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32º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 7 Corpo, biotecnologia e subjetividade Coordenadoras: Jane Araújo Russo (UERJ) Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP)

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Academic year: 2021

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32º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 7 – Corpo, biotecnologia e subjetividade

Coordenadoras: Jane Araújo Russo (UERJ) Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP)

CÉLULAS-TRONCO: NOVAS FORMAS DE VIDA EMERGENTES E A CONCEPÇÃO DE PESSOA NO DEBATE PÚBLICO

Naara Luna1

Resumo:

A pesquisa biomédica produziu novas formas de vida como as células-tronco (CT). Estas são objeto de debate que ultrapassa o campo biomédico. A autorização pela lei de Biossegurança de 2005 do uso de embriões humanos congelados e inviáveis de clínicas de fertilização para obtenção de CT embrionárias despertou as seguintes reações no espaço público: uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) no Supremo Tribunal Federal e a Campanha de Fraternidade da CNBB em 2008, em ambos os casos com uso do argumento de defesa da vida. Esta comunicação pretende analisar os argumentos que definem o conceito de “vida” com base na sessão de julgamento da ADIN no STF em 2008 e no material veiculado para a Campanha da Fraternidade, considerando também a cobertura pela imprensa. A hipótese é que a definição de vida está vinculada à concepção de pessoa humana tanto do embrião de laboratório como do feto.

Introdução

A pesquisa biomédica tem produzido novas formas de vida como as células-tronco (CT) (Franklin, 2005). CT adultas retiradas da medula óssea são utilizadas em terapias experimentais, mas parte significativa da comunidade científica defende a ampliação das pesquisas com CT extraídas de embriões devido a seu maior potencial de diferenciação, o que, dependendo do desenvolvimento futuro, poderá propiciar tratamento para uma gama mais ampla de doenças degenerativas (Rehen e Paulsen, 2007; Hogle, 2003). Por conta do emprego de embriões humanos como material biológico (cf. Mulkay, 1997), as CT têm sido objeto de debate que ultrapassa o campo biomédico como se explicita em acontecimentos recentes no Brasil. Esta comunicação pretende analisar os argumentos que definem o conceito de “vida” a partir dos discursos proferidos por ocasião de dois eventos: o julgamento da ação de inconstitucionalidade

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Doutora em antropologia, PPGAS, Museu Nacional, UFRJ. Pesquisadora colaboradora no Laboratório de Estudos da Ciência (LEC) do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES), UFRJ.

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no Supremo no Supremo Tribunal Federal que questionava o uso de embriões humanos para obtenção de células-tronco e a Campanha da Fraternidade da CNBB de 2008 cujo tema foi “Fraternidade em defesa da vida”.

A nova lei de biossegurança, aprovada em março de 2005 pelo Congresso Nacional, e sancionada pelo presidente da república em outubro do mesmo ano, autorizou o uso, para fins de pesquisa e terapia, de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos congelados e inviáveis produzidos por fertilização in vitro (FIV) e não utilizados no procedimento. O artigo 5º permite para esses fins embriões inviáveis e aqueles congelados por três anos ou mais, ou que já congelados na data da publicação da lei viessem a completar três anos nesse estado. É necessário o consentimento dos “genitores” (sic) para esse uso, e os projetos de pesquisa e terapia deverão ser submetidos a comitês de ética em pesquisa. A lei veda ainda a comercialização desse material biológico. Essa autorização suscitou as seguintes reações no espaço público: uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal e a Campanha de Fraternidade da CNBB.

A ação foi proposta pelo então Procurador Geral da República Cláudio Fonteles, em 16 de maio de 2005, questionando a constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança por entender que este feria direitos e garantias fundamentais: a inviolabilidade do direito à vida e a preservação da dignidade humana, fundamento do Estado Direito. A justificativa relacionou-se à destruição dos embriões necessária para a extração das células-tronco. A CNBB desde o início do processo apareceu oficialmente como parte interessada. Por sugestão do demandante, o relator da ADI 3510 ministro Carlos Britto convocou uma audiência pública com cientistas em 20 de abril de 2007, sendo metade indicada pelo lado contrário ao uso de embriões em pesquisa e metade pelos favoráveis (Luna, 2007). O julgamento da ADI 3510 no STF começou com uma primeira sessão em 5 março do corrente ano, mas foi suspenso pelo pedido de vistas do processo pelo ministro Menezes Direito, logo identificado pela imprensa como um ministro ligado à Igreja Católica.2 O julgamento foi retomado nos dias 28 e 29 e maio de 2008 e o plenário dos ministros decidiu por maioria apertada de 6 a 5 pela constitucionalidade da lei. Dos cinco votos contabilizados como considerando a lei parcialmente improcedente, três acataram a tese de violação do direito à vida, enquanto

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Silvana FREITAS. Juiz católico adia decisão sobre embrião: ministro Menezes Direito pede vista de processo no Supremo que decidirá se pesquisa com célula-tronco pode continuar. Três ministros declaram voto a favor da Lei de Biossegurança, que deve voltar a ser apreciada no STF nas próximas semanas. Folha de S. Paulo, 6 mar. 2008, Ciência, p. A20.

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dois apenas fizeram recomendações sobre a criação de órgãos de fiscalização das pesquisas e terapias, ou a definição dessas funções nos órgãos já existentes.

A Campanha da Fraternidade de 2008 trouxe o lema “Escolhe, pois a vida”, tendo como alvos a combater: os permissivos legais para qualquer forma de abortamento, e sua possível ampliação, e o uso de embriões humanos em pesquisa no caso para produção de células-tronco. No caso do abortamento, estava no horizonte o julgamento previsto no Supremo Tribunal Federal da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF 54, proposta pela Associação Nacional de Trabalhadores em Saúde (Fernandes, 2007) a fim de garantir a permissão para que gestantes diagnosticadas portando fetos anencefálicos possam interromper a gravidez sem necessidade de autorização judicial caso a caso. Além disso, estavam em jogo as posições do ministro da saúde Carlos Temporão e da ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Nilcéa Freire que afirmaram publicamente diversas vezes a necessidade de alteração da legislação brasileira sobre o aborto, considerado pelo primeiro como “problema de saúde pública”.

Esta comunicação pretende analisar os argumentos que definem o conceito de “vida” a partir da transcrição dos votos dos ministros no julgamento da ADI no STF, incluindo a petição inicial, e do manual da Campanha da Fraternidade de 2008. A hipótese é que a definição de vida em ambos os casos está vinculada à concepção de pessoa humana tanto do embrião de laboratório como do feto. Uma segunda hipótese considera que, para ganhar legitimidade no espaço público, houve necessidade de fundamentar na biologia tanto a argumentação religiosa como a jurídica, constatando-se deslizamentos entre esses discursos. Assim, a justificativa para a definição desse sujeito nos discursos sob exame deve ser baseada em uma concepção de natureza que oscila da linguagem biologizante a concepções metafísicas de “lei natural” proveniente da teologia e de direitos humanos, do campo jurídico.

A comunicação vai abordar na primeira parte o julgamento no Supremo Tribunal Federal e na parte final a Campanha da Fraternidade de 2008. Com respeito ao julgamento, serão considerados os itens: a petição, os que recusaram a tese o início da vida, os que relativizaram o início da vida e os que apresentaram o início da vida na fecundação como fato. No tocante à Campanha da Fraternidade, o material de análise será o manual da CNBB.

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A análise vai se basear no texto da petição inicial e nos votos de dez dos ministros no julgamento da ADI 3510.3 A tese central da petição afirma que “a vida humana acontece na e a partir da fecundação” (p. 2, grifo original). Tal afirmação é fundamentada em várias citações de depoimentos, artigos científicos e mesmo de um livro publicado pela Pastoral Familiar da CNBB, Vida: o primeiro direito da cidadania, em que cientistas defendem a tese do início da vida. “O embrião é o ser humano na fase inicial de sua vida. [...] Compreende a fase de desenvolvimento que vai desde a concepção, com a formação do zigoto na união dos gametas, até completar a oitava semana de vida” (p. 2 da petição), diz o Dr. Dernival da Silva Brandão, em texto extraído do referido livro. Uma das ênfases está no caráter científico dessas proposições, conforme continua o Dr. Dernival da Silva Brandão: “aceitar, portanto, que depois da fecundação existe um novo ser humano, independente, não é uma hipótese metafísica, mas uma evidência experimental. Nunca se poderá falar de embrião como de uma ‘pessoa em potencial’” (p. 3, petição). O esforço é mostrar que o embrião é uma vida individual com desenvolvimento autônomo a partir da fecundação. Com respeito ao contexto dos embriões em laboratório produzidos por FIV, é importante acentuar sua autonomia e minimizar o papel materno no desenvolvimento, conforme a declaração do Dr. Dalton Luiz de Paula Ramos retirada do referido livro:

Nessa nova vida se encontram todas as informações, que se chama “código genético”, suficientes para que o embrião saiba como fazer para se desenvolver. Ninguém mais, mesmo a mãe, vai interferir nesses processos de ampliação do novo ser. A mãe, por meio de seu corpo, vai oferecer a essa nova vida um ambiente adequado (o útero) e os nutrientes necessários. Mas é o embrião que administra a construção e executa a obra. Logo, o embrião não é “da mãe”; ele tem vida própria. O embrião “está” na mãe que o acolhe porque o ama. (p. 4, petição).

Afirma-se assim a individualidade genética do embrião a partir do DNA e se reduz a mulher gestante ao papel de “ambiente adequado” e fonte de “nutrientes”. A mulher retratada como “meio” para o desenvolvimento de um sujeito é tema repetido nos documentos religiosos da Igreja Católica, conforme já analisado anteriormente (Luna, 2002).

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Até o momento da conclusão deste trabalho em setembro de 2008, o voto do ministro Celso de Mello não fora publicado, razão da impossibilidade de incluí-lo nesta análise. Quase todos os votos foram publicados no informativo on line do Supremo, o Push STF. Agradeço a Rachel Aisergart Menezes e a Carolina Altoé Velasco que me facilitaram o acesso a alguns desses documentos.

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A petição segue descrevendo, sempre por citação de cientistas, “os avanços muito mais promissores da pesquisa científica com células-tronco adultas do que com as embrionárias” (p. 6). Menciona uma entrevista com o professor Damián García-Olmo para demonstrar “a superação do preconceito científico contra as células-tronco adultas” (p. 7), além dos riscos potenciais do uso das células embrionárias, como a formação de tumores, problemas de rejeição e necessidade de terapia imunossupressora (p. 8, petição). Após referir legislação alemã protetora do embrião, o texto arremata os principais argumentos e afirma que: “o artigo 5º e parágrafos da Lei nº 11.105 de 24 de março de 2005, por certo inobserva a inviolabilidade do direito à vida, porque o embrião humano é vida humana, e faz ruir fundamento maior do Estado democrático de direito, que radica na preservação da dignidade da pessoa humana” (p. 11, petição). Após pedir a declaração de inconstitucionalidade, a petição solicita a realização de uma audiência pública e indica uma lista de cientistas para depor.

Está patente em todo o texto da petição e em sua justificativa a dependência da argumentação fundamentada em dados biológicos para demonstrar o estatuto do embrião humano como pessoa e vida humana. Essa figura de pessoa é o indivíduo descrito por Dumont (1992), como ser a-social e autônomo, referência de valor na cultura ocidental moderna. Cito um último trecho sobre o zigoto para ilustrar essa conclusão: “o zigoto, constituído por uma única célula, imediatamente produz proteínas e enzimas humanas, é totipotente, vale dizer, capacita-se, ele próprio, ser humano embrionário, a formar todos os tecidos, que se diferenciam e se auto-renovam, constituindo-se em ser humano único e irrepetível” (p. 10s., petição). A singularidade e a autonomia caracterizam esse zigoto como indivíduo.

Na petição, as questões jurídicas são apresentadas de forma muito sintética, de modo que a ênfase está na argumentação em cima de dados biológicos, um exemplo da prescrição do social com fundamento no natural, característica da nova episteme surgida com o Iluminismo (Laqueur, 1992). Essa linha de argumentação que reduz o propriamente jurídico ao mínimo em benefício da apresentação de fundamentos na natureza não se repetirá nos votos dos ministros. Em função do foco da presente comunicação, e até por razões de extensão, não será reproduzido o debate como um todo, mas um recorte que privilegia o debate sobre o início da vida, apresentando no fim outras tendências relevantes que surgiram na argumentação.

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Da rejeição do debate sobre o início da vida

Nem todos os ministros se engajaram no debate sobre o início da vida humana, tese central da petição, mas quatro deles consideraram essa questão periférica. Três deles julgaram a ação completamente improcedente, e o quarto, o ministro Gilmar Mendes proferiu uma “sentença de perfil aditivo”, sugerindo que a autorização e a aprovação das pesquisas seja feita por comitê de ética e pesquisa, um órgão vinculado ao Ministério da Saúde.

Segundo a ministra Ellen Gracie: “Não há definição constitucional do momento inicial da vida humana e não é papel da Suprema Corte estabelecer conceitos que já não estejam explícita ou implicitamente plasmados na Constituição Federal. Não somos uma Academia de Ciências” (p. 2).4 A despeito disso, ela menciona o marco de 14 dias designado de período pré-embrionário adotado pela legislação britânica como limite final da manipulação dos embriões in vitro. Esse marco corresponde ao estabelecimento da linha primitiva, primórdio da coluna vertebral, o que corresponde à perda da capacidade de divisão e de fusão do embrião, bem como a separação do conjunto celular que formará o corpo do feto daquele que formará os anexos embrionários (p. 5). Salem (1997) identifica o surgimento dessa estrutura como primeiro sinal de individualização do embrião, origem de sua escolha como marco de referência. . prazo final cita a partir de análise da legislação britânica, o estágio pré-embrionário (14 dias, linha primitiva) (cf. Salem, 1997). Considerando o contexto da formação de excedente de embriões nas técnicas de reprodução assistida, a ministra usa o argumento que ela define como utilitarista para aprovar o uso desses embriões em pesquisas “promissoras” com células-tronco, uma destinação mais “nobre” que o simples descarte. A improbabilidade de uso desses pré-embriões (sic) na geração de novos seres humanos (improbabilidade absoluta no caso dos inviáveis, e previsível entre os congelados há três anos) afasta alegação de violação ao direito à vida (p. 9).

A ministra Carmem Lúcia afirma não haver necessidade de afirmar juridicamente o momento de início da vida para fins de garantia de direitos ao embrião e ao feto (p. 6). Considera que o princípio constitucional da dignidade humana estende-se para além da pessoa e atinge toda a espécie, todos os dotados de humanidade como é o caso do embrião e do morto que não têm as condições para a personalidade de direito, mas ainda assim são protegidos pelo direito (p. 37). A remessa das “células-tronco

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Todos os votos foram coletados como documentos isolados, por isso cada qual exibe uma paginação independente usada como referência nas citações.

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embrionárias” (sic) no lixo é um destino de indignidade, enquanto a legislação permite a dignificação da célula-tronco embrionária que “será transformada em matéria dada à vida, se bem que não ao viver” (p. 40). A ministra considera ainda que embaraçar qualquer linha de pesquisa é um “constrangimento constitucionalmente inadmissível ao direito à vida digna, à saúde, à liberdade de pesquisar e de ser informado” (p. 42). Observa que as pesquisas com células-tronco embrionárias apresentam possibilidades não obtidas com as células adultas. A seu parecer, a liberdade da substância humana não é maior do que à daqueles que lhe deram origem (p. 43), uma afirmação que contraria os que atribuem a condição de pessoa ao embrião, retratado aqui como “substância humana” em contraste com a liberdade dos fornecedores dessa substância. Nesse sentido, ela evita usar a palavra “genitores” adotada pela lei.

O ministro Joaquim Barbosa não considera a discussão na perspectiva de fixação pelo STF do momento de início da vida. Segundo seu parecer, o momento biológico por si só não seria suficiente para solucionar essa questão (p. 1), uma afirmação original que afasta o debate de sua vertente biologizante. Em vez disso, a tarefa seria verificar se é legítima a exceção legal à tutela conferida ao direito à vida (p. 1). O direito à vida e a tutela do direito à vida são dois aspectos de um mesmo direito que não é absoluto (p. 2). Afirma a existência de graus diferenciados de tutela à vida humana nas diversas fases do ciclo vital: fecundação, gestação, nascimento, desenvolvimento e morte (p. 2). Contrasta a tutela dos direitos do embrião e o direito à vida de portadores de doenças sem tratamento (p. 4). Na ponderação de valores referentes à inviolabilidade do direito à vida, o legislador deu primazia à vertente apta a trazer benefícios de expressão coletiva, o que significaria a preservação do direito à vida em espectro mais amplo, considerando toda a sociedade (p. 4). Alerta para a necessidade de critérios rigorosos na fiscalização das pesquisas envolvendo seres humanos, sejam eles, embriões, fetos, bebês, crianças, adultos ou idosos (p. 12). Por duas vezes o ministro traz uma tipologia de seres humanos pautada no ciclo vital, admitindo graus diferenciados de tutela, o que sugeriria uma graduação na condição humana.

O ministro Gilmar Mendes não considera necessário entrar em marcos inicial e final da vida humana para fins de proteção jurídica (p. 5). Essas questões não foram resolvidas e não se acha resposta aceitável de forma universal pela ciência, pela religião, pela filosofia ou por imaginário popular. Nos debates sobre aborto, eutanásia e pesquisa com embriões, conclui-se que não existem respostas moralmente corretas e

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universalmente aceitáveis (p. 6). Observa que não é preciso ser sujeito de direitos para que o elemento vital seja digno de proteção jurídica (p. 6).

O início da vida relativizado

Três ministros discutiram o início da vida sem acatar a tese da fecundação como momento inaugural da vida humana e da pessoa defendida pelos contrários ao uso de embriões em pesquisa.

Na opinião do relator ministro Carlos Britto, o início da vida humana coincide com o instante da fecundação do óvulo pelo espermatozóide (p. 35), mas ele observa que “insubtituível início de vida é uma realidade distinta daquela constitutiva da pessoa física ou natural [...], porque assim é que preceitua o Ordenamento Jurídico Brasileiro” (p. 36). Cita do Código Civil que a personalidade civil começa do nascimento com vida, mas a lei protege desde a concepção os direitos do nascituro (p. 22). A personalidade é predicado “de quem é pessoa numa dimensão biográfica, mais que simplesmente biológica” (p. 22, grifos originais). Do constitucionalista Richard Dworkin, emprega o conceito de tutela jurídica proporcional: “o Direito protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano” (p. 28, grifos meus). Contrapondo-se à argumentação apresentada na petição e pelos cientistas partidários na audiência pública, afirma que embrião, feto e pessoa humana são realidades que não se confundem, por isso não pode “existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana” (p. 34). A pessoa humana seria o resultado final dessa metamorfose e não se antecipa a ela (p. 34). O conceito de metamorfose distingue a abordagem de Carlos Britto do uso do conceito de potencialidade, que antecipa as realidades em germe, tese dos contrários ao uso dos embriões conforme se verá adiante. O ministro diferencia a situação do embrião de laboratório do qual se extraem as células-tronco da interrupção da gravidez, pois não há gestação em curso, portanto as leis criminalizadoras do aborto não se aplicam. O embrião concebido em laboratório que permanece confinado in vitro não é suscetível de progressão reprodutiva (p. 40). Enfatiza a importância da gestação para a continuidade da vida do feto, circunstância ausente no caso do “embrião irrompido à distância e que nenhuma chance tem de se aproximar daquela que o tornaria um filho, e ele a ela, mãe” (p. 54). O ministro traça ainda um paralelo entre o critério da morte encefálica com marco da cessação da vida e o embrião referido na Lei de Biossegurança: “faltam-lhe todas as possibilidades de ganhar as terminações nervosas que são o anúncio de um cérebro humano em gestação” (p. 60). Ele conclui que, sem cérebro, não pode haver

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pessoa humana nem em potencialidade. O embrião no contexto dessa lei é “uma vida vegetativa que se antecipa à do cérebro” (p. 62s). O ministro disserta sobre a importância da livre expressão da atividade científica, direito também garantido pela Constituição, afirmando que deixar de contribuir para devolver a plenitude da vida às pessoas seria omissão de socorro. Em vez de desrespeito aos embriões congelados, seria apreço pelas criaturas humanas que sofrem (p. 70). O ministro contrapõe biografia e biologia no direito constitucional, e se aproxima de uma observação de Waldby (2002) que contrasta a perspectiva sobre os embriões como uma biografia ou como vitalidade biológica crua. O cérebro ou seus antecedentes nos neurônios aparece como índice na natureza corporal da racionalidade humana, daí a conclusão pela inexistência de pessoa sem esse órgão.

O ministro Marco Aurélio claramente mostrou uma perspectiva relativista com respeito ao início da vida, pois não existiria balizamento que escapasse da perspectiva simplesmente opinativa. Ele lista vários enfoques sobre esse começo: concepção, ligação do feto à parede do útero, formação das características individuais do feto, percepção pela mãe dos primeiros movimentos, viabilidade em termos de persistência da gravidez, nascimento (p. 4-5). Trata-se basicamente de marcos físicos de desenvolvimento característicos da cosmologia ocidental moderna na constituição de pessoa (cf. Conklin e Morgan, 1996) Sem traçar consideração sobre esses itens, o ministro descreve teorias da animação segundo Aristóteles e Santo Agostinho. Distingue o contexto dessas pesquisas com a legislação sobre o aborto, o que nos Estados Unidos coloca a possibilidade de sobrevivência do feto fora do útero como limite. Considera que esse precedente tornou irrelevante a discussão sobre a constitucionalidade da pesquisa em CTE em face da suposta transgressão ao direito à vida (p. 7). No artigo 5º da Lei de Biossegurança, a viabilidade não está em questão, pois não se cogita de aproveitamento de embriões no útero, apenas os de FIV (inviáveis ou congelados há três anos). Em sua opinião, quer pela passagem do tempo congelados, quer pela decisão “dos que forneceram o material”, os embriões jamais virão a se desenvolver (p. 8). O início da vida pressupõe não apenas a fecundação, mas a viabilidade não existe sem gravidez (p. 9). A proteção da vida de forma geral, inclusive a uterina em qualquer fase, na Constituição é assunto controvertido, a exemplo dos permitidos aborto terapêutico (p. 9) ou de gravidez resultante de estupro (p. 10). A personalidade jurídica, com surgimento de direitos, depende do nascimento com vida (p. 10). Na FIV, não há unidade biológica, a pressupor o desenvolvimento do embrião,

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do feto, no útero da futura mãe. Os fornecedores de óvulos e dos espermatozóides não são obrigados a gerar todos os embriões fecundados artificialmente (p. 10), o que seria “transformar a mulher em verdadeira incubadora”, contrariando o planejamento familiar previsto na Constituição. Na doação de órgãos, não existe lei que obrigue os pais a fazê-lo para salvar a vida dos filhos (p. 11). Defende os princípios de solidariedade e de dignidade da pessoa humana ao devolver a enfermos e vítimas de acidentes vida útil (p. 11). As CTE não são substituíveis por adultas porque as últimas não geram tecidos nervosos, portanto, várias enfermidades não serão alcançadas pelas terapias com CT adultas (p. 12). Critica a posição dos contrários ao uso das células embrionárias, que destinariam o material biológico ao lixo, proibindo seu uso para salvar vidas. Sob ângulo do tratamento igualitário (p. 12), a proibição prejudicará os que não têm condições de buscar o tratamento necessário em outro centro (p. 13). Fala de se manter a esperança encetada pela lei (p. 16).

O ministro Cezar Peluso tem uma posição absolutamente original dentre os votos, ao defender a tese de ausência de vida nos embriões humanos congelados. Ele apresenta “teóricos sujeitos de direito à vida” no quadro da causa: o embrião congelado, o embrião implantado e o feto, o ser humano criança ou adulto que porta os atributos e a quem a ordem constitucional atribui a qualidade de pessoa (p. 9. §3). Investiga se “se existe diferença de graus de proteção constitucional a que façam jus, de um lado, as pessoas dotadas de vida atual e em plenitude, e, de outro, os embriões” (p. 9. §3). Identifica em ambos a humanidade, mas só no primeiro a presença de vida. O embrião congelado participa em grau primitivo dos requisitos da proteção à dignidade humana do adulto (p. 9 §3). A vida objeto de tutela é apenas a vida da pessoa humana. Disso derivam duas linhas de raciocínio: o embrião é ou não é ainda pessoa; ou no embrião congelado ou inservível (sic) não há vida atual (p. 10 §4). O atributo de humanidade está presente no embrião (p. 11 §4): “a reprodução ou a multiplicação enquanto prolongamento mesmo das pessoas que lhe dão origem, e como tal, não pode deixar de ter a mesma (p. 11) natureza biológica e compartilhar da mesma suprema dignidade moral jurídica do ser humano” (p. 12 §4, grifos meus). As divergências concernem à sua caracterização como pessoa. “Não se pode reduzir a complexidade da pessoa humana como organismo vivo e como sujeito de direito ao aspecto puramente biológico de sua mera completude ou perfeição genética” (p. 12 §4). Ele defende a tese que embriões congelados não têm vida suscetível de tutela, na acepção do ordenamento constitucional (p. 12 §4).

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O ministro critica duas concepções de que o blastocisto constitui o “equivalente moral de pessoa” (p. 16): 1. blastocistos e pessoas são idênticos nas qualidades e justificariam a mesma dignidade moral; 2. blastocistos guardam o potencial de se transformar em pessoas. Peluso contesta a 1ª, porque o blastocisto para se equiparar em valor ao ser humano só apresenta o DNA como característica, e considera que “a presença de alguma estrutura de neurônios” é requisito mínimo para induzir o status moral de pessoa (p. 17§5). Contesta também a tese da potencialidade, que implica a idéia de “aptidão para tornar-se algo mais por si mesmo, sem intervenção ou assistência externa”, mas o blastocisto fertilizado em laboratório não tem essas características, pois precisa ser transferido para o útero (p. 17§5). Esse tipo de potencialidade poderia ser reconhecido no esperma (sic) e no óvulo humanos (p. 18§5). A potência ou potencialidade no zigoto não basta para defini-lo como vida pré-natal nem para reivindicar o estatuto ético-jurídico de pessoa (p. 17s §5).

Segundo Peluso, a noção de processo compreendido como sucessão contínua de mudanças de acordo com diretriz unitária de desenvolvimento autônomo caracteriza o conceito vida, radicado na idéia de movimento. Para identificar em concreto a vida, defende a idéia de “capacidade de movimento autógeno”, cujo princípio causal está no próprio movente (p. 23 §6). Os embriões congelados pararam na etapa inicial, e não têm a potência de promover com autonomia uma seqüência de eventos biológicos que significam “a unidade permanente do ciclo vital que individualiza cada subjetividade humana” (p. 23 §6).

O ministro critica o prognóstico dos demandantes da ação de contínuo desenvolvimento do ciclo vital do embrião, o que não caberia aos congelados (p. 27§7). Essa perspectiva traz “desconsideração ou depreciação da função biológica e da correspondente condição jurídico-normativa que [...] desempenha o útero da mulher” (p. 25 § 7), reduzido na petição a “ambiente adequado” e fonte de “nutrientes necessários” ao desenvolvimento. “A vida intra-uterina é também valor constitucional proeminente” (p. 26 §7). A fixação do óvulo no útero é condição de seu desenvolvimento e constitui critério de definição do início da vida (p. 26 §7). Os embriões excedentes não são sujeitos de direito à vida nem guardam expectativa desse direito. O casal que forneceu os gametas para formação do zigoto possui relativa disponibilidade jurídica sobre o embrião (só coisa é objeto de disponibilidade jurídica) para adotar as alternativas que a lei contempla ou não veda: implantação, doação para adoção, congelamento, destruição

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por descarte (sic), ou doação para pesquisas científicas de finalidade terapêutica (p. 29 §8).

Peluso alerta que os opositores das pesquisas com CTE deveriam considerar inaceitáveis as técnicas de fertilização artificial, pois o argumento baseado em princípio não poderia justificar a criação artificial de embriões e conseqüente geração de seres humanos por via de raciocínio instrumental (p. 32, §11). Em nota de rodapé (p. 33, n. 40), Peluso admite que essa é a posição defendida coerentemente pela Igreja Católica, mas não discerne que o grupo contrário à pesquisa com células embrionárias partilha da mesma idéia.

O início do processo como etapa estancada “não é ainda o processo em ato que revela e define a vida”. O processo é interrompido pelo congelamento, de modo tão artificial quanto aquele mediante o qual começou pela FIV (p. 33 §11). Apenas a introdução do embrião no útero, intervenção de fator externo pode “promover a coexistência do embrião com a entidade que o transformará, aí sim, em vida: o útero materno” (p. 34 §11). Não é o prazo que confere a dignidade constitucional da pessoa humana, “mas um contexto claro de existência de vida, no qual é imprescindível a associação com o útero” (p. 34, n. 51). Prefere não “fixar um ponto arbitrário na linha do tempo para situar o preciso momento do início da vida”, mas discernir três fatos incontestáveis: não se caracteriza a vida como movimento autógeno; a origem da “matéria-prima genética” considerada é a concepção in vitro; não há interrupção do curso da vida, porque antes do início no ventre materno, o processo foi suspenso pelo congelamento. (p. 35 § 12).

O início da vida na fecundação como fato

Três ministros defenderam ostensivamente que a vida se iniciava na fecundação, considerando junto o início da vida e o início da condição de pessoa humana, o que contrasta com a abordagem feita pela maioria de seus pares. Os três defenderam que a obtenção de células-tronco que destruísse embriões feria a inviolabilidade do direito à vida e atentava contra a dignidade humana. Além de diversas questões sobre a regulamentação das pesquisas, o que atingia até as atividades de reprodução assistida, os três admitiram que apenas embriões comprovadamente inviáveis, isto é, que tivessem parado espontaneamente de se dividir por mais de 24h pudessem ser destruídos para obtenção das células-tronco. Quanto aos embriões congelados, admitiam o uso de

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técnicas que retirassem apenas uma célula, sem danificá-los, e que desta célula fossem cultivadas as células-tronco.

O ministro Menezes Direito escreveu um voto bastante técnico, retomando extensamente a produção científica sobre reprodução assistida e cultura de embriões para argumentar. Fez um longo relatório do debate o Supremo no início do voto. Sua contribuição mais original foi analisar a tese defendida pelo grupo favorável ao uso de embriões em pesquisa. Ele designou essa tese de discurso filosófico do estatuto intermediário do embrião solução que foi idealizada por meio de analogia com situações relacionadas à morte, situações em que não há mais vida (p. 58). Segundo esse discurso o embrião é vida não humana: não cabe proteção do direito à vida porque não há pessoa, mas se reconhece proteção à dignidade. O estatuto intermediário e a dignidade intermediária associada a ausência de capacidade moral ou racional. Na opinião do ministro, existe aí uma leitura inadequada de Kant quando se considera a racionalidade como fundamento da condição humana. Essa última tese foi reforçada pelo parâmetro da morte cerebral, e o ministro deduz que saiu daí o marco de 14 dias do Relatório Warnock para proteção do embrião antes do desenvolvimento do sistema nervoso. Na morte, a dignidade humana é reduzida. De modo semelhante, o embrião sem capacidade racional tem proteção diminuída. A proteção que recebe deve-se à condição futura de racionalidade (p. 57-58).

Menezes Direito exige que o STF dê sua posição sobre o início da vida. Ele critica o modelo da metamorfose adotado por Carlos Britto para diferenciar o estatuto do embrião do estatuto de pessoa plena e defende o conceito de potencialidade (p. 47). O embrião já é ser em potência e não se desenvolve se houver obstáculos externos (p. 50). Sua tese é de que a vida regula a proteção merecida pelo embrião. É contrário à posição que vida sem personalidade não é vida humana. A personalidade é atributo da vida, e não o inverso (p. 59). Afirma que o embrião é vida com base nas características de desenvolvimento autônomo, patrimônio genético e de diversidade (p. 59). Para afirmar que o embrião é vida humana, Menezes Direito volta à argumentação biologizante como se constata nos exemplos acima. Para o ministro não basta o reconhecimento de uma “natureza humana”, ou a “qualidade de vida humana”, mas para julgar deve-se apurar na Constituição “a garantia da inviolabilidade do direito à vida e a dignidade da pessoa” (p. 60). No final, o ministro propõe a necessidade de controle das clínicas de reprodução assistida, particularmente com respeito a FIV e PGD (diagnóstico genético pré-implantação). Admite que as pesquisas com CTE são

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importantes e não devem ser impedidas, desde que não causem destruição do embrião, (p. 78). Denuncia a falta de lei para procedimentos não admitidos na FIV e para procedimentos de risco à espécie humana (p. 79). Existe necessidade de autoridade estatal centralizada para fiscalização das atividades envolvendo não apenas as pesquisas com embriões humanos, mas também a reprodução assistida.

O voto do ministro Ricardo Lewandowski tem vários pontos em comum com o de Menezes Direito. Com respeito às CT embrionárias humanas, há controvérsias porque obtenção do material requer “destruição de um organismo vivo, decorrente da fertilização de gametas humanos” (p. 5), o que para alguns “não constitua[i] pessoa no sentido moral ou jurídico”. Segundo o ministro essas pesquisas podem colocar “em risco a própria existência da espécie humana” (p. 6). No item sobre reflexões epistemológicas acerca da ciência, faz várias denúncias de conseqüências nefastas da atividade científica. Propõe limites éticos e jurídicos à ciência para impedir a coisificação das pessoas, tornadas objetos das atividades (p. 11). Discorre sobre várias declarações internacionais de bioética e direitos humanos do qual o Brasil é signatário. No plano jurídico, a vida tem início a partir da concepção, segundo Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de Costa Rica, de 1969 e assinado pelo Brasil em 2002. Defende o Status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos (p. 20). Direito à vida deve ser protegido desde a concepção in vitro ou no útero (p. 21). Depois de se alongar nos regulamentos internacionais sobre o estatuto do embrião e a regulamentação dessas pesquisas, o ministro conclui propondo critérios para uso de embriões criopreservados que respeitem a dignidade da pessoa. O tratamento diferenciado de embriões segundo período de criopreservação contraria o axioma da não-discriminação (p. 47s.). É contrário à destinação para pesquisa ser decidida por genitores, “pragmatismo extremado” (p. 50). A partir do nascimento originado de embriões que passaram períodos mais longos de criopreservação, argumenta que enquanto houver potencial de vida devem ser implantados na mãe ou em mulheres inférteis (p. 49) e as clínicas devem arcar com ônus do congelamento (p. 50). Sugere adoção de embriões excedentes (p. 49).

Eros Grau elaborou um voto bastante sintético: cita o Código Civil que define que a “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (p. 4, §3). Argumenta que se o nascituro é considerado sujeito de direito, a lógica exige que se reconheça seu caráter de pessoa. A dignidade humana preexiste ao nascimento (p. 4 § 3). O nascituro é pessoa.

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“Todos os entes suscetíveis de aquisição de direitos são pessoas”. A capacidade de exercício de direitos da personalidade jurídica depende do nascimento (p. 5 §4). O nascituro faz parte do gênero humano. O embrião é uma parcela da humanidade. A Constituição garante proteção de dignidade e direito à vida. Afirma a autonomia do embrião: “sua única opção é nascer” (p. 6, §4). Uso de CT obtidas de embriões humanos produzidos por FIV e não usados afronta o direito à vida e à dignidade humana (p. 6, §5). No contexto do artigo 5º da Lei de Biossegurança, “embrião é óvulo fecundado fora de um útero”. Nos embriões há processo vital em curso. O embrião é o que é, porque está no útero, a morada da vida, onde surge a vida (p. 8 §7). É necessário estabelecer limites para a pesquisa e a terapia a que se refere o artigo, a fim de evitar abrir um “precedente” para o aborto (p. 9 §10). Há distinção entre a destruição da vida no aborto e a construção da vida na pesquisa com CT (p. 9-10 §10).

A Campanha da Fraternidade da C+BB

A Campanha da Fraternidade de 2008 teve o tema “Fraternidade e defesa da vida” e o lema “Escolhe, pois a vida” (Dt 30.19). Nos últimos anos, portanto, várias vezes a palavra “vida” esteve incluída nos lemas da campanha, porém no ano de 2008, quero argumentar que o emprego do termo relacionou-se a duas questões específicas: o combate ao aborto e a rejeição à pesquisa com células-tronco derivadas de embriões humanos. Embora o texto base não se restrinja a esses tópicos, a “defesa da vida” e o objetivo geral de “levar a Igreja e a sociedade a defender e promover a vida humana desde a sua concepção até a sua morte natural” (§12, p. 31) tiveram ênfase maior na vida a partir da fecundação, independentemente se na etapa intra-uterina ou em laboratório na fertilização in vitro. Vou fundamentar essa posição no próprio manual.

Na ficha catalográfica da publicação, a primeira palavra chave é aborto, seguida por Campanha da Fraternidade; conversão; eutanásia; fraternidade; vida; vida – aspectos religiosos – Cristianismo. O manual se compõe do texto-base da campanha e de materiais diversos destinados a uso em rituais ou na educação dos fiéis em 360 p. A porção mais longa do livro é o texto-base (124p), além da apresentação da CF, e de orientações gerais sobre a história e funcionamento da campanha.

O Texto-base da CF-2008 será a fonte principal da presente demonstração, uma vez que embasa os outros materiais contidos no manual. Os principais pontos de ataque estão presentes já na introdução: a CF-2008 “expressa a preocupação com a vida humana, ameaçada desde o início por causa do aborto até sua consumação em vista da

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eutanásia” (§3, p. 26). Afirmam-se valores filosóficos com fundamentação teológica: “o encontro com Cristo é o ponto de onde partimos para reconhecer plenamente a sacralidade da vida e a dignidade da pessoa humana” (§11, p. 30, itálicos meus). Após a introdução, o texto-base está dividido em três grandes partes, “Ver”; “Julgar” e “Agir”, com trechos correspondentes entre si. O método Ver-Julgar-Agir é oriundo das correntes liberacionistas da Teologia Latino-Americana.5 A parte “Ver: entre a cultura da vida e a cultura da morte” é constituída de 6 seções (§16 a 151, p. 33-82). A primeira seção “I. A pessoa humana e a cultura da morte” vai do parágrafo (§) 17 a 54 (p. 34 a 46). Passadas as subseções iniciais (1. um olhar integral sobre a pessoa humana; 2. a pessoa humana, o amor e a vida; 3. os valores na cultura da morte), vem a subseção mais longa “4. os desafios da ciência e das novas tecnologias” composta pelos parágrafos 41 a 51 (p. 41-45). A título de comparação, as seções finais “5. Um olhar sobre a juventude” (§52 e 53, p. 45s) e “6. O mundo das prisões” (parágrafo 54, p. 46) ocupam uma página e um quinto. A posição do texto com respeito à ciência é ambígua: “As ciências e as novas tecnologias são instrumentos poderosos tanto de auxílio como de ameaça à vida” (§46, p. 42). O destaque dado à ciência e tecnologia já nessa fase inicial as revela como pontos preferenciais de crítica pelo texto, o qual levanta exemplos do “tipo de pesquisa que desrespeita os direitos humanos” (p. 45), entre os quais a pesquisa com células-tronco embrionárias. Na impossibilidade de uma análise extensa da totalidade do texto-base, destaco trechos mais significativos. Uma afirmação chave está na subseção “1. Um olhar integral sobre a pessoa humana”: “A segunda experiência constitutiva de nossa pessoa é a percepção do próprio ‘eu’, da própria individualidade e da própria dignidade. Eu não me confundo com os outros, eu não sou parte de minha mãe ou do meu pai”. Essa citação traz a representação de pessoa como indivíduo peculiar à cultura ocidental moderna (Dumont, 1992), no caso, o sujeito Kantiano autocontido e dotado de dignidade intrínseca (Fagot-Largeault, 2004). Essa noção será usada mais adiante como argumento para recusar qualquer tipo de aborto ou manipulação do embrião mesmo aquele gerado fora do útero, no contexto de laboratório.

A seção “II. Vida, afetividade e sexualidade” sugere como questões voltadas para a reprodução humana estão no cerne do debate pela CNBB, o que fica patente na frase de abertura: “Alguns dos temas mais importantes para a defesa da vida humana na

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Cf. Proposta metodológica de planejamento pastoral. Disponível em:

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atualidade se referem a questões que afetam a reprodução humana, como o aborto e a reprodução assistida (bebê de proveta)” (§ 55. p. 47). Nessa seção, aborda-se a gravidez indesejada e se defende o “método natural” de contracepção. Quero demonstrar a centralidade do debate sobre o aborto e o estatuto do embrião humano para argumentação de defesa da vida no texto-base: a seção “III. A vida não-nascida” desenvolve-se em 37 parágrafos ou 14 páginas (§ 70-106, p. 52-67), enquanto a seção “IV. A vida, o sofrimento e a morte”, que trata do sentido da morte e do sofrimento, incluindo temas como suicídio e eutanásia, ocupa 8 páginas (§107-128, p. 67-75). Já na seção “V. A sociedade e as ameaças à vida”, discorre-se sobre a pobreza em duas páginas (§129 a 135, p. 75-77), enquanto o problema ecológico e a demografia na seção “VI. As ameaças à vida e o meio ambiente” ocupam 5 páginas (§136-150, p. 77-82). Essa tendência de dissertar mais longamente sobre as questões relacionadas ao aborto e fase embrionária vai se manter ao longo do texto-base. Essa ênfase não se reduz à extensão, mas diz respeito ao conteúdo.

A seção “III. A vida não-nascida” se divide nas subseções: 1. o aborto (sobre a questão legal); 2. o aborto e a saúde pública; 3. o aborto como “mal necessário” (contra a argumentação feminista); 4. o financiamento externo para liberação do aborto (relaciona as conferências sobre população, aborto e controle populacional); 5. o desejo de ter filhos e a reprodução assistida (o bebê de proveta); 6. as células-tronco (contra a pesquisa com células-tronco embrionárias por causa da destruição do embrião); 7. eugenia, seleção de sexo e projeto dos pais em relação aos filhos (contra o diagnóstico genético pré-implantação: PGD). Os títulos evidenciam a abrangência do enfoque sobre embrião e feto, gerados ou não em laboratório, seu desenvolvimento e destino. Um ponto a destacar está na definição de início da vida, equiparada no texto-base ao início da condição de pessoa humana, ou “o novo indivíduo da espécie humana” no momento da fecundação: “É impossível negar que, com a união dos 23 cromossomos do pai com os 23 cromossomos da mãe, surge um novo indivíduo da espécie humana”... E prossegue: “É um novo indivíduo que apresenta um padrão genético e molecular distinto, pertencente à espécie humana e que contém em si próprio todo o futuro de seu crescimento” (itálicos originais, §74, p. 53). Esse trecho, além de reforçar a representação de pessoa como indivíduo, traz dados do essencialismo genético: trata-se de um “padrão genético e molecular distinto”. Conforme analisado em outros documentos do magistério católico (Luna, 2002), esse exemplo mostra a relação tensa do diálogo entre a doutrina católica e o saber científico: aquela necessita apropriar-se

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seletivamente do discurso biológico para fazer valer seus argumentos, mesmo que questione os avanços da ciência como faz diversas vezes no próprio texto-base. O artigo 5º da Constituição Federal Brasileira é invocado por garantir a “inviolabilidade do direito à vida” (§90, p. 59), interpretada pela Igreja como tendo início na concepção, e assim argumentar contra qualquer tipo de aborto ou de intervenção em embriões, independentemente do meio ou do contexto em que se encontram. Quanto aos dois casos previstos no Código Penal em que o aborto não é punido, para salvar a vida da mãe e em gestação decorrente de estupro, a posição da Igreja se mantém contrária. No caso de salvar a vida da mãe, argumenta-se que “atualmente, com os recursos da medicina, tal situação é uma grande exceção, porque é possível salvar a criança e a mãe, mesmo em casos de partos bastante prematuros” (§78, p. 54). Quanto à gravidez decorrente de estupro, considera-se o aborto como nova violência contra a mãe e que a maioria das mães, passada a rejeição, vai amar seu filho (§78, p. 55). É curioso que o recurso técnico criticado como eugenia no diagnóstico fetal que indicaria o aborto no caso de malformações (§79, p. 85), é louvado quando se trata dos recursos da medicina para preservar a gravidez. Com respeito ao item sobre células-tronco, além de questionar a necessidade de destruir embriões (§104, p. 65) e denunciar que “alguns cientistas exageraram publicamente a promessa das células-tronco embrionárias” (§104, p. 65), apontando risco do desenvolvimento de tumores e rejeição (§103, p. 64), o documento rebate a inviabilidade dos embriões congelados com exemplos de nascimento após muitos anos (§105, p. 66). Aí se inclui a crítica às técnicas de fertilização in vitro que permitem a produção desses embriões excedentes (§105, p. 66). A segunda parte do texto base é “Julgar: Deus indica o caminho da vida”. Está dividida nas seções “I. A vida, dom de Deus”; “II. O encontro com Cristo nos convida a escolher a vida”; “III. A vida no Espírito e a Igreja” e “IV. Discernindo entre os caminhos da vida e os caminhos da morte”. Enquanto a 1ª parte do texto-base se fundamentava em estudos sociológicos, históricos e da bioética, a parte julgar principia com a concepção teológica segundo textos bíblicos e segue com documentos do magistério da Igreja. Para os propósitos de nossa análise, a seção IV, discernindo os caminhos da vida e da morte é a mais importante. Antes, porém vale a pena comentar sobre a seletividade na narrativa da história que se quer construir. Na subseção “III.1. o valor da vida e a dignidade da pessoa humana na história da Igreja”, afirma-se que “desde cedo, também os cristãos se posicionaram contra o aborto, reconhecendo a dignidade do embrião humano” (§194, p. 97). Os estudos de Jane Hurst (2000) mostram

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o contrário, com a condenação tardia, no século XIX, do aborto em todas as fases da gravidez. Prevalecia a teoria da hominização tardia do “feto” (não existia tal categoria então) baseada em São Tomás Aquino. Tal posição é explicada no texto-base como decorrente de “questões de conhecimento biológico”: “São Tomás Aquino considera que existe o aborto a partir do momento que a alma entra no feto. Porém segundo seus conhecimentos de biologia reprodutiva, isso não aconteceria logo no momento da fecundação” (§194, p. 97). Essa interpretação da Igreja revela dois pontos distintos: o primeiro refere-se à nossa cosmovisão ocidental moderna que busca na Natureza o fundamento da realidade (cf. Laqueur, 1992), por isso a teologia mais antiga não seria falha, apenas seus conhecimentos insuficientes; o segundo diz respeito a qual tradição da Igreja se escolhe invocar ou esquecer, impondo à teologia do período escolástico concepções de natureza pertinentes à cosmovisão atual (cf. Luna, 2002).

A seção “IV. Discernindo entre os caminhos da vida e os caminhos da morte” é composta das subseções: 1. discernimento sobre a pessoa humana; 2. discernimento diante dos avanços da ciência; 3. discernimento diante da esterilidade conjugal (contra a “reprodução artificial” (sic)); 4. discernimento diante da gestação indesejada (contra o aborto); 5. discernimento diante da manipulação do embrião; 6. discernimento diante da vida afetivo-sexual; 7. discernimento diante da pobreza; 8. discernimento diante da violência; 9. discernimento diante do sofrimento (busca de sentido para o sofrimento); 10. discernimento diante da morte (contra a eutanásia e seu oposto, a obstinação terapêutica). Pela divisão dos temas, fica patente a ênfase maior no questionamento à ciência e na problemática que cerca a reprodução humana e sexualidade, em particular o estatuto de pessoa do feto e do embrião. Mesmo o item sobre a pobreza remete à reprodução: “a contracepção e o aborto não podem ser considerados soluções para os problemas decorrentes da pobreza” (§223, p. 106). Quanto ao aborto, embora “não se pode [possa] negar que o aborto clandestino traz maior risco para mulher”, o documento “não permite sua admissão como um ‘mal menor’” (§208, p. 101). Faz-se a crítica aos pressupostos do movimento pelo direito de decidir: “o aborto anuncia uma concepção de liberdade que exalta o indivíduo que se pode fazer ouvir. [...] Não se pode admitir a eliminação de uma pessoa inocente em nenhum caso” (§ 209, p. 102, itálicos originais). O documento propõe a resistência dos profissionais de saúde que: “têm também o direito e o dever de se opor ao aborto, inclusive por meio da objeção de consciência e da recusa de obediência” (§212, p. 103). Por fim, afirma-se a autonomia do embrião e sua condição de pessoa com base na Biologia e por conseqüência no Direito: “desde a

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fecundação até a morte, os processos vitais acontecem de forma interna, contínua, coordenada e gradual. O zigoto é um sujeito individual da espécie humana com possibilidade de desenvolvimento. Sendo um bem em si, deve ser respeitado no plano ético e protegido no plano jurídico, qualquer que tenha sido a sua origem” (§214, p. 103s, itálicos originais). O embrião humano “já é uma pessoa atual em seu ser” (§214, p. 104). Percebe-se que a proposta de “promoção humana como um processo integral, que considera a pessoa em todas as dimensões” (§251, p. 116) está bastante direcionada para o debate sobre reprodução e defesa do embrião humano.

A terceira parte do texto-base é “Agir: em defesa da vida. Pela limitação de espaço, será descrita brevemente. Apresenta propostas práticas para a “promoção humana” em suas seções aqui abreviadas: a exigência da caridade; conscientizar e agir; ações (da comunidade) para defender a vida; a transformação das estruturas; coleta da solidariedade e destinação do fundo nacional de solidariedade. Das três partes, em função de seu intuito de fomentar práticas, é a mais diversificada na “defesa da vida”. Ao contrário das partes anteriores do documento, apenas uma porção das ações remete à reprodução humana. Destaco das ações para conscientizar: a proposta de cursos de pós-graduação em Bioética Personalista, e a bioética no currículo de pós-graduação (§267, p. 123); além de uma postura pró-ativa diante dos meios de comunicação (§270, p. 124). Entre as ações da comunidade, há um item para “acolher a gestante em dificuldade e seu filho” (§272-273, p. 124s), e nas pastorais propõe-se fortalecer o Comitê de Bioética da CNBB, aprofundando o estudo da bioética personalista entre pessoas de vários níveis na Igreja (§280, p. 127). Muitas propostas de “transformação das estruturas” voltam-se para políticas públicas (todas no §287): demandar o cumprimento do Artigo 5º da Constituição que garante a inviolabilidade do direito à vida (p. 129); ação junto a parlamentares para impedir a aprovação de projetos de lei que descriminem o aborto6 (p. 129), “lutar por uma legislação que combata a praga (sic) do congelamento de embriões nas clínicas de reprodução assistida” (p. 129), assegurar o respeito à objeção de consciência (p. 129).

Considerações finais

Embora a retórica da CNBB seja a da defesa da vida em sua integralidade, a análise do manual da CF-2008 explicita a ênfase no estágio de desenvolvimento anterior

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Em Gomes et al. (2007) se investiga a atuação de parlamentares religiosos na tramitação de projetos de lei que envolvem planejamento familiar , aborto, eutanásia e orientação sexual.

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ao nascimento. Dados da biologia são usados para fundamentar tal posição, em particular o argumento de essencialismo genético da individualidade do zigoto a partir da fecundação, independentemente se o contexto o faz inviável, e da autonomia de seu processo de desenvolvimento. Está-se diante da representação da pessoa humana como indivíduo, valor estruturante da cosmologia ocidental moderna, sujeito de direitos e detentor de liberdades. O conceito filosófico de dignidade da pessoa enunciado por Kant é sobreposto a interpretações bíblicas e teológicas. O embrião seria depositário de todos os direitos, o que contrasta com a abordagem sobre a mulher vista sempre como vocacionada à maternidade e como um meio para o desenvolvimento da outra pessoa de verdade. Tal perspectiva sobre a vida humana é anunciada explicitamente no manual para confrontar tentativas de enfocar o aborto como problema de saúde pública e de permitir o uso de embriões congelados descartados em pesquisa. O conceito de “vida” desliza entre o referente do processo biológico para concepções metafísicas de valor da dignidade humana e como dom divino.

Contrariando minhas expectativas, vários ministros rejeitaram o debate sobre o início da vida. Vários afastaram o contexto de uso de embriões em pesquisa e a prática de aborto, mas também se usou a legislação dos dois casos em que o aborto não é punido, para demonstrar a relativização da proteção absoluta da vida. O debate sobre o início da vida engajou principalmente dois dos ministros que votaram pela inconstitucionalidade parcial da lei, mas também envolveu ministros favoráveis à lei como o relator Carlos Britto entre outros. A maioria dos ministros que defenderam a constitucionalidade da lei argumentou pela tese de que os referidos embriões não constituíam a figura de pessoa como o sujeito pleno de direitos. Indo contra essa corrente, o ministro Cezar Peluso defendeu que aquele tipo de embrião isolado em laboratório não constituía forma de vida.

Ao contrário da hipótese inicial, a maioria dos ministros foi bem moderada na invocação de fundamentos biológicos para definir a figura de pessoa e principalmente a noção de vida, embora não deixasse de fazê-lo. A falta de familiaridade com esse vocabulário foi ocasião para que alguns ministros confundissem o embrião gerado em laboratório por FIV com as células-tronco extraídas desse embrião no estágio de blastocisto, falando em “implantação de células embrionárias”. O manual da Campanha da Fraternidade da CNBB usou mais linguagem biologizante que ministros do Supremo. O investimento da Igreja Católica na área da bioética, contando com vários e assessores

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e especialistas pode explicar essa maior penetração de conceitos biológicos no discurso da Igreja (cf Luna, 2007). A busca de legitimidade do discurso religioso no espaço público, problema que o STF não sofre, pode empurrar a Igreja Católica a esse tipo de produção.

A representação de pessoa encontrada tanto nos votos dos ministros do STF, como no manual da Campanha da Fraternidade de 2008 é o indivíduo. A representação do indivíduo foi manejada nos discursos dos diferentes ministros tanto para atribuir a condição de pessoa ao embrião humano, como para negá-la, alegando que faltavam a ele qualidades de autonomia. Exceto pelo voto de Peluso que se deteve longamente na conceituação de vida como processo de movimento autógeno, a noção de vida e de vivo aparece de forma bastante vaga e intuitiva na maioria dos votos dos ministros. Strathern (1992) registrou a emergência do embrião extracorporal criado por FIV como nova figura de pessoa no debate público. No debate legislativo britânico, Franklin (1999) identificou a atribuição da condição de pessoas a entes a-sociais como gametas e embriões, e fabricação de entes de parentesco, como se poderia dizer dos “genitores” desses embriões mencionados na Lei de Biossegurança. No artigo “Recontextualizando o embrião”, Novaes e Salem (1995) desvendam as redes de relações que cercam esse ente. No contexto do questionamento do artigo 5º da lei de biossegurança, que autorizava o uso de certos embriões para produção de células-tronco, constatam-se várias redes envolvendo esses entes: certos representantes de entidades religiosas, em particular a Igreja Católica, que pretendem protegê-los e os cientistas dessa vertente. Do lado oposto, cientistas decididos a avançar na pesquisa sobre as células-tronco embrionárias e vários juristas e pessoas de outras redes, como as feministas que apoiaram esse emprego de embriões na expectativa de novo contexto de flexibilidade para ampliar os permissivos para o aborto legal no Brasil. As instâncias do legislativo e do aparato jurídico têm papel central na regulação das relações entre os integrantes dessas redes. Dos fornecedores dos gametas que deram origem aos embriões, os ditos genitores, os potenciais beneficiários de terapias a se desenvolver até os juízes que vão interpretar essas leis.

A insistência no caráter intocável da vida do embrião por parte de certos ministros lembrou tanto as oposições entre o sagrado e o profano formulada por Durkheim (1989) como básica na estruturação das religiões, como a noção de fetiche, em que se atribui poder a um certo objeto.

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Marco Aurélio observou que a legislação dos Estados Unidos sobre aborto deve ter contribuído para que o estatuto do embrião não se tornasse uma questão para a corte suprema. Restou a pergunta se a legalização do aborto facilita a formulação de leis que definem o estatuto do embrião. Conforme observou Cesarino, a lei britânica define estatuto do embrião e brasileira não (Letícia Cesarino, 2007), fato que não mudou com o julgamento da ADI. A aprovação mais ou menos recente da legislação com respeito ao aborto esteve sempre no horizonte dos debates legislativos sobre a pesquisa com embriões humanos, como mostra a cobertura do debate britânico (Mulkay, 2007; Strathern, 1992; Franklin, 1999) e também em Israel (Prainsack, 2006).

Questionando o caráter autônomo do embrião em seu desenvolvimento, tese tanto da Igreja Católica na Campanha da Fraternidade, alguns ministros destacam o papel do útero a ponto de lhe atribuir agência, caso de Cezar Peluso. “O retrato sentimental do embrião na parede do útero” é a formulação de Carlos Britto (p. 53) que revela a ênfase no vínculo entre mãe e filho para a constituição da pessoa, fato que não ocorre com os embriões de FIV isolados no laboratório.

Valores religiosos subjazem ao contexto do julgamento. Menezes Direito, com respeito à oposição entre a questão religiosa e a concepção jurídica, a polarização entre ideologização da ciência e obscurantismo, ele afirma ser a pluralidade a marca de sociedades livres. Contra polarização entre ideologização da ciência e obscurantismo. Reconhecendo a existência de valores religiosos, vários insistiram no caráter científico de sua argumentação, com referência à conceituação dos embriões e das CTE, ou da argumentação técnica jurídica para chegar a seu voto. Apenas Eros Grau admitiu que valores religiosos estão presentes na formação pessoal, mas prometeu uma resposta técnica. A ministra Carmem Lúcia assumiu os valores religiosos da nação: “o Brasil é minha religião” e a “Constituição é minha Bíblia”, diz ela. Essa comparação mais uma vez remete a Durkheim: valores laicos da nação transpõem os religiosos. Religião, Cezar Peluso: Confusão de pretensas concepções científicas e de posturas racionais, com adesão apaixonada das crenças religiosas (p. 12 §4).

O sagrado na religião corresponde ao inviolável no direito disse o relator, o ministro Carlos Britto (p. 26). Nesse sentido, além de a vida humana ser inviolável, portanto sagrada, houve referências por três ministros (Carlos Britto, Carmem Lúcia e Ricardo Lewandowski) à declaração da UNESCO sobre o genoma humano, que propõe a intangibilidade do patrimônio genético humano. A vida sagrada no embrião lembra

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abordagens de Mauss e de Durkheim (1989) sobre o poder contido em objetos mágicos. Durkheim já havia apontado o indivíduo como objeto de cultos nas sociedades ocidentais, modernas, hipótese que refletida na afirmação do indivíduo como valor (Dumont, 1992). Em seguida, sacraliza-se a natureza biológica humana, com declarações do genoma como patrimônio da humanidade e a as leis protetoras do embrião.

Constatou-se que a vida que está em jogo no debate dos ministros não é a vida da biopolítica e do biocapital (Waldby, 2002). Esta estaria mais identificada à atividade científica e à biotecnologia (Hogle, 2003; Franklin, 2005, Waldby, 2002), mas a intepretação da vida como bem jurídico apresentada pelos ministros se aproxima da linguagem religiosa da vida como dom de Deus (Franklin, 1995), usada expressamente no texto da Campanha da Fraternidade. Retomo uma citação de Dworkin extraída do voto da ministra Carmem Lúcia: “se as grandes batalhas sobre o aborto e a eutanásia são realmente travadas em nome do valor instrínseco e cósmico da vida humana [...], então essas batalhas têm ao menos uma natureza quase religiosa” (apud Carmem Lúcia, p. 36). No deslizamento entre significados biológicos, jurídicos e religiosos, estruturam-se novas realidades como as células-tronco.

REFERÊ+CIAS

CESARINO, Letícia da Nóbrega. Nas fronteiras do “humano”: os debates britânico e brasileiro sobre a pesquisa com embriões. Mana: Estudo de Antropologia Social, v. 13, n.2, 2007, p. 347- 380.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Campanha da Fraternidade 2008: Manual. São Paulo: Salesiana, 2008.

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