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AS DRÔLERIES, FIGURAS MARGINAIS EM MANUSCRITOS DA BAIXA IDADE MÉDIA.

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AS DRÔLERIES, FIGURAS MARGINAIS EM MANUSCRITOS DA BAIXA IDADE MÉDIA.

Bárbara Dantas Batista Covre

Manuscritos medievais são fontes históricas escritas e ilustradas à mão. Podiam ser qualquer coisa, desde uma carta a um decreto papal. Foram, desde sempre, entendidos como documentos especiais e preciosidades que mereciam ser preservados tornando-se as riquezas patrimoniais das grandes bibliotecas da Europa. O trabalho de cópia destes manuscritos era realizado pelos monges copistas dentro dos mosteiros. Mas, a partir do séc XIII, também existiram scriptorium laicos no Ocidente medieval

Vários autores podiam trabalhar no mesmo manuscrito. Alguns monges eram encarregados de fazer as cópias com suas letras enfeitadas e outros eram encarregados de iluminá-los, ou seja, ilustrá-los. Poderiam ser adornados com figuras marginais ou centrais da natureza, com figuras zoomórficas (bestiários), antropomórficas, imaginárias ou fantásticas. O tipo de iluminura a ser tratado nesta comunicação tem um significado satírico e chama-se drôlerie. Para Mª Cristina Pereira (p. 216, 2008),

“Inicialmente, há que se perceber que esse tipo de utilização das imagens nas margens não é algo que perpassa todos os séculos medievais, nem todas as regiões. As margens dos manuscritos começaram, lentamente, a ser utilizadas para abrigar imagens somente a partir do século XII e início do século XIII”

Qualquer tipo de manuscrito poderia conter iluminuras. Eram encontrados em documentos, nas capas de livros litúrgicos e em romances de cavalaria. Começaram a ser utilizados no final do séc. XII no norte da Europa, principalmente na Inglaterra, França e Flandres. Regiões mais longínquas, portanto, com menor influência e controle da Igreja Católica.

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“PESSOAS QUE RIAM DE COISAS RISÍVEIS” (UMBERTO ECO)

O famoso romance policial de Umberto Eco “O nome da rosa”, ambientado na Itália do século XIV, tornou-se uma das obras de ficção mais conhecidas sobre a Idade Média chegando a virar um excelente filme na década de 1980. Tanto no filme como no livro, há sugestivas passagens que representam como teria sido a vida em um monastério na Baixa Idade Média bem como a rotina dos monges copistas.

Mas no livro, como sempre, o autor prima pelos detalhes e remete o leitor às minúcias da prática da escrita de manuscritos, da miniaturas1, das iluminuras2 e as conseqüentes reações causadas por suas representações nas margens. Os iluminadores medievais, tanto monges como os laicos, também primaram pelos detalhes em seus trabalhos - E pensar que somente no século XV os óculos ou lentes de aumento se difundem na Europa Ocidental...

Eco mostra em seu romance como seria um scriptorium: lugar do mosteiro no qual os monges trabalhavam seus textos. As representações de figuras antropomorfas, de pessoas em “atitudes

baixas” (fazendo sexo, urinando ou sodomizadas) e de “um mundo invertido e oposto ao estabelecido por Deus”. (GAIGNEBET, 2009)

O que os monges medievais inseriam nas margens destes manuscritos causam, no livro, reações adversas: Admiração, escárnio e espanto: “Eu seguia aquelas páginas dividido entre a

admiração muda e o riso, porque as figuras conduziam necessariamente à hilaridade, embora comentassem páginas santas”. (ECO, p.98, 1983).

No romance, os monges mais velhos e “tradicionais” indignavam-se com estas iluminuras nas margens dos manuscritos. Segundo Mª Cristina Pereira, Camille (p.9, 1992) fez uma analogia das falas de protesto do bibliotecário do mosteiro com as idéias que São Bernardo de Clairvaux (1090-1153), fundador da Ordem Beneditina, tinha acerca destas figurações:

Eu poderia começar, como São Bernardo, perguntando o que significam todos eles: os macacos lascivos, dragões autofágicos com cabeças na barriga, tocando harpa-burros, o

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padre puxa saco e jograis produzidos nas bordas dos edifícios medievais, esculturas e em manuscritos com iluminuras.

HISTORIADOR X ICONOGRAFIA

Por muito tempo, a historiografia tradicional deixou de lado as imagens marginais dos manuscritos, consideradas simples ornamentos de páginas. Havia um sentido negativo ou sem importância ligada às drôleries. Acreditavam, por vezes, que essas imagens marginais dos manuscritos não se referissem necessariamente aos textos do centro.

O interesse dos historiadores pelas margens deve-se ainda mais, sem dúvida, à evolução de sua própria sociedade. Já no século XIX e início do século XX alguns historiadores debruçaram-se sobre vagabundos e os criminosos do passado [...] impõe-se nos estudos históricos a mudança de orientação de que falamos, ao mesmo tempo, que uma nova palavra, os ‘marginais’ dada pela primeira vez e simultaneamente como substantivo na imprensa e nos trabalhos dos historiadores. J C Schmitt (p.353, 2005).

Randall (apud Pereira, p.216, 2008) foi a primeira historiadora a se interessar por essas imagens, o que elas poderiam significar, e se haveria alguma relação entre o conteúdo do manuscrito e suas imagens marginais.

Camille (apud Pereira, p.216, 2008) também explorou este reino da arte marginal, por tantas vezes encoberto pelos preconceitos sociais. Analisou essas imagens e seu foco de atenção se voltou para a parte excluída e marginalizada da sociedade, como as prostitutas e os servos. O autor se refere às iluminuras dos manuscritos medievais como documentos sociais complexos e fabulosos e os que mais preservam a essência da arte medieval. Devido a todo este valor histórico-artístico buscou respostas para o longo silêncio dos estudos das drôleries.

J C Schmitt é hoje, a referência em história das imagens medievais: “De fato, parece bem que as

obras que rompem mais fortemente com as tradições da iconografia cristã sejam as iluminuras dos manuscritos produzidos num círculo fechado e não tendo difusão” (p.155, 2007).

Estes e outros pesquisadores acreditam que figuras marginais expressam as muitas facetas da realidade e cultura da época. A relação dessas imagens e o conteúdo do manuscrito expressam a ironia, a sátira e os antagonismos da mentalidade medieval. Os iluminadores eram pessoas

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letradas e cultas e supõe-se que expressassem seu senso critico ao fazer uso de droléries nas

iluminuras das margens dos manuscritos.

“NORMAS” ICONOGRÁFICAS MEDIEVAIS

Análises de imagens medievais devem pontuar que, dentro das idéias da época, não foram estabelecidos cânones às produções iconográficas religiosas.Segundo Schmitt (p. 136, 2007):

“Com efeito, não havia ‘lei’ (lex), nem ‘direito’ (jus) para reger a produção das imagens na Idade Média: Nenhum texto oficial, como uma ordenação régia ou uma bula pontifical, diz como fazer as imagens, fixa um cânon iconográfico, proíbe essa ou aquela representação” .

O que Schmitt defende é que existiram apenas “normas” que significavam não regras ou leis, mas algo que o autor identificou como sendo rotineiro segundo os costumes construídos ao longo da história medieval. Portanto, a justificativa para o estabelecimento de “normas estéticas, éticas,

teológicas ou políticas” (p.140) da iconografia na Idade Média teve como base o sincretismo das

práticas religiosas dos centros da Cristandade Latina com as suas regiões periféricas.

As normas eram mais implícitas que explícitas, ou seja, os mestres passavam a seus aprendizes, de geração em geração, como exercer o ofício de escultores, pintores e etc, tanto nos ateliês como nos mosteiros. Mas, diferente da Cristandade do Oriente medieval, mergulhada em cânones e leis ortodoxas para a prática da iconografia religiosa, os ocidentais do medievo aliavam uma tradição normativa às inovações estéticas. Exemplificamos com a mudança do estilo Românico para o Gótico.

Preocupação efetiva e institucionalizada relacionada às representações iconográficas religiosas por parte da Igreja Católica ocorrerá após o Renascimento, já na Idade Moderna. Seu marco seria o século XVIII. De acordo com Schmitt, para contrapor-se às idéias iconoclastas advindas da

“região de Flandres e dos Países Baixos” os papas Urbano VIII (1628) e Bento XIV (1745)

tentaram “autoritariamente, colocar um fim àquilo [que] tinha suscitado uma abundante

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FIGURAS MARGINAIS

O termo “marginalidade” ou “marginal”, segundo Schmitt, tem sua origem na idade Média. Estão presentes a partir dos manuscritos feitos pelos monges. No centro da página, os textos religiosos ou romances. Nas margens, representações de um mundo imaginário, violento, cômico ou proibido. Segundo Mª Cristina Pereira (p.218, 2008)

“Podemos, de modo geral, aproximar as imagens marginais dos grupos considerados também como marginais no Ocidente medieval: como afirma Jean-Claude Schmitt, eles tinham um estatuto temporário, transitório, variando da integração (ou reintegração) à exclusão do corpo social”.

O que está na margem deve permanecer fora do centro do texto, que era de caráter religioso, didático, moral ou até romances. Mas, implicitamente, pelo fato de serem representados nas margens, os conteúdos marginais tiveram importância no imaginário ou na realidade da sociedade de então.

As margens usadas como lugar para representação do proibido e reforçando a ordem do mundo em sua relação dialética, pois, segundo Mª Cristina Pereira (p. 218, 2008) “mesmo existindo lado

a lado, eles não se confundem, não se misturam”. Os conteúdos marginais são, freqüentemente,

piadas e “causos” do cotidiano. Vale ressaltar que o humor medieval era escatológico3 e não havia separação entre o bem e o mal, somente diversão.

As imagens cômicas (as drôleries) mostram, ao mesmo tempo, uma realidade diferente do texto central e enfatiza o que está escrito no centro, por contradição: O certo contra o errado, a única demarcação que separa o discurso hegemônico, ou seja, o texto do romance, da mensagem que se ironia das figuras marginais é que esta só tem este local como existência: a margem. Ainda segundo M Cristina Pereira (2009), “estranho seria se estivessem no centro da página”.

Mas há uma ligação perceptível entre as iluminuras centrais e marginais. Elas são unidas pelo comprimento das letras iniciais iluminadas em alguns manuscritos produzindo o elo de ligação

3 Segundo o historiador do Carnaval Europeu, Claude Gaignebet, o termo escatologia, além de seu usual significado

relacionado com o “fim dos tempos” e com o livro do “Apocalipse” da Bíblia, também refere-se às representações iconográficas das necessidades fisiológicas humanas. Na Idade média chamadas de “necessidades baixas” que seriam defecar, urinar, cuspir, fazer sexo, entre outros.

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entre o texto central e as representações marginais. Ou seja, os dois discursos representados (um escrito, o outro pictórico) são parte de uma mesma realidade. Otto Pächt (apud Pereira, p.220, 2008) afirma que

“[...] ainda assim podemos observar como a divisão entre centro e imagem é conservadora, pois mantém o status quo da página – assim como o cristianismo pensa a existência de céu e inferno, santos e diabos, a página contém margem e centro”.

CONCLUSÃO

Para Schmitt (p.150, 2007), “os séculos 12 e 13 assinalam o aparecimento de uma civilização

cristã das imagens. Estas estão onipresentes, nos muros e nos vitrais das igrejas, sobre os altares, nas tapeçarias, nos manuscritos”. Neste contexto, as droléries parecem ao mesmo tempo

cômicas e grotescas, mas para a mentalidade medieval não guardavam o mesmo significado.

Esta visão que temos da Igreja séria e austera, guardiã dos valores morais e espirituais da cristandade, ainda estava sendo construída. Para a época medieval, havia um privilégio do conteúdo da escrita sobre as representações iconográficas. O que importava naquele momento era a parte central, o conteúdo. As margens não guardavam este privilégio. Estavam numa escala hierárquica de importância menor em relação à parte central do manuscrito.

Por fim, devemos entender que, para o um leitor medieval, a distinção laico-religiosa não existia da forma como a entendemos na contemporaneidade. As iluminuras sugerem um mundo desconhecido, irreal, eletrizante, engraçado e assustador. O conceito de céu e inferno, certo e errado era idéia presente na época, mas estreitamente interligadas, sendo a linha demarcatória de cada muito tênue.

O pequeno valor atribuído e algumas interpretações contemporâneas das figuras marginais ainda trazem implícito um juízo de valor moralizante que, por vezes, reduz a complexidade e o conteúdo histórico que as droléries encerram.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ECO, H. Primeiro dia: Após a nona. In: O nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

GAIGNEBET, C. Exposição Triunfos do Carnaval. Vitória: MAES, 2009.

PEREIRA, M. C. C. L. À margem da página: imagens “marginais” nos manuscritos medievais. In: IX Congresso APCG: Associação de pesquisadores de crítica genética. Belo Horizonte: C/Arte, 2008.

_____________________ Manuscritos. In: Disciplina História da Arte I do Centro de Artes. Vitória: UFES, 2009

SCHMITT, J. C. A história dos marginais. In: A História nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005;

_____________ Liberdade e normas das imagens ocidentais. In: O corpo das imagens: Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: EDUSC, 2007.

Camille, M. Image on the edge: the margins of medieval art. Disponível em:

ebooks.google.com.br/books?id=_qpwnJv5aEC&printsec=frontcover&dq=images+on+the+edge &cd=1#v=onepage&q=images on the edge&f=false. Acesso em 17 de Maio de 2010.

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