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PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL: DO ANTEPROJETO DE MÁRIO DE ANDRADE À CONSTITUIÇÃO DE 1988 ASPECTOS RELEVANTES

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PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL: DO ANTEPROJETO DE

MÁRIO DE ANDRADE À CONSTITUIÇÃO DE 1988 – ASPECTOS

RELEVANTES

INTANGIBLE CULTURAL HERITAGE: FROM MARIO DE

ANDRADE'S FIRST DRAFTS TO THE CONSTITUTION OF 1988 -

RELEVANT ASPECTS

Grace Laine Pincerato Carreira1

Resumo: Relata brevemente o histórico da tutela do Patrimônio Cultural Material e Imaterial

no Direito Constitucional Brasileiro. Ressalta a contribuição do escritor brasileiro Mário de Andrade na criação do Decreto-Lei 25 de 1937, que instituiu o tombamento como meio de preservação de bens móveis. Analisa a composição do Decreto-Lei 25 de 1937 e Decreto 3551 de 4 de agosto de 2000.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural Material e Imaterial. Constituição Federal de 1988

Direitos Culturais. Mário de Andrade.

Abstract: It briefly talks about the history of the protection of the Tangible and Intangible

Cultural Heritage and the Brazilian Constitutional Law. It emphasizes the contribution of the Brazilian writer Mário de Andrade in the creation of the Decree-Law 25 of 1937, which established that registering as mankind’s was a means of preservation of property. Analyzes the composition of Decree-Law 25 of 1937 and Decree 3551 of August 4, 2000.

Keywords: Tangible and Intangible Cultural Heritage, Federal Constitution of 1988, Cultural

Rights, Mario de Andrade.

INTRODUÇÃO

A trajetória para incluir o patrimônio cultural no rol protetivo do direito brasileiro foi longa. O primeiro a atingir esse posto foi o patrimônio cultural material, ainda na primeira metade do século XX. Já o patrimônio cultural imaterial foi incorporado no ordenamento jurídico brasileiro com a Carta Magna de 1988, em seu art. 216.

Atualmente a norma infraconstitucional que trata do patrimônio cultural imaterial é o Decreto n° 3551/2000, que instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial e criou o programa nacional do patrimônio cultural. Existe também o Decreto-Lei n° 25/1937 que instituiu o tombamento como instrumento de salvaguarda. Pela definição do objeto da norma, sua aplicabilidade recai sobre os bens culturais materiais.

Segundo dados publicados na página digital do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico, IPHAN, o patrimônio cultural brasileiro na esfera federal, possui atualmente: mais de

1 Advogada e Jornalista, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2011) e em Jornalismo

pela Universidade de Sorocaba (2002). Recebeu prêmio Itaú- Mackenzie 4o. lugar com a monografia “Sobre o Direito Constitucional à tutela do patrimônio cultural imaterial: por uma aplicação do regime jurídico da propriedade”. Atua há 12 anos na área cultural. Desde 2008 faz parte da equipe técnica da Oficina da Palavra- Casa Mário de Andrade, pertencente à rede de Oficinas Culturais da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e gerenciada pela Poiesis. Co-editora do site www.direitoparaler.com.br.

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20 mil edifícios tombados (públicos e privados), 83 centros e conjuntos urbanos, 12.517 sítios arqueológicos cadastrados, mais de um milhão de objetos, incluindo acervo museológico, cerca de 250 mil volumes bibliográficos, documentação, registros fotográficos e em vídeo (IPHAN, 2012). Quanto aos bens intangíveis, até o presente momento vinte e cinco foram registrados nos quatro livros que constituem o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, instituído pelo decreto 3.551 de 2000, de açodo com o site do IPHAN.

No início do século XXI, seguindo uma tendência mundial, a UNESCO reconheceu a importância do patrimônio cultural imaterial para a humanidade e, sob sua égide, foram introduzidos no âmbito do direito internacional, dois instrumentos normativos importantes que merecem destaque: a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003 e a Convenção para a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, de 2006, ambos ratificados pelo Brasil. Outros textos foram produzidos, dentre eles a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, em 1989, que, embora não tenha poder normativo, destina-se a influenciar o desenvolvimento de legislações nacionais.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – DIREITOS CULTURAIS E

DIREITO À CULTURA- ASPECTOS GERAIS

A Constituição Federal de 1988 representou um enorme avanço no campo dos direitos fundamentais, envolvendo em sua rede protetora os direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais entre outros.

O art. 5° traz a maior parte dos direitos fundamentais contidos na Constituição, mas não todos, por isso, a interpretação do texto constitucional deve ser sistêmica. Exemplo disso é o caput do art. 215 do Capítulo III, da Educação, da Cultura e do Desporto, Seção II que se refere aos direitos culturais como um direito fundamental. Diz o artigo: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. José Afonso da Silva chama a atenção para a existência de uma dupla dimensão da expressão direitos culturais:

[...] de um lado direito cultural, como norma agendi (O estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais); e o direito cultural como facultas agendi (da norma que garante a todos o pleno exercício dos direitos, decorre a faculdade de agir com base nela) (2001, p.47).

O professor de Direito Constitucional, Francisco Humberto Cunha Filho ( 2000, p. 65), defende a presença dos direitos culturais em todas as gerações de direitos fundamentais, com maior ênfase na terceira geração, também conhecida como social. Ele os define direitos culturais como:

[...] aqueles afetos às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes, que asseguram a seus titulares o conhecimento e uso do passado, interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão de opções referentes ao futuro, visando sempre à dignidade da pessoa humana (2000, p. 33-4).

Nesta direção, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural define os direitos culturais como parte integrante dos direitos humanos:

Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais, tal como os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional

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de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em particular, na sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente sua identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais (UNESCO, 2010).

Diante dos argumentos expostos, depreende-se que o rol do art. 5° da Constituição Federal de 1988, não abarcou tudo o que o legislador constituinte considera direitos fundamentais. Deste modo, a expressão “direitos culturais” presente no art. 215, adiciona ao rol de direitos fundamentais mais uma matéria. Segundo José Afonso da Silva “os atos de cultura também são fatos sociais. Desse modo, pode-se conceituar a natureza dos direitos culturais como manifestações dos direitos sociais” (2001, p. 26).

O art. 215 também fala que o Estado garantirá o “acesso às fontes da cultura nacional, apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”:

Com a combinação dos artigos 5° IX2 e 215, conclui-se que não pode haver cultura

imposta, que o papel do poder público dever ser o de favorecer a livre procura das manifestações culturais, criar condições de acesso popular à cultura, prover meios para que a difusão cultural se fundamente nos critérios de igualdade. [...] A ação do Estado há de ser afirmativa que busque realizar as igualizações dos socialmente desiguais, para que todos, igualmente aufiram os benefícios da cultura. [...] Os poderes públicos ao propiciarem os meios para acesso à cultura, institui órgãos destinados a administrar a cultura, tais como Ministério da Cultura, Secretaria Estaduais e Municipais de Cultura, cujo conjunto forma um sistema administrativo da cultura, dando origem ao conceito de instituições culturais. [...] Uma política pública da cultura exige a criação de normas jurídicas que disciplinem as relações jurídicas culturais. Seu desenvolvimento é que dá origem a um sistema normativo da cultura, que constitui o direito da cultura (SILVA, J. 2001, p. 48-9 e 51).

De acordo com José Afonso da Silva (2001, p. 47), temos, portanto, que analisar a cultura por três aspectos: o direito da cultura, direitos culturais e direito à cultura. O primeiro se refere ao direito objetivo da cultura, a norma agendi, compõe o sistema normativo da cultura; o segundo diz respeito ao direito subjetivo da cultura, a facultas agendi; o último trata do direito constitucional fundamental que exige ação positiva do Estado, cuja realização depende de uma política cultural oficial.

PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL – DEFINIÇÃO E GARANTIAS

O patrimônio cultural imaterial pode ser entendido jurídica e historicamente, como um conjunto de bens incorpóreos, suscetível de valoração econômica, moral, histórica ou cultural, pertencente a uma pessoa física ou jurídica, pública ou particular, individual ou coletiva, vinculado a uma das hipóteses elencadas no art. 216 da Constituição Federal de 1988, quais sejam: as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver e as criações científicas, artísticas e tecnológicas.

Segundo Francisco Humberto Cunha Filho, o art. 216 da Constituição Federal, é uma norma definidora, a qual “tem por objetivo explícito definir o que é patrimônio cultural” (2000, p. 29). O legislador constituinte deu um passo importante, pois a tutela do patrimônio cultural é matéria de interesse universal.

2 Art. 5° IX da Constituição Federal de 1988: é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de

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[...] cada país procura estabelecer normas de proteção desse patrimônio, porque nele se consubstancia e se reverencia a memória da formação nacional, que, por isso, se identifica com a própria nacionalidade. [...]. Essa preservação é tão importante que interessa à humanidade como um todo, pelo quê os organismos internacionais tem promovido recomendações, acordos e convenções com tal objetivo (SILVA, J., 2001, p. 148).

A Constituição de 1988, no que concerne à tutela do patrimônio cultural imaterial, não representou apenas um avanço no plano político interno. Ela trouxe para o ordenamento brasileiro uma tendência moderna: a desmaterialização do bem cultural brasileiro.

O caput do art. 216, portanto, define o patrimônio cultural como o conjunto de bens materiais e imateriais, considerados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Os incisos I, II e III tratam dos bens imateriais, os demais, IV e V descrevem os bens materiais. José Afonso da Silva (2001, p. 35) entende que o alcance desse dispositivo não é irrestrito. Para ele, a cultura tutelada não é aquela representativa de toda criação do homem no sentido antropológico. Apenas o são, as formas de expressão (inciso I); os modos de criar, fazer e viver (inciso II); as criações científicas, artísticas e tecnológicas (inciso III); as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais (inciso IV); os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (inciso V), que são portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Essas referências podem ser consideradas em conjunto ou isoladamente (SILVA, 2001, p. 35).

O constituinte também estabeleceu no parágrafo primeiro do art. 216, algumas formas de promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro, como os inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e outras formas de acautelamento e preservação. Entre os meios de proteção, o tombamento é o mais utilizado para os bens materiais. Este instrumento administrativo se fundamenta na ideia da supremacia do interesse público sobre o particular; assim, tornou-se possível a restrição do uso da propriedade de modo a garantir sua preservação.

Além disso, o dispositivo supracitado atribui à lei especial a descrição das formas de produção e conhecimento dos bens culturais (parágrafo 3°), bem como as sanções por danos causados ou ameaças causadas ao patrimônio cultural (parágrafo 4°). Todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos quilombos foram tombados pela própria Constituição (parágrafo 5°).

Embora uma Garantia Constitucional, juridicamente falando, a formação do patrimônio cultural brasileiro depende de lei ordinária que defina os métodos a serem utilizados para a composição de tal patrimônio. No caso, Decreto-Lei n° 25/1937 para bens materiais e Decreto n° 3551/2000 para os bens imateriais.

A Carta Magna estabelece, ainda, as competências federais, estaduais (art. 24, VII) e municipais (art. 30, IX) para a preservação do patrimônio cultural, e prevê o direito a qualquer cidadão de propor ação popular contra atos lesivos ao patrimônio histórico cultural (art. 5°, LXXIII).

ANTEPROJETO DE MÁRIO DE ANDRADE - BREVE HISTÓRICO

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de Andrade para a tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro.

Por encomenda do então Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, cujo Chefe de Gabinete era Carlos Drummond de Andrade, Mario de Andrade, escritor e pesquisador paulista, um dos expoentes do movimento modernista, elaborou o anteprojeto que serviu de base para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), hoje denominado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura. O Decreto-Lei no. 25/1937, atualmente em vigor, foi concebido a partir desse anteprojeto elaborado em 1936 por Mário de Andrade.

O anteprojeto possui aspectos pertinentes à sua época e outros inovadores, que podem ser encontrados nos instrumentos normativos produzidos no âmbito internacional e no interno, anos após a sua elaboração.

O anteprojeto de Mário de Andrade serve como paradigma para os estudiosos, principalmente àqueles ligados à área do direito, para a “interpretação do alcance das atuais normas protetoras dos bens culturais”. Isso porque, no campo da interpretação jurídica, somente podemos concluir pela aplicação ou não de uma norma protetora se previamente conseguirmos definir o objeto de sua tutela, ou seja, o que são bens culturais, e suas categorias, inclusive os bens imateriais. Assim, o anteprojeto é subsídio importante para a interpretação da CF/88 e de outros diplomas legais (SILVA F., 2002, p. 135).

O extrato acima demonstra a importância dada ao trabalho de Mário de Andrade não só ao aspecto artístico-cultural de seu legado, mas as implicações sócio-jurídicas que tais incursões representaram para a sociedade brasileira.

À época, Mário de Andrade exercia a função de Diretor de Cultura do recém criado Departamento de Cultura do município de São Paulo. Mário não só foi o primeiro diretor, como contribuiu para a estruturação desse novo setor da prefeitura.

Em carta dirigida a Paulo Duarte, advogado, jornalista e professor de História da USP, datada de 1937, Mário de Andrade revela o seu entendimento sobre o papel dos governos na área da cultura:

Há que forçar um maior entendimento mútuo, um maior nivelamento geral da cultura que, sem destruir a elite, a torne mais acessível a todos, e em conseqüência lhe dê uma validade verdadeiramente funcional. Está claro, pois, que o nivelamento não poderá consistir em cortar o tope ensolarado das elites, mas em provocar com atividade o erguimento das partes que estão na sombra, pondo-as em condições de receber mais luz. Tarefa que compete aos governos (FUNDAÇÃO PRÓ MEMÓRIA, 1981, p.22). Foi com essa visão de cultura, associada aos seus conhecimentos em folclore, artes plásticas, arquitetura, literatura, música e à prática administrativa como funcionário da prefeitura, que Mário de Andrade formulou políticas públicas que influenciaram na condução do Departamento de Cultura e na elaboração do anteprojeto para criação do órgão responsável pelo Patrimônio Histórico Cultural.

O anteprojeto redigido por Mário de Andrade é um texto amplo, com muitas definições3 e 3 Mário de Andrade elaborou as seguintes definições no Anteprojeto para Criação do Serviço do Patrimônio

Artístico Nacional – CAP II: Determinações Preliminares - Patrimônio Artístico Nacional - Definição: Entende-se por Patrimônio Artístico Nacional todas as obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes aos poderes públicos, a organismos sociais e a particulares nacionais, a particulares estrangeiros, residentes no Brasil. Obra de Arte Patrimonial - Definição: Entende-se por Obra de Arte Patrimonial,

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pouco legalista. Mário não demonstrou preocupação com os efeitos jurídicos do tombamento, nem mencionou as sanções contra danos e ameaças ao patrimônio. Essas questões foram adicionadas posteriormente ao texto que dá origem ao Decreto-Lei n° 25/1937. Denota-se uma grande preocupação do escritor-funcionário em definir e conceituar os objetos sujeitos à tutela. Assim definiu: “arte é uma palavra geral, que neste seu sentido geral significa a habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos” (IPHAN, 2002, p. 278-9). Ele não fazia distinção entre História e Arte, por isso o anteprojeto denominava-se Serviço do Patrimônio Artístico Nacional (SPAN).

O anteprojeto está divido em três capítulos: o primeiro trata da finalidade e competência do SPAN; o segundo define patrimônio artístico nacional e enumera os bens excluídos do mesmo. Trata, inclusive, da transferência da propriedade do bem, com a ressalva que tal mudança não implique na saída do respectivo bem do país. Na sequência nomeia e define as oito categorias de bens culturais sujeitos ao tombamento e, por fim, estabelece os procedimentos, sugerindo a utilização de quatro livros de tombo que “ servirão para neles serem inscritos os nomes dos artistas, as coleções públicas e particulares, e individualmente as obras-de-arte que ficarão oficialmente pertencendo ao patrimônio artístico nacional”, escreveu Mário de Andrade (IPHAN,2002, p.278-9). Estes livros foram discriminados como: 1) Livro de Tombo Arqueológico e Etnográfico; 2) Livro de Tombo Histórico; 3)Livro de Tombo das Belas Artes; 4) Livro do Tombo das Artes Aplicadas.

Antevendo as possíveis críticas, Mário de Andrade elaborou uma série de questões para esclarecer alguns pontos do anteprojeto que serviu também para afirmar as suas convicções em relação à arte, história, educação e museus. Pelo teor do anteprojeto se vislumbra a genialidade de Mário de Andrade. Sua visão de cultura estava a frente de sua época. Ele tinha consciência da importância de todas as manifestações do povo brasileiro, do erudito ao popular, do saber científico ao saber empírico. Para ele não bastava reunir todo o conhecimento brasileiro, era preciso divulgar. Pensando nisso, destina uma parte do anteprojeto para a criação de um serviço de publicação dos livros do tombo, pois “além de indispensáveis aos estudiosos, têm valor moral de incitamento à cultura e à aquisição de obras de arte” justificou Mário (IPHAN, 2002, p.279-280). A última parte do anteprojeto é destinada à organização interna, incluindo um plano quinquenal de montagem e funcionamento do órgão.

Mário de Andrade orienta a composição do patrimônio artístico nacional, deixando aberta a possibilidade para que outras manifestações sejam incorporadas. Ele não se preocupou apenas com os monumentos grandiosos, com as obras de arte de um estilo específico ou bens de natureza tangível. Ele expôs uma concepção de cultura que exalta a universalidade e a toma como repositório de saberes, crenças e manifestações artísticas de um povo.

No seu anteprojeto se observa a existência de duas tendências modernas: o reconhecimento do bem cultural imaterial e dos monumentos de aspectos singelos ou não grandiloqüentes, mas que tenham com o passar do tempo, adquirido importância para uma sociedade. Esta última concepção é tratada na “Carta de Veneza” de 1964. Embora não seja um diploma jurídico, esta carta influenciou a formação de normas jurídicas nacionais e internacionais relativas à proteção dos bens culturais.

CARTA DE VENEZA, 1964

pertencente ao Patrimônio Artístico Nacional, todas e exclusivamente as obras que estiverem inscritas, individual ou agrupamento, nos quatro livros de tombamento. Essas obras de arte deverão pertencer pelo menos a uma das oito categorias seguintes: Arte arqueológica; Arte Ameríndia; Arte Popular; Arte Histórica; Arte Erudita Nacional; Arte Erudita Estrangeira; Artes Aplicadas nacionais; Artes Aplicadas estrangeiras. (IPHAN, 2002, 273-4).

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Carta Internacional sobre conservação e restauração de monumentos e sítios Definições

Art. 1° A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Estende-se não apenas às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural.

O aspecto mais relevante do anteprojeto de Mário de Andrade para este estudo é o reconhecimento de bens intangíveis, que apesar de apresentar potencial para fixação num suporte físico, permanecem na oralidade, passando de geração para geração. Para Mário de Andrade, o folclore não se restringia às lendas, cantos ou danças, mas abarcava também, os saberes populares: medicina, culinária, crendices, magias, etc. Esta visão ampla de cultura e do papel do Serviço de Patrimônio Artístico não foi contemplada no texto final que originou o Decreto-Lei n° 25/1937.

O texto final foi redigido por Rodrigo Mello Franco de Andrade, mineiro, escritor, que exerceu função pública junto ao Ministério da Educação e Saúde no Governo Getúlio Vargas e depois de promulgado o Decreto-Lei foi nomeado Diretor do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

DECRETO-LEI N° 25/1937 E DECRETO N° 3551/2000 - COMPOSIÇÃO

Do anteprojeto de Mário de Andrade foi aproveitado o rol de bens culturais excluídos do patrimônio histórico e artístico nacional, os procedimentos para tombamento, bem como os quatro livros do tombo, com o acréscimo do termo “paisagístico” ao livro de tombo arqueológico, etnográfico.

O decreto-lei n°25/1937 separa o artístico do histórico, conceitua e organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, aborda questões de direito e práticas administrativas. O capítulo I conceitua; capítulo II trata do tombamento instituindo os Livros de Tombo e os procedimentos jurídicos e administrativos para o tombamento; o capítulo III esclarece os efeitos do tombamento; capítulo IV cuida do direito de preferência em face da alienação onerosa de bens tombados; capítulo V reúne as disposições gerais.

O decreto-lei se distanciou da ideia original, para acomodar interesses e concepções de cultura de um setor da classe intelectual brasileira. Prevaleceu, a definição restritiva que figura no art. 1° do Decreto-Lei, qual seja:

Art. 1° Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valos arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

O fato de terem descartado aqueles aspectos inovadores do anteprojeto de Mário de Andrade, não significa que suas convicções eram ruins. Provavelmente, eram avançadas demais para sua época. Das querelas entre modernistas e tradicionalistas, dos debates em torno da atualização da inteligência brasileira e da formação da identidade nacional, resultou um refinamento das ideias. Além da importância de Mário de Andrade como escritor, pesquisador e funcionário público, ele é um exemplo de inventividade. Somente um intelectual polivalente como ele poderia preconizar com tanta clarividência tendências contemporâneas.

No Brasil, por exemplo, a incorporação do bem imaterial e a ampliação do conceito de monumento passaram a repercutir no mundo jurídico após a Constituição Federal de 1988, com

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o art. 216. No ordenamento infraconstitucional, vigora o Decreto n° 3551/2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, além de criar o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Para Daisy Rafaela da Silva (2010), em artigo publicado no site Âmbito Jurídico.Com.Br, o Brasil é pioneiro na tutela dos bens culturais, pois ”antes da convenção da UNESCO instituiu, com o decreto 3.551/2000, o procedimento administrativo de registro e criou o Programa Nacional do Patrimônio Cultural”. Pode-se acrescentar a esta posição precursora mencionada pela articulista, o ambiente favorável proporcionado, pioneiramente, pela disposição do art. 216 da Constituição Federal, de 1988.

O Decreto n° 3551/2000 foi resultado de uma recomendação contida na Carta de Fortaleza, documento criado como resultado final do Seminário Internacional “Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção”, realizado na capital do Estado do Ceará em novembro de 1997. O objetivo desse encontro era discutir meios legais e administrativos para a proteção do patrimônio imaterial. Em linhas gerais esta carta recomendou a realização de Inventário Nacional desses bens, a Integração das informações produzidas e a criação pelo Ministério da Cultura de um grupo de trabalho que realizasse os estudos necessários para a propositura de um instrumento legal que mais tarde se converteu no decreto n° 3551.

Este Decreto possui nove artigos. O art. 1° dispõe sobre os procedimentos para registro; o art. 2° trata da legitimidade para provocar a instauração do processo de registro; os artigos 3°, 4° e 5° disciplinam a instrução dos processos; o art. 6° discorre sobre a responsabilidade do Ministério da Cultura em manter um banco de dados com o material produzido durante a instrução do processo, divulgar e promover o bem registrado. O registro dos bens culturais imateriais não tem caráter permanente. O art. 7° fixou o seguinte:

O IPHAN fará a reavaliação dos bens culturais registrados, pelo menos a cada dez anos, e a encaminhará ao Conselho Consultivo do patrimônio Cultural para decidir sobre a revalidação do título de “Patrimônio Cultural do Brasil”.

Parágrafo único. Negada a revalidação, será mantido apenas o registro, como referência cultural de seu tempo.

O art. 8° instituiu no âmbito do Ministério da Cultura, “o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, com vista à implementação de política específica de inventário, referenciamento e valorização desse patrimônio”.

Na redação deste decreto não houve a preocupação em definir o patrimônio cultural imaterial, a exemplo do decreto-lei 25/1937, no art.1°. Esta ausência pode gerar alguma dificuldade na compreensão e aplicabilidade do decreto, pois é primordial para efetiva atuação de um instrumento normativo a delimitação de seu objeto e quando isso não ocorre, abre-se espaço para controvérsias.

CONCLUSÃO

Partindo do legado de Mário de Andrade, nota-se que, com o passar dos anos, houve o deslocamento de uma visão de patrimônio cultural unicamente material, física, de pedra e cimento, para uma noção compartilhada com os elementos espirituais, o saber, a técnica, a comunicação, a tradição entre outros.

Reconhece-se hoje que a cultura não se forma apenas com obras da engenharia humana, mas também com o conhecimento que permitiu ao homem transformar a natureza e com isso se transformar, e da transmissibilidade desses saberes que muitas vezes se operou oralmente de geração para a geração e cujo ponto de partida se perdeu no tempo.

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A Constitucional Federal de 1988, em seu art. 216, está em consonância com as definições de patrimônio cultural advindas das convenções internacionais, coordenadas pela UNESCO. A produção normativa internacional sobre esse assunto teve grande desenvolvimento e influência nas políticas nacionais dos países signatários durante o século XX. Tome-se, por exemplo, a Convenção para Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972, em seu art. 1°, no qual define o patrimônio cultural e natural com base em aspectos históricos, arqueológicos, artísticos, antropológicos, etnológicos, científicos, estéticos e na relação entre eles.

Ressalta-se que, quanto à incorporação dos bens imateriais ao patrimônio cultural, nossa Constituição saiu à frente da UNESCO. A Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial foi elaborada apenas em 2003, mas, independentemente desta questão cronológica, esta Convenção teve um papel importante ao introduzir a matéria no direito internacional.

Por fim, embora o decreto n° 3551/2000 represente um passo importante no caminho da tutela do patrimônio cultural imaterial, ele não tem força jurídica para proteger aqueles bens que, tendo as condições do art. 216, também têm potencial econômico e estão sujeitos à biopirataria. Contudo, não se pode negar sua relevância, pois o registro do patrimônio cultural imaterial possibilita a construção de um arquivo histórico representativo da evolução das expressões culturais.

REFERÊNCIAS

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Patrimônio Imaterial e dá outras providências.

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm>Acesso em 22 de julho de 2012. ______ Fundação Pró Memória. Mário de Andrade: cartas de trabalho: correspondência

com Rodrigo Mello de Andrade, 1936-1945. – Brasília: Secretaria do Patrimônio Histórico e

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