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O CHEFE SUPREMO E LÍDER ARGENTINO DO SÉCULO XX: A IMAGEM SACRALIZADA DE JUAN PERÓN EM MUNDO PERONISTA ( )

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O “CHEFE SUPREMO” E “LÍDER” ARGENTINO DO SÉCULO XX: A IMAGEM SACRALIZADA DE JUAN PERÓN EM MUNDO PERONISTA (1951-1955)

Raquel Fernandes Lanzoni CLCH – Universidade Estadual de Londrina Orientador: Prof. Dr. André Lopes Ferreira

Resumo: O Peronismo, movimento político argentino do século XX, compreendido entre 1946

e 1955, marcou de forma significativa a história argentina. Empreendendo mudanças no cenário político, econômico e cultural, Juan Perón tornou-se uma figura emblemática e fonte de inúmeras discussões. A aproximação de Perón com as massas populares ainda em 1943 foi o ponto chave para a sua eleição e a base que o sustentou durante seu governo. Inspirado nas propagandas políticas nazifascistas e a fim de se estabelecer hegemonicamente na sociedade, o Peronismo buscou controlar boa parte dos meios de comunicação e empreendeu esforços para disseminar a imagem de Péron como o “Conductor” e “Líder y Sábio Conductor”. Dessa forma, pautando-se no conceito de apropriação de Michel De Certeau, este trabalho tem como objetivo analisar como a revista Mundo Peronista, publicada entre 1951 e 1955 como um órgão de doutrinamento e difusão da Escola Superior Peronista, se apropriou de um discurso salvífico cristão e católico para construir uma imagem sacralizada do líder peronista, percebida tanto em textos quanto em imagens. A relação com a Igreja Católica também será abordada neste estudo no que diz respeito ao apoio mútuo inicial e de que maneiras o Peronismo se articulou como uma opção à religião católica. Ainda exaustivamente estudado, abordar o movimento peronista a partir de uma ótica cultural possibilita entender a intenção de Perón em transformá-lo, além de uma opção meramente política, em um modo de se comportar socialmente.

Palavras-chave: Peronismo; Juan Perón; catolicismo; apropriação; política.

Situada entre a Cordilheira dos Andes a oeste e a leste pelo oceano Atlântico, a Argentina, segundo maior país da América do Sul, possui uma história emblemática e marcada por intensos conflitos desde a época que fora colônia da Espanha no século XVI. De acordo com José Luís Bendicho Beired (1996), inexplorada até o ano de 1520, a região que hoje se denomina Argentina era comumente conhecida como a Região da Bacia do Prata, que despertava o interesse dos colonizadores por conta dos portos para o escoamento de seus produtos e também um interesse político pautado na ambição da coroa espanhola em ampliar o império a oeste. De caráter privado, a conquista da região platina foi assinalada pela existência das capitulações1 e a hierarquização da sociedade foi estabelecida de acordo com os critérios étnicos (regime de castas).

Com o processo de independência iniciado em 1810, a Argentina mergulhou em um período crítico de disputas pelo controle do território após a saída dos espanhóis2. O

1 Exercidas pelo adelantado, eram concessões dadas pela coroa espanhola cujo objetivo era a tomada de territórios dos índios para a exploração de recursos naturais e fundação de cidades. O

adelantado recompensava todos aqueles que lhe ajudavam na administração das capitulações por

meio da concessão de índios e terras, conhecida como emcomienda. (BEIRED, 1996, passim). 2 Intensos conflitos marcaram a Argentina pós-independência, sobretudo entre federalistas (fazendeiros conservadores) que defendiam a autonomia provincial e os unitários (comerciantes

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revezamento entre federalistas e unitários encontrou, em meados da década de 1820, um período de estabilidade. Juan Manoel Rosas, enquanto governador da província de Buenos Aires, exerceu seu poder com mãos de ferro, porém fez com que Buenos Aires prosperasse economicamente por conta do estímulo dado às atividades agropecuárias e mercantis. Ademais, ampliou sua fronteira aumentando em 42% seu território e ainda que fosse um declarado perseguidor da oposição, Rosas apaziguou a guerra civil entre os caudilhos do litoral e do interior. Com o advento do século XX, Noberto Ferreras (2006, p. 170) pontua que

Entre 1880 e 1920 a Argentina se transformou profundamente. Num breve repasso das mudanças é interessante apontar que a Argentina passou de um país com enormes dificuldades para consolidar o Estado Nação, com até duas sedes rivais para o governo nacional, a um dos poucos países latino-americanos com uma democracia de massas consolidada; deixou de ser um país voltado para dentro e se inseriu plenamente nas trocas econômicas, sociais, políticas e culturais de um mundo cada vez mais inter-relacionado; de um país pobre alcançou o status de país abastado com avançados indicadores sociais, que não só superavam os dos seus vizinhos, como também a vários dos principais países europeus; foi um dos poucos países onde a imigração modificou profundamente o quadro demográfico; e deixou de ser uma sociedade agrária para ser uma sociedade urbana.

A Argentina viveu nas últimas décadas do século XIX um grande desenvolvimento econômico, favorecido pela imigração3. O desenvolvimento acarretou na modernização da capital Buenos Aires, transformando-a para se igualar às metrópoles europeias da época. Ademais, a adoção do modelo primário-exportador de cereais e a criação de ovelhas foram preponderantes para o acelerado crescimento econômico. Entretanto, a riqueza produzida era relativa, pois se concentrava em poucas mãos, além de gerar um alto índice de desemprego.

A instabilidade econômica e política abriu espaço para sucessivos golpes militares: o de 1930, liderado pelo general José Félix Uriburu, que derrotou o presidente Hipólito Yrigoyen da União Cívica Radical, e, posteriormente, em 1943 com a chamada Revolução de 43, explicitamente declarada anticomunista. No golpe de 1943, uma figura até então desconhecida começa a ganhar relevância na política argentina: o general Juan Domingo Perón, principal personagem do que mais tarde seria o Peronismo. De acordo com Federico Neiburg, a palavra peronismo:

cosmopolitas) que buscavam o lucro, incentivavam a imigração e a importação de ideias europeias, além de defender um governo centralizado na cidade de Buenos Aires. (BETHELL, Leslie. (Org.). História da América Latina: da independência até 1870, volume III. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, passim).

3 FERRERAS, Noberto. A formação da sociedade Argentina contemporânea. Sociedade e trabalho entre 1880 e 1920. História, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 170-181, 2006.

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[...] serve para nomear o movimento político nascido em meados da década de 1940, identificado com a figura do coronel Juan Perón; para qualificar o período da história da Argentina que se inicia em 1945 e termina em 1955 [...]; para designar o partido político criado por Perón logo após sua vitória nas eleições de 1946 e que sobrevive até hoje com outras denominações; para fazer referência à identidade política dos que, desde aquela época, invocam sua figura e recordação de seus governos para legitimar diferentes posições no campo da política. O adjetivo peronista também serviu, e hoje ainda serve, para descrever uma doutrina política, um tipo de governo, uma forma de discurso.

Através do GOU (Grupo de Oficiais Unidos), grupo declaradamente anticomunista, antiliberal e nacionalista, Perón participou do complô que retirou do poder Ramón Castilho, presidente do regime anterior. Após a implantação do governo militar de 1943, Perón assumiu o posto de Ministro do Trabalho e do Bem-Estar. Em 1945, Perón tornou-se Ministro da Guerra assumindo concomitantemente a vice-presidência da República. Como Ministro do Trabalho, Perón realizou mudanças no âmbito da legislação, reconhecendo as greves e realizando reajustes salariais, além de desenvolver uma rede de proteção social para os trabalhadores. Ainda que o foco das mudanças fossem os operários urbanos, no campo Perón estabeleceu o “Estatuto do Peão”, que concedia o pagamento de toda malha de direito aos funcionários rurais (CAVLAK, 2016, p. 34). Desse modo, o general passou a ganhar respeito e notoriedade entre as massas populares e líderes sindicalistas, o que resultou no aumento de sua popularidade e autoridade.

Perón reconhecia a existência de classes e o conflito entre elas, e via no Estado o único mediador possível para essas tensões. Com base nessa ideia começa a articular o Justicialismo, doutrina política cuja combinação de elementos considerados populistas e mecanismos de centralização do poder resultaria na ampla intervenção do governo na economia, monopolizando o comercio exterior e nacionalizando diversos setores, convertendo-se também na base ideológica do Partido Peronista.

Entretanto, a popularidade do coronel começou a incomodar os membros do governo no qual participava, e em outubro de 1945 foi destituído de seu cargo e levado preso. O que os articuladores do golpe não contavam, porém, era que Perón já contava com o apoio das massas populares e sindicatos em sua defesa. A multidão, juntamente com Eva Perón, conseguiu sua libertação em 17 de outubro de 1945. No mesmo dia, Perón realizou um discurso para mais de 300 mil pessoas, garantindo a realização das eleições pendentes e a construção de uma nova nação; nessa ocasião, valeu-se do momento de euforia para lançar sua candidatura à presidência.

Apoiado por grupos de trabalhadores, dirigentes sindicais e setores nacionalistas que reconheciam o caráter social de suas reformas, bem como contando com o apoio da Igreja Católica, Perón e seu vice Quijano saíram vitoriosos das eleições de 1946 pelo Partido Laborista,

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derrotando José P. Tamborini e Enrique Mosca da União Democrática. Assim que assumiu o cargo de presidente, em 4 de junho de 1946, promoveu a fusão dos grupos políticos que lhe haviam apoiado em um novo partido: o Partido Peronista.

Reeleito em 1952, governaria o país até renunciar ao mandato em 22 de setembro de 1955, seis dias depois de um levante militar comandado por Eduardo Lonardi, iniciado em Córdoba, avançar sobre Buenos Aires para derrocar Perón do poder. Seus dois mandatos foram marcados por uma mescla de tendências democráticas e autoritárias. O período que compreende essas duas gestões a frente do Executivo (1946-1955) é conhecido como Primeiro Peronismo. Naquele contexto, a corrente política se autointitulava como um “movimento revolucionário” que transformaria a Argentina. Para Claudio Panella (2010, p. 283), um ponto importante nesse momento inicial do Peronismo foi “[...] a necessidade de conscientização do povo, isto é, o sujeito que receberia os benefícios desta transformação, mas também o que deveria ser participante ativo da mesma.4

O Peronismo é, desde seu advento e até a atualidade, um movimento exaustivamente estudado na Argentina e com trabalhos relevantes no Brasil, como Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo de Maria Helena Capelato (2009) e Os intelectuais e a invenção do peronismo de Federico Neiburg (1997). Os estudos sobre o peronismo demonstram uma variedade de interpretações acerca do mesmo que trazem à tona novas abordagens e significações. Desenvolver estudos baseados nos novos conjuntos documentais como fonte de pesquisa é de rica contribuição para um melhor conhecimento das práticas peronistas dentro da sociedade argentina e da relação – nem sempre harmônica – com os demais setores sociais.

Como a fonte desta pesquisa, a revista Mundo Peronista5 será analisada levando-se em

consideração sua inserção histórica e não apenas tomando-a como um mero instrumento de comunicação, mas principalmente uma força ativa na constituição de modos de vida e valores, pois “[...] todo documento é suporte de prática social, e por isso, fala de um lugar social e de um determinado tempo, sendo articulado pela/na intencionalidade histórica que o constitui. ”

4 “[...] la necesidad de concientización del pueblo, es decir del sujeto que recibiría los beneficios de esa transformación pero también el que debía ser partícipe activo de ella.”

5 Mundo Peronista é um periódico argentino publicado entre julho de 1951 e setembro de 1955. Considerado como um órgão de doutrinamento e difusão da Escola Superior Peronista, sua periodicidade era quinzenal. Era produzida em um tamanho de 32cm x 25cm, com um total de 52 páginas por edição, capas coloridas compostas por fotografias e ilustrações alternativas de Perón e Evita. Escrita em linguagem simples e direta, seu interior foi impresso em cor sépia apresentando fotografias, seções fixas e variáveis, artigos, reportagens e ilustrações. Seu preço inicial era de $1,5 (pesos argentinos), mas com o tempo passou a ser vendida pelo dobro do valor. Foram publicadas 93 edições da revista e sua coleção integral está disponibilizada no site Ruinas Digitales - Arqueologia comunicacional, projeto realizado por um grupo de estudantes de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA).

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(CRUZ; PEIXOTO, p. 258, 2007)

Ao abordar o peronismo a partir da ótica cultural, objetiva-se com esse estudo entender como o movimento em questão se apropriou de símbolos e discursos católicos para ascender ao poder, além, é claro, de conquistar a simpatia de líderes da Igreja ao vincular seu movimento à doutrina cristã católica. Mais precisamente, pretende-se analisar como Mundo Peronista sacralizou a imagem de Juan Perón e atribuiu teor salvífico ao seu discurso ao compará-lo constantemente com Jesus Cristo. Assim sendo, o estudo delineia-se no sentido de demonstrar o intento do peronismo em se firmar como uma opção à religião católica e como um tipo de cristianismo, mais puro e autêntico.

A relação entre peronismo e Igreja Católica – ou as influências entre o catolicismo e o peronismo – são temas que suscitam discussões emblemáticas. Para tanto, é preciso apresentar, ainda que de forma sucinta, o papel da Igreja na sociedade argentina. A Igreja na América Latina nasceu com o poder colonial e cristalizou relações com a Coroa espanhola. Para Lila Caimari (2010, p. 27),

Segundo o regime de patronato, a Coroa elegia os bispos, nomeava os sacerdotes e autorizava a instalação de ordens religiosas (ou sua expulsão, como foi o caso dos jesuítas em 1767). Nunca, nem antes nem depois, um soberano teria um controle tão completo sobre a Igreja Católica.6 Quando se deu início ao processo de independência das colônias latino-americanas, a Igreja se manteve fiel à Coroa e não reconheceu os novos Estados formados até 1835. Para a hierarquia eclesiástica, sua posição de prestígio só seria mantida enquanto o poder estivesse à cargo do rei. Dessa maneira, o não reconhecimento dos novos Estados latino americanos acarretou na intensa debilitação da Igreja. Durante as guerras civis, além da perda material sofrida, a Igreja viu seu clero ser reduzido em 50%, seja por motivos como a emigração, a deportação ou a renúncia (Ibidem, p. 28). A igreja argentina no momento da independência não passava de “[...] três dioceses – elevadas a cinco em 1859 –, todas dependentes da autoridade do arcebispo de Charcas (Bolivia). As cinco jurisdições, de superificie muito desigual, eram Buenos Aires (41% do atual território do pais), Paraná, Córdoba, Salta e São João7.” (Ibidem, p. 28).

No século XIX, a Constituição de 1853 viabilizou as bases jurídicas que definiram, até a

6 “Según el régimen de patronato, la Coroa elegía a los obispos, nombraba a los sacerdotes y autorizaba la instalación de órdenes religiosas (o su expulsión, como en el caso de los jesuítas en 1767). Nunca, ni antes ni después, um soberano tendría um control tan completo sobre la Iglesia Católica. ”

7 “[...] tres diócesis – elevadas a cinco en 1859 –, todas dependientes de la autoridade del arzobispo de Charcas (Bolivia). Las cinco jurisdicciones, de superficie muy desigual, eran Buenos Aires (41% del actual territorio del país), Paraná, Córdoba, Salta y San Juan.”

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atualidade, o status da Igreja perante a legalidade constitucional argentina. O documento, inspirado no pensamento liberal para atrair imigrantes anglo-saxões, assegurava a tolerância religiosa e a liberdade de cultos (art. 14). Porém, isso não significava que todas as religiões fossem iguais. De acordo com o Artigo 77, o presidente e o vice-presidente deveriam ser católicos e o Artigo 2 estabelecia que a religião católica apostólica romana seria sustentada pelo Estado. Entretanto, a secularização não deixava de avançar sobre a sociedade argentina, onde o pensamento liberal conquistava cada vez mais adeptos. A subordinação dos tribunais eclesiásticos à justiça civil, junto com a lei de 1884 que retirava da Igreja a responsabilidade do registro civil e a lei de 1888 que estabelecia a obrigatoriedade do casamento civil para validar a cerimônia religiosa são exemplos de como o Estado argentino da época estava empenhado em diminuir o papel social da Igreja. O estopim que mobilizou as forças católicas para se transformarem em um ator político comprometido em barrar a secularização foi o projeto de reforma da educação pública argentina.

Em 1891, o papa Leão XIII publicou a encíclica Rerum Novarum, lançando o chamado para que os católicos reconquistassem o terreno perdido para o socialismo e o liberalismo. Sendo assim, a Igreja argentina passou a reivindicar espaço para que pudesse ter voz frente aos problemas sociais do mundo moderno que assolavam a sociedade. Os inimigos declarados da Igreja neste momento eram o socialismo e o liberalismo. Segundo Caimari (ibidem, p. 40-41), este momento é definido, na história do catolicismo, como o da “construção de um terceiro espaço ideológico, antissocialista e antiliberal”. A Igreja se empenhou, então, na cristianização da população operária para não correr o risco de perdê-la para o socialismo. Para isso, foram criadas organizações de ajuda mútua para os trabalhadores, como o Círculo de Obreros Católicos (COC) em 1892, a Liga Democrática Cristiana (LDC) em 1902, a Liga Social Argentina (LSA) em 1908, entre outras.

Nos anos trinta, a Igreja Argentina havia adquirido estruturas institucionais sólidas e direito de cidadania na vida nacional. A participação do Estado nessa transformação foi um fator essencial: instaurou o modelo sobre o qual iria se alienar o governo peronista alguns anos depois.8 (Ibidem, p. 52)

A Igreja, portanto, se encontrava em uma fase de relativa recuperação quando Perón chegou ao poder em 1946. A ascensão de um líder vindo das forças armadas que decalcava sua inspiração na doutrina social da Igreja chamou atenção tanto da hierarquia eclesiástica, quanto

8 “En los años treinta, la Iglesia argentina había adquirido estructuras institucionales sólidas y derecho de ciudadanía en la vida nacional. La participación del Estado en esta transformación fue un factor essencial: instauró el modelo sobre el que iba a alienarse el governo peronista algunos años después.”

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dos grupos católicos leigos mais populares. A possibilidade de uma aliança entre peronismo e Igreja era, portanto, desejada entre ambos, mas de forma alguma se configurou como uma relação estável. Entre 1946 e 1955, os altos e baixos nessa relação evidenciam a disputa desses dois atores políticos pelas áreas chaves da sociedade argentina: para Bianchi (1996), as áreas conflituosas era a assistência social, família e educação. Uma vez que o peronismo se estende da esfera pública da sociedade para a esfera privada, entendida pela Igreja como sua área de influência exclusiva, inicia-se os atritos que culminarão, em meados de 1954 e 1955, na ruptura das relações e na definição da Igreja como um espaço antiperonista.

Com relação à Igreja, o período que compreende os dois primeiros governos de Perón pode ser dividido em duas fases: 1946-1949 e 1949-1955. O primeiro período, caracterizado como o “período católico” do peronismo e o “período peronista” da Igreja segundo Caimari (2010, p. 124), foi o momento de maior colaboração entre Igreja e Estado peronista.

O episcopado tinha boas razões para ser otimista: o peronismo parecia levar a cabo uma obra social que colhia a adesão das classes trabalhadoras, sob o signo da justiça social cristã. Neutralizava assim o perigo da prática marxista nesses setores, que tanto preocupava a Igreja por cinquenta anos. O novo governo manifestava, ademais, sua intenção de dar a Igreja um espaço importante nessa empresa: o papel de formadora de consciências na educação pública e de legitimadora da obra governamental. Paralelamente, o Estado peronista se apresentava como o mais católico da história argentina, tanto no lugar do cataclismo nas referências oficiais, como na ajuda na obra da Igreja.9

Na segunda fase, um marco importante para a compreensão do período é a Constituição de 1949. A reforma do documento, até então inalterado desde 1853, simbolizou para a Igreja Católica a esperança de que o peronismo finalmente criaria uma sociedade de acordo com os seus princípios. Ainda que possuísse uma forte inspiração católica, a Constituição de 1949 buscava consolidar a doutrina justicialista e, assim, unir espiritualmente a sociedade. As referências de Perón ao catolicismo começavam a ser cada vez mais raras, dando lugar ao justicialismo, “[...] doutrina do equilíbrio e a harmonia entre o indivíduo e a coletividade pela justiça social [...]10 (PERÓN,1949 apud CAIMARI, 2010, p. 180). A doutrina justicialista, portanto, se difundia como uma obra exclusiva e autônoma de Perón.

9 “El episcopado tenía buenos razones para ser optimista: el peronismo parecía llevar a cabo una obra social que cosechaba la adhesión de las clases obreras, bajo el signo de justicia social cristana. Neutralizaba así el peligro de la prédica marxista en estos sectores, que tanto preocupaba a la Iglesia desde hacía cincuenta años. El nuevo gobierno manifestaba además su intención de dar a la Iglesia un espacio importante en esta empresa: papel de formadora de conciencias en la educación pública y de legitimadora de la obra gubernamental. Paralelamente, el Estado peronista se presentaba como el más católico de la historia argentina, tanto en el lugar del catolicismo en las referencias oficiales, como en la ayuda material a la obra de la Iglesia.”

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Publicada entre 1951 e 1955, Mundo Peronista se encaixa na segunda fase das relações entre a Igreja e o peronismo. Neste momento, o justicialismo se tornava “uma nova filosofia de vida, simples, prática, popular, profundamente cristã e profundamente humanista11” (CAIMARI, 2010, p. 182) e detentor do verdadeiro cristianismo, que consistia

[...] na autentica valorização cristã. No fundo, não na forma; de conteúdo, não de continente. É a aceitação das consequências humanas e sociais do Evangélico de Cristo: igualdade de todos os homens, amor ao próximo, sem omitir a condenação dos exploradores e escravistas12. (MENDÉ, 1950 apuh CAIMARI, 2010, p. 182)

Na edição número 10 de Mundo Peronista, a seção “Doutrina para todos” exibe 25 ideias e fatos que comprovam a soberania do pensamento político de Perón. Em uma delas, é possível perceber que Perón era aquele que, pela intervenção divina, libertava a Argentina da escravização.

Figura 1 - Fonte: Mundo Peronista, 1951, n. 10 p. 5.

A promessa de uma “nova Argentina” proporcionada pelo peronismo era difundida pela propaganda através do entendimento de que os anos anteriores ao governo de Perón eram “obscuros” e deveriam ser esquecidos. Uma vez no poder, Perón traria dignidade à massa de trabalhadores, dando-lhe voz e direitos que outrora não lhe foram concedidos e transformando a Argentina em um país mais justo e independente.

Perón defendia uma posição que ele denominou de “tercerista”, isto é, advogava uma terceira posição, nem capitalista nem socialista. Com esta visão pretendia combater o “imperialismo” e, internamente, a “oligarquia”. No começo dos anos 1950, acreditava numa Terceira Guerra Mundial que iria enfraquecer os EUA e a URSS, fazendo da Argentina o exemplo para o mundo, pois era o lugar onde germinava um

11 “una nueva filosofia de vida, simple, práctica, popular, profundamente cristiana y profundamente humanista.”

12 “[...] la auténtica valoración Cristiana. De fondo, no de forma; de contenido, no de continente. Es la aceptación de las consecuencias humanas y sociales del Evangelio de Cristo: igualdad de todos los hombres, amor al prójimo, sin omitir la condenación de los exploradores y esclavizadores.”

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novo sistema com paz e justiça social. (PRADO; PELLEGRINO, 2016, p. 148).

A sexta edição da revista revela essa ambição peronista de tornar-se de fato uma posição terceirista, ou seja, uma opção alternativa ao capitalismo e ao socialismo. Na seção “Escola Superior Peronista”, escrita por Eva Perón, a primeira dama discorre acerca do capitalismo na história, argumentando constantemente que apenas o peronismo seria a opção que instalaria o equilíbrio desejado nas sociedades de todo o mundo. Para ela, a Argentina já estava salva pois tinha Perón como o salvador que levou a luz para os operários.

Figura 2 - Fonte: Mundo Peronista, 1951, n. 06, p. 49.

A apropriação13 que o peronismo fez dos elementos católicos resultou na construção da imagem de Perón como a figura central do movimento e, ademais, na criação de um “cristianismo peronista”. Aproximando-se de De Certeau e Chartier, a apropriação de símbolos e

13 Para a utilização dos conceitos “representação” e mais precisamente “apropriação”, recorrer-se-á aos escritos Roger Chatier e Michel de Certeau. Michel de Certeau, jesuíta francês nascido em 1925 e autor de obras fundamentais sobre a história e a religião, apresentou e desenvolveu no campo historiográfico o conceito de apropriação. Para ele, a apropriação seria uma seleção de ideias articuladas de formas imprevisíveis. Em relação a um objeto, cada indivíduo se apropria de diferentes formas, em distintos espaços e com diferentes pessoas, ou seja, a mesma imagem/objeto causa variadas reações que estão condicionadas ao lugar onde o indivíduo e/ou objeto se encontram e também à presença de outros indivíduos. Aproximando-se de Certeau, Chartier acredita que as formas produzem sentidos: a leitura é sempre uma prática composta por gestos, espaços e hábitos. Dessa maneira, a prática de leitura não é universal, pois há disposições específicas de cada sociedade, tempo e espaço, o que implica em diferentes modos de leitura. O sujeito, mesmo ativo, não é universal, mas alguém situado historicamente. O sentido de um texto, para Chartier, assim como para Certeau, não está dado e nem é fixo; ao contrário, resulta da atuação do leitor. A apropriação seria então o modo como as pessoas se apoderam dos discursos e visões da realidade, resultando em novas visões de mundo.

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discursos católicos não se configurou em uma ação livre de intenções: ao se apoderar do catolicismo, o peronismo absorveu aquilo que lhe era mais atrativo e a partir de uma ressignificação deu corpo ao “cristianismo peronista” que, ainda que reivindicasse o cristianismo como um de seus principais precedentes (CAIMARI, 2010), se exibia como um melhor intérprete e renovador do cristianismo puro.

A criação de um “credo” do peronismo feito pelo leitor M.S e publicado na décima edição da revista na seção “Amigos de Mundo Peronista” evidencia a mística que envolvia a doutrina.

Figura 3 - Fonte: Mundo Peronista, 1951, n. 10, p. 18.

De acordo com o próprio Perón, todos os peronistas seguem a doutrina pois a sentem e estão dispostos a sacrificar o que for preciso para que ela triunfe, uma vez que o êxito da doutrina peronista é o mesmo que o êxito da nacionalidade. Da mesma forma, a própria noção de ser argentino se confunde, neste período, com o ser peronista: “[...] e creio que estamos vivendo tempos em que ninguém que seja verdadeiramente um argentino pode não desejar o triunfo de nossa própria nacionalidade.14” (PERON, 1950 apud CAIMARI, 2010, p. 184).

Na mesma página, há também o leitor P.S de Santa Fé que através de versos elaborados apresenta a mesma ideia.

14 “[...] y creo que estamos viviendo tiempos en que nadie que sea verdaderamente un argentino puede no desear el triunfo de nuestra própria nacionalidad.”

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Figura 4 - Fonte: Mundo Peronista, 1951, n. 10, p. 18.

À guisa de conclusão, para Beired (1996), Perón articulou a “peronização” da sociedade e do Estado. A fim de se estabelecer hegemonicamente e, mesmo atuando dentro de um Estado liberal, o presidente controlou os principais meios midiáticos do país através de um aparelho paraestatal15; reprimia os movimentos grevistas que não eram vinculados aos principais sindicatos; criou a Escola Superior Peronista, onde dirigentes de diversas áreas eram formados de acordo com a cultura peronista e controlava as universidades à medida que expulsava e demitia professores contrários ao seu governo.

Os meios de comunicação foram bastante cerceados pelo governo. A radiodifusão privada foi sendo silenciada, não havendo mais espaço para vozes dissonantes. Fecharam-se jornais e revistas da oposição e criaram-se restrições postais a jornais como La Prensa e La Nación, que também viram reduzidas suas quotas de papel de impressão. (PRADO; PELLEGRINO, 2016, p. 146).

Quando a linguagem religiosa é usada pelo Peronismo, seja na apropriação de símbolos ou do discurso, pretende-se persuadir o indivíduo, a fim de manipular a esperança e o temor, componentes básicos para a dominação de massas populares. (CAPELATO, 2009, p. 32). A palavra de Perón, seja ela escrita ou falada, representava, para a revista, a fé e esperança. Além disso, as palavras proferidas pelo “Condutor” e “Líder” do movimento peronista fazia com que o coração dos ouvintes vibrasse de emoção ao escutá-las. Era ela que determinava e dava sentido às ações de seu “Povo”. Dessa forma, esse discurso muito se parece ao discurso que a Igreja profere sobre as palavras e ensinamentos de Cristo, contido nos Evangelhos.

Ciente da influência do catolicismo na formação da sociedade argentina, apropriar-se do discurso católico e sacralizar seus principais líderes era uma forma de se estabelecer nos lugares que até então eram da Igreja Católica. Esse estabelecimento representava o controle maior de todos os níveis da sociedade argentina. Transformando-se em uma religião política (PLOTKIN,

15 “A Constituição argentina continuava garantindo a liberdade de imprensa, mas, para a realização do controle institucional dos meios de comunicação, foram criadas a ‘Subsecretaría de Informaciones’ e a ‘Secretaría de Prensa y Difusión’, inspiradas na organização nazifascista para controle dos meios de comunicação. (SIRVÉN, 1984 apud CAPELATO, 2009, p. 83)

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2002) o Peronismo lançou mão de uma doutrina que não objetivava somente conscientizar politicamente a massa popular, mas oferecer uma outra opção de religiosidade, situada em um nível superior que o catolicismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTE: MUNDO PERONISTA. Buenos Aires: Escola Superior Peronista, 1951-1955.

BEIRED, José Luis Bendicho. Breve história da Argentina. São Paulo: Editora Ática. 1996. BETHELL, Leslie. (Org.). História da América Latina: da independência até 1870, volume III. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001.

BIANCHI, Susana. Catolicismo y peronismo: iglesia católica y Estado en la Argentina, 1945-1955. Trocadero: revista de historia moderna y contemporanea, Espanha. nº 8-9, 1996-1997, p. 351-368

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Referências

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