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Introdução. A visão histórica do poder feminino na era medieval: um estudo da condenação da rainha Genevra na obra a demanda do santo graal

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A visão histórica do poder feminino na era medieval: um estudo da condenação da rainha Genevra na obra “a demanda do santo graal”

Denise Souza de Oliveira1

Resumo

O presente artigo tem como principais objetivos estudar a condenação da rainha Genevra na obra A demanda do Santo Graal, novela de cavalaria da primeira metade do século XIII, e ainda apresentar discursos que levaram a figura feminina a ser associada ao verdadeiro pecado, portadora do mal. Desta forma, buscamos destacar como a figura do diabo, associada à mulher, é vista na narrativa. Usando um método bibliográfico, recorremos às reflexões como as de Duby (1990), Le Goff (1989; 2006), Bloch (1995), Nogueira (1986) e Vainfas (1986) que confluem nesta pesquisa, ajudando a demonstrar a relação entre os pecados da rainha e o ideal de castidade e espiritualidade proposto pelo ideário medieval.

Palavras-Chave: rainha Genevra, pecado, diabo,Idade Média.

Introdução

O presente artigo tem como principais objetivos estudar a condenação da rainha Genevra na obra A Demanda do Santo Graal, novela de cavalaria da primeira metade do século XIII, e ainda apresentar discursos que levaram a figura feminina a ser associada ao verdadeiro pecado, portadora do mal.

Na obra A Demanda do Santo Graal, o amor provém de Deus, sendo dessa maneira, o mecanismo por meio do qual o ser humano pode ascender a Ele.

O teólogo SantoAgostinho apud Arendt (1978), afirma que o homem é aquilo que ama e, portanto, adverte que é necessário ter cuidado em relação ao que se ama, pois o destino do homem está naquilo que ele coloca sua atenção. Agostinho encontra duas formas de amor: cupiditas e caritas.O amor, entendido como cupiditas, nega qualquer possibilidade de aproximação de Deus, pois se trata de um amor pelas coisas do mundo terreno e, portanto, deve ser absolutamente rejeitado; enquanto que sua manifestação como caritas, conduz à perfeição cristã, que é, na verdade, a única via de acesso real a Deus, pois é o amor que advém da graça Divina, o amor pelo eterno.

O amor pecaminoso de Genevra por Lancelote, melhor amigo do rei Artur, é o fio condutor de toda desgraça que ocorre no reino de Logres. A personagem de Genevra, como representação feminina, ecoa na moral religiosa e social da época Medieval, como um modelo a ser temido, que pode afastar um nobre cavaleiro, efetivamente, da única via de acesso a Deus.

Queremos saber neste artigo: será que ao longo da primeira metade do século XIII até o século XXI, a ideia de mulher como pecadora e portadora do diabo nos tempos medievais, ainda

1 Graduada em Letras e pós graduanda em Língua Portuguesa, professora do Governo do Estado de São Paulo. E-mail: deniseoliveira.95@live.com.

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deixa rastros nos dias atuais, ou se dissipou com o passar dos séculos? Nossa hipótese é que sim, pois, da interpretação histórica do ser feminino, percebemos ainda nos dias atuais sobrevivências da ideia da mulher como o mal, em que se conclui de que a mulher sempre é alvo do errado, do frágil e do enganador.

Usando um método bibliográfico, recorremos às reflexões como as de Duby (1990), Le Goff (1989; 2006), Bloch (1995), Nogueira (1986) e Vainfas (1986) que confluem nesta pesquisa, ajudando a demonstrar a relação entre os pecados da rainha e o ideal de castidade e espiritualidade proposto pelo ideário medieval.

O presente trabalho encontra-se dividido em duas partes, na primeira apresentamos o contexto histórico em que foi produzida a narrativa A Demanda do Santo Graal, e um breve resumo da obra. Na segunda parte abordamos como a imagem da mulher pecadora foi construída no medievo e assim analisar a construção da personagem Genevra e sua relação com o diabólico.

1 A demanda do santo graal

A Demanda do Santo Graal é uma novela de cavalaria produzida na França em meados do século XIII. De início tinha cunho pagão, e com o tempo a igreja transformou a lenda, trazendo, dessa forma, os valores empregados por ela. E devido a essa transformação, Moisés (2008) afirma que:

Em vez de aventuras marcadas por um realismo profano, tem-se a presença da ascese, traduzida no desprezo do corpo e no culto da vida espiritual, e exercida como processo de experimentação das energias físicas e morais de cada cavaleiro no rumo à eucaristia, ou seja, o cavaleiro passará por diversas provações, para saber se é digno ou não de alcançar a Eucaristia com Deus. (MOISÉS, 2008, p. 35)

A Igreja como centro de tudo, é quem dita as normas e condutas da sociedade, baseando-se na Escritura Sagrada, e para que o cavaleiro possa alcançar a sua Eucaristia com Deus, ele passará por diversas provações no mundo terreno, em que segundo a concepção da época, é o mundo do diabo, que tem como objetivo desmoralizar o homem diante de Deus. Para tanto, o homem, necessariamente deve manter-se casto e dedicar sua vida totalmente às coisas espirituais. Portanto, no século XIII, essa novela serviu como meio de difusão de

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conceitos clericais preocupados em reprimir o comportamento humano ligado, principalmente, aos pecados da carne, que eram considerados o fundamental motivo do desvio do homem do caminho de Deus.

O principal objetivo de qualquer cavaleiro em A Demanda do Santo Graal é encontrar o Vaso Sagrado, que está associado ao cálice bebido por Cristo na Última Ceia, para assim, poder alcançar a salvação de sua alma.

A narrativa se desenvolve no momento em que o Vaso é levado ao Reino de Logres, garantindo, assim, a prosperidade a Camelote. E a história começa quando todos estavam à volta da távola redonda, e o Santo Vaso aparece coberto por um pano branco garantindo aos cavaleiros a plenitude espiritual. No entanto, por conta dos pecados do rei e da maior parte da corte, o vaso se afasta. Todos os cavaleiros ali presentes juram a demanda, embora poucos cheguem a cumpri-la, e vão em busca do Vaso Sagrado, que simboliza a Eucaristia do homem com Deus.

Os cavaleiros da Távola Redonda empreendem a busca pelo cálice sagrado, a procura do paraíso, da conquista da salvação da alma. É uma luta individual do homem consigo mesmo, em que deve ir contra todas as fraquezas próprias da sua condição humana e carnal, que o coloca com uma presa fácil para o grande inimigo da humanidade: o Diabo.

As diversas e árduas aventuras enfrentadas pelos cavaleiros estabelecem provações pelas quais buscam se purificar para alcançar a salvação, que será conquistada somente por meio de sacrifícios e abstenções dos prazeres terrenos. Somente o cavaleiro honrado e livre da concupiscência chegaria ao Vaso Sagrado, por isso, o ermitão enviado à corte arturiana adverte que não deve entrar em “tão alto serviço de Deus” se o cavaleiro não “for bem confessado e bem comungado e limpo e purificado de todos os danos e de pecado mortal”. Abandonar o mundo e estar inteiramente voltado para esta demanda era exigência clara desde o início da aventura.

De acordo com Saraiva e Lopes (1978, p. 91), na Demanda: “todo amor é considerado pecaminoso, pois as relações amorosas são incompatíveis com os desígnios divinos, elas maculam a carne e o corpo do homem”, portanto, todos também são aconselhados a não levar “[...] consigo mulher nem donzela, senão fará pecado mortal (DSG 1988, p. 47), isso porque a pureza dos cavaleiros escolhidos está essencialmente, relacionada à sua relação com o feminino, pois, segundo uma visão generalizada do período, como visto, a mulher é

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considerada mais suscetível à ação diabólica, por ser herdeira direta de Eva, a responsável pelo pecado original, e poderia tentar contra a castidade dos cavaleiros.

Lancelote, porém, um dos melhores cavaleiros e também vassalo de rei Artur, mantinha uma relação adúltera com Genevra, esposa do rei, indo contra a qualquer conselho, desviando-se, dessa forma, de um dos princípios básicos da cavalaria, a fidelidade ao seu rei Artur. O pecado do cavaleiro é, portanto, duplo, efetivamente mais grave que de outros cavaleiros, pois ele comete adultério e ao mesmo tempo trai o rei, seu senhor.

Porém, Lancelote ainda tem a chance de alcançar a salvação, diferentemente da rainha Genevra, que tem como foco o estudo presente. Ela, integrante de uma sociedade totalmente misógina, apenas pelo fato de ser mulher e descender de Eva, já está de antemão condenada. De acordo com a visão da época, a mulher é vista fisicamente como o macho imperfeito, incompleto, pois se considera que ela não pensa e age de maneira completa como o homem e a fraqueza física “influencia sua alma e sua capacidade de alcançar a compreensão do divino” (KAPLISCH-ZUBER, 2002, p. 143). Por isso, sua capacidade de alcançar o paraíso é praticamente impossível, pois a mulher é um ser que seduz, senão pelo corpo, pela linguagem. A mulher, além de ser incapaz de controlar suas vontades, traz, naturalmente consigo as artimanhas diabólicas. Genevra mostra-se, durante a narrativa, uma típica esposa traidora que leva um nobre cavaleiro a cometer o pior dos pecados.

O amor pecaminoso de Genevra

A sociedade Medieval é conhecida por ser misógina, ou seja, tem repulsa, desprezo contra as mulheres, e assim se porta porque são os parâmetros cristãos que regem tal pensamento. A mulher imaginada pela doutrina cristã, não só retoma da Antiguidade Clássica a concepção de inferioridade como também incorpora nela a culpa. Ou seja, não só é incapaz, se subordinada ao poder do homem, como também é vista como um ser débil e suscetível ao mal e a corrupção. É sua debilidade e sua capacidade de sedução que conduz ao castigo toda a humanidade.

Para que se possa entender de maneira mais clara essa rotulação do feminino como um ser frágil e portador do mal, torna-se necessário reportar-se mais profundamente ao cerne da história, ou seja, à Sagrada Escritura, onde temos a Gênesis, que descreve o princípio do mundo e a criação do homem e da mulher por Deus.

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Então o senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. (GÊNESIS, 2: 20-23)

Sendo a mulher, portanto, criada a partir de uma das costelas do homem, ela é, de acordo com a visão medieval, considerada um ser inferior, devendo assim, ser submissa ao homem, pois, segundo Golf e Troung (2006, p.53): “a parte superior (a razão e o espírito) está do lado masculino, a parte inferior (o corpo, a carne), do lado feminino”. Logo, “o homem é forma ou mente, e a mulher, imagem degradada de sua segunda natureza, é regalada à esfera da matéria” (BLOCH, 1995, p.36), representando o pecado.

Pode-se comprovar o papel irrelevante da mulher em A Demanda do Santo Graal na medida em que durante a trama, algumas mulheres existem apenas para tentar desviar os cavaleiros do caminho da salvação, como por exemplo, nos episódios: “Tentação de Persival” e “Galaaz e Boorz em casa de rei Brutos”. Episódios que demonstram perfeitamente o que se pensa sobre as mulheres e a sua beleza, posto que ambos os cavaleiros correm o risco de perder o Paraíso por conta das artimanhas do demônio utilizadas por elas.

Outro elemento importante na Gênesis é a passagem em que Eva é tentada pela serpente a comer do fruto. A culpa está relacionada com a sedução, foi ela que por sua debilidade recebeu o fruto proibido e seduziu o próprio marido, Adão.

A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito (...). A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-se do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava e ele comeu. (GÊNESIS 3,6)

Tendo em vista a serpente ser o próprio diabo, percebe-se que, além de ele utilizar-se de um discurso astuto, também usa da formosura da árvore para tentar Eva. Portanto, a arte de ludibriar e a formosura serão algumas das características da mulher, advindas do diabo, para levar o homem a cometer o pecado mortal, impedi-lo que retome ao Paraíso, no qual foi tirado, inteiramente por culpa da mulher, segundo a visão da época.

Embora a rainha Genevra tenha o papel mais importante que as demais mulheres, a visão da Igreja em relação a ela não ia além daquela que tem pelas outras mulheres, ou seja, a típica esposa traidora, que se deixa levar pela sua fraqueza, capaz de levar nobre cavaleiro a cometer o pior dos pecados.

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De acordo com Dalarun (1992):

La mujer, una cosa frágil, nunca constante, salvo em El crimen, jamás deja de ser nociva espontáneamente. La mujer, llama voraz, locura extrema, enemiga íntima, aprende y enseña todo lo que puede perjudicar. La mujer, vil fórum, cosa pública, nacida para engañar, piensa haber triunfado cuando puede ser culpable. Consumándolo todo em el vicio, es consumida por todos y predadora de los hombres, se vuelve Ella misma su presa. (DALARUN, 1992, p.49)

A rainha, movida por um amor irrefreável e pecaminoso, traiu seu esposo Artur com o melhor amigo do rei, Lancelote, um dos melhores cavaleiros da Távola Redonda. Estando o cavaleiro muito apaixonado por ela, aceita entrar no tortuoso terreno do amor cortês. Um tipo de amor no qual o amante, segundo Vainfas (1978):

Se dispunha a qualquer sacrifício para provar o seu amor [...] um herói disposto ao sacrifício, mas não buscava o encontro carnal com sua amada; fazia simplesmente uma declaração, uma confissão de amor, fosse pelo gesto, pela amável conversa ou pelo simples olhar. (VAINFAS, 1978, p.55)

Esse tipo de amor era totalmente condenado pela Igreja, é possível afirmar que é o amor conhecido como cupiditas, pois poderia proporcionar ao homem deleite com a beleza da mulher, prazer e contato com o corpo feminino, tudo que levava ao pecado. O amor cortês seria desta forma, uma porta de entrada para o pecado da carne. Pois é possível comprovar em algumas cantigas, por exemplo, que nem sempre esses amores ficavam apenas no desejo e na corte.

Correia (1978) nos traz a cantiga abaixo escrita por D. Dinis, que apresenta esse sentimento que pode ser aproveitado em vida, com um corpo que, como afirma Soardi (2012) “além de constituído pelo espírito, também é formado pela carne que deseja, que busca viver o amor aqui na Terra”:

(...) Mais o que non He e seer poderia, See fosse assy que a ela vesse. Bem do meu bem, eu (muito) desejaria, Aver o mayor (bem) que aver podesse, Ca pois a nós ambos hiviinha proveito; Tal bem desejando, farya dereyto E sandeu seria quem o nom fezesse. (CORREIA, 1978, p. 246)

Correia (1978) mostra que na cantiga de João Garcia de Guilhade, há não somente a vontade de viver um amor carnal, mas a concretização dessa relação que já se estabeleceu:

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(...) Sempr’ (a) verá Don Joan de Guilhade, Mentr’el quiser, amigas, das mias dõas, Ca já m’end’elmuitas deu e mui bõas, Dês i terrei-lhi sempre lealdade, Mais El demanda-m’ outra torpidade. (CORREIA, 1978, p. 128)

Prova-se, portanto, que, muitas vezes o desejo se concretizava e se tornava adultério, como o da rainha Genevra e Lancelote.

Quando Genevra e Lancelote são descobertos juntos no mesmo leito, ela diz ao cavaleiro amante: “ai amigo! estamos mortos!” (DSG, 1988, p.476), porém, o que de fato poderia acontecer à Rainha, efetivamente não importava, pois, sendo mulher e formosa, não havia outro destino fora a condenação ao inferno.

Quando o Rei Artur descobre por um de seus sobrinhos que está sendo traído, no mesmo instante, fica evidente que Genevra será julgada pelos homens mais nobres do reino de Logres e que já está de antemão condenada. Antes mesmo que ela seja julgada. Boorz, ao descobrir que o rei já sabia de tudo, sente pena da rainha, pois não há outro destino para as mulheres que pecam senão a morte na fogueira. Assim afirma Boorz: “(...) Mas pela rainha, que será por nós julgada de morte, muito me pesa (...)” (DSG, 1988, p. 477).

Porém, a rainha consegue salvar-se da fogueira e Lancelote a leva para um castelo, mas não conseguem ficar juntos e ela é obrigada a voltar com o seu marido. Contudo, a conduta pecaminosa de Genevra e os terríveis perigos esperados para ela se mostram mediante uma visão de Lancelote, no episódio “Sonhos de Lancelote” (DSG, 1988, p.169) em que o cavaleiro visualiza a rainha sendo queimada no inferno. Nessa visão ele é levado até uma cova muito escura (DSG, 1988):

E ele olhava na cova e via uma grande cadeira de fogo tão acesa, como se nela queimasse todo o fogo do mundo. E no meio daquele fogo havia uma cadeira em que sentava a rainha Genevra toda nua e suas mãos diante do peito, e estava descabelada e tinha a língua puxada fora da boca, e queimava-lhe tão claramente como se fosse uma vela grossa, e tinha na cabeça uma coroa de espinhos que ardia a grande maravilha e ela mesma queimava em todo o corpo ali onde sentava. (DSG, 1988, p.170)

Ainda no sonho, Genevra, em estado de grande aflição, diz a Lancelote: “Tais são os galardões do vosso amor (...) estou perdida e condenada ao grande sofrimento do inferno” (DSG, 1988, p.171). Nesse momento Lancelote consegue escapar das mãos de Morgana que o levara até lá e chega a uma horta muito formosa “são e alegre” e encontra seu pai, que lhe diz: “te meteste todo em serviço do demo, quando te ajuntaste com a rainha Genevra” (DSG, 1988, p.172).

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Percebe-se que, permanecendo Lancelote a serviço do amor da rainha, igualmente está a serviço do demônio.

Segundo Nogueira (1995, p. 25-26): “Satã e seus demônios constituem a ameaça cotidiana, tramando para a perdição dos homens sobre os quais paira a terrível angústia dos tormentos da perdição eterna. E sua vítima, por excelência, é a mulher”. E ainda, de acordo com Chevalier (1991), o diabo tem por objetivo tirar do homem da graça de Deus para dominá-lo e, assim, simbolizando:

Todas lãs fuerzas que turban, obscurecen y debilitan laconsciencia y determinan su regresso hacia lo indeterminado y lo ambivalente: centro de noche, por oposicion a Dios, centro de luz. (CHEVALIER, 1991, p. 414)

limitando-se ao papel de “disposer al hombre de La gracia de Dios para someterlo a su próprio dominio (CHEVALIER, 1991, p. 414).

Pode-se compreender que, o demônio utiliza-se da fraqueza da rainha para dominar Lancelote, e dessa maneira, conduzi-lo ao inferno.

Outra característica também utilizada pelo demônio está relacionando a formosura da mulher. A rainha Genevra, além de ser mulher, era caracterizada como uma mulher formosa: “E ela era tão formosa mulher” (DSG, 1988, p.479), e de acordo com Le Fèvre (1990 apud BLOCH), não há nenhum momento em que a mulher não atrapalhe a visão e não distorça e destrua os sentidos, pois a sofisticação sedutora do feminino é tida como sinônima da própria ilusão.

Montfort (2009, p. 479 apud DELUMEAU) “declara guerra” a todas as mulheres formosas, provedoras do inferno:

Mulheres belas, rostos formosos. Como vossos encantos são cruéis! Como vossas belezas infiéis. Fazem perecer criminosos! Pagareis por essas almas. Que fizestes pecar. Que vossas praticas infames. Fizeram afinal cambalear (...). (MONTFORT, 2009, p. 479 apud DELUMEAU)

Ao despertar-se do sonho, Lancelote com grande pesar e chorando depois que teve aquela visão disse ao seu amigo Persival: “por este sonho cuido mais valer todos os dias da minha vida” (DSG, 1988, p. 172).

Eis que Morderete, sobrinho do rei Arthur se apaixona também por Genevra e deseja casar-se com ela. E diante de tantos conflitos entre as linhagens e o desejo do sobrinho do rei, o reino de Logres é destruído e o rei Artur morre, devido à guerra entre ele e Morderete.

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Genevra, com medo de ser morta pelos filhos de Morderete, foge para um convento, mas sempre torcendo para que seu amado voltasse para buscá-la. Mas isso não acontece a tempo, e estando a rainha a pouco tempo de lhe soltar a alma do corpo pede a uma donzela que leve seu coração a Lancelote: “vos rogo que, tão logo eu morra, me tireis o coração e o leveis para ele neste elo que foi dele; e lhe digais que, em lembrança de nossos amores, lhe envio meu coração que nunca o esqueceu” (DSG, 1988, p. 510).

Percebe-se que Genevra não se arrepende de seus pecados e, até o fim, ela segue vivendo na mentira e no adultério, mostrando sua incapacidade de se salvar. Sendo a mulher um instrumento do diabo pelo qual o pecado chega aos homens, nada mais natural de que a salvação seja praticamente impossível de ser alcançada por ela, pois assim como afirma Kaplisch-Zuber (2002) a fraqueza física da mulher influencia sua alma e sua capacidade de alcançar a compreensão do divino.

Já Lancelote fica quatro anos em uma ermida “de modo que ninguém poderia suportar mais canseira e esforço do que ele sofria e em jejuar e em velar, em fazer preces e orações e em mortificar seu corpo de todas as maneiras que podia” (DSG, 1988, p. 514)

(...) para ele a salvação não está completamente perdida, pois embora seja pecador, ele não traz em si o mal, mas o “pegou” de Genevra, já que o adultério é um (...) crime considerado essencialmente feminino; uma denúncia contra o homem é virtualmente impossível (...). (ROSSIAUD, 2002, p. 485)

Assim, Lancelote, consegue alcançar a salvação, e isso previu-se em um sonho do arcebispo: “levavam com tão grande alegria e com tão grande festa (...) a alma de dom Lancelote” (DSG, 1988, p. 515).

Considerações finais

A simbologia referente à serpente que, desde o Gênesis surge como um animal astuto, habilidoso, venenoso e enganador, símbolo do mal e do pecado, mostra-se aqui bastante representativa da imagem que se pretende passar da rainha, que se enquadra na ideia comum da mulher manipuladora, enganadora e fonte de todo o mal.

Pôde-se perceber que a rainha Genevra é vista como a Eva tentadora, em que o Diabo, facilmente, utiliza-se de seus atributos e de sua fraqueza para semear o pecado e impedir que o homem alcance o paraíso.

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É possível observar que ao longo de toda a Idade Média, e caindo nos dias atuais a mulher sempre foi vítima do erro, do pecado e de ser responsável pela perda do paraíso. A misoginia evidenciada em todo o período medieval é repetida hoje, em que é visível o peso do patriarcalismo e que de certa forma, ainda as afetam em diversas conquistas.

Referências

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