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Toxicomania: usos e abusos do corpo

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Academic year: 2021

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Toxicomania: usos e abusos do corpo

Kátia B. Barbosa

A toxicomania assinala uma mutação cultural Melman, 1992

A partir do final do século XX modificações políticas e econômicas importantes no Brasil e no mundo culminaram com a estruturação da sociedade de acordo com os pressupostos do neoliberalismo.

O neoliberalismo surgiu como um sistema econômico e político com a proposta de retomar o crescimento econômico, criticando as práticas protecionistas e de bem estar social, consideradas responsáveis pela estagnação econômica.

Em tal sistema, cada indivíduo, segundo Hayek (1987), deve lutar para atingir seus próprios objetivos, mesmo que isto cause prejuízo a outros. Para o autor, “(...) o sistema de objetivos do indivíduo deve ser soberano, não estando sujeito aos ditames alheios” (p. 76).

Senett (1999) aponta que, desta forma, o homem necessitando minimamente do outro para constituir-se se torna um ser que se basta e sendo os objetivos individuais inconciliáveis e conflitantes com os comuns trazem consequentemente a fragilização das relações sociais.

Além disto, com o advento da política neoliberal desaparece ou perde a estabilidade, progressivamente, a própria ideia de emprego. Com a modificação ocorrida, os projetos de vida - fortemente ligados à vida profissional, na sociedade ocidental – tornam-se impossíveis, impedindo a constituição de identidades.

A falta de emprego e de suporte social tem papel central na determinação social das escolhas individuais sobre as drogas.

Diante da multiplicidade de referências, tanto em termos de grupos ou de atitudes as vezes aparentemente contraditórias que levam à fragmentação social, uma possível solução seria o mergulho radical em um tipo de experiência que, a partir de certo momento, pelo fato de ser totalizadora, prescindirá de maiores explicações, justificando-se por si mesma (Velho, 1994, p. 30).

O autor acima citado ressalta que a formulação de um projeto deve ser uma tentativa consciente de dar um sentido ou uma coerência a essa experiência fragmentadora, assinalando que a elaboração de um projeto não é puramente intersubjetiva, uma vez que ele se encontra dentro de um campo de possibilidades, circunscrito histórica e culturalmente, relacionado à

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própria noção de indivíduo, assim como a temas, prioridades e paradigmas culturais existentes.

Dentro dessa perspectiva, considera-se que, ao se analisar o uso/abuso de drogas psicoativas pelo ser humano, o contexto sociocultural é um fator determinante.

Araújo (1999) diz que na modernidade o prazer anteriormente simbolizado pode ser comprado e consumido (p. 34). Assim, também Grossi (2000) assinala que “mediante o impacto do avanço da sociedade científica e do consumismo, trilha-se um retorno à cruel realidade de competição simultânea entre os sujeitos como modo de se encontrar um lugar na vida em sociedade “(p. 20).

Segundo Senett (1999), é possível dizer que o consumo surge como meio de construção de identidades, em que tanto mais poder os objetos adquirem, quanto mais o interior está esvaziado e exteriorizado (p. 25).

Desse modo, o consumismo se caracteriza como uma forma de compensar a vivência de um excluído ou marginalizado do acesso ao status e à participação política.

As propagandas ao igualarem produtos e consumidores, colocam estes últimos sempre em desvantagem frente aos superpoderes dos quais estão investidos os objetos, indicando qual a decisão que se deve tomar para alcançar a felicidade (Senett, 1999, p. 87).

Entende-se que a propaganda provoca a demanda de objetos (feita para a satisfação), do lado de um gozo ilimitado, supostamente vindo a apagar um desejo que não é eliminado com o consumo, mas apenas relançado para outros objetos. Essa instrumentalização do desejo através dos objetos pode, frequentemente, fixar-se no objeto droga, configurando-se em modelo de consumo e de relação social (Idem,p. 88).

Percebe-se, atualmente, que a droga tornou-se um objeto de consumo como tantos outros, um produto a ser consumido. A nossa sociedade de consumo organiza-se de acordo com as leis do mercado, onde o importante é ter coisas, e assim, o sujeito é reduzido a consumidor, sua subjetividade não tem mais valor.

As toxicomanias, com ou sem drogas (compras, jogos entre outras), são figuras dos tempos atuais, expressando uma saída pela fascinação em relação aos objetos de consumo. Para o toxicômano é o encontro, a escolha de um objeto adequado que tem a vantagem de estar ao alcance da mão, e pode ser entendido como um atalho para a felicidade (Melman, 2003, p. 94).

Nessas circunstâncias, Melman (2003) diz que a ideia de felicidade vinculada a um imperativo de gozo torna-se um dever e efeito da globalização (p. 95).

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O consumo coloca-se como uma forma de reconhecimento, de mobilidade, de inclusão social, de aparentar uma igualdade e de parecer cidadão, mesmo que de forma ilegítima.

O potencial de consumo determina o grau de inclusão ou de exclusão social, de sucesso ou de insucesso, de felicidade ou de infelicidade.

O estabelecimento de uma sociedade de consumo, organizada de acordo com as leis do mercado, onde o importante é possuir objetos, ao mesmo tempo em que os universaliza, apaga as singularidades subjetivas (Grossi, 2000, p. 22).

Em relação a isso, Cruz e Ferreira (2001) afirmam que “a frustrante busca pelo consumo ilimitado prometido pelo mercado (legal ou ilegal) produz insatisfação e a sensação de ser falho ou incapaz” (p. 99). Acrescentam, também, que tal sensação de incompletude provoca a busca de satisfação no consumo exagerado de bens e de drogas e, desse modo, os objetos de consumo superam os ideais, instalando uma crise de identidade econômica e cultural. Dessa forma, o uso abusivo de drogas pode ser considerado como resultante de uma sociedade consumista.

Para Inem (2001), o sujeito moderno é um sujeito dividido, habitado pela falta e que se encontra diretamente confrontado com os objetos que prometem restaurar essa falta (p. 30).

Para Freud, o consumo abusivo de drogas pode ser entendido como uma saída encontrada para a tristeza e os sentimentos de perda que toda sociedade vive, ou seja, a toxicomania como sintoma social.

Devemos a tais veículos não só a produção imediata do prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse “amortecedor de preocupações”, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos (1930,p. 86).

O alívio proporcionado pelas drogas traz consigo a esperança de que a divisão subjetiva, a incompletude do sujeito diante de sua falta de ser feliz (que move o ser humano), seja eliminada (Grossi, 2000, p. 40).

Olivieri (1998) assinala que, na realidade, a toxicomania aponta para algo além de uma simples fuga da realidade, sendo mais exatamente uma solução para vedar a castração. “O fenômeno das toxicomanias se apresenta como uma promessa de encontro com o objeto perdido, promessa tanto radical quanto enganosa na qual o sujeito do inconsciente se apaga” (p. 174).

Na opinião de Lorencini (1998), quanto mais se recorre ao consumo de drogas por dificuldades de auto regulação, maior é o prejuízo de que o consumo se interiorize como parte indispensável da vida do sujeito (p. 31).

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Desse modo, o sujeito se aproxima das drogas buscando o prazer imediato, automático, diferente dos outros prazeres. E quanto mais experimenta esse prazer imediato, mais difícil é viver os outros, já que o prazer da droga tende a substituir os outros prazeres, colocando o usuário cada vez mais centrado na sua relação com as drogas e diminuindo todos os outros interesses e prazeres. É um prazer excludente (Idem, p. 40).

O toxicômano estabelece com a droga uma relação que se baseia na repetição, na qual a droga ocupa um lugar central na economia psíquica do sujeito.

Batista e Vasconcelos (2001) em “O mal estar na espontaneidade”, enfatizam o investimento libidinal significativo do sujeito na droga, ressaltando que “sua vida se desenrola em torno desse objeto, há todo um empenho para obtê-lo e o interesse do sujeito fica totalmente localizado na droga. Ela lhe proporciona prazer e nela o sujeito encontra uma forma particular de extrair um gozo” (p. 29).

O toxicômano não suporta qualquer coisa que barre seu gozo, não tolera a frustração, suprimindo-a pelo objeto droga e, a partir de então, encontrando uma solução para sua angústia diante do desejo do Outro. O gozo do toxicômano não recorre à fantasia, não tem mediação, ou seja, não passa pelo Outro – o gozo não é barrado. Será para além deste gozo que a intervenção do analista possibilitará o aparecimento do sintoma inerente ao sujeito do inconsciente, em sua dimensão de enigma, para assim ocorrer o esvaziamento do significante droga com o qual se nomeia (Olivieri, 1998, p. 175).

Especificando o gozo do toxicômano, Lecoeur (1982) diz que a satisfação do sujeito com a droga se apresenta na forma de um gozo fabricado, sem adiamento, monótono. Um gozo que tenta romper com o gozo fálico, promovendo o seu retorno sobre o próprio corpo do sujeito. O que o sujeito tenta não é encontrar algo que substitua o objeto sexual a partir das drogas, mas sim provocar um curto circuito nesse gozo, dito fálico, por não ser capaz de lidar com a sua angústia estrutural.

Ao fazer o curto circuito do simbólico pelo uso da droga, o sujeito na verdade não abre mão do Outro, não se responsabiliza, não responde por sua vida. “O sujeito aloja-se no significante que o Outro social lhe fornece e atribui ao Outro do acaso a responsabilidade de decidir a partida” (Ribeiro, 1998, p. 124).

Batista e Vasconcelos (2001) observam que a toxicomania não faz enigma, não faz sintoma para o sujeito e sim o esconde dele, tamponando a angústia de castração. “Entretanto este mecanismo tamponador começa a falhar e o toxicômano é capturado por esse objeto droga” (p. 29).

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Freda (1999) assinala que o toxicômano coloca a satisfação sobre um objeto, tornando-o vivo, tratando-o como se ele fosse uma pessoa.

Lecoeur (1992) acrescenta que o toxicômano, através de sua dependência radical do objeto droga, ao fazer uso dela não é um sujeito, ocorrendo uma neutralização de qualquer troca simbólica.

Assim, segundo os autores acima citados, o sujeito primeiramente tem posição ativa sobre a droga, posteriormente, tornando-se incapaz de controlar sua disposição para o uso, passando de uma atividade para uma passividade frente à droga.

Olivestein (1997) ressalta que a drogadição resulta do encontro de três fatores: a droga, a pessoa e o contexto sociocultural. O que determinará a dependência ou não do sujeito em relação às drogas é o seu contato subjetivo com ela, dentro do seu percurso de vida estritamente pessoal.

Para Bucher (1992) começar a usar drogas significa estar à procura de algo diferente, algo que seja competente o suficiente para preencher uma falta. Essa falta a que ele se refere pode estar relacionada ao corpo, à economia psíquica, à família; pode ser por carência afetiva, ausência de trocas, de lei e de projetos. A sensação é de vazio, provocando uma procura de preenchimento. Assim, entende-se que a relação do indivíduo com a droga é singular, diz respeito ao modo como cada um vai estabelecendo seus vínculos ao longo da vida.

Da mesma forma, Cruz (2001) sinaliza que para entender porque algumas pessoas usam drogas e outras não, ou porque umas usam e se tornam dependentes e outras não, é necessário “um olhar” mais detido sobre as diferenças mais profundas entre os indivíduos (p. 70).

Enfim, na temática das drogas deve-se enfatizar as formas de interação que os indivíduos assumem com “elas”, fazendo-se necessário uma análise dos processos de degradação de suas relações sociais, da perda de seus laços afetivos e familiares e das suas dificuldades de interação social.

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REFERÊNCIAS

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BATISTA, Fabiana. C e VASCONCELOS, Maurício. PALHANO de J. (2001). O Mal estar na espontaneidade. In: A clínica da toxicomania no campo da saúde mental. XIV Jornada do Centro Mineiro de Toxicomania – FHEMIG. Belo Horizonte. MG.

BUCHER, Richard (1992). Drogas e drogadição no Brasil. Porto Alegre: Artes Médicas. CRUZ, Marcelo (2001) Práticas médicas e modelos conceituais na abordagem das toxicomanias. In: Caderno de textos da XV Jornada do Centro Mineiro de Toxicomania. Belo Horizonte: CMT/Secretaria de Estado de Saúde.

CRUZ, Marcelo; FERREIRA, Salete M. B (2001) Determinantes socioculturais do uso abusivo de álcool e outras drogas: Uma visão panorâmica. In: CRUZ, Marcelo; FERREIRA, Salete M. B (org.). Álcool e drogas – usos, dependência e tratamentos. Rio de Janeiro: IPUB. FREUD, S. O Mal estar na civilização (1930/1980). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora volume XXI. GROSSI, Fernando Teixeira (2000) As drogas e a contemporaneidade. In: GROSSI, Fernando T; BAHIA, Idálio V; CIRINO, Oscar (org.). Psicóticos e adolescentes: pó que se drogam tanto? Belo Horizonte: centro Mineiro de Toxicomania/Secretaria de Estado de Saúde.

HAYEK, Friedrich A (1987) O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Expressão e cultura. Instituto liberal.

INEM, Clara L (2001) Adolescência e suas vicissitudes: impasses do desejo. In: CRUZ, Marcelo; FERREIRA, Salette M. B (org.). Álcool e drogas – usos, dependência e tratamentos. Rio de Janeiro: IPUB.

LECOEUR, Bernard (1992) O homem embriagado – Estudos psicanalíticos sobre toxicomania e alcoolismo. Belo Horizonte: Centro Mineiro de Toxicomania.

LORENCINI, JÚNIOR. Álvaro (1998) Enfoque estrutural das drogas: Aspectos biológicos, culturais e educacionais. In: Groppa, Júlio A (org.). Drogas na escola – alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus.

MELMAN, Charles (1992) Alcoolismo, delinquência, toxicomania: Uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta.

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OLIVEIRA, Evaldo M; MELCOP, Ana G (2001) Adolescência: rumos e metamorfoses. In: CRUZ, Marcelo; FERREIRA, Salette M. B (org.). Álcool e drogas – usos, dependência e tratamentos. Rio de Janeiro: IPUB.

OLIVENSTEIN, Claude (1997) Toxicomania, exclusão e marginalidade. In: INEM, Clara; BAPTISTA, Marcos (org.). Toxicomanias, Abordagem multidisciplinar. Rio de Janeiro, NEPAD/UERJ. Sette Letras.

RIBEIRO, Maria Anita C (1998) O brilho da infelicidade. O inferno do desejo e o deserto do gozo. Kalimeros – Escola brasileira de psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. SENETT, Richard (1999) A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record.

VELHO, Gilberto (1987) Individualismo e cultura: Notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar.

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