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S I M B O L I S M O S E X U A L N A A N T I G A A M A Z Ô N I A

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Academic year: 2021

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O P R I M E I R O R E G I S T R O E S C R I T O de que temos das mulheres amazônicas é o das legendárias guer-reiras do mito grego, o qual não só transpôs para os trópicos o nome para o grande rio, mas também deu início a uma longa história de teorias controversas sobre o papel das mulheres nas antigas sociedades amazônicas.

Esta história começa em 1542, quando Frei Gaspar de Carvajal, enquanto cronista da pioneira expe-dição de Orellana ao Amazonas, registrou o encontro memorável com as mulheres guerreiras. Ele as descreveu como mulheres “poderosas e temidas, muito altas e fortes, andando despidas, mas com as partes privadas cobertas, tão valentes quanto dez homens índios” (Medina1894).

Durante séculos, o mito das Amazonas e de terras governadas por mulheres foi retomado em uma série de crônicas de viagens, quase sempre acompanhadas de relatos sobre grandes e numerosas aldeias habitadas por povos surpreendentemente avançados, ocupando toda a margem do grande rio e suas ilhas (Barreto e Machado 2001). Estas primeiras descrições dos antigos povos amazônicos, para além dos personagens fantasiosos, como as Amazonas, vieram a contrastar fortemente com os pequenos e dispersos assentamentos encontrados alguns séculos depois pelos primeiros naturalistas e antropólogos que se aventuraram na região e que prontamente rejeitaram estas antigas crônicas enquanto fontes seguras para o estudo dos povos pré-coloniais da Amazônia (Porro 1994).

Hoje, a pesquisa arqueológica moderna volta à questão do denso povoamento da Amazônia e da com-plexidade social que certas sociedades atingiram em período pré-colonial (Heckenberger et al. 1999, Neves 2004, Roosevelt 1991,1999). Alguns arqueólogos reconhecem a possibilidade de que as mulheres podem ter tido um papel social e posição de prestígio importante, e que certos cacicados podem até mesmo ter se tor-nado grandes e poderosos matriarcados (Roosevelt 1991). Contudo, outros arqueólogos sugerem que, ao contrário, com a emergência de cacicados maiores e com as sociedades rapidamente se tornando menos igualitárias, as divisões sociais baseadas em gênero perdem sua relevância, levando as mulheres a ocu-parem posições menos prestigiosas e a lutarem para reafirmarem suas identidades pessoais, enquanto mulheres e especialmente enquanto indivíduos diferenciados (Barreto 2003, Schaan 2001b, 2003a).

A análise de alguns objetos produzido pelos antigos povos da ilha de Marajó durante este período de formação de grandes cacicados (isto é, de AD 400 a 1400, período reconhecido pelos arqueólogos como

C R I S T I A N A B A R R E T O

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tos revelam a representação figurativa e estilizada de animais e humanos enquanto expressão de mitos e crenças que estruturaram o universo espiritual Marajoara (Schaan 1997). Padrões decorativos simétri-cos e símbolos geométrisimétri-cos são combinados de acordo com regras bastante rígidas, representando criaturas de traços mistos, entre animais e humanos e lembrando as transformações animísticas que até hoje perduram nas lendas amazônicas.

A representação destas figuras, e especialmente a forma como os corpos humanos são concebidos, tem sido uma fonte de inspiração particularmente rica para se entender o cosmos e o ethos Marajoara (Roosevelt 1988, Heckenberger 1999, Schaan 2001a e b).

A M U L H E R N A C E R Â M I C A M A R A J O A R A

A idéia de sociedades lideradas por mulheres, ou ao menos organizadas em torno de figuras femini-nas, tais como linhagens ancestrais ou clãs femininos, parece, a princípio, particularmente atraente em Marajó, onde a mudança para uma organização social mais complexa e para uma sociedade mais desigual corresponde claramente a um crescente número de objetos cerâmicos que apresentam temas femininos. Representações femininas aparecem tanto na pintura dos potes e urnas funerárias como também em estatuetas cerâmicas.

Os melhores exemplos são as urnas funerárias policromas de um estilo particularmente popular na ilha de Marajó (comumente denominado Joanes Pintado), usadas para enterramentos secundários. Estas pare-cem representar sempre a mesma figura feminina, talvez uma figura ancestral ou mítica, que combina traços humanos e animais, lembrando em seus olhos e membros uma espécie de coruja (Schaan 1997) (figuras 1, 2, 3, e 4). Estes recipientes podem variar consideravelmente em tamanho, de 30cm até mais de 1m de altura, provavelmente refletindo a idade e a importância social do indivíduo à qual se destinava, mas os atributos femininos representados nas urnas são constantes, seja qual for o sexo do indivíduo nela enterrado.

Em contextos funerários, referências a aves noturnas ou aves de rapina, como as corujas, podem ser consideradas de várias maneiras; como uma representação da vigilância noturna que protegeria o indi-víduo na escuridão pós-morte, ou como uma referência à capacidade do animal de engolir um corpo inteiro e regurgitar seus ossos, trazendo-o de volta após a morte. Alusões semelhantes à idéia de renascimento, ou de outra vida pós-morte podem também explicar a razão dos enterramentos em recipientes com formas de corpos femininos grávidos, ou “ginecoformes”, nos quais a decoração enfa-tiza os órgão sexuais femininos, tais como mamilos, púbis, e útero (este representados por círculos). Muitas vezes este marcadores sexuais são pintados em cores mais fortes, como o vermelho (figuras 1, 2 e 3). Outras vezes, em vez de úteros, outras criaturas são representadas no interior dos ventres, como uma alusão gráfica à gravidez (figura 4).

a fase Marajoara da Tradição Policrômica da Amazônia) pode fornecer algumas pistas sobre o que acon-teceu com as mulheres na Amazônia em tempos pré-coloniais.

O S C A C I C A D O S D A A M A Z Ô N I A E A I C O N O G R A F I A D A C U L T U R A M A T E R I A L

Desde os anos 1980’s que pesquisas recentes têm confirmado um verdadeiro florescimento de difer-entes culturas na região, sobretudo no baixo Amazonas, durante o primeiro milênio após Jesus Cristo. Estas culturas são reconhecidas pelos diferentes estilos de cerâmica funerária, quase sempre repre-sentando figuras humanas, como por exemplo as urnas funerárias Guarita (no médio Amazonas), e as Marajoara, Maracá, Aruã, e Aristé (no baixo Amazonas) (McEwan et al. 2001). Outros tipos de artefatos cerâmicos, como tigelas, pratos, vasos e estatuetas, altamente decorados, assim como alguns raros objetos esculpidos em pedra, como os muiraquitãs, são encontrados em sítios muito densos ao longo das férteis planícies ao longo dos rios. Esta profusão de objetos decorados, provavelmente usados em contextos cerimoniais, tem sido interpretada como resultado da rápida transformação de pequenas sociedades tribais para grandes cacicados rivais, onde a intensificação de rituais e cerimônias legiti-mariam novas estruturas de poder. Muitos destes objetos eram provavelmente usados enquanto símbo-los de prestígio e poder dos chefes e elites locais. Enquanto alguns destes cacicados parecem ter desa-parecido antes mesmo da conquista, como é o caso de Marajó (Schaan 2001a), outros perduraram até o contato com europeus, como o dos Tapajó em Santarém (Gomes 2001), mas acabam se desintegran-do rapidamente em conseqüência desintegran-do contato.

Em Marajó, a rápida formação de cacicados parece ter ocorrido a partir do século V de nossa era. Nesta época, uma grande quantidade de tesos – montes artificiais – começam a ser construídos na porção leste da ilha, aparentemente destinados à formação de áreas mais elevadas, protegidas das inundações anuais tão intensas na ilha. Os arqueólogos acreditam que, ao longo do tempo, estes tesos se tornam símbolos físicos de prestígio de cada comunidade e de liderança e capacidade de mobiliza-ção das chefias locais (Schaan 2001b). Grupos de tesos de diferentes tamanhos são encontrados ao longo dos pequenos rios e lagos desta parte da ilha, e enquanto certas áreas parecem ter sido usadas tanto para a habitação e fabricação de uma grande quantidade de cerâmica, outras eram usadas enquanto cemitérios. Nestes, uma variada gama de objetos mortuários é encontrada. As urnas cerâmi-cas são enterradas contendo não só os ossos dos indivíduos, mas também pequenos vasos, estatuetas, e objetos pessoais, como bancos, utensílios de pedra e adornos corporais (tangas, pingentes e colares) (Meggers e Evans 1957, Palmatary 1950, Schaan 2000, 2001a e b).

Neste contexto altamente ritual, a cerâmica é sempre muito decorada, em geral com pintura policro-ma, mas também com incisões e apliques modelados. Estudos iconográficos da decoração destes

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obje-< F I G U R A 1

A pintura decorativa das urnas funerárias Marajoara representa figuras femininas que combinam traços humanos e animais. Em geral, um círculo vermelho é desenhado no ventre destes cor-pos globulares, como uma cor- pos-sível representação do útero.

> F I G U R A 2

Urna funerária encontrada em um dos muitos tesos da ilha de Marajó utilizada para o enterra-mento de ossos humanos e out-ras oferendas funerárias. 80 cm (altura), 77 cm (diâmetro)

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Considerando-se o contexto mortuário, as referências à fertilidade feminina e reprodução podem ser vista como uma simples demarcação de ciclos de vida, reprodução e morte na sociedade Marajoara de então, e talvez não digam respeito nem ao um papel diferente da mulher na sociedade, nem a cultos a figuras femininas ancestrais. Contudo, o fato de que, em outras culturas pré-históricas amazônicas que também enterram seus mortos em urnas antropomorfas, existam urnas de ambos os gêneros, tanto masculinas, com representação de órgãos sexuais masculinos, como femininas, às vezes em corre-spondência ao gênero do indivíduo enterrado (como por exemplo as urnas Maracá em Guapindaia 2001 e Sousa et al. 2001) , torna obrigatória a questão de porquê, em Marajó, objetos tão importantes, imbuídos de grande valor simbólico e ritual, sejam sistematicamente representados enquanto figuras femininas. < F I G U R A 3

A mesma figura mítica parece estar repre-sentada na maioria das urnas Marajoara. A constante representação de círculos vermelhos pintados nestes corpos tem sido interpretada como simbologia da fer-tilidade feminina.

80 cm (altura), 71 cm (diâmetro)

> F I G U R A 4

Algumas urnas apresentam uma face humana no lugar do círculo, uma provável referência à gravidês e ao nascimento. 81 cm (altura), 64 cm (diâmetro)

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A grande maioria destas estatuetas é encontrada fragmentada na altura do pescoço ou da cintura, com suas cabeças ausentes, um padrão que parece indicar a retirada intencional das cabeças previa-mente ao seu descarte (figuras 8, 9 e 10). Observa-se que o que lhes dá uma identidade individual, é justamente a cabeça, onde as variações na forma de representação dos olhos, nariz, boca e cabelos são o que as tornam únicas e diferenciadas entre si.

Muitas das estatuetas apresentam decoração pintada em variados motivos geométricos (figuras 5, 6 e 9), lembrando a tradicional prática da pintura corporal amazônica. Alguns grupos de estatuetas pare-cem “vestir” os mesmo padrões de pintura corporal (figura 10), uma provável indicação de que as mul-heres representadas pertencem ao mesmo grupo social (tal como aldeia, linhagem, clã ou casa).

Uma outra característica intrigante das estatuetas Marajoara é sua forma fálica geral, com a cabeça e corpo formando um pênis, e as pernas formando os testículos, combinando assim características fem-ininas e masculinas em um único objeto (figuras 11, 12, 12 e 14). Na cerâmica Marajoara, apesar de referências à genitália masculina ser encontrada em outros objetos (como o vaso da figura 15), esta combinação de traços masculinos e femininos aparece apenas nas estatuetas.

As estatuetas femininas, igualmente presentes na cerâmica Tapajônica, também encontram feições bem particulares em Marajó (figuras 5 e 6). À primeira vista, elas não parecem diferir muito do que nor-malmente é interpretado nas artes pré-históricas como objetos utilizados em rituais de culto à fertili-dade, ou à entidades espirituais femininas ligadas à reprodução e fertilidade (Roosevelt 1988).

As estatuetas de Marajó, parecem ter sido utilizadas em rituais de dança, pois muitas servem de chocalho, instrumentos que ainda são comumente utilizados em performances rituais em várias sociedades indígenas amazônicas. Algumas estatuetas apresentam orifícios laterais que possibilitari-am sua possibilitari-amarração para serem penduradas (figura 7), do mesmo modo que estatuetas similares de madeira são ainda usadas pelos xamãs Cuna e Choco em rituais de cura (Reichel-Dolmatoff 1961). Parecem portanto pertencer a um domínio extremamente cerimonial da vida Marajoara.

A maioria das estatuetas Marajoara representa uma mulher acocorada, na tradicional posição de parto das sociedades amazônicas. Aqui também, a genitália feminina é claramente representada, espe-cialmente a região púbica, demarcada por triângulos, retângulos ou ovais. Algumas estatuetas parecem inclusive exibir intencionalmente seus ventres grávidos (figuras 8 e 9).

> F I G U R A 5

Estatueta chocalho mostrando mulher com decoração corpo-ral e arranjo de cabeça difer-enciado. É comum que nestas estatuetas braços e pernas sejam bastante estilizados, valorizando traços faciais e marcadores sexuais. 15 cm (altura), 10 cm (largura)

< F I G U R A 6

A decoração do corpo das estatuetas lembra a tradicional prática da pintura corporal entre os povos indígenas da Amazônia, em geral servindo como marcador de identidades sociais, espe-cialmente durante cerimônias rituais. 17 cm (altura), 10 cm (largura)

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> F I G U R A 7

Algumas estatuetas chocalho apre-sentam furos laterais, o que permi-tiria que elas fossem amarradas ou penduradas durante rituais. 6,5 cm (altura), 3,5 (largura) > F I G U R A 8

A maioria das estatuetas Marajoara são encontradas intencionalmente fraturadas, com suas cabeças fal-tando. Estas duas estatuetas pare-cem exibir seus ventres grávidos. 9 cm (altura), 8 cm (largura)

< F I G U R A 9

A maioria das estatuetas Marajoara mostram mulheres acocoradas, na posição de parto tradicional das mu-lheres indígenas da Amazônia. 5,5 cm (altura), 6 cm (largura) < F I G U R A 1 0

Estatuetas pintadas e descabeçadas podem representar a tensão entre a identidade individual da mulher (repre-sentada em seus traços faciais) e sua identidade social (representada em seu corpo). A remoção intencional das cabeças pode simbolizar a perda de suas identidades individuais. De 13cm a 8 cm (altura), de 12cm a 6 cm (largura)

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> F I G U R A 1 1

Este conjunto de “família” representa um dos raros exemplos de estatuetas Marajoara do sexo masculino, provavel-mente um menino.

De 14cm a 7 cm (altura), de 10cm a 4,5 cm (largura)

> F I G U R A 1 2

Estatuetas Marajoara eram modeladas em uma vareidade de formas fálicas, combinando atributos maculonos e femininos em um mesmo objeto. 16 cm (altura), 10 cm (largura)

> F I G U R A 1 3

Par de estatuetas fálicas visto de costas. Estatueta maior: 13 cm (altura), 10 cm (largura)

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Estes corpos fálicos, privados de suas cabeças e decorados da mesma maneira, parecem destituir-se por completo de suas identidades originais, destituir-sendo transformados em meros corpos reprodutivos que compartilham um mesmo lugar na sociedade. A remoção intencional das cabeças, isto é, de suas car-acterísticas individuais, talvez se desse durante rituais específicos, rituais de passagem da vida da mul-her, simbolizando talvez o conflito pelo qual passa a mulher Marajoara desta época, entre a sua identi-dade individual e o seu papel enquanto reprodutora de seu grupo social. Assim, as interpretações tradi-cionais de estatuetas femininas enquanto objetos de culto à “deusas” da fertilidade, parecem encontrar, em Marajó, uma outra alternativa.

> F I G U R A S 1 4 A E 1 4 B

Frente e costas de uma esta-tueta fálica. Assim como nas urnas, o uso da cor vermelha para acentuar os olhos, boca, genitália e cabelo, sugere um conjunto de atributos relevantes para a reafirmação da identi-dade feminina na antiga sociedade Marajoara. 15,5cm (altura), 13cm (largura)

< F I G U R A S 1 5

A cerâmica Marajoara apresenta uma gama de símbolos e refe-rências a órgãos sexuais, assim como este vaso de forma fálica. 19 cm (altura), 15 cm (largura)

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O segundo campo decorativo é uma outra faixa, em geral mais estreita, com motivos geométricos compostos por zigue-zagues, linhas, cruzes e pontilhados, em geral representados em outros tipos de cerâmicas como corpos de cobras. Estes padrões se repetem em pequenos conjuntos de tangas, e pare-cem constituir um número finito de variações gráficas.

O terceiro campo decorativo, maior e mais chamativo, corresponde ao campo triangular do restante da tanga. São composições com figuras geométricas (linhas, cruzes, setas, espirais, gregas e outros) combinadas em arranjos únicos (figura 20).

Este grau de variação entre os campos decorativos faz com que mesmo que as tangas sejam bastante semelhantes entre si, elas nunca são exatamente iguais. Assim, a separação dos campos decorativos, com seus diferentes graus de variação, tem sido interpretada como uma forma de transmitir infor-mações sobre os diferentes níveis de inclusão social dos indivíduos que usavam as tangas, ou junto aos quais eram enterradas, seguindo uma ordem do grupo social maior (como talvez o gênero feminino, ou a idade púbere), para outro mais específico (como a linhagem ancestral, a aldeia, ou a casa), até a iden-tidade individual da pessoa (Schaan 2001a).

Poderia se pensar que, em sociedades organizadas em matriarcados, com linhagens maternas ou clãs femininos diferenciados socialmente, ao longo do tempo, certos objetos estritamente relacionados a universos femininos, como as tangas, acabassem por se tornar marcadores de origem social e posição hierárquica para todos os indivíduos, homens, mulheres, e talvez até mesmo crianças.

A repetição e combinação dos motivos geométricos que as tangas apresentam lembram fortemente o tipo de grafismo ainda produzido por grupos do alto Amazonas, com motivos visualisados em rituais xamanís-ticos induzidos por transes alucinogênicos e reproduzidos em uma série de superfícies. Entre os Siona e os Cuna, representações estilísticas e simbólicas similares parecem se basear em um número finito de elementos geométricos, os quais combinados de diferentes maneiras dentro de regras bastante precisas, acabam formando um número infinito de desenhos diferentes. Os desenhos são únicos, mas sempre se re-alizam dentro de parâmetros definidos culturalmente enquanto referências visuais (Reichel-Dolmatoff 1978). Nas tangas, o campo de decoração maior e mais chamativo é justamente o motivo gráfico único, o que parece definir e reforçar a identidade do indivíduo dentro do grupo social maior. No entanto, este campo segue também uma linguagem comum, uma combinação possível de motivos, que forma um desenho que se conforma ao que é aceitável ou desejável pelo grupo maior em que o indivíduo se insere.

Em outras palavras, a iconografia das tangas pode expressar as tensões e conflitos entre indivíduos e a sociedade, entre o “eu” e a cultura coletiva, especialmente durante a transformação das comu-nidades de Marajó em cacicados. Apesar destes conflitos serem certamente universais, atingindo todos os indivíduos em qualquer sociedade em rápida transformação, em Marajó, a profusa produção de

obje-A S T obje-A N G obje-A S M obje-A R obje-A J O obje-A R obje-A E obje-A I D E N T I D obje-A D E F E M I N I N obje-A

Outro tipo distinto de objeto na cerâmica da fase Marajoara que poderia corroborar a idéia de antigas linhagens, e talvez de elites femininas, é a tanga, também conhecida como “tapa-sexo”, encontrada em grandes números nos sítios arqueológicos de Marajó, inclusive dentro das urnas funerárias.

As tangas são objetos triangulares de cerâmica com orifícios nas extremidades para a amarração junto ao corpo. Eram provavelmente usadas por meninas e mulheres em contexto cerimoniais. Os únicos exem-plos etnográficos correlatos são protetores púbicos usados por mulheres de grupos Pano, no vale do Rio Ucayali, na outra extremidade da bacia amazônica. Lá, as meninas os vestem durante rituais de puberdade.

Em Marajó, as tangas parecem ter sido feitas sob medida, como atestam as variações de tamanho, curvatura e forma destes finos objetos cerâmicos (figuras 16, 17 e 18). Algumas mostram sinais de uso intenso, com sinais de forte abrasão nas áreas de amarração. Outras, contudo, parecem intactas, e às vezes nem sequer apresentam os orifícios para amarrá-las.

Apesar das tangas Marajoara serem conhecidas já há mais de um século, em geral pouco se sabia sobre os contextos em que foram encontradas. Pesquisas recentes em Marajó agora sugerem que elas eram mais do que simples protetores ou ornamentos púbicos. As tangas parecem representar ver-dadeiros objetos emblemáticos, contendo uma variedade de infomações visuais, claramente desen-hadas para acompanhar os mortos em contextos funerários.

A compilação e comparação de tangas em contextos escavados demonstra que a maioria eram tangas lisas, acabadas apenas com um engobo vermelho (figura 19). De acordo com Schaan (1997 e 2001a), somente um pequeno número de tangas era decorado, em geral com uma série de complexos motivos geométricos pintados em vermelho ou preto sobre um fundo branco. Estas proporções podem representar diferenças de prestígio social entre mulheres, e confirmar a existência de uma elite feminina à qual se destinariam as pou-cas tangas decoradas. Isto parece se confirmar nos contextos funerários, onde urnas maiores e mais deco-radas contém tangas também decodeco-radas. Contudo, como nem todas as tangas parecem ter sido utilizadas, e que estas são encontradas também em urnas de indivíduos masculinos (Schaan 2001a), talvez elas tenham se tornado ao longo do tempo um tipo de oferenda funerária prestigiosa, ou simplesmente um meio de demarcar a origem social do indivíduo, a partir de sua associação a grupos femininos.

Assim como em outros objetos cerâmicos da fase Marajoara, a decoração das tangas parece ter seguido regras bastante precisas. A superfície externa triangular é quase sempre dividida em três cam-pos decorativos. O primeiro é uma faixa superior, comcam-posta de triângulos, barras verticais e inclinadas, com um retângulo, ou ? no centro, símbolo também utilizado nas estatuetas para indicar o púbis. Este arranjo se repete em um grande número de tangas (figura 20), quer com triângulos totalmente preeenchidos (figura 21), ou com linhas quadriculadas (figura 22).

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< F I G U R A 1 9

A maioria das tangas Marajoara é lisa, apenas com um acabamento vermelho. As tangas decoradas eram provavelmente destinadas às mulheres de maior prestí-gio social.

13,5 cm (altura); 19cm (largura)

> F I G U R A S 1 6 , 1 7 E 1 8

Cada tanga Marajoara parece ter sido feita para uma mulher em particular, vista a variação nos tamanhos, formas e decorações. As tangas eram provavel-mente usadas por mulheres e meninas durante cerimônias rituais.

Figura 16: 10 cm (altura), 14 cm (largura) Figura 17: 9 cm (altura), 10 cm (largura) Figura 18: 12 cm (altura), 12 cm (largura)

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tos rituais ligados ao universo feminino, pode testemunhar a necessidade maior em reafirmar as estru-turas tradicionais que organizavam a sociedade. É possível que com a emergência de estruestru-turas de poder mais complexas, surge também a necessidade de reforçar antigas divisões sociais relacionadas às mulheres, principalmente o universo ancestral.

C O N C L U S Ã O

Em conclusão, a cerâmica e sua iconografia sugerem que as mudanças ocorridas nesta época em Marajó afetavam profundamente as mulheres, dada não só a tendência a uma maior desigualdade social em geral, mas também às pressões para reforçar a identidade cultural entre grupos ascendentes e rivais, trazendo necessariamente uma reorganização e hierarquização de divisões sociais anterior-mente baseadas apenas no gênero, e um maior compromisso de indivíduos perante a sociedade e suas lideranças como um todo. Em outras palavras, a comunidade das mulheres torna-se um grupo mais diferenciado e menos coeso, ao mesmo tempo que seu papel enquanto reprodutora de seu grupo social torna-se mais relevante. Estas mudanças podem explicar portanto a necessidade de reafirmação das identidades femininas através da cerâmica.

Finalmente, é importante lembrar que a cerâmica é uma produção tradicionalmente feminina na Amazônia e, apesar de não sabermos exatamente que tipo de controle as mulheres exerciam sobre a sua fabricação e decoração, é certo que este seria um meio bastante propício para expressarem seus conflitos de identidade.

Por outro lado, desde os primeiros estudos sistemáticos dos diferentes estilos decorativos presentes nos sítios de Marajó encontra-se uma certa dificuldade em classificá-los de acordo com sequências cronológicas ou variações regionais. No entanto se pensarmos que estes estilos correspondem à padrões representados por diferentes linhagens ou clãs femininos, e que as ceramistas os levam con-sigo quando se mudam de comunidade, a variação estilística encontrada em Marajó poderia fornecer pistas para não só entendermos outros aspectos da organização social, como a circulação das mulheres e os padrões de interação entre as várias comunidades, mas também como se deu a hierarquização destas comunidades em cacicados e o papel das mulheres nestas transformações.

Talvez jamais saberemos se verdadeiros matriarcados de fato existiram em Marajó. Podemos apenas especular que as valentes mulheres encontradas por Carvajal em 1542, andando despidas com suas partes privadas cobertas (possivelmente com as suas tradicionais tangas), podem de fato ter sido as últi-mas das mulheres Marajoara, as sobreviventes de uma cultura que desapareceu por volta de 1400, levan-do consigo os segrelevan-dos sobre como as mulheres Marajoara resolveram seus conflitos de identidade, mas deixando-nos para sempre a sua elaborada arte cerâmica, repleta de significados simbólicos.

> F I G U R A 2 0

Par de tangas decoradas. Observa-se a repetição do padrão decorativo na faixa superior. A repetição e dis-tribuição de motivos decora-tivos nas tangas sugerem que elas servem de suporte para transmitir diferentes tipos de informação sobre a identidade da mulher que a veste. 12 cm (altura), 15 (largura)

> F I G U R A S 2 1 E 2 2

Decorações geométricas em duas tangas. Apesar das técni-cas de preenchimento dos cam-pos diferirem e da combinação de motivos ser única em cada tanga, o resultado final parece sempre respeitar padrões cul-turalmente definidos para este tipo de grafismo.

Referências

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