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Maricota Apinayé: Patrimônio de Saberes

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Academic year: 2020

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ARTIGOS

MARICOTA APINAYÉ:

PATRIMÔNIO DE SABERES

*

LÍLIAN CASTELO BRANCO DE LIMA**

AGENOR SARRAF PACHECO***

Resumo: o ensaio envereda-se pelos patrimônios Apinayé, etnia que pertence ao tronco linguístico Macro-Jê e habita o norte do Tocantins. Elegemos como principal narradora, Maricota, indígena detentora de múltiplos saberes. Articulando estudiosos da Antropologia e da História, defendemos que entre os Apinayé existem pessoas que materializam a tradição em seus corpos, sendo reconhecidas pelos demais membros da aldeia.

Palavras-chave: Apinayé. Memória. Patrimônio. Saberes.

ETNOGRAFIA DO SENSÍVEL: INTRODUÇÃO

Ora, sensibilidades se exprimem em atos, em ritos, em palavras e imagens, em objetos da vida material, em materialidades do espaço construído. Falam, por sua vez, do real e do não-real, do sabido e do desconhecido, do intuído, do pressentido ou do inventado. Sensibilidades remetem ao mundo do imaginário, da cultura e de seu conjunto de significações construído sobre o mundo.

(Sandra Pesavento)

E

ste ensaio objetiva fazer uma viagem pelo mundo Apinayé, enredando-se em suas memórias para desvendar um de seus importantes patrimônios: Maricota Api-nayé, uma mulher detentora de muitos saberes. Assim, para guiar o leitor por essa viagem, situamos como a caminhada foi se (re)construindo em uma etnografia do sensível.

* Recebido em: 10.02.2014. Aprovado em: 20.03.2014.

** Doutoranda em Antropologia na Universidade Federal do Pará. Professora no Instituto de Ensino Superior do Sul do Maranhão e na Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: li_castelo@hotmail.com.

*** Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor na Universidade Federal do Pará, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia. E-mail: agenorsarraf@uol. com.br.

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Por esta escolha, os escritos emergem impregnados de subjetividades capazes de expor relações interculturais entre mundos internos e externos (JUNG, 1981) tanto de quem manipula as letras do teclado como dos Apinayé. Assim, estaremos diante de uma experiência etnográfica (CLIFFORD, 2011) que segue rastros da sensibilidade e dela “deixam marcas visíveis nas letras derramadas no papel, dando existência aos pensamentos, materialidade à palavra, tinta aos sentimentos” (SANTOS, 2008, p. 86).

Entendemos a sensibilidade como uma forma de conhecer o mundo e apreender significados. Desse modo, este será um encontro de humanidades, pois para essa escuta dos Apinayé, mobilizamos vozes da cultura, da história e da memória, tecendo um discurso poli-fônico (BAKHTIN, 1986).

Desafiados a pensar sobre a memória da pesquisa e a situar o início da caminhada pelo mundo indígena, seguimos Nora (1993) para buscar o clarão da memória e sua finaliza-ção no fogo da história, articulando dimensões de um casamento necessário, mas nem sempre tranquilo entre memória e história. E nessa clareira, Maricota com suas sabedorias entra em cena. Assim, este é um relato de memória que vai se enredando pelo tempo e espaço da Aldeia São José, no Estado de Tocantins. Acerca das referências para deslanchar os atos de lembrança, Halbwachs (2006, p. 8) assinala: “É impossível conceber o problema da recordação e da lo-calização das lembranças, quando não se toma como ponto de referência os contextos sociais reais que servem de baliza a essa reconstrução que chamamos memória”.

Era um sábado de sol, julho de 2010, a convite de um amigo – Witembergue Za-paroli – percorremos a BR-230 e depois a Transamazônica no Tocantins e, com o coração em um misto de alegria, curiosidade e apreensão, dirigimo-nos à Aldeia São José dos índios Apinayé, em uma viagem de duas horas que mais pareceram uma eternidade, estávamos cons-trangidos pelo tempo (HALBWACHS, 2006, p. 113).

Chegamos à aldeia por volta das 8h00, e uma pergunta tomou-nos como assalto: “Por que meu fio chegou já com o sol alto?”. Logo constatamos que nosso amigo já era espe-rado e com ansiedade. Para Dona Maricota, a natureza sentimental dessa espera era traduzida na espera da natureza.

Ela o abraçou e demoradamente nos olhou nos olhos, isso afligia tanto quanto fazia sentir-nos acolhidos, materializando aquele gesto com um abraço forte e uma frase de autori-dade: “Pode abraçar a véia também!”. Depois ela nos convidou a sentar em duas cadeiras que dispôs em seu terreiro e sentou em sua esteira. Abria-se o espaço para as vivências. A esteira de Maricota ficou em nossos pensamentos, a lembrança daquele objeto, remetia a gesto e vozes. Maricota, na ótica dessa pesquisa é um caleidoscópio pelo qual se visualiza a cultu-ra dos Apinayé. Nesses três anos de encontros e reencontros, a autocultu-ra principal deste ensaio foi conhecendo muitas Maricotas e a primeira delas a se apresentar foi a exímia narradora de histórias1, aquela que ao narrar faz o intercâmbio de experiências, esse ser que Benjamin

(1994) temia estar em via de extinção. Maricota, um livro que se lê pelos gestos e sons de um corpo que transcende um espaço e um tempo, em seu saber-fazer e saber-dizer, revelado em sua performance, enquanto dimensão comunicativa de significação de um viver gregário (ZUMTHOR, 1997).

E sentada no terreiro de Maricota, observando as encenações de uma cosmologia que permite interpretar o mundo Apinayé, naquele primeiro encontro (julho de 2010) sentí-amo-nos diante de um fantástico enigma: Quantas histórias sabe e pode narrar essa mulher? Voltamos à aldeia em outras visitas, algumas vezes apenas para tomar um copo de café,

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con-versar e ver como estava Maricota. E então quando chegou a hora de optar por uma temática para desenvolver a pesquisa de Doutorado em Antropologia na Universidade Federal do Pará, Maricota desvelou-se como um patrimônio de saberes.

Diferente daquele primeiro encontro, agora era preciso iniciar uma caminhada mais longa, realizar visitas mais prolongadas, encontros mais frequentes para compor uma etnografia afetiva e contextualizada. No intuito de vivenciar e compreender a teia de significa-dos (GEERTZ, 1989) de seu mundo, buscando conhecer e apreender os sentisignifica-dos significa-dos saberes (GEERTZ, 2007) Apinayé pela ótica do patrimônio, privilegiamos observá-los nas relações sociais e culturais em constituição (BARTH, 2000).

Baseando-nos em reflexões de estudiosos da Antropologia e da História, o ensaio é uma primeira tentativa de socializar registros etnográficos produzidos em diálogos estabe-lecidos com Maricota, sua gente e pessoas que com eles convivem na aldeia São José. Igual-mente, explora dados escritos rastreados em trabalhos já publicados sobre os Apinayé, sites e documentos oficiais.

Por esses termos, no próximo tópico apresentamos aspectos da localização, consti-tuição histórica, modos de vida e desafios contemporâneos vividos por esse povo indígena. Em seguida, vislumbramos o reconhecimento de Maricota como um patrimônio cultural dos Apinayé, explorando formas de socialização de saberes e fazeres. Nesse ritmo, as memórias nativas ao valorizarem vozes, performances e estilos de transmissão dessa mulher indígena, justificam-se porque “os homens não flutuam como entidades psíquicas fechadas, que se des-tacam e recebem nomes individuais” (GEERTZ, 2007, p. 102).

A Maricota não é só Maricota, ela é Apinayé e carrega consigo a dinâmica do etno-conhecimento de seu povo. Conhecê-la é mergulhar no universo físico, humano e simbólico desse povo indígena, porque no quadro da memória coletiva, a sua identidade é tanto um atributo que toma emprestado do cenário que a rodeia como as pinceladas do que lhe é tão particular e a torna única naquela aldeia (LOWENTHAL, 1998).

PELOS CAMINHOS APINAYÉ

O principal acesso ao mundo Apinayé é o rio Tocantins. Quem sai do Maranhão para o estado do Tocantins rumo às aldeias Apinayé, precisa atravessar esse rio, divisa dos municípios de Porto Franco/MA e Tocantinópolis/TO. Fronteira que liga e separa mundos.

Remetendo-nos às cosmologias e aos saberes tradicionais, deparamo-nos com um mundo das águas carregado de energias que conduzem vidas, propiciam encontros, chegadas, partidas, conquistas, dominações, insurreições e calmarias. Assim no Tocantins, nascente e afluente ao mesmo tempo, as histórias dessa pesquisa e a dos Apinayé são contornadas por suas águas.

Segundo a historiografia foi por esse rio que se deu o primeiro contato dos não indígenas com o povo Apinayé, através das entradas realizadas pelos padres jesuítas “Antônio Vieira, Francisco Velloso, Antônio Ribeiro e Manoel Nunes, que, entre 1633 e 1658, em-preenderam 04 entradas Tocantins acima, a fim de descerem índios para as aldeias do Pará” (NIMUENDAJÚ [1939], 1983).

Atualmente para os Apinayé a luta se dá em outra instância: a política, e evitam os confrontos armados. No entanto, a história de contato entre eles e outros povos já foi mar-cada por revoltas e conflitos. De tradição guerreira, subiam os rios Tocantins e Araguaia para

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se apoderarem de ferramentas. Os Apinayé já lutaram também por terras, tanto com outros indígenas como com posseiros e fazendeiros, pois a região em que habitavam despertava a cobiça para a criação de gado e exploração dos babaçuais (ALBUQUERQUE, 2007).

Como observa Albuquerque (2007, pp. 204-205): “A história dos Apinayé, desta forma, é a história da ocupação do norte de Goiás por representantes de uma frente pastoril e de outra que utilizou o rio Tocantins e que, certamente, era constituída de remanescentes das zonas de mineração do sul de Goiás”, além dos encontros com as missões religiosas.

Localizada nos municípios de Itaguatins, Maurilândia e Tocantinópolis, no estado do Tocantins, as aldeias que formam a Terra Indígena Apinayé foram demarcadas e homolo-gadas pelo decreto de03 de novembro de 1997. Habitam essa terra cerca de 2.067 indígenas (SIASI/SESAI, 2012), organizados em 15 aldeias. São elas: Mariazinha, Riachinho, Bonito, Brejão, Girassol e Botica, ao longo da BR-126 e São José, Patizal, Cocalinho, Buriti Com-prido, Palmeiras, Prata, Serrinha, Cocal Grande e Boi Morto, cortadas pela Transamazônica (ALBUQUERQUE, 2007. Grifo nosso).

De acordo com as referências históricas esse povo, do século XIX até a década de 1920, passou por um processo de redução demográfica, como mostra o Quadro 1, no qual constam a data, o número de indígenas e a origem dos dados.

Quadro 1: Os Apinayé – século XIX à década de 1920

Quadro Populacional dos Apinayé

Data Fonte Número de índios Século XIX Cunha Matos 4.200

1859 Ferreira Gomes 2.000 1897 Coudreau 400 1926 Snethlage 150 1928 Nimuendajú 150 Fonte: <pib.socioambiental.org>. Acesso em: 24.04.2013.

Já a partir da década de 1960 ocorre uma reversão nesse quadro e há um crescimento em torno de 10% ao ano, ficando acima da média nacional, como constatam os dados abaixo (Quadro 2).

Quadro 2: Os Apinayé – a partir da década de 1960

Quadro Populacional os Apinayé

1967 Matta 253 1977 Waller 364 1980 Galvão 413 1985 Funai 565 1993 CTI 780 1997 Funai 1.025 2003 Funasa 1.262 2010 Funasa 1.847 Fonte: <pib.socioambiental.org>. Acesso em: 24.04.2013.

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Quanto à língua, esse povo também está em situação de crescimento no número de falantes, pois há nas escolas indígenas Apinayé uma educação bilíngue, na qual as crianças são alfabetizadas inicialmente na língua materna e só depois em língua portuguesa. Trata-se de uma ação que, de acordo com os protagonistas do sistema escolar, emerge como um mo-vimento em prol da manutenção da cultura tradicional desse povo.

A educação intercultural é vista na comunidade como uma necessidade.

Eu me chamo Zé Eduardo sou cacique aqui na aldeia e estudo em Goiânia, assim aqui na aldeia a educação é bilíngue porque precisamo tanto da nossa cultura como também da de vocês, porque precisamo progredir, ir adiante, porque se vai negociar em Brasília por direito, tem que saber con-versar (José Eduardo Apinayé, em conversa com um grupo de estudantes da Unisulma, em visita à aldeia em 19/04/2013).

Segundo o narrador, a língua, um dos elementos que os identificam como Apinayé, é também um instrumento de luta política, de diálogo, de conquistas e também propicia o trânsito entre os não indígenas. Contudo, esse diálogo entre as culturas linguísticas nas quais esses indígenas estão inseridos produz uma linha tênue que desnuda harmonia e conflito. Nesses quadros, Almeida (2011, p. 3993) reflete:

[...] essas sociedades têm línguas próprias, e a interação com a sociedade envolvente requer com-petências comunicativas nos dois idiomas. Não devemos esquecer, entretanto, que os aspectos culturais envolvidos estão em constante tensão, e que a alteridade assume aspecto primordial nesse contexto.

Situados a oeste do Rio Tocantins, na região do Bico do Papagaio, norte do Estado do Tocantins, os Apinayé pertencem ao tronco linguístico Macro-Jê e à família linguística Jê. Devido a essa localização são classificados como Timbiras Ocidentais (MELATTI, 2007). Já Albuquerque (2007, p. 17) classifica-os como Kayapó, pelo fato de sua língua se aproximar atualmente mais com a língua deste grupo do que com o grupo Timbira, no entanto, ressalta que “a diferença entre Timbira e Kayapó não é muito grande”.

Detentores de técnicas avançadas de navegação, conforme constatou já no século XVIII Souza Villa Real, que na época (1793) fez menção pela primeira vez ao etnômio “Pi-nagé” ou “Pinaré” (NIMUENDAJÚ [1939], 1986), os Apinayé também se destacavam nas técnicas agrícolas. Porém, quando Nimuendajú (1986, p. 04) os visitou nas décadas de 1930 e 1940, já não navegavam, “não possuem mais nenhuma embarcação. Raras vezes vão ao To-cantins e quase nunca ao Araguaia”. O dado observado pelo autor continua atual, como relata Orlando Apinayé, ex-cacique da aldeia São José.

Não, nós num navega mais em rio, assim só nas balsa, né, quando tem que ir pra cidade, também os riachos secou, e a vida pra andar prum lado e pro outro ficou mais fácil com os carro, né, que atravessa nas balsa (Orlando Apinayé, caderno de campo, 20/04/2013).

A agricultura ainda foi a base do sustento dessa sociedade até o início do século XXI, quando começou a dependência econômica exclusiva dos programas e benefícios do governo federal como: Programa Bolsa-Família, aposentadoria por idade, auxílio-doença, be-nefício por deficiência física, salário-maternidade (ROCHA, 2012). Também há aqueles que trabalham no serviço público como funcionários da Secretaria de Educação, a exemplo dos professores indígenas, os que fazem parte do quadro administrativo-pedagógico e uma

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pe-quena parcela ganha a vida na criação do gado ou comercializando produtos industrializados na comunidade. É o caso de Orlando Apinayé de quem se compra mantimentos na aldeia.

O que é constatado por Rocha (2012) é também evidenciado na fala de Rita, mis-sionária de uma igreja protestante, que vive entre os Apinayé há duas décadas.

Hoje não tem mais roça por aqui, fico com uma pena, olha Lilian quando cheguei aqui, há uns vinte anos, era uma beleza, muita roça, agora com o Bolsa-família ficou complicado, ninguém mais quer plantar (Rita – Pãxty, conversa livre, gravada em 19/04/2013).

Chamado a refletir sobre as consequências da quase extinção das roças na aldeia São José, Kangrò Apinayé também mencionou sobre as mudanças nos hábitos alimentares, desta-cando a substituição da carne de caças variadas pelo consumo da carne bovina e outros produtos industrializados, conservados em geladeiras. Maricota também fala saudosa sobre as roças:

Ah mia fia, nós plantava era muito, comia da roça, né, tinha muito aqui nesse terreiro, agora tem mais não, plantei até umas coisinha, mas não deu mais, também tô doente, nem posso fazê muita coisa, quando Tỹrtum[deus], assim o Sol criou nós, criou panhi [índio] até ôto dia, tinha caça e roça, agora tem mais não (Conversa livre, gravada em 20/04/2013).

Ao falar sobre a situação do plantio na aldeia, Maricota se refere ao mito de origem e seus significados (LÉVI-STRAUSS, 2007) para os Apinayé. Na constituição desse mito, os elementos da natureza são divinizados e ganham poder de criação. Para adensar esse enredo, recupero rememoração socializada com Wintemberg Zaparoli sobre a criação dos Apinayé na ótica da cosmologia nativa.

O sol e a lua andavam só pelo mundo, pela terra, por ai, sozinho, Deus todo poderoso criou o sol e a lua, né, nós não vivia, ai o sol foi plantar a cabaça e a lua resolveu criar seus filhos também. Plantou na roça. A cabaça grande foi pro rio, jogaram lá na água, durou muito tempo, mais muito tempo mesmo, voltou pra tirar os meninos, o sol voltou e a lua também, fomos criados assim (Maricota Apinayé em entrevista concedida a Zaparoli, 2000, p. 73).

Sol e Lua são os criadores do mundo Apinayé, um mundo dividido (DA MATTA, 1976) entre as metades Kolti e Kore, um mundo de dualidades. “No mito do Sol e da Lua, estão “expressos” não só os dois conjuntos de metades (Sol = Kolti, Lua = Kolre; Sol = Ipôg-notxóine, Lua = Krénotxóine) como também a amizade formalizada: Sol e Lua são krã-geti/ pá-krã e várias situações cruciais da vida tribal” (DA MATTA, 1976, p.133).

Curt Nimuendajú ([1939], 1986) foi o primeiro a escrever que o sistema social desse povo se baseava em princípios dualistas, e a partir do dualismo existente em seu mito de origem, os Apinayé seguem estruturando sua sociedade em metades. Conforme observado pelo autor, apesar da dualidade de sua cosmologia e organização social, os Apinayé concebem o universo como uma totalidade, em que as metades se complementam, não podendo existir o Sol sem a Lua.

Como aponta Albuquerque (2008, p. 81) “Pelo que podemos observar, essas me-tades remetem ao universo Apinayé uma série de oposições cosmológicas e hierarquizadas dessas metades: dia/noite; homem/mulher; fogo/água; animais domésticos/animais selvagens; seca/chuva; certo/errado”.

Atualmente, a aldeia tem se fortalecido no processo político, além do considerável crescimento populacional, hoje já são 75 casas, ainda organizadas em círculos, em volta do pátio. Local onde acontecem as festividades, brincadeiras e os jogos, tanto os tradicionais

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como os que assimilaram em relações interculturais com os não indígenas. Entre os jogos, os Apinayé têm preferência pelo futebol, jogado por homens e mulheres.

O pátio é o espaço da coletividade, da política, dos contatos permitidos. Espaço praticado no qual os rituais, as festividades, os jogos, os encontros são vivenciados. É um território coletivo, mas para adentrá-lo o convite é feito, na maioria das vezes, pela voz da tradição. São os cantores e cantoras que chamam os demais pelo entoar de suas vozes e cha-coalhar dos maracás.

Quanto aos serviços básicos a aldeia disponibiliza de água encanada, energia elétrica e de uma escola bilíngue, mantida com recursos do governo do estado do Tocantins, atenden-do todas as modalidades da educação básica, desde o Ensino Infantil até a EJA (Educação de Jovens e Adultos).

No que se refere ao saneamento básico, esses indígenas reivindicam melhorias, já que por não haver sistema de esgoto, os riachos são contaminados tanto por fezes como por lixo, que é um dos grandes problemas ambientais vivido pelos Apinayé. Quem anda pela aldeia vê lixos descartados pelos espaços comuns e privados, contaminando e poluindo o ambiente. José Eduardo, o atual cacique, informou que já está tentando negociar o sistema de banheiros, assim como esgoto para a comunidade, pois ressaltou que as fezes são um grande problema, sendo que devido à contaminação das águas dos riachos, os Apinayé já passaram por algumas epidemias de diarreia, devido ao banho e ao consumo de água inapropriada, entre outras doenças.

José Eduardo apontou que é preciso cuidar da terra, da aldeia, mas não se pode esquecer das pessoas, porque elas são o principal patrimônio do lugar. Pelas sabedorias que carregam e transmitem cotidianamente entre as várias gerações, Romão, Camilo e, especial-mente, Maricota, tornam-se porta-vozes de saberes, segredos e filosofias da floresta.

Na narrativa dos Apinayé, Maricota foi ganhando importância ao ser apresentada como patrimônio imaterial que materializa em seu saber fazer, a vida Apinayé e as muitas aprendizagens daquele povo. Sintonizados com uma concepção mais ampla de patrimônio, estamos de acordo com Sant’anna (2009, p. 52) quando assinala: “De acordo com essa con-cepção, as pessoas que detêm o conhecimento preservam e transmitem as tradições, tornan-do-se mais importantes do que as coisas que as corporificam”.

POLIFONIA DE VOZES: MARICOTA, PATRIMÔNIO DE SABERES

Pelas andanças na São José fomos auscultando um povo que fala pela voz dos sen-timentos, não se envergonha em expressar com lágrimas a gratidão, o medo da perda, o encanto, a reverência. Nessa interação, emergiram patrimônios imateriais dos Apinayé, repre-sentados no saber fazer arte, saber contar as histórias do povo, saber cantar, saber conduzir as crianças à vida, saber das crenças espirituais, saber cuidar do outro.

Esses saberes foram apontados sempre relacionados aos indivíduos que através de seus conhecimentos tornavam possível a materialização do que para eles compõe a tradição do povo Apinayé, seu maior patrimônio. “A cultura é a coisa mais importante de um povo, porque sem ela nem somos mais nós, já perdemos o que tem de mais nosso. Nosso povo e nossa cultura e nosso patrimônio” (José Eduardo, 19/04/2013).

Assim, a ideia de patrimônio a que se refere José Eduardo, converge com o pen-samento do parente João Asiwefo Tiriyó, que segundo a linguagem de sua tradição explica como os povos indígenas compreendem patrimônio.

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Patrimônio cultural imaterial, patrimônio material? É tudo misturado! Para explicar, desenhamos um rapaz que está todo enfeitado. Desenhamos esse nosso parente enfeitado para a gente entender melhor onde está o patrimônio material e onde está o patrimônio imaterial (...). Está na cabeça desse rapaz que desenhamos, está no pensamento dele. Se ele não tiver esse conhecimento dentro dele, como é que ele vai fazer os enfeites que ele está usando aqui, como é que ele vai poder repassar para os filhos dele? O patrimônio imaterial é o conhecimento que foi repassado para esse rapaz. É o invisível que está dentro, que comanda tudo. O conhecimento que ele tem para fazer os adornos que ele vai tecendo. Isso quer dizer que ele não deixou acabar o conhecimento (GALLOIS, 2006, p. 08).

Compreender a dinâmica dos Apinayé, e vê que tudo está conectado em cosmologias e saberes é ler a interrelação do manuseio do material (a feitura do chocalho, a composição dos colares, pulseiras, no fiar das contas e sementes, a harmonia da plumagem nos cocares, a extra-ção da tinta do jenipapo e do urucum para a pintura), com a organizaextra-ção social (quem ensina, quem aprende, quem representa, quem faz o colar, quem faz as pinturas), a linguagem (verbal – é o Apinayé a língua da tradição; não verbal: olhares, gestos, vestuários) e o simbólico (ter uma pintura horizontal é fazer parte do grupo do Sol (Kolti), já a marca do grupo da Lua (Kolré) é a pintura vertical, quem pode pegar no chocalho do cantador, além da sua energia, quais outras emanam naquele instrumento?). Na cultura dos Apinayé essas dimensões estão imbricadas na tradição e revelam a complexidade da natureza humana (MALINOWSKI, 1978).

Nesse entendimento, para os Apinayé o patrimônio é “o que tem valor, o que é importante e deve ser preservado, o que recebem como herança e da mesma forma tem que deixar para os filhos”, é a tradição, a cultura vivida e compartilhada. Para eles a cultura está representada pelos membros da comunidade, sendo os velhos aqueles autorizados a guardar e repassar a tradição de seu povo.

Maricota, então, ganha destaque entre sua gente. Indicada pelos Apinayé como um dos patrimônios imateriais do povo indígena, sua presença povoa a memória dos indígenas da aldeia, exercitando um poder simbólico que a destaca frente aos demais. Inspirados em Bour-dieu (2012, p. 14), podemos dizer que seu saber lhe confere status, valor, poder “quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido [...]”.

E o valor social de Maricota é reconhecido pelos membros da comunidade e por pessoas que, ao buscar analisar a cultura e o saber do povo Apinayé, ouviu de Maricota his-tórias e aprendeu com suas vivências. Uma polifonia de vozes sobre essa mulher, patrimônio de saberes, é possível escutar.

Ah, hoje sou parteira mas a Maricota sabe muito mais, aprendi com ela, né, ela é importante demais pa nós, pas buchuda, pas criança (Vanderléia Apinayé, parteira, 20/04/2013).

Aqui a D. Maricota é quem mais sabe assim de história, todo mundo fica por lá, pra conversar com ela, quando quer saber das coisa de nós, dos Apinayé (Gersonita Apinayé, 21/04/2013).

Quando os professor de universidade vem pra cá, tudo procura a Maricota, porque ela sabe e gosta de contar as história, mas tem outros, mas vão mais é pra lá mesmo, o Odair (Ver GIRALDIN, 2000) fica lá direto (Orlando Apinayé, ex-cacique, 19/04/2013).

Nossa! A Maricota sabe muito, ela é um patrimônio dos Apinayé, quando vim pra cá, isso olha faz muito tempo, mais de 20 anos, ela me ensinou muito e ensina, é uma amiga (Rita Pãxty, missioná-ria, 21/04/2013).

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Na cultura de índio a gente dá muito valor pros velho porque transmite as coisa da cultura pra nós, e a Maricota é importante pras vida. Eu mesmo sou pegação dela (José Eduardo, cacique, 19/04/2013).

Você sem dúvida está diante de um patrimônio dos Apinayé, e o mais interessante é como ela vai conduzindo os ensinamentos, eu andava com ela pelo terreiro e ela ia me dizendo, aí eu perguntava e quando é que a senhora vai me ensinar as coisas dos Apinayé, ela respondia: Eu não tô te ensinando, tu não tá vendo? (Zaparoli, 10/03/2013).

O reconhecimento de Maricota como patrimônio material e imaterial, deixa ver que no ethos do mundo Apinayé, os saberes compartilhados tracejam a identidade desse povo indígena. Nesse contexto, ganha expressão o lugar das memórias de Maricota que, ao sociali-zar, refazer e ressignificar o que aprendeu com seus ancestrais, torna-se elo entre o passado e o presente. A memória compartilhada, a memória ouvida e a memória retransmitida traduzem um “sentimento de identidade [...] na medida em que (cada uma (d)ela(s)) é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e da coerência de uma pessoa com o grupo em sua reconstituição de si” (POLLAK, 1992, p. 05. Inserções nossas).

No rosário de saberes com os quais Maricota opera com maestria para garantir a existência de sua gente, saber pegar vidas, ganha destaque. “Esse aí é pegação minha, essa aí

também” (Maricota Apinayé).

As vidas em terras indígenas tradicionalmente nascem pelas mãos de uma parteira. Ela acompanha a “buchuda” durante a gravidez, orienta, faz a puxação: ação com que a par-teira massageia a barriga da grávida, colocando a criança no lugar correto para nascer, ou seja, em apresentação cefálica. Maricota, então, ensina: “É isso que aprendi a fazer e faço até hoje, já peguei menino de panhi [indígena] e de kupen também, é de kupen, de branco. Já peguei muuuuuito, que tenho conta, não tem conta” (Conversa livre em 20/07/2013).

Gersonita Apinayé, relembrando quantas e quais são as parteiras da São José, narra: “Tem a Jovelina, a Bastiana, a Vanderlea, que é a mais nova, mas a melhor mesmo é a Mari-cota, porque pega minino difícil, né”. (Conversa livre 20/07/2013). Ao se referir a “pegar mi-nino difícil”, a narradora lembra-se dos bebês que não estão na apresentação cefálica, “assim de cabeça pra baixo, ou com os braço aberto, aí pode dá problema pra nascer, matar mãe e os mininu” (Vanderlea Apinayé, entrevista 19/04/2013).

Quando ocorre morte, quer seja da mãe e/ou da criança há uma grande comoção na aldeia e a parteira fica por muitos dias de luto e sem vontade de “pegar menino”. Caso ocorri-do com Jovelina, no mês de março de 2013, que ficou por um bom períoocorri-do em introspecção. Convidada a pensar sobre o início de suas atividades como parteira, Maricota olhou para o horizonte, como se procurasse a reposta, depois de um tempo, narrou: “Tanto tempo, nem me lembro, só sei que era novinha, tem coisa que aprendi foi no sonho, tem coisa que vi fazendo com outras mais veia”. Na memória de Maricota o que se fixou foi a ação que marcou sua prática. O tempo era apenas um detalhe da cronologia. Suas lembranças não pertenciam ao mundo de Kronos e sim ao de Mnemosine. Em sua memória acionada para escavar sabe-res, diluem-se sonhos e práticas.

Los sistemas de saber indígena se comportan como mapas de memorias donde convergen nocio-nes de la memoria ancestral y experiências de diversas orígenocio-nes – sueños, revelacionocio-nes, enseñanzas, costumbres –; son formas de la memoria en actos que se activan en saberes. El lugar primordial de referencia del saber indígena es la comunidad; pero también lo son otros espacios de acto y

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represen-tación como: el monte, el bosque, las lagunas, la casa, los patios, etc. La comunidad construye así, el espacio de representación de la memoria oral y los saberes culturalmente reconocidos espresados en prácticas cotidianas (GOTTA, 2008, p. 30).

Para muitos indígenas a prática de partejar é interpretada como um dom, interliga-da à dimensão espiritual. “Foi Tỹrtum [Deus] que ensinou as mulher a pegar mininu, porque tem hora que é difícil, aí só Tỹrtum” (Denise Apinayé, caderno de campo 20/07/2013). Im-bricadas nesse saber estão outras dimensões que não apenas o material. Acerca desse aspecto, Teixeira (2001, p. 96) ressalta que:

[...] Conhecer os conhecimentos e saberes sobre o cuidar é conhecer símbolos, conceitos, percepções e transmissões de uma sabedoria comunitária, ou seja, seu repertório cuidativo, que é composto de experiências acumuladas e transmitidas através de gerações anteriores [os mais velhos], de experiên-cias compartilhadas com a mesma geração e aquelas, obtidas através das múltiplas vias do cuidar. [...]

Vanderlea, ao falar sobre como aprendeu a partejar, afirma que foi com as mais velhas, principalmente com Maricota, com ela também aprendeu a fazer os remédios para “limpar barriga”, após o parto, objetivando não deixar a mulher sofrer inflamação e fazer sarar o umbigo da criança. O preparo dessas porções depende, em boa medida, da relação que a parteira estabelece com o mundo espiritual.

O pajé ensina também, ouve e diz pra gente como é pra fazer, as planta que usa, precisa conversar com ele, porque tem planta que cura e planta que mata, né?! Também o dia e a hora de pegar, tem que conversar com a mata (Entrevista em 19/04/2013). Também aprendi com a Maricota a usar os remédios, né?! A mexer com as erva, os mato, tem que sabe! (Caderno de campo em 20/04/2013).

A relação que as parteiras da floresta tem com plantas, animais e rezas é íntima, profunda e respeitosa. Para Maricota, Vanderlea e Bastiana as plantas são vistas e tratadas como elementos vivos e poderosos, a força que armazenam são capazes de fazer cuidar de outras vidas.

Mume (1976, p. 37) ao analisar o uso de plantas medicinais, afirma que a energia dispensada desses medicamentos “produz ‘força vital’ que, segundo cremos, é inerente a tudo o que é vivo. O cientista, embora possa analisar a clorofila das plantas e conhecer seus com-ponentes químicos não pode detectar a composição química de uma força vital. Eis por que os cientistas não conseguem criar a vida [...]”.

Para as mulheres com quem conversamos2, no que se refere ao uso dos

medica-mentos assim como quanto à prática de parteira, há uma leitura que ultrapassa as fronteiras dicotômicas do humano/não humano, material/espiritual, pois concebem essa prática como uma ação protagonizada por uma mulher, que se utiliza de uma tesoura3 – instrumento da

materialidade – guiada e instruída pelo plano da espiritualidade.

Quando a coisa parece que vai ser ruim, difícil na pegação, aí a gente conversa com pajé, reza pra Tỹrtum pra ajudar a gente. Porque tem hora que só as coisa que a gente aprende não dá pra fazer, aí a gente pede ajuda, porque tá difícil, porque pode morrer a criança e a buchuda (Maricota, conversa livre em 20/07/2013).

Atualmente, as mulheres indígenas fazem acompanhamento pré-natal com as agen-tes de saúde no posto da própria aldeia São José. Nos casos mais complicados, quando é

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diagnosticada uma gravidez de risco, as grávidas são encaminhadas para o hospital de Tocanti-nópolis/TO ou em casos mais complicados ainda para Araguaína (TO). Tais decisões e apoios contribuíram para que os casos de morte no parto diminuíssem consideravelmente entre os Apinajé. “Teve uma mulher que tava ruim, muito difícil mermo, aí o Josivan [Chefe da Funai na época – 2010] levou pro hospital” (Maricota, conversa livre em 20/08/2010).

Em conversa com Gersonita ela fala sobre como também os partos que não apresen-tam riscos para as mulheres têm sido feitos nos hospitais: “Antes a gente só fazia aqui, eu tive a minha mais velha com a Maricota, foi tudo bem. Mas doeu demais, aí agora vou pro hospital, é porque tem menos dor. Mas o resguardo a gente segue do jeito de índio ainda” (Gersonita, conversa livre em 19/07/2013).

No posto de saúde fomos informados que há uma conscientização tanto para o parto normal quanto para os medicamentos naturais, com o objetivo de contribuir para a manutenção da tradição desse povo, assim como para evitar as interferências cirúrgicas des-necessárias. Rosivan – agente de saúde –, todavia, diz ser uma tarefa difícil, pois, na maioria das vezes, os funcionários do sistema de saúde não conseguem convencer alguns indígenas atendidos no posto a fazerem uso da medicina tradicional.

Quanto ao “resguardo” Rosivan, em conversa livre em 23/04/2013, diz ser mais fácil o convencimento dos tipos de alimentos, das atividades a serem executadas e evitadas, porque a dimensão não é apenas a humana, as parturientes também temem as consequências não humanas, vindas como “castigo” do mundo espiritual.

Maricota fala sobre os saberes e crenças relativas ao “resguardo”, que ela chama de “obedecer as coisa da vida”, para serem seguidos depois que a mulher “tem o menino”.

Num pode comer beju de tapioca, num pode comer rabo de couro, num pode comer esses bicho, como é? Esqueci foi o nome [...] num pode comer surubim [tipo de peixe], num pode ficar na porta, num pode passar por de trás de tu. [Por quê?] Num deixa o cachorro passar por de trás de tu [Por quê? O que é que acontece?], porque o cumpanheiro fica com o rabo desse tamanho [Maricota separa os braços tentando demonstrar o tamanho] [Indago quem seria esse companheiro] O cumpa-nheiro do bebê. E assim tem esse resguardo (Maricota, entrevista em 20/08/2010).

O “companheiro do bebê”, explica Maricota, é um ser espiritual que segue a crian-ça, uma espécie de anjo da guarda, que cuida e protege. Segundo ela, todos os indígenas ao nascerem ganham um companheiro, que, dependendo das ações da mãe, pode ser prejudi-cado ou não, prejudicando também a criança. “Eu já vi mãe que fez coisa errada e o menino ficou doente, e a mãe também fica doente, o companheiro vai embora assim” (Maricota, conversa livre em 20/08/2010).

Em sintonia com compreensão apresentada por Pacheco (2013, p. 501), ao analisar experiências de pajés, curandeiro(a)s e benzedeiro(a)s do arquipélago de Marajó, podemos também dizer que na aldeia São José o “uso da medicina científica não anulou, ainda hoje, a relação dos marajoaras com os saberes e orientações dos chamados “sacerdotes da terra””. A experiência das mulheres indígenas em relação ao parto indica que “continuam a transitar com suas crenças, dificuldades e esforços pela vida em universos próximos e distantes daqueles nos quais foram formados culturalmente” (Idem).

Entre essas mulheres, Maricota vai enredando em sua narrativa tradições, saberes e cosmologias em atualizações. O acervo de vivências da aldeia se abre através de sua memória, deixando ver sentidos da arte do partejar na ótica da aldeia São José. Nesse enredo, reflexões

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elaboradas por Horta e Del Priore (2005, p. 5) permitem dizer que Maricota filtra os saberes do passado à luz das necessidades e significados do presente, pois a memória

[...] é, também, inseparável de um filtro afetivo. Tal filtro é, por um lado, modelado pelo social – e pelo mundo em que está inserida a memória. Mundo que ela apreende e que possui certa estrutura. Pois ela não pode ser separada do pensamento, das crenças, das atitudes interiorizadas pelo indiví-duo ao longo de sua socialização.

Vale ressaltar que o filtro afetivo é muito intenso em Maricota. Nas narrativas com-partilhadas não silenciou dores, nem alegrias, falou do único filho que morreu, com muita emoção, confessou sua alegria por ser parteira e, de forma tranquila, em um misto de serenidade e autoridade, relatou como é reconhecida pela família como líder de um grupo matrilinear.

Maricota vive a tradição em seu cotidiano, “pegando” vidas, cantando, fazendo arte e ensinando ao seu povo os saberes Apinayé em uma vivência de aprendizagem e reverência da cultura que talhou sua história e de sua gente. Assim, brota de seu arsenal de saberes, a cantoria. Não por acaso, é comum chegar a São José e ouvir Maricota contar histórias, con-versar, vê-la em meio à confecção de cestarias, colares, enfeites, no entanto, é em momentos de festividades, batizados e de funerais que sua voz ressoa, ecoando a tradição de seu povo. Maricota Cantadora. A Maricota que canta ao lado dos seus o cotidiano, os fazeres, a nature-za, em um movimento de educação pela voz, comunica as relações entre o mundo material e espiritual. “A gente canta pra falar da gente, da mata, não é assim ensinar, mas os menino fica junto e aprende, também assim quando morre um índio, pro morto ficar feliz com a cantoria, na festa da Tora Grande também” (Maricota, conversa livre em 20/07/2013).

Apesar de Maricota reconhecer explicitamente que pela cantoria indígena Apinayé perpassa um processo educacional que vai ao encontro da difusão da tradição de seu povo, ela afirma que quando cantam os indígenas vão repassando de geração para geração valores identitários e cosmologias.

Eu mesma aprendi a cantar ouvindo os velho, meu pai cantava boooonito, eu cantava e dançava de junto, aí eu fui aprendendo, aí também fui fazendo as cantoria minha porque Tỹrtum também diz pra gente como tem que ser, assim o pajé diz e a gente canta, também essa aí já aprendeu foi coisa comigo [apontando para Maria José, esposa de seu primo [Kangrò] na cantoria a gente aprende coisa de índio, de apinayé, né? (Maricota, conversa livre em 20/07/2013).

No momento dessa conversa, Maricota estava muito debilitada devido a um problema renal, por isso seus familiares estavam emocionados e com medo de que ela não resista por muito tempo. Isso fez gerar um interesse pela materialização de Maricota. Ilário, seu esposo, pediu para que ela fosse fotografada. “Ela é importante pra todo mundo aqui na aldeia pra Kupen como vo-cês, e pra panhi como nós, aprendi tudo com ela” (Ilário, conversa livre em 20/07/2013).

No sentimento que entrelaça a vida de Maricota aos Apinayé, Maria José desejou ter um gravador para reter os saberes do canto que estão de posse dessa mulher-patrimônio. A pos-sível perda de Maricota é vista pela aldeia como a perda não apenas de sua materialidade física, mas também dos saberes que preserva.

Eu queria ter um negócio desse [gravador], assim pra mim, né, pra gravar a voz [Emocionada e com fala embargada pelo choro], porque é ela que sabe essas cantoria, as mais bonita, né, tenho medo dela morrer e aí como é que vamo fazer? (Maria José, cantora, conversa livre em 20/07/2013).

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Compreender a importância de uma mulher patrimônio para a comunidade em que convive, atua, ensina, aprende, é uma ação que impreterivelmente nos imprime a escuta e ausculta de seu povo. Assim seguimos pela aldeia conversando com as pessoas sobre a Ma-ricota cantadora, das quais ouvi:

A Maricota canta bem, canta bonito, e as pessoa aprende com ela, viu quando Atorkrã foi ganhar nome, foi bonito não foi? (Orlando, caderno de campo em 20/04/2013).

Aqui tem muitos cantador: o Caprãm, o Camilo, das mulher tem uma que é muito boa, a Maricota, esses dia tá adoentada, mas canta bem, já foi lá conversar com ela? (José Eduardo, caderno de campo em 20/04/2013).

Tem mulher e tem home que canta, são cantador, cantoria é importante pra aldeia, pros costume, os menino aprende, a Maricota mesmo é cantadora e é de mão cheia, pede pra ela pra cantar pra tu, ela ensinou essa mulher aqui de casa (Kangrò, conversa livre em 20/07/2013).

Na cartografia de homens e mulheres cantadores da aldeia São José, Maricota mais uma vez ganha destaque. Seu valor é ressaltado, assim como a importância da cantoria para a aprendizagem cultural do povo da aldeia, que aprende através das letras das músicas que falam de bicho, natureza, espíritos, costumes, reconstituindo o cotidiano Apinayé.

Ao discutir sobre a cantoria dos Apinayé como uma dimensão do patrimônio cultu-ral indígena, percebemos a interligação da música, da dança e da performance para a intercone-xão de saberes que formam um todo cultural e, portanto, patrimonial, quer seja materializado em pessoas, quer seja representado em imaterialidades sentidas. Maricota é um desses casos, quer interligada a objetos, enfeites e maracás, quer conectada ao mundo espiritual, como, por exemplo, a Festa da Tora Grande, celebrada de diferentes formas, seja para homenagear aos mortos, seja para festejar a vida através do batismo, revelando como as atividades cotidianas e tradicionais deixam ver suas alianças com uma vida inteira.

Assim, o saber-cantoria é uma das expressividades do patrimônio imaterial dos Api-nayé, ao deixar falar a voz da cultura e sua transmissão, sendo uma das vertentes desse com-plexo patrimônio enredado em teias de sentidos e significados culturais.

Seguimos caminhando pelo mundo Apinayé auscultando sua gente, olhando seu mundo material com olhares antropológicos, que busca estar atenta ao que está por trás ou a frente do que é visto e sentindo, o que a cosmologia de universo desses indígenas expressam na imaterialidade de seus saberes.

AMARRAS FINAIS

O texto que apresentamos nesse trabalho é o início de um caminho que pretende se enredar pelo mundo Apinayé em vozes, memórias e sentimentos de seu povo, ao se referirem às pessoas-patrimônio desses indígenas. Aqui priorizamos tratar como a comunidade da São José foi apontando Maricota como um patrimônio imaterial para eles e buscando a justifica-tiva desse reconhecimento.

Em muitas conversas com a comunidade, eles foram conduzindo o que fazemos a opção por chamar de catalogação de patrimônio, notamos que para eles não há uma sub-divisão em material e imaterial, e definiram alguns saberes como tais patrimônios: Saber partejar, saber cantar, saber arte (confecção de armas, enfeites, utensílios), saber contar

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his-tórias. À Maricota foram relacionados todos esses saberes, menos o fazer armas, e as memórias das pessoas da aldeia, foram ratificando umas às outras a percepção dessa mulher-patrimônio como um ícone da tradição Apinayé.

Ainda há muito que caminhar para a construção de um texto mais consistente e que nos autorize a fazer considerações contundentes sobre o patrimônio cultural desse povo, no entanto, os dados que construímos com a valiosa contribuição e aceitação Apinayé já nos permitem acreditar e afirmar que o sujeito principal dessa pesquisa é uma MULHER--PATRIMÔNIO, MARICOTA APINAYÉ.

MARICOTA APINAYÉ: HERITAGE OF KNOWLEDGE

Abstract: the essay discusses the Apinayé heritage, ethnicity belonging to the Macro-Jê language

trunk and that inhabits the northern of Tocantins. We selected as main narrator, Maricota, an indigenous who holds multiple knowledges. Articulating scholars of anthropology and history, we argue that there are, among the Apinayé, people who embody the tradition in their bodies, being recognized by the other members of the village.

Keywords: Apinayé. Memory. Heritage. Knowledge.

Notas

1 Sobre a diferença entre contador e narrador, ver Fernandes (2007).

2 Vale notar que os homens não se sentem à vontade para falar sobre o tema: “Essas coisa de mulher eu num entendo” (Francisco Kangrò, conversa livre em 20/08/2010).

3 O instrumento utilizado por Vanderlea, parteira da São José, é uma tesoura de madeira, sendo que ela também atenta para o fato da esterilização do instrumento. Já Maricota, a mais velha delas, usa um instrumento de madeira que se assemelha a uma faca, preservando saberes que operam com instrumentos da cultura material da artesania indígena.

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