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Quilombo Mel da Pedreira: Negociação, Método e Identidade

Suzana Ramos Coutinho Antônio Máspoli de Araújo Gomes Ana Kelly Vasconcellos Franklin de Sousa

1. Introdução

O quilombo Mel da Pedreira está entre os poucos quilombos cuja terra foi titulada. Até hoje, no Amapá, apenas três quilombos receberam a titulação: o primeiro foi o Quilombo do Curiaú, em 1999, o segundo foi o quilombo Conceição do Macaroari, em 2005 e, por último, o Mel da Pedreira, que recebeu sua titulação em 2007. O quilombo ocupa uma área de 2.199,4570 hectares, que fica localizada a 40 quilômetros do centro de Macapá. Nele residem 17 famílias, totalizando cerca de 70 habitantes que ocupam a terra desde 1954. A titulação foi recebida após um processo junto ao INCRA, primeiramente de auto-reconhecimento da identidade quilombola, e depois de uma série de visitas e entrevistas que geraram laudos antropológicos favoráveis à titulação da terra.

Mas, é justamente no tocante à religião que o quilombo Mel da Pedreira apresenta seu traço mais peculiar e distintivo. Outrora caracterizado por um catolicismo sincrético, de traços semelhantes aos encontrados em outros quilombos, desde 1968 a comunidade Mel da Pedreira adotou o presbiterianismo como religião oficial e é, hoje, reconhecidamente, a única comunidade quilombola que se autodenomina presbiteriana. Não apenas se autodenominam dessa forma, mas são reconhecidos e filiados à Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB).

A proposta dessa pesquisa foi, portanto, dar continuidade ao trabalho já iniciado em 2012, que visava investigar as peculiaridades do grupo que, entre outras razões, chamam a atenção de pesquisadores e especialistas na área pelo fato de, na contramão da religiosidade predominante entre os grupos quilombolas, elaborar sua identidade religiosa a partir de elementos protestantes (vinculados à Igreja Presbiteriana do Brasil) e não à elementos das religiões afro-brasileiras.

As perguntas que surgiram a partir da realização dos fatores supracitados foram diversas, como a respeito da elaboração da identidade étnica do grupo. Se o ser

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quilombola está atrelado a manter uma identidade étnica que tenha laços com a cultura de origem, como definir o que é ser quilombola sendo presbiteriano? Haveria alguma incompatibilidade conceitual em ser quilombola e presbiteriano? Essas identidades, étnica e religiosa, teriam sido absorvidas de fora para dentro ou de dentro para fora? Que face uma religião de origem europeia, alicerçada em bases históricas de viés tradicional, assumiria contextualizada numa comunidade remanescente de escravizados? A proposta dessa pesquisa foi, portanto, responder a tais perguntas ao focalizar os aspectos religiosos da comunidade quilombola Mel da Pedreira. É com base neste universo que nos deparamos – e aqui buscamos também discutir – a necessidade de articulação entre a noção de identidade, a religiosidade e a relação com a terra.

2. História e contextualização: da escravidão para o quilombo, um longo percurso.

Da África foram escravizados e trazidos à força para o Brasil mais de 3.500.000 (três milhões e quinhentos mil) negros em todo o período escravagista. Atualmente, não há como determinar precisamente as origens étnicas e geográficas africanas dos negros e seus descendentes no Brasil mas não se pode negar que África sobrevive no Brasil por meio de seus filhos e filhas, das suas culturas, das suas línguas e religiões (MUNANGA, 2009, p. 92). A África é o berço da humanidade. John D. Fage (2002) escreve a história da Afinca em uma perspectiva que busca localizar a surgimento do primeiro homem nesse continente e mapear em solo africano o nascimento e o desenvolvimento da agricultura, da pecuária, da metalurgia, do comércio mundial e mesmo das artes. O autor analisa o impacto do cristianismo e do islamismo para o continente africano. O autor avalia também, de modo objetivo o impacto da escravização e do colonialismo sobre a África e suas populações.

Tomislav Femenick (2003) conta a história da escravidão como um fenômeno socioeconômico que surgiu na Idade Antiga, atravessou séculos e chegou à Idade Moderna. Nessa obra, o escravo é tido apenas como objeto e meio de produção. José Antonio Saco (1982) descreve a história da escravidão a partir da lógica de dominação do senhor sobre o escravo e apresenta o escravo coisificado, nas Américas em especial, uma reificação da lógica da Casa Grande e da Senzala. Esse modelo de escravidão deu sustentação à dominação colonial portuguesa e ao sistema econômico de exploração das colônias portuguesas (VASCONCELOS,

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1859; PAULA, 1973; AB’SABER, 2001). Luiz Felipe de Alencastro (1997) vai mais a fundo e demonstra como a escravidão se tornou um negócio tão lucrativo para coroa portuguesa e brasileira, que a escravidão passou a ser um fim em si mesmo, inclusive, com a produção em escala industrial de pessoas para serem escravizadas (SILVA, 2004).

Maurício Goulart (1949) escreve a história da escravidão dos negros no Brasil e remonta o início da prática da escravidão aos idos de Portugal de 1441, quando lá aportaram os primeiros escravos trazidos por Antão Gonçalves. Herbert S. Klein e Vidal Luna (2009) apresentam a escravidão como uma instituição econômica e traçam também as consequências dessa instituição para os descendentes dos escravos no Brasil contemporâneo. Katia de Queiróz Mattoso (2003) descreve com riqueza de detalhes as condições deletérias de vida do negro em terras brasileiras, na obra Ser Escravo no Brasil. A escravidão no Brasil se alimentou da ilegalidade e semeou a ilegalidade (CHALHOUB, 2012; PEREGALLI, 1988; PIRATININGA JÚNIOR, 1991). Não se pode falar da escravidão sem contar os horrores do Navio Negreiro e as condições de vida dos escravos no Brasil. A crueldade da escravidão impunha as lutas pela liberdade (FLORENTINO, 2005).

Existe consenso sobre a precariedade das condições da vigem num navio negreiro. Mas não existe consenso sobre o índice de mortalidade dos negros nessas viagens. Kabengele Munanga afirma que em todas as etapas do processo da escravidão: a captura dos nativos no interior da África; a transferência desse nativo até o porto; o armazenamento dos negros nesses portos para esperar o navio negreiro na costa africana; o transporte para outros países em navios chamados de tumbeiros; e o armazenamento nos portos de desembarque até a chegada a seu destino final, morreram cerca de 60 (sessenta) milhões de africanos em todo o tempo em que perdurou a escravidão. “Em todas essas etapas, o número de africanos mortos era muito alto, por volta de 50% do total de capturados” (MUNANGA, 2009, p. 81).

Na luta do escravo pela liberdade, o quilombo assume um papel político primordial pois é uma Cidade de Refúgio. “Em seu conteúdo, o quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo afro-banto reconstruído pelos escravizados para se opor à estrutura escravocrata, pela implantação de outra estrutura política na qual se juntaram todos os oprimidos” (MUNANGA, 2009, p. 93; SCARANO, 1994). De acordo com a Fundação Cultural Palmares existem 743 comunidades quilombolas remanescentes de escravos e seus descendentes no Brasil. Desse total, apenas

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178 foram formalmente registradas como quilombos e só 70 receberam o registro do título da terra regularizado pelo Governo Federal (MUNANGA, 2009, p. 93). O Quilombo mais importante na história do Brasil foi Palmares, mas não foi o único. Já, o Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília registra a existência de 2.228 comunidades quilombolas que abriga uma população de 2,5 milhões de pessoas (MUNANGA, 2009, p. 93).

Do que já tem sido estudado sobre negritude, existe um campo vasto de pesquisas. Autores clássicos como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira e Fernando Henrique Cardoso fazem parte das primeiras fases dos estudos acadêmicos sobre o negro brasileiro. A partir dos anos de 1970, algumas pesquisas se destacam por maior interesse nas questões ligadas à militância negra. Aqui merecem destaque os trabalhos de Baiocchi (1983) sobre os negros de Cedro, de Queiroz (2006) sobre negros no Vale do Ribeira, de Bandeira (1988) em Vila Bela, no Matogrosso, e o trabalho de Monteiro (1985) sobre negros em um bairro rural de Pernambuco, um dos poucos que abordam com mais ênfase o aspecto religioso. Entretanto, poucos estudos específicos sobre o quilombo Mel da Pedreira têm sido publicados. O que existe até agora são dissertações de mestrado, sendo que a maioria delas trata da questão da posse da terra (Soares, 2008; Colares, 2010).

O campo de estudos sobre o negro brasileiro, hoje denominado quilombola, tem se desenvolvido nas últimas décadas. Em todas as pesquisas já realizadas, os resultados no tocante à religião das comunidades quilombolas foram apresentados de forma a concluir-se que tais grupos apresentam variações dentro do contexto religioso brasileiro, notadamente ligado ao catolicismo. Mas em geral, não se tem dado atenção à dimensão religiosa dos quilombos. Uma notável exceção é o trabalho de Monteiro (1985), sobre a comunidade Castainho, em que ela descreve um culto afro com o nome de senzala. Em nenhuma delas é apresentado um grupo que se autodenomine presbiteriano.

Esse diferencial observado no Quilombo Mel da Pedreira aponta para a necessidade de uma pesquisa que desmembre em pormenores tal fenômeno cultural-religioso. Se a tradição da religiosidade negra no Brasil se define pela identificação com os cultos afro-brasileiros e com o catolicismo popular, um grupo que se autodenomina quilombola e presbiteriano apresenta uma curiosidade acadêmica que permeia discussões sobre a identidade ideológica-política e cultural e religiosa do grupo.

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Entender a religiosidade presbiteriana no grupo é, portanto, entender melhor sobre o que é o presbiterianismo e, semelhantemente, sobre o que é ser quilombola no Brasil.

Como observa Borges Pereira, a identidade é um construto social que se dá de maneira reflexa. Na estrutura social, um grupo se enxerga e constrói sua identidade a partir da visão do outro sobre ele. Consequentemente, o outro tem sua identidade construída a partir da visão de quem o enxerga (Borges Pereira, 2005, p.104). Dessa forma, nos interessa compreender a dinâmica da construção da identidade no quilombo Mel da Pedreira, tanto por parte dos membros da comunidade, quanto daqueles que os veem de fora.

O interesse na temática, porém, não é exclusividade da academia. Desde 1988, com a promulgação da Constituição, surgiram muitos grupos afrodescendentes que se organizaram em ações comunitárias, revelando seus interesses na legalização das terras que ocupam. Assim, o Governo Federal, por meio do INCRA, iniciou uma série de perícias e laudos antropológicos para averiguar a situação e especificidades de cada área. Esse interesse não só acadêmico, mas também político e ideológico de exaltação do negro no cenário nacional, reforça a necessidade da questão das comunidades remanescentes de quilombos ser abordada a partir de perspectivas as mais variadas possíveis, inclusive, pelo campo de estudo das Ciências da Religião.

3. O campo de pesquisa e suas peculiaridades: negociação e identidade

O quilombo Mel da Pedreira, que se situa a aproximadamente 40km de Macapá, no estado do Amapá, ocupa uma área de 2.199,4570 ha, toda ela titulada pelo Governo Federal do Brasil e pertencente aos membros do quilombo. É uma área de

vegetação serrana e é ladeado pelo rio Pedreira. No quilombo moram

aproximadamente 70 pessoas, em casas que variam em tamanho, mas todas feitas de madeira. Há uma igreja Presbiteriana e uma escola estadual dentro do quilombo. O acesso se dá por uma estrada asfaltada até a linha do trem, marco do início do quilombo. A partir da entrada do quilombo, as ruas são todas de terra.

No Amapá existem setenta e duas comunidades remanescentes de escravizados. O Mel da Pedreira se localiza na região da Pedreira, como já foi dito, e está entre

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outros quilombos que ficam, tanto na região da Pedreira quanto em outras áreas e mantém relações de amizade e de evangelização. As mais citadas por eles são: Alegre, Ambé, São Pedro dos Bois, Ressaca da Pedreira, Rosa, Santo Antônio do Matapi e Tessalônica. Em nossas idas ao Amapá visitamos, além do Mel da Pedreira, as três primeiras mencionadas.

Desde seu início, o quilombo Mel da Pedreira apresentou características sincréticas quanto às tradições religiosas. Eram católicos, devotos de Santo Antônio, e, concomitantemente, participavam de cerimoniais de pajelança cabocla, com elementos comuns a outras partes da Amazônia, como a incorporação de encantados, entidades espirituais que falavam e interagiam com a comunidade e que se manifestavam através do patriarca do quilombo. Por dez anos de formação do quilombo essa foi a prática vigente, até que houve uma espécie de conversão coletiva da comunidade à fé presbiteriana.

Esta mudança trouxe nuances específicas ao quilombo, e alterou significativamente a forma como os quilombolas do Mel da Pedreira passaram a ver e construir sua própria identidade. Hall (2006, p.73) afirma que, “as identidades nacionais permanecem fortes, especialmente com respeito a coisas como direitos legais e de cidadania, mas as identidades locais, regionais e comunitárias têm se tornado mais importantes”. Este ponto é crucial para o entendimento da identidade étnica formada no quilombo Mel da Pedreira: a identidade do grupo enquanto comunidade quilombola me pareceu mais forte, visível e presente do que a identidade nacional. Ser quilombola torna-se mais palpável do que ser brasileiro. No entanto, não é apenas o ser quilombola. A identidade não passa pelos outros grupos quilombolas ou comunidades afrodescendentes, mas pela terra que é deles por direito e por laços de sangue, ou seja, laços familiares. O discurso apresentado e escolhido como o retrato de definição do grupo é a terra através do laço familiar e a identidade protestante.

A identidade com a terra, pelos laços familiares nos parece, portanto, a mais antiga e enraizada no quilombo de forma alguma está excluído do processo de globalização e, justamente por isso, elabora sua identidade de acordo com as novas formulações de conceitos étnicos. Hall (2006, p.79-80) continua:

Por outro lado, as sociedades da periferia têm estado sempre abertas às influências culturais e ocidentais e, agora, mais do que nunca. A ideia de que esses lugares são

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“fechados” – etnicamente puros, culturalmente tradicionais e intocados até ontem pelas rupturas da modernidade – é uma fantasia ocidental sobre a “alteridade”: “uma fantasia colonial” sobre a periferia, mantida pelo Ocidente, que tende a gostar de seus nativos apenas como ‘puros’ e seus lugares exóticos apenas como ‘intocados’. Entretanto, as evidências sugerem que a globalização está tendo efeitos em toda a parte, incluindo o Ocidente, e a “periferia” também está vivendo seu efeito pluralizador, embora num ritmo mais lento e desigual.

A posse definitiva e legalizada da terra para os quilombolas do Mel da Pedreira é, para além das questões políticas e conceituais, a garantia que sua história, seus símbolos e raízes serão preservados e respeitados.

Mas o tratamento e negociação destes símbolos se refletem na prática religiosa do grupo. Outrora praticantes tanto de ladainhas quanto dos rituais de pajelança cabocla, floresce depois da conversão dos quilombolas do Mel da Pedreira a fé cristã protestante. O discurso de rejeição e diferenciação do catolicismo pela tradição protestante sempre foi um elemento de construção da identidade do protestantismo brasileiro. Mendonça (1995) descreve o início do protestantismo no Brasil no período colonial como sendo marcado pela vinda dos holandeses para o nordeste chegando a ser organizado o primeiro sínodo no Brasil e estabelecendo uma comunidade forte, mas tendo sido prevalecido pelo Catolicismo. No Brasil imperial, a religião oficial era a católica, mas com certa tolerância para aqueles de outras religiões, mas ainda assim com restrições quanto aos locais de culto, construções de templos e à evangelização. Até essa época o protestantismo nos país era restrito ao mundo dos missionários e com tradução quase inexistente para a realidade brasileira, Robert Kalley começa suas atividades religiosas em português, preparando o caminho para a chegada de outros, como Simonton, por exemplo.

Apesar de o protestantismo não ter chamado a atenção das camadas sociais mais altas, conquistou espaço entre os pobres da zona rural. Mendonça brilhantemente elenca os principais motivos para que isso tivesse acontecido: o cotidiano do homem pobre rural era restrito aos sítios vizinhos e o cultivo da agricultura, não tendo muita relação com o mundo exterior nem dependendo dele politicamente, sendo assim ele tinha liberdade de ir e vir, sua mobilidade relacionada ao desapego à terra e estava à margem da vida social nos centros. Os aspectos religiosos também são

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apontados: sua religião era difusa e não sistematizada e sua relação com a religião era lúdica e pessoal, fugindo de rituais formalizados e rígidos.

Por outro lado, se esses fatores foram pequenos canais facilitadores para a penetração do protestantismo na zona rural, existiam também algumas dificuldades a essa assimilação: as diferenças entre o catolicismo e o protestantismo não eram tão explícitas ou radicalmente diferentes quanto se fossem outras religiões não-cristãs, ênfase excessiva no institucionalismo e no intelectualismo (já que os protestantes não abriram mão do seu intelectualismo mesmo em uma área constituída de analfabetos), o culto protestante era caracterizado pelo racionalismo e, finalmente, a ética e o lazer defendidos pelos missionários fosse talvez muito restrita para o homem rural que gostava de consumir bebidas alcoólicas em seus momentos de diversão e folga.

Entretanto, os aspectos tradicionais da religiosidade quilombola de alguma forma continuam subsistindo ao lado do protestantismo, apesar do discurso de oposição. Muitas experiências foram relatadas durante as visitas ao quilombo, não apenas relacionadas à cabeça de fogo, mas também sobre mulheres feiticeiras que viram animais, como onças e porcos, mulheres das quais só se enxerga a parte de baixo do corpo.

Em um estudo dessa natureza, que aborda diretamente questões de conversão religiosa, falar de sincretismo é algo esperado. A palavra sincretismo assume dimensões complexas, principalmente para grupos religiosos conservadores. A noção de que existe uma pureza teológica e doutrinária a ser preservada faz parte do discurso das religiões cristãs, especialmente, e isso gera uma associação do termo a ideias de contaminação ou infiltração. Shaw e Stewart (1994, p.7) abordam essa problemática e afirmam que o sincretismo não é um termo com um significado fixo, mas que tem sido “constituído e reconstruído historicamente”.

Qual seria hoje o seu uso? Simplesmente identificar um ritual ou tradição como ‘sincrético’ nos diz muito pouco e leva a praticamente lugar nenhum, já que todas as religiões têm origens compostas e estão continuamente reconstruídas por processos contínuos de síntese e apagamento. Assim, ao invés de tratar o sincretismo como

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uma categoria – um “ismo” – gostaríamos de focalizar em processos de síntese religiosa e discursos de sincretismo.1

Não se pode afirmar que exista sincretismo no quilombo Mel da Pedreira. Não se pensarmos em sincretismo como mistura ou infiltrações claras de religiões diferentes. Em nenhum momento percebeu-se referência a religião alguma que não fosse o cristianismo, apesar de haver notadamente uma mistura de estilos e doutrinas dentro do espectro do evangelicalismo brasileiro na forma de culto. Após muita investigação, constatou-se que não há resquícios visíveis dos rituais de Pena e Maracá ou do catolicismo popular.

No quilombo Mel da Pedreira houve, sem dúvida, uma inculturação significativa como resultado da conversão do grupo à fé protestante. Na opinião deles, as mudanças foram positivas, é tanto que a analogia que define a passagem religiosa da comunidade é a profecia do caboclo, quando disse que eles os abandonariam e começariam a andar em uma pista linda. As mudanças foram drásticas e se estenderam a vários âmbitos da vida quilombola na época, como uma mudança no cerimonial, uma vez que trocaram as missas e incorporações do espíritos por um culto protestante, formal e litúrgico, aboliram o consumo de bebidas alcoólicas e tabaco, deixaram de oferecer e frequentar festas consideradas “mundanas” e adotaram para si um código de ética e moral de acordo com a IPB. Um exemplo disso é a oficialização do casamento civil, que até a conversão e filiação à igreja não era algo esperado ou exigido.

Pode-se dizer que houve pouco dessa tradutibilidade do cristianismo protestante na cultura negra do quilombo, mas talvez as mudanças litúrgicas vistas em campo sejam uma forma, ainda que embrionária, de aproximar a fé que abraçaram e um passado negado por eles quase que completamente. Recuperar os tambores, o ritmo do marabaixo, danças e uma atmosfera de extrema alegria podem ser uma tentativa de revisitar o passado perdido e resgatar o que pode ser redimido para traduzir-se em expressões que sejam compatíveis com as convicções evangélicas que tanto prezam.

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Caminhando para uma leitura dos fenômenos religiosos e de ligação à terra que dialogue com questões teóricas de identidade, retomamos o trabalho de Cardoso de Oliveira, que entende a identidade como tendo aspectos pessoais e sociais interconectados. Existem vários aspectos da complexa construção da identidade dos quilombolas. Afinal, é uma identidade que se baseia em uma mistura de atribuições internas e externas ao grupo. Mais especificamente falando sobre o Quilombo Mel da Pedreira, vimos até agora os seguinte elementos em sua história: descendência que sofreu um desenraizamento de sua origem geográfica e religioso-étnico-cultural, trabalho escravo, rebelião e fuga para os quilombos, construção de uma comunidade rural, conversão do catolicismo popular sincrético para o protestantismo, conhecimento da formulação conceitual moderna de quilombo e aceitação dela, titulação e posse da terra que habitam, envolvimento político e de emancipação de projetos junto aos órgãos do governo.

Cada um desses passos tomados formaram, ao longo dos anos, a visão que os quilombolas do Mel da Pedreira tem de si mesmos. Não só sobre si, mas sobre os outros quilombos, sobre os moradores urbanos em Macapá e o restante do Brasil. Na verdade, poderíamos afirmar que todas essas visões estão interligadas e juntas espelham as diferentes identidades étnicas, culturais e religiosas dos quilombos, tanto no nível individual quanto social.

4. Considerações finais

Ao abraçarem a fé protestante, os negros do Mel da Pedreira escolheram romper com uma parte essencial que os definia até então: a continuidade de práticas de Pena e Maracá, sendo esse um dos pontos maiores de identificação com o entorno. Não apenas de identificação pela similaridade dos rituais praticados entre eles, mas também por ser um canal de ajuda para vizinhos que viam o quilombo como um lugar de cura e resolução de problemas. Então a pergunta “como os quilombolas do Mel da Pedreira se veem” é respondida somente ao conectarmos a visão que eles têm de si mesmos e a visão que os de “fora” têm sobre eles.

Assim, há dois elementos que considero centrais na identidade do grupo de quilombolas no Mel da Pedreira: a ligação com a terra e a religião. Ao eleger esses dois elementos como centrais não sugere-se que sejam os únicos, mas que foram

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os mais proeminentes ao interpretar os dados coletados em campo. Os quilombolas se converteram, abandonando e apagando o passado histórico que envolvia os tambores, as danças, a ligação com manifestações sobrenaturais. Sendo a tradição presbiteriana uma religião conservadora, esses elementos tiverem que ser negados, até mesmo para que houvesse uma identificação com o que passou a ser o novo grupo de referência, tanto para assuntos religiosos como também éticos e morais: a igreja presbiteriana na capital.

Embora a escolha do discurso pelos quilombolas privilegie o elemento religioso como central na vida quilombola do Mel da Pedreira, a terra ocupa tanta importância que mesmo antevendo uma possível desintegração da homogeneidade protestante existe uma escolha consciente que eleva as relações familiares ligadas à posse e direito da terra. Com a introdução de familiares que se tornarão moradores do quilombo através do programa de construção de quase cem residências, o quilombo assumirá uma face diferente: menos elementos de agricultura de subsistência e mais ênfase no comércio, menos distância entre as casas e, assim, a introdução de uma estrutura parecida à de um bairro e, finalmente, uma diversificação religiosa, uma vez que muitos novos moradores seguem outras vertentes do Cristianismo e tais mudanças são vistas e discutidas entre a liderança do quilombo de forma consciente e planejada.

E, a partir desse último ponto, conclui-se que um olhar sobre a religiosidade quilombola no Mel da Pedreira se completa a partir da investigação da relação da comunidade com a terra. O apego, valor e unidade de pensamento das famílias quanto à preservação da terra como herança deixada pelos patriarcas, como lugar de construção de memória étnica e familiar e como lugar onde os princípios da religião protestante norteiam a vida e a espiritualidade são chave para o entendimento do que é ser negro, quilombola e presbiteriano no Mel da Pedreira.

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Referências

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