode constituir uma experiência de imaginar cores, cheiros, movimentos, vozes, faces, sabores, ritmos e expressões de sentimentos diversos. Remexer guardados, visitar memórias, esquecimentos e tempos nos faz perceber nossa dimensão histórica.

O editorial que inaugurava o primeiro exemplar da revista Manchete desejava que sua publicação fosse um espelho, face brilhante e impenetrável da beleza do Brasil. Poderíamos aqui pensar no espelho, como propõe Luis da Câmara Cascudo (1973, p. 374, grifo do autor), a partir de seus múltiplos enredos nos imaginários sociais: “As superfícies polidas, refletindo as imagens significam a existência do duplo, o outro eu, passível de perigos e riscos, como também a sombra do corpo, outra representação ou duplicação do eu”.

Portanto, nessa face polida, bela e brilhante de um espelho escrupuloso, é que os leitores seriam convidados a prosseguir nas narrativas da revista. Mas e a face sombrosa, “passível de perigos e riscos”? Serão os historiadores e pesquisadores os incumbidos de nela adentrar?

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Tentaremos aqui remexer os espelhos d’água, fazer rebolir e dançar a água que dorme e reflete. Para isso, propomos um breve percurso no que talvez pudessem ser este “mundo trepidante” e a “hora assombrosa que atravessamos”, anunciados pela revista. Buscaremos, assim, vislumbrar as possíveis cores, sejam as vívidas ou as apagadas, de um país diante dos anseios de modernização.

O fim da Segunda Guerra Mundial chamejou ao mundo imagens de uma Europa destruída e demograficamente afetada. No período entre 1947 e 1952, um programa econômico desenvolvido pelo secretário de Estado norte-americano, George C. Marshall, para a reconstrução de muitos países devastados, evitaria uma crise política na Europa, disponibilizando empréstimos em longo prazo para os investimentos em estrutura, serviços e suprimentos essenciais.

Para Judt (2008), a elevação do crescimento econômico europeu ocorreu graças não apenas à ajuda financeira do Plano Marshall, mas também ao crescimento acelerado da população. Depois da “calamidade demográfica” entre os anos de 1913 e 1945, provocada por guerras, emigrações, depressão econômica e altos índices de mortalidade infantil, a fertilidade no Oeste europeu se recuperava, num novo cenário de otimismo, reconstrução e aumento de empregos11. Muitos soldados e prisioneiros de guerra que retornavam aos seus países encontravam, na ajuda dos governos – como os programas de distribuição gratuita de leite e os auxílios financeiros a cada filho que as famílias tivessem –, a oportunidade de casamento e de constituição de família12.

Assim, uma característica marcante da Europa nas décadas de 1950 e 1960 – conforme pode ser prontamente percebido ao se contemplar qualquer cena urbana – era a quantidade de crianças e jovens. Após um hiato de quarenta anos, a Europa voltava a ser jovem [...]. Não era apenas que milhões de crianças nasceram depois da guerra: era que um número inusitado de crianças havia sobrevivido (JUDT, 2008, p. 338).

11Vale lembrar que, apesar desse cenário de “otimismo”, os conflitos na Europa não terminariam em 1945

com a derrota dos alemães: o surgimento de inúmeras guerras civis abalaria a estrutura do Estado europeu (JUDT, 2008, p. 49).

12 Um exemplo do fenômeno de elevação no número de nascimentos, chamado baby-boom, pode ser

observado na França: o país teria crescido quase 30%, entre 1946 e o final dos anos de 1960, sendo este o índice de crescimento mais rápido que o país registrou até o presente. Ver Judt (2008, p. 338).

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Ora, o que significaria um continente voltar a ser jovem? Quais os impactos de um hiato que agora se contraía? Uma maior taxa de natalidade, associada à crescente oferta de trabalho, alavancaria uma nova forma de consumo em muitos países europeus. Com o aumento de empregos, o trabalhador teria um poder maior de compra,deixando de ser apenas aquele que fabricava produtos e passando a ser também aquele que os consumia. A partir dos anos de 1950, com o aumento do poder de compra, a economia tradicional de muitos países europeus começou a mudar13(JUDT, 2008).

A população começou a ter dinheiro sobressalente e começou a gastá-lo. Em 1950, o comércio varejista na Alemanha Ocidental vendeu apenas 900 mil pares de meias de náilon femininas (emblemático item de “luxo” nos primeiros anos do pós-guerra). Quatro anos depois [...], o movimento era de 58 milhões de pares (JUDT, 2008, p. 345).

Quando os bens outrora escassos se tornam mais abundantes, comprar um determinado produto pode significar a aquisição de uma identidade – como no caso das meias de náilon, um “item de luxo” antes restrito e que começava a popularizar-se, fazendo os pés de muitas mulheres. Comprando-o, o sujeito se afirmaria nas relações sociais, do mesmo modo que não comprá-lo também assinalaria o pertencimento a uma classe. As novas formas de consumo e de organização da vida, portanto, faziam parte de uma trama de relações em que circulavam discursos que afirmavam e produziam realidades sociais, constituindo as experiências dos sujeitos.

Todos esses fenômenos mundiais deixaram marcas em diversas sociedades, de acordo com as especificidades de cada cultura. O prazer de consumir adentraria vários países do mundo ocidental, principalmente após o final da Segunda Guerra Mundial. A maior oferta de produtos ligada a um espetáculo em grande escala, como no caso do cinema, estabelecia aos consumidores a possibilidade de diferenciar-se e integrar-se aos grupos sociais. Para isso, a linguagem publicitária dos anos de 1950 começou a valer-se de quantitativos para afirmar um consenso e a aceitação de um gosto coletivo, usando termos

13Outrora, durante o processo de industrialização do século XIX, os principais bens que a maioria das pessoas

da Europa e de outras partes do mundo possuía eram aqueles herdados da família, alguns materiais confeccionados pelo próprio dono, bens negociados e trocados com outras pessoas ou comprados de alguém conhecido.

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como “produto conhecido e provado por milhões de pessoas” (TEMPERLEY, 2007,p. 111).

É possível também percebermos que um fascínio pelo progressivismo norte-americano – trabalhar, ganhar dinheiro e consumir – aos poucos foi ganhando espaço no cenário irradiado pelos veículos de comunicação14. Podemos, por exemplo, observar as influências desse modo de vida nas tiragens extraordinárias de revistas em quadrinhos que traziam ao Brasil os valores norte-americanos expressos pelos super-heróis, retratados, inúmeras vezes, em histórias de combate aos nazistas, como símbolos da esperança e salvação (CYTRYNOWICZ, 2004, p. 456).

A presença de fábricas no espaço privilegiado na cidade provoca não só efeitos econômicos como políticos e sociais. Entre os anos de 1950 e 1954, o Brasil viveu uma crescente urbanização. A partir dos recursos do setor agroexportador, o presidente Getúlio Vargas elevou a produção fabril e fez dela a principal atividade econômica do País, ultrapassando o montante da produção agrícola. Buscando alianças com os grupos urbanos, Vargas adotou mudanças na legislação e favoreceu,em muitos aspectos, o operariado, o que o fez ser visto, aos olhos de muitos, como um protetor do trabalhador15 (PRIORE; VENANCIO, 2010).

Uma eloquente idealização das experiências firmadas na vida urbana ocorreu, sobretudo, durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), o qual elencara, em seu “Plano de Metas”, o imaginário do progresso brasileiro: crescer “50 anos em 5” nos setores de energia, transporte, alimentação, indústrias de base e educação. No ideal juscelinista, essa concretização de uma “nova era” fez de Brasília um meio de pensar e conceber uma cidade moderna e ideal, que fosse capaz de gerar um novo homem e uma sociedade integrada, as “alavancas” do desenvolvimento do País (CARDOSO, 2007; QUEIROZ, 2007).

Como podemos observar, Kubitschek pensava Brasília não somente com os argumentos geopolíticos ou dentro do ponto de vista da teoria do

14No Brasil, esse fascínio já começara a aparecer em meados dos anos de 1930,com a política de “boa

vizinhança” do então presidente norte-americano Roosevelt.

15 Vale lembrar que em 1954, João Goulart, recente ministro do Trabalho do governo Vargas, decretou um

aumento de 100% no salário mínimo, que mantinha o mesmo valor desde 1943. O fato assustou as elites do País, e as forças da oposição começaram uma campanha intensa contra o presidente. Ver Tota (2004, p. 513).

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desenvolvimento, mas também constrói a ideia da capital através de uma perspectiva utópica com matizes míticos, inclusive quando passa a largo da realidade brasileira da época, convencido de que a cidade, por si mesma, desencadearia a transformação do país e irradiaria para a humanidade “um universo irrevelado”. Assim conceituando-a, igualmente a coloca em um contexto legendário, a exemplo de uma cidade ideal inauguradora de uma nova civilização (QUEIROZ, 2007, p. 164, grifo do autor).

Durante a década de 1950 ocorreram expressivas mudanças no comércio varejista do centro da cidade de São Paulo, já vislumbradas desde o final da década de 1930. Muitas lojas de departamentos, que primeiramente eram voltadas ao público das elites, se deslocariam do centro velho aos bairros, promovendo uma “popularização” de seus produtos16. Ao analisar tais mudanças do varejo, Saes (2004) descreve que as grandes lojas mudaram o foco, antes voltado a uma elite restrita,para então atingir o consumidor da crescente classe média – aquele que se importava mais com o preço a ser pago. O autor observa também que, terminada a Segunda Guerra, aumentava a oferta de eletrodomésticos importados, como geladeiras, aspiradores, máquinas de lavar roupa e enceradeiras. O crediário, presente desde os fins da década de 1920, ampliou-se nesse período, suprindo o desejo de consumo de uma parcela crescente da população que ainda não dispunha de uma renda suficiente para adquirir os produtos almejados.

Servindo como um canal de comunicação entre o público e a indústria, o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) se fortaleceu no Brasil durante os anos de 1950, como estuda Martini (2011). A autora explica que as séries de “Pesquisas Especiais do Ibope” eram encomendadas por empresários ou governos que intencionavam conhecer as opiniões, os hábitos de consumo, os produtos e as marcas preferidas da população. As séries “Serviço de Pesquisa entre Consumidores” e “Serviço X Nacional” pesquisavam as tendências de consumo entre as populações de São Paulo e Rio de Janeiro. Os relatórios do Ibope detalhavam aos empresários as características desse novo mercado promissor, oferecendo as balizas necessárias para dirigir a opinião, os gostos e as

16Um exemplo foi o ocorrido com a loja Mappin, que surgiu no Rio de Janeiro em 1911 e, em 1913, em São

Paulo, com objetivo de atender as elites. Depois de enfrentar algumas crises, encerraria a comercialização de joias e cristais, voltando-se à venda da roupa pronta, a partir de 1950. Em São Paulo, nessa época, observa-se o surgimento de outras lojas de departamentos, como Riachuelo (1947), Marisa (1948), Sears (1949) e Mesbla (1952). A Casa Pernambucanas, ao contrário do Mappin e da Mesbla, que primeiramente estavam direcionadas às elites, tinha como público-alvo o consumidor de baixa renda, oferecendo majoritariamente produtos e tecidos nacionais. Ver Saes (2004); Fyskatoris (2006).

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preferências do consumidor, que se deparava com inúmeras novidades: refrigerantes, biquínis, produtos enlatados, zíper, roupa pronta etc.

Quando os pareceristas do IBOPE, por meio dos relatórios, analisam o mercado de consumo como promissor, apontam sempre que o caminho para aumentar as vendas era o da propaganda. Daí a importância das pesquisas de opinião, uma vez que levantavam informações sobre hábitos, valores e comportamentos de vários segmentos sociais, informações que certamente seriam utilizadas nas propagandas como forma de conseguir adesão do indivíduo ao novo estilo de vida proposto para quem fosse detentor/usuário de determinada mercadoria (MARTINI, 2011, p. 142).

Outra notável inovação na esfera comercial nos anos de 1950 foi a instalação de supermercados, trazendo novas formas de fazer compras, diferentes das vivenciadas em feiras, quitandas e armazéns (SAES, 2004). Uma gama de produtos poderia ser adquirida não apenas em lugares separados e, sim, em um mesmo estabelecimento, de forma mais “conveniente”. Com ele, surgia a ideia de estocar mercadorias e adaptar o espaço doméstico, criando a necessidade de lugares para guardar a comida em casa, como no caso da geladeira.

A promessa de uma reconfiguração dos espaços públicos e privados inaugurou também formas de exposição, de ver e ser visto, de preparar-se para novas experiências de convívio social. Ao estudar as figurações do corpo na publicidade gráfica argentina do entreguerras, Oscar Traversa (1997) percebe que um amplo universo de imagens propagadas pelos meios de comunicação, como o rádio, a fotografia e o cinema, encheu o mundo de manifestações inéditas do corpo, tais como a alimentação, a vestimenta, os produtos de beleza e os remédios. A publicidade entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial preocupava-se em consolidar hábitos de usos, perfazendo assim uma trajetória desde o retrato grotesco do corpo – objeto de dor e ameaçado ao sofrimento – até um corpo pródigo, capaz de seduzir e de desfrutar de suas faculdades: mover-se, ver e ser visto, comer, cheirar e ser cheirado.

Assim, é possível ver imagens de um corpo que deixa de lado a sua condenação e se consagra, após a Segunda Guerra, como um território multissensorial. Ao estudar anúncios relacionados aos cabelos entre as décadas de 1940 a 1970, Susana Temperley (2007) observa que, na década de 1950, o fenômeno da novidade se estabeleceu como argumento publicitário, marcando a aparição de novos produtos no mercado e a renovação de

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embalagens dos cosméticos “clássicos”. Nesses anúncios, o corpo, antes quieto e enquadrado pelo retrato, aparecia, nos anos de 1950,de diferentes maneiras e situações, focado em outros pontos de vista e cenários, num jogo de sedução e movimento.Era também um corpo que começava a extrapolar o campo do visível e alcançar o campo tátil. O corpo de muitos anúncios é instigado, por meio de imagens e palavras, a sentir e a tocar.

Figura 6 – Talco Gessy

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No anúncio do Talco Gessy, o corpo do bebê é transformado em um corpo publicitário que deseja e toca o produto, gesto acompanhado também por uma linguagem que lhe é emprestada pelo anunciante. Essa linguagem permitirá ao bebê exprimir sua escolha e preferência pelo talco Gessy, criando a ideia de um produto que pode ser reconhecido até mesmo por um ser pequenino. O bebê seria capaz de sentir e identificar a razão da deliciosa sensação de uma pele aveludada, sensação esta muito mais confortante do que a de “nanar”? A argumentação do anúncio busca atingir a mulher e toda a família, valendo-se da imagem da criança. Esta, portanto, sujeito de diversas propagandas, recebe dos adultos a postura, a voz e os movimentos necessários para vender produtos.

A ideia do corpo que participa de um território multissensorial criado pela publicidade pode ser visualizada também no anúncio abaixo, no qual o supermercado é escolhido como o cenário da publicidade de uma marca de sabão. A narrativa é composta por fotografia, relatos e diálogos que se assemelham ao disposto na linguagem das fotonovelas. Através dos gestos, das roupas, das falas e dos olhares das protagonistas, percebemos o quanto esse novo espaço urbano abarca as tensões, as exigências, os anseios e as exibições dos corpos que se encontram e se esbarram nesse palco de consumo.

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Figura 7– Brancura Rinso

Fonte: Manchete, 24 out. 1959, p. 27.

A associação de um produto a um espaço visto como “moderno” ganhou força nos discursos publicitários da década de 1950. Os sujeitos, tendo como ideal a inserção na vida urbana, recebiam de diversos discursos os códigos que os preparavam e os educavam para circular nesses novos lugares. A criança, por sua vez, elemento importante dessas relações sociais nas quais se estabelecem gostos, distinções e pertencimentos, experimentaria a seu modo, seja na vida cotidiana, seja ao brincar, sua incursão nesses novos espaços.

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Figura 8 – Vestida para fazer compras

Fonte: Jornal das Moças, n. 2.059, 2 dez. 1954, p. 107.

Ademais, a partir da década de 1950, a juventude começaria a configurar-se como um novo grupo consumidor. Como descreve Judt (2008), até pouco tempo depois do término da Segunda Guerra, as famílias e as comunidades tradicionais europeias tinham suas crianças na escola e, logo que a fase de estudos acabava, elas ingressavam no mercado

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de trabalho e se tornavam jovens adultos. A categoria “adolescente” – nem criança nem adulto – não estava claramente definida até então. A família era uma unidade não de consumo, mas de produção: o ganho salarial de um jovem era integrado à renda familiar. Porém, um rápido aumento de salários permitiu às famílias subsistirem com a renda do principal provedor, possibilitando ao jovem economizar e usar seu dinheiro como quisesse17.

Ao discutir a adolescência como objeto de investigação das ciências médicas e psicopedagógicas, César (2008) analisa que a vida humana começou a ser explicada na forma de etapas, na Europa, entre o final do século XIX e o início do século XX. No decorrer do século XX, o discurso científico tomou a juventude como um problema constante de investigação, e alguns especialistas, relacionando as realidades de um mundo do pós-guerra, considerariam essa etapa de vida como um tempo de caos, um período de crise de valores. A autora destaca que, “com o término da guerra, deslocou-se a tônica do jovem ou do adulto combatentes para a figura do teenager, termo que começou a apresentar um uso corrente a partir de 1945” (CÉSAR, 2008, p. 134). A sociedade norte-americana, a partir dos anos de 1950, consagrou, por vias da literatura, do cinema e da indústria musical, uma imagem de juventude transgressora.

A figura do adolescente começou a ser esboçada na mídia, sobretudo, pelo cinema hollywoodiano das décadas de 1940 e 1950 18. Meneguello (1996) observa que, a partir da segunda metade da década de 1940, a menina, nas telas, é infantil até a descoberta do amor. Como esse sentimento estaria relacionado à mulher adulta, a passagem da menina a mulher era anunciada pelo primeiro beijo. A criação de personagens adolescentes teria possibilitado uma nova onda de ídolos, em oposição aos papéis de mulher perversa e fatal, como outrora representados por Joan Crawford, Bette Davis e Rita Hayworth, por exemplo.

17 Na França, já em 1965, por exemplo, 62% dos jovens de 14 a 24 anos que ainda moravam com os

familiares guardavam todo o salário para gastos pessoais, como mostra Judt (2008, p. 354).Esse poder aquisitivo de uma juventude nascida ainda durante a Segunda Guerra se manifestaria, sobretudo, em gastos com músicas e na compra do vestuário – uma roupa diferente daquela usada pelos seus pais e específica para sua faixa etária. A indústria da roupa pronta inaugurou uma importante diferenciação vestimentar: a de classes de idades. Nos Estados Unidos, um mercado específico para os adolescentes ganhou expressividade no final da década de 1950, produzindo uma série de mudanças vestimentárias. Ver Monneyron (2005).

18No que diz respeito à figura do adolescente, nas revistas analisadas nesta pesquisa encontramos os seguintes

termos: “jovem/juvenil”, “pré-adolescente”, “debutante” e “menina-moça”. Em relação aos modelos sugeridos de roupas, notamos, em geral, que um mesmo vestido poderia ser confeccionado tanto para uma menina de 6 quanto de 12 anos, o que nos mostra que uma moda para a “adolescente” ainda não estava totalmente delimitada.

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As novas estrelas femininas do início dos anos de 1950 eram adolescentes acessíveis, inocentes, desportivas, companheiras de rapazes e futuras boas esposas. Na segunda metade dos anos de 1950, o caráter do adolescente mudaria e ele seria mostrado, por exemplo, por James Dean e Marlon Brando, como desajustado e problemático. As moças mostrariam suas curvas e uma aparência sensualmente ingênua: garotas agitadas, mas, no fundo, boazinhas.

As inovações dos meios de comunicação e da indústria cinematográfica começavam a propagar diferentes códigos de convívio e a irradiar o fascínio pelo modo de vida norte-americano, provocando mudanças nas formas de diversão e consumo. Nesse período também se desenvolveram novas técnicas de impressão, as quais permitiriam um maior uso da fotografia em anúncios. Muitos destes veiculavam os corpos espelhados na gestualidade das figuras do cinema, expressando aos consumidores pertencimentos e identidades. No Brasil, como discute Margareth Rago (2004, p. 433, grifos da autora),

sobretudo entre as décadas de 1940 e 1950, o cinema foi plenamente incorporado na vida urbana, e, em 1951 foram construídos os estúdios da Cia. Cinematográfica Vera Cruz, a “Hollywood paulista”. Do mesmo modo, a televisão [...] contribuiu intensamente para o crescente processo de privatização da vida social e para a progressiva difusão das formas americanizadas de convívio e diversão, de alto a baixo na sociedade. Através das novelas irradiadas e televisionadas, assim como dos filmes que já haviam ganhado sonoridade, aprendiam-se os códigos modernos de relacionamento social, especialmente afetivos e sexuais, assim como as modas e os gostos musicais.

Em meio às promessas de um novo modelo de vida,advindas, sobretudo, com o imperialismo americano, as expectativas sociais em relação ao comportamento de homens e mulheres eram abordadas pelas revistas femininas. A pesquisa de Carla Bassanezi (2002) mostra como os valores sociais da “moral” e “dos bons costumes” estariam ameaçados pelo cinema americano, acarretando inúmeras críticas de conservadores às más influências das “ousadas mocinhas” que apareciam nas telas. As revistas, além de terem um papel importante como fonte de informação e conselhos diversos, influenciando a realidade da classe média em ascensão, traduziam os comportamentos e os separavam em convenientes às “moças de família” ou às “moças levianas” (BASSANEZI, 2002, p. 609).

O rádio, que a partir da campanha presidencial de Getúlio Vargas deixara de ser um instrumento restrito a uma pequena elite, para tornar-se veículo poderoso de comunicação

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de massa, determinava o cotidiano de grandes cidades como Rio e São Paulo. Nesta última, a televisão chegou em 1950 e, no final da década, impôs-se como poderoso meio de comunicação de massas: a compra de aparelhos televisivos era facilitada pelo crédito. A televisão começaria a atrair verbas publicitárias que antes eram destinadas ao rádio e se tornaria grande concorrente das emissoras radiofônicas. O sucesso do teleteatro acarretava o desaparecimento da radionovela, já que os atores doravante podiam ser vistos atuando na TV.

É preciso ressaltar que a televisão, que gradualmente se consolidava como um veículo de influência nas formas de consumo e de convívio social, também começaria a voltar-se ao público infantil, com uma sedutora publicidade ganhando espaço nas telas. O primeiro teleteatro para crianças na TV brasileira, Os três ursos, foi transmitido no Natal de 1951. Depois dele, a TV Tupi apresentou mais 245 peças infantis em três programas semanais – Fábulas animadas, Era uma vez... e o Teatro da juventude – num período de 19 meses (MATTOS, 2002, p. 228). Além disso, programas como Ginkana Estrela, da TV-Rio, ofereciam espaço para as crianças brincarem na TV com os brinquedos patrocinados pela marca Estrela19.

19Nos Estados Unidos, nos anos de 1947 a 1955, a televisão já transmitia alguns programas infantis de cerca

de meia hora de duração, à noite ou aos sábados de manhã. Diferentemente da programação televisiva dos dias atuais, o tempo de programação infantil era mais curto,e esta era composta por shows ocasionais. A publicidade infantil foi aparecendo com mais força a partir de 1955, ano em que a ABC Television elaborou um projeto ambicioso de entretenimento infantil: a primeira programação com duração de uma hora diária, em cinco dias da semana, voltada às crianças, chamada The Mickey Mouse Club (ROVERI, 2012).

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Fonte: Jornal das Moças, n. 2.222, 16 jan. 1958, p. 12-13.

A publicidade, que já existia antes desse período, ainda não explorava o consumo em segmentos, estilos e idades, e pouco dimensionava o valor do mercado infantil, e ainda não havia propagandas em massa para esse público. Conforme relata Cy Schneider (1987) –

Referências

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