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As Concepções de Capacidade e Responsabilidade na Obra O Justo 1 de Paul Ricoeur

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ARTIGOS

AS CONCEPÇÕES DE CAPACIDADE

E RESPONSABILIDADE NA OBRA

O JUSTO 1 DE PAUL RICOEUR

*

SAMUEL DE JESUS DUARTE**

Resumo: a reflexão de Paul Ricoeur a respeito do direito e da justiça na obra O Justo 1 tem como ponto de partida as reflexões sobre o sujeito de direito. O sujeito de direito é o fundamento sobre o qual se constroem dentro do pensamento ricoeuriano, as teorias sobre o justo. Esse tema é desenvolvido a partir do desdobramento das noções de capacidade e de responsabilidade. Vi-sualizar a forma como Ricoeur trabalha esses conceitos é o objetivo desse artigo. A obra O Justo 1 é a fonte principal, no entanto, outras referências foram utilizadas no sentido de ajudar a entender, dentro das reflexões brasileiras sobre a justiça, a questão da justiças.

Palavras-chave: Paul Ricoeur. Filosofia do direito. Capacidade. Responsabilidade.

A

filosofia se caracterizou desde o seu início por uma separação entre o mundo que não depende da vontade dos humanos e o mundo criado pelas pessoas. Dentre as questões especificamente humanas se encontram a ética, a moral, o direito, a reli-gião, a política, a arte, a história, entre outras. Observa-se desde o início da filosofia uma compreensão do direito como uma realidade proveniente não do mundo dos deuses como nos sistemas mitológicos antigos – a exemplo dos babilônios, assírios, egípcios – mas, como o resultado da discussão nas assembleias em participações democráticas que supunham uma concepção do humano cidadão que possui os direitos fundamentais da isonomia e da isegoria. Com isso, observa-se que as reflexões a respeito da justiça e do direito sempre re-montam às concepções antropológicas. A noção de justiça e direito está alicerçada numa compreensão do ser humano e da relação das pessoas entre si. O que é justo ou injusto se

* Recebido em: 05.02.2014. Aprovado em: 29.02.2014.

** Graduado em Filosofia pela Faculdade Batista da Bahia, especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela PUC Minas, Mestre e Doutor em Teologia Bíblica pela PUC Rio. Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Goiano - Campus Iporá.

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constrói a partir das convivências entre os indivíduos como importante elemento para a ma-nutenção dos grupos humanos. Nesse sentido, as concepções relacionadas à justiça, bem como as concepções morais, éticas e políticas se alicerçam em compreensões sobre o valor e a dignida-de da vida humana e daqueles que são enquadrados dignida-dentro dignida-dessa idignida-deia dignida-de humanidadignida-de. A partir dessa perspectiva, ressaltam-se aqui as características humanas da capacidade e responsabilidade. O fundamento das relações jurídicas é o pressuposto da compreensão deste como livre e não determinado, como um ser capaz de escolhas e possuidor de vontades, como um ser repleto de possibilidades. Essa realidade viabiliza o direito, pois, ao afirmar que o ser humano é livre e capaz, a consequência imediata é que este se mostra responsável. A imputabilidade ou a responsabilização jurídica dos atos humanos só é possível a partir desses pressupostos.

O SUJEITO DO DIREITO DENTRO DA TEORIA RICOEURIANA DA JUSTIÇA A reflexão ricoeuriana sobre a justiça tem origem num grito de injustiça. É a in-dignação pelas divisões desiguais, pelo descumprimento das promessas e pelas punições des-proporcionais. “Não distinguimos nisso, retrospectivamente, algumas das linhas gerais da ordem jurídica: direito penal, direito dos contratos e das trocas, justiça distributiva?” per-gunta Ricoeur (2008, p. 5). No entanto, a indignação não corresponde à autêntica justiça porque possui um obstáculo: o desejo de vingança. O direito cria uma justa distância entre os antagonistas separando justiça e vingança. Desta forma, o senso de justiça construído no direito aponta para três elementos: justa distância, mediação por um terceiro e imparcialidade (RICOEUR, 2008, p. 6).

O pressuposto para uma reflexão filosófica sobre o justo, de acordo com Ricoeur, está na afirmação de que o si constrói sua identidade numa estrutura relacional. No entanto, essa relação dialógica não é com um tu, na segunda pessoa, numa relação de proximidade e amizade, mas com outro que é distante, ou seja, é cada um. A relação com esse outro acon-tece a partir de uma instituição. Nesse sentido, ele lembra um antigo adágio que resgata essa concepção de justiça: suum cuique tribuere – a cada um o que é seu. Na verdade, a conse-quência é a cada um segundo a instituição. Ricoeur utiliza o conceito de instituição para diferenciar as relações interpessoais. As relações de amizade acontecem entre um eu e um tu. Por mais virtuosa que seja a relação de amizade, Ricoeur afirma que as tarefas da justiça não podem ser garantidas com tão grande proximidade. Desse modo, ele utiliza o termo instituição para mostrar que a justiça tem como característica primordial a imparcialidade (RICOEUR, 2008, p. 8-9). Ao utilizar esse conceito, Ricoeur não se refere à teoria institu-cionalista do direito, elaborada inicialmente na França por Harriou e sistematizada por Santi Romano na obra L’ordinamento giuridico. Para Romano, o direito deve conter os seguintes elementos essenciais: o conceito de sociedade, a ideia de ordem social e a organização. “Para Romano tem-se direito quando existe uma organização de uma sociedade ordenada, ou, com outras expressões análogas, uma sociedade ordenada por meio de uma organização ou uma ordem social organizada” (BOBBIO, 2010, p. 21). Esse outro institucional, um tribunal, por exemplo, se encarna no juiz. (RICOEUR, 2008, p. 7-9)

A estrutura relacional do ser humano leva o pensamento ricoueriano ao entendi-mento da justiça dentro dessa estrutura que possui dois eixos: o eixo horizontal, da constitui-ção dialógica do si, e o eixo vertical, dos predicados que qualificam a aconstitui-ção humana em termos de moralidade. De acordo com Ricoeur (2008, p. 10), o eixo vertical apresenta três níveis de

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predicados. “No primeiro nível, o predicado que qualifica moralmente a ação é o predicado bom”. Esse nível é teleológico e representa a finalidade ou o coroamento de uma vida. A moralidade se fundamenta na relação entre vida, desejo e carência. Dessa forma, ele define a ética como “querer uma vida boa” (RICOEUR, 2008, p. 10). Desse modo, o predicado bom está relacionado com a reflexão ricoeuriana sobre a justiça na medida em que a “vida boa” se realiza em instituições justas. A justiça faz parte do querer viver bem e pode ser formulada como “querer uma vida realizada com e para os outros em instituições justas” (RICOEUR, 2008, p. 10).

O segundo nível é deontológico e corresponde ao predicado obrigatório. As pessoas vivem relações em que uns exercem poder sobre outros, sendo que todas as formas de violên-cia se originam desse poder. Por causa do prejuízo que um ser humano pode causar a outro é que ao predicado bom deve se unir o predicado obrigatório. Do ponto de vista deontológico, o justo na Ética a Nicômaco, de Aristóteles, é o justo meio da cidade (polis). Nesse sentido, Ricoeur (2008, p. 11) cita Hannah Arendt ao afirmar que “é no interesse (latim inter-sum,

inter-es, inter-esse: estar entre) que o querer viver bem encerra seu percurso. É como cidadãos

que nos tornamos humanos”. No entendimento ricoeuriano, o cerne do ponto de vista de-ontológico consiste em que a imparcialidade liberta a indignação do desejo de vingança. Essa imparcialidade é representada pela figura do juiz. Dessa forma, o elo entre a imparcialidade do julgamento e a independência do juiz é a referência à lei. Assim, “o que obriga na obriga-ção é a reivindicaobriga-ção de validade universal vinculada à ideia de lei” (RICOEUR, 2008, p. 13). Isso corresponde a um estatuto formal.

Ricoeur reúne os pontos de vista teleológico e deontológico num terceiro nível chamado por ele de sabedoria prática. O sentido teleológico aparece no senso de justiça ou no querer uma vida boa; por outro lado, o deontológico aparece no formalismo exigido pela versão contratualista. “Com a íntima convicção encerra-se o percurso da busca de justiça, iniciada com o querer viver em instituições justas e ratificada pela norma de justiça cuja im-parcialidade o formalismo procedimental vem garantir” (RICOEUR, 2008, p. 17-18).

Numa aproximação às questões teleológicas do direito, Ricoeur apresenta uma re-flexão a respeito do sujeito do direito e do conceito de responsabilidade. Como se pode per-ceber num artigo de Rodrigo Xavier Leonardo (2007, p. 2-3), os termos sujeito do direito e

capacidade são basilares na teoria geral do direito e estão submetidos, dentro do ordenamento

jurídico brasileiro, a uma miscelânea conceitual. Para Ricoeur (2008, p. 21), a questão jurí-dica sobre quem é o sujeito do direito não se difere da questão moral sobre quem é o sujeito digno de estima e respeito. A questão moral remete a uma questão antropológica: quais são as características fundamentais que tornam o si capaz de estima e respeito? Na reflexão so-bre a pergunta quem que incita à identificação surge a noção de sujeito capaz. Ele analisa a questão da capacidade fazendo algumas perguntas com o pronome relativo quem: “Quem é aquele que fala? Quem realiza esta ou aquela ação? De quem é a história aqui narrada? Quem é responsável por esse dano ou esse mal feito a outrem?” A primeira pergunta implica o uso da linguagem, ou seja, a capacidade “de designar-se pessoalmente como o autor de suas enunciações” (RICOEUR, 2008, p. 22). A pergunta quem realiza a ação responde à questão da atribuição da ação a alguém. Ricoeur (2008, p. 23) afirma que essa pergunta é fundamen-tal para o conceito ético-jurídico de imputação uma vez que significa o reconhecimento do indivíduo como agente, ou seja, a “experiência de poder sobre os nossos membros e, através destes, sobre o curso das coisas”. As sociedades consideram como sujeito capaz a pessoa que

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consegue diferenciar, dentro do seu contexto, as ações boas ou más, permitidas ou proibidas. Para ele, esse é o ponto mais elevado da noção de capacidade.

Nós mesmos somos dignos de estima ou respeito desde que capazes de considerar boas ou más, de declarar permitidas ou proibidas as ações alheias ou nossas. Um sujeito de imputação resulta da aplicação reflexiva dos predicados “bom” e “obrigatório” aos próprios agentes (RICOEUR, 2008, p. 24).

A dimensão ética e moral, conforme Ricoeur (2008, p. 25), caracteriza o ser huma-no como sujeito de imputação ético-jurídica. “Estimamo-huma-nos como capazes de estimar huma-nossas próprias ações, respeitamo-nos por sermos capazes de julgar imparcialmente nossas próprias ações. Assim, autoestima e autorrespeito dirigem-se reflexivamente a um sujeito capaz”.

O que falta ao sujeito capaz para se tornar um sujeito do direito, de acordo com Ri-coeur, é a atualização de suas aptidões. Isso acontece a partir da “mediação contínua de formas interpessoais de alteridade e de formas institucionais de associação para se tornarem poderes reais aos quais corresponderiam direitos reais” (RICOEUR, 2008, p. 25).

O primeiro nível do homem capaz, para Ricoeur, se dá ao nível do sujeito falante. Isso significa um eu (locutor) e um tu (destinatário). Esse primeiro nível representa um reco-nhecimento do outro “como meu igual em termos de direitos e deveres” (RICOEUR, 2008, p. 26). No entanto, ele afirma que essa relação é truncada, pois despreza o pronome ele/ela. O ele/ ela não é só aquele/aquela de quem se fala, mas a própria referência ao instituto da linguagem.

Nesse sentido, ele/ela representa o instituto, na medida em que este engloba todos os locutores de uma mesma língua natural que não se conheçam e só estejam interligados pelo reconhecimento das regras comuns que distinguem uma língua de outra. Ora, esse reconhecimento não se reduz apenas à adoção das mesmas regras por todos, mas comporta a confiança que cada um deposita na regra de sinceridade, sem a qual o intercâmbio linguístico seria impossível (RICOEUR, 2008, p. 26-27)

Cada agente é interligado por meio de sistemas sociais em que o cerne é o reconhe-cimento. “A capacidade de alguém se designar como autor de suas próprias ações está de fato inserida num contexto de interação no qual o outro figura como meu antagonista ou meu co-adjuvante, em relações que oscilam entre o conflito e a interação” (RICOEUR, 2008, p. 27). Ricoeur procura demonstrar o nível ético da autoestima a partir do exemplo da promessa. Na promessa o outro pode estar implicado como testemunha, beneficiário ou juiz. No contexto da promessa, o pressuposto fundamental é a capacidade de cumprir a palavra. A partir daí surge o princípio de que os pactos devem ser respeitados.

Essa regra engloba qualquer um que viva sob as mesmas leis, e, em se tratando do direito internacional ou humanitário, a humanidade inteira. O defrontante já não é o tu, mas o terceiro designado de modo notável pelo pronome cada um, pronome impessoal, mas não anônimo (RICOEUR, 2008, p. 28).

Segundo Ricoeur, o meio político é por excelência o âmbito de realização das po-tencialidades humanas. Seguindo Hannah Arendt, ele define poder como “a força comum que resulta desse querer-conviver, força que existe tão somente durante o tempo em que este último é efetivo, conforme nos dão prova negativa as experiências terrificantes do desbarata-mento, nas quais o elo é desfeito” (RICOEUR apud ARENDT, 2008, p. 29).

O valor ético fundamental do nível político é a justiça. Nesse sentido, Ricoeur (2008, p. 29-30) segue o entendimento de Rawls para quem a justiça “é a primeira virtude das

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instituições sociais, assim como a verdade é a primeira virtude dos sistemas de pensamento”. O defrontante da justiça não é o tu, mas o cada um. Nesse aspecto, compreende-se a socieda-de como um vasto sistema socieda-de distribuição.

A título de conclusão a respeito do sujeito do direito, Ricoeur faz as seguintes afir-mações:

À pergunta quem é o sujeito do direito? Elaboramos duas respostas. Dissemos no início que o sujeito do direito é o mesmo que o sujeito digno de respeito, e que, no plano antropológico, esse sujeito encontra definição na enumeração das capacidades atestadas nas respostas que damos a uma série de perguntas com quem?, culminando na pergunta: a quem a ação humana pode ser imputada? Depois demos uma segunda resposta, de acordo com a qual essas capacidades permaneceriam virtuais, ou até mesmo seriam abortadas ou recalcadas, na ausência de mediações interpessoais e institucionais, figu-rando o Estado entre estas últimas, num lugar que se tornou problemático (RICOEUR, 2008, p. 30).

ANÁLISE RICOEURIANA DE SUJEITO DO DIREITO NA PERSPECTIVA LIBERAL NA OBRA O JUSTO 1

A partir da conclusão acima, Ricoeur (2008, p. 31) passa a uma análise da tradição liberal. Para ele essa tradição está fundamentada numa concepção que afirma a precedência do ser humano diante do Estado. Isso quer dizer que os seres humanos possuem qualidades e potencialidades que constituem direitos reais. No entanto, Ricoeur entende que esta tradição individualista do liberalismo não leva em consideração a concepção antropológica do ser hu-mano como ser que fala, age, narra e responde. Nesse aspecto, Ricoeur percebe a importância da distinção entre capacidade e realização e, consequentemente, duas versões do liberalismo.

A primeira versão desse liberalismo é o contratualismo. Nessa concepção, antes de entrar na relação contratual, o indivíduo é completo e possui direitos naturais. Para Hobbes, os seres humanos são naturalmente seres de vontade, que possuem interesses divergentes. Sen-do assim, no estaSen-do de natureza existe a guerra de toSen-dos contra toSen-dos. Por isso, para que exista a sociedade, os indivíduos abrem mão de suas vontades e atribuem ao soberano a responsa-bilidade por regulamentar a vida social. Para Rousseau e Kant, o direito natural é substituído pelo desejo de civilidade ou de cidadania. Nesse sentido, dentro da tradição contratualista a associação política é aleatória e revogável (RICOEUR, 2008, p. 31).

A segunda versão é a do liberalismo político e esta tem a preferência de Ricoeur. Nessa tradição, o indivíduo se torna humano a partir da mediação institucional, ou seja, sem a mediação política, o indivíduo é apenas um esboço de homem. Nesse contexto, a associação política não é revogável. Pelo contrário, o indivíduo proveniente dessa associação “institucional só pode querer que todos os humanos gozem como ele essa mediação política que, somando-se às condições necessárias pertinentes a uma antropologia filosófica, se torna condição suficiente da transição do homem capaz ao cidadão real” (RICOEUR, 2008, p. 31). O CONCEITO DE RESPONSABILIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES NA TEORIA DA JUSTIÇA DE PAUL RICOEUR

Após essas considerações sobre o sujeito do direito, Ricoeur trata de analisar o con-ceito de responsabilidade. Para conseguir tal intento, ele apresenta o concon-ceito de responsabili-dade no direito civil como “a obrigação de reparar os danos que infringimos por nossa culpa e

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em certos casos determinados pela lei; em direito penal, pela obrigação de suportar o castigo” (RICOEUR, 2008, p. 33). Esse conceito de responsabilidade enfatiza a submissão às obri-gações de reparar ou de sofrer a pena. No entanto, Ricoeur afirma que na prática o sentido de responsabilidade é vago e possui uma dispersão de empregos. Na realidade, a obrigação “extrapola o âmbito da reparação e da punição” (RICOEUR, 2008, p. 34).

Ao refletir sobre a responsabilidade, Ricoeur utiliza a pesquisa de Mireille Del-mas-Marty, Pour un droit commun1. Ricoeur, consoante Delmas-Marty, afirma que no

cam-po semântico o conceito fundador do verbo rescam-ponder é o verbo imputar. Esse verbo cam-possui uma primitiva relação com obrigação ou retribuição. “Imputar é atribuir a alguém uma ação condenável, um delito, portanto uma ação confrontada previamente com uma obrigação ou uma proibição que essa ação infringe” (RICOEUR, 2008, p. 36). Ricoeur cita o Dictionnaire

de Trévoux, de Robert2, “imputar uma ação a alguém é atribuí-la a esse alguém como a seu

verdadeiro autor, lançá-la por assim dizer à conta e torná-lo responsável por ela” (RICOEUR

apud ROBERT, 2008, p. 36). Nessa definição ele considera interessante a referência ao

agen-te, ou seja, a atribuição de uma ação a alguém como seu verdadeiro autor.3

No contexto da teologia protestante, a imputação não significa a atribuição de uma falta ou mérito, mas a justificação pela fé, ou seja, a imputação graciosa dos méritos de Cristo. “A tônica principal recai na maneira como Deus aceita o pecador em nome de sua justiça so-berana” (RICOEUR, 2008, p. 38). A doutrina católica da Contrarreforma rejeitou o aspecto extrínseco da justificação luterana a partir do conceito aristotélico de disposição natural e destacou o conceito de capacidade. “Com Pufendor, a tônica principal recai na capacidade do agente, e não mais na justiça soberana de Deus” (RICOEUR, 2008, p. 38-9).

Kant conserva em sua reflexão a noção de capacidade. Ele entende a imputação como “atribuição de uma ação a um agente e a qualificação moral e geralmente negativa dessa ação” (RICOEUR apud Kant, 2008, p. 39). Dentro do pensamento kantiano, isso deve ser compreendido a partir da terceira antinomia cosmológica, apresentada na Crítica da Razão

Pura.

Conhecem-se os termos da antinomia. Tese: A causalidade segundo as leis da natureza não é a única da qual podem ser derivados os fenômenos do mundo em seu conjunto. Para explicá-los, ainda é necessário admitir uma causalidade com uma liberdade. Antítese: Não há liberdade, mas tudo no mundo ocorre segundo as leis da natureza (RICOEUR apud KANT, 2008, p. 40).

Kant procura demonstrar que um acontecimento pode ocorrer pelo impulso das coisas ou pela erupção da vontade livre. Para ele a imputabilidade é consequência da capaci-dade originária de iniciativa.

Eis até onde pode ir, no âmbito da primeira Critique, a análise conceitual da ideia de imputabilidade no plano da articulação cosmológica e ética. Por um lado, o conceito de liberdade transcendental permanece vivo, à esfera de sua ligação com a ideia moral de lei. Por outro lado, ele é deixado de reserva, na qualidade de raiz cosmológica da ideia ético-jurídica de imputabilidade (RICOEUR, 2008, p. 41-2).

Na segunda Critique, Kant introduz o nexo decisivo entre liberdade e lei afirmando que a liberdade constitui a ratio essendi da lei e a lei a ratio cognoscendi da liberdade. A ideia de atribuição de uma ação a alguém como sendo seu verdadeiro autor, decorrente da proble-mática da liberdade cosmológica ficará eclipsada por aquilo que Hegel chamou de visão moral

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do mundo, ou seja, a visão da obrigação como agir em conformidade com a lei ou reparar o

dano ou cumprir a pena.

Ainda refletindo sobre a questão da responsabilidade, Ricoeur apresenta uma análi-se da ideia contemporânea de responsabilidade. Ele condensou essas ideias nas contribuições, de um lado, da filosofia analítica, e, de outro lado, da fenomenologia e da hermenêutica. Ele divide a filosofia analítica em filosofia da linguagem e teoria da ação.

A filosofia da linguagem é representada pela teoria da ascription de P. Strawson4, que

influenciou o pensamento de Hart. A ascription pode ser definida como “operação predicativa de tipo único que consiste em atribuir uma ação a alguém” (RICOEUR, 2008, p. 44). Para Ricoeur (2008, p. 45) a teoria da ascription é uma das tentativas de desmoralizar a noção de imputação uma vez que esta cobre a relação entre ação e agente, a saber, a “atribuição de pre-dicados específicos a particulares básicos específicos, sem consideração da relação com a obri-gação moral, e apenas do ponto de vista da referência identificadora a particulares básicos”. Segundo Ricoeur, essa teoria teve o mérito de começar uma investigação moralmente neutra do agir. No entanto, ele afirma que esta precisa ser completada, no plano linguístico, por:

Uma semântica do discurso centrada na questão da referência identificadora – que só conhece a pes-soa como uma das coisas das quais se fala – com uma pragmática da linguagem, em que a tônica não recaia nos enunciados (seu sentido e sua referência), mas nas enunciações, como ocorre com a teoria dos atos de fala (Speech acts): prometer, advertir, mandar, observar, etc. (RICOEUR, 2008, p. 46).

A teoria da ação é representada pelo segundo Wittgenstein, o das Investigations

Philosophiques5, e por Davidson, na obra Essays on Actions and Events6. Essa teoria discute o

problema da relação da ação com o seu agente. Ricoeur afirma que Aristóteles foi o primeiro a analisar a escolha preferencial e a deliberação. O estagirita não distingue o “poder-fazer hu-mano do princípio interior ao movimento físico” (RICOEUR apud ARISTÓTELES, 2008, p. 47). Os modernos, de certa forma, conservam essa visão. Kant apresenta como alternativa à metáfora da geração aristotélica a antinomia da causalidade. A filosofia de Aristóteles possui como base uma filosofia da natureza animista. Ricoeur afirma um rompimento entre causali-dade natural e causalicausali-dade livre. Para ele é preciso superar o “choque das causalicausali-dades e tentar uma fenomenologia do imbricamento destas. O que compete então pensar são fenômenos como iniciativa e intervenção” (RICOEUR, 2008, p. 48).

No plano jurídico, a responsabilidade consiste na obrigação de reparar os danos. No entanto, na história contemporânea, a partir da pressão dos conceitos de solidariedade, segurança e risco, o direito da responsabilidade passa a ser marcado pela responsabilidade sem culpa. A questão é saber se a desculpabilização da ação não significará a total desresponsabilização da ação. Ricoeur faz referência aos trabalhos de Mireille Delmas-Marty, F. Ewald e Laurence Engel que:

Partem da constatação de que a crise do direito da responsabilidade tem como ponto de partida um deslocamento da ênfase que antes recaía no autor presumido do dano e hoje recai de preferência na vítima que, em vista do dano sofrido, fica em posição de exigir reparação, ou seja, na maioria das vezes indenização [...] De uma gestão individual da culpa para uma gestão socializada do risco [...] A instau-ração de um sistema de indenização ao mesmo tempo automática e em bloco traduz a necessidade de garantir uma indenização na ausência de comportamento delituoso (RICOEUR, 2008, p. 50)

No entendimento de Ricoeur, apesar de ressaltar o valor moral da solidariedade, o problema está em que toda incapacidade adquirida, percebida como dano sofrido, pode dar

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ensejo a um direito a reparação na ausência de qualquer culpa comprovada. O problema é que quanto mais ampla a esfera dos riscos, mais se busca por responsáveis com o intuito de inde-nizar. Isso provoca o que Ricoeur (2008, p. 51) chama de ressurgimento social da acusação. “O paradoxo é enorme: numa sociedade que só fala em solidariedade, com a preocupação de fortalecer efetivamente uma filosofia do risco, a procura vingativa do responsável equivale a uma reculpabilização dos autores identificados de danos”. Além disso, esse processo corrompe o alicerce dos sistemas fiduciários subjacentes às relações contratuais – a confiança. Na busca por indenizações, a preocupação com a segurança é maior do que com a solidariedade. Mais ainda, a vitimação é aleatória levando a ação do âmbito da decisão para o da fatalidade, “que é o exato oposto da responsabilidade. Fatalidade é ninguém; responsabilidade é alguém” (RI-COEUR, 2008, p. 51).

Além do deslocamento da responsabilidade para o outro vulnerável e, consequente-mente, para a condição vulnerável, acontece uma ampliação ilimitada do alcance da respon-sabilidade a partir dos efeitos dos nossos atos. O crescimento da tecnologia representou um aumento significativo “dos poderes exercidos pelos seres humanos sobre outros seres huma-nos e sobre seu ambiente comum” (RICOEUR, 2008, p. 55). Nesse contexto, Hans Jonas7

apresenta o princípio da responsabilidade refletindo sobre medidas de precaução e de cautela exigidas pela heurística do medo e sobre os efeitos potencialmente destruidores de nossa ação.

Na doutrina clássica da imputação só se leva em consideração os efeitos decorridos. Em relação à poluição, os efeitos são futuros. “O que acontece com a ideia de reparação, mesmo substituída pela ideia de indenização ou de seguro contra o risco, quando não exis-te nenhuma relação, ainda que tênue, de reciprocidade entre os autores da poluição e suas vítimas?” (RICOEUR, 2008, p. 56). Para responder a essa questão, Hans Jonas propõe um imperativo novo: “agir de modo tal que continue havendo seres humanos depois de nós” (RICOEUR apud JONAS, 2008, p. 57).

Nesse contexto, a reflexão sobre a responsabilidade enfrenta novos problemas como o prolongamento no tempo da cadeia das consequências da ação, efeitos intencionais previ-síveis e desejados de uma ação e efeitos colaterais. Essa reflexão coloca um dilema novo: “por um lado a justificação apenas pelas boas intenções equivale a alijar da esfera de responsabili-dade os efeitos secundários a partir do momento em que se opta por ignorá-los” (RICOEUR, 2008, p. 58), por outro lado, não parece conveniente atribuir responsabilidade de modo indiscriminado ao agente humano não havendo intencionalidade. A conclusão de Ricoeur (2008, p. 59-60) é que “a ação humana só é possível sob a condição de uma arbitragem con-creta entre a visão curta da responsabilidade limitada aos efeitos previsíveis e controláveis de uma ação e a visão longa da responsabilidade ilimitada”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sujeito de direito é o sujeito digno de respeito. A pergunta “quem é esse sujeito?” só pode ser respondida no contexto das mediações interpessoais e institucionais. Isso significa superar a visão jusnaturalista do liberalismo contratualista (Hobbes, Rousseau) baseada na concepção de uma natureza humana livre e anterior à realidade social. Ricoeur, consoante o liberalismo político, constata que a natureza humana é na verdade o resultado de uma mediação política.

A responsabilidade é entendida civilmente como a obrigação de reparar danos e penalmente como a obrigação de suportar o castigo. Ricoeur, no entanto, entende que a

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res-ponsabilidade ultrapassa essa dimensão. A resres-ponsabilidade aponta para alguém reconhecido como autor de uma ação. Essa realidade é problemática no contexto moderno de desculpa-bilização da ação que acaba desembocando na desresponsadesculpa-bilização da ação que, por sua vez, chega ao entendimento do direito como a reparação na ausência de qualquer culpa compro-vada – à busca por indenização. Diante disso, Ricoeur argumenta que para fugir da fatalidade, a responsabilidade não deve ser vista apenas como a resposta pelos atos passados, mas também como um olhar para o futuro, na esteira de Hans Jonas ao afirmar que ser responsável é “agir de tal modo que haja humanos depois de nós”.

THE CONCEPTS OF CAPACITY AND RESPONSIBILITY IN THE WORK OF PAUL THE JUST 1 RICOEUR

Abstract: Paul Ricoeur’s reflection concerning right and justice in his book The Just 1 has as point

of departure the conceptions about subject of rights. This is the foundation whereon has been built, according Ricoeur’s thought, the theories about the just. This theme is developped from the evolution of notion of capacity and responsibility. Observing the way how Ricoeur works on those concepts is this article’s purpose. The work The Just 1is the leading source, however, others references were applied to help us to comprehend, considering brazilian reflections on justice, the subject of justice.

Keywords: Paul Ricoeur. Philosophy of Right. Capacity. Responsibility.

Notas

1 Mireille Delmas-Marty é doutora em ciências criminais pela Universidade de Paris. Publicou Pour un

droit commun em 1994. Nessa obra ela apresenta uma recomposição das paisagens jurídicas francesas e internacionais, dando uma atenção especial aos princípios gerais do direito, à importância dos direitos do homem para a construção europeia, o acesso a este direito e a dualidade das ordens jurídicas européias. Como o título indica ela defende um direito comum – comum por um acesso de todos ao direito.

2 O Dictionnaire de Trévoux é uma grande obra histórica que sintetiza os dicionários franceses do séc. XVII. Ele foi redigido sob a direção dos jesuítas entre 1704 e 1771.

3 Ricoeur considera notável a metáfora da conta. Essa imagem remonta, no seu entendimento, às figuras míticas do livro da vida e da morte, espécie de formulário ou dossiê moral, em que se apresentam os méritos e deméritos de uma vida. Daí as expressões “prestar contas” e “dar contas”.

4 Beatriz S. Marques, ao fazer uma análise conceitual sobre a aplicação do conceito de pessoa, apresenta uma distinção entre pessoas e coisas materiais. Ela utiliza como referência a obra Individuals de P. F. Strawson. Nessa obra Strawson discute “sobre o que são pessoas e como as identificamos e nos referimos a elas. No entanto, a tentativa de fazer esta distinção chama a atenção para a necessidade da reflexibilidade do si mesmo, capaz de identificar si mesmo e outros como sendo pessoas. Paul Ricoeur explicita em seu livro Soi-même comme un autre como a designação de si desenvolve a compreensão da noção de si mesmo. A referência aos particulares de base que auxiliaria em sua distinção de coisas ocorre na linguagem, entretanto, ao levar em consideração atos de fala, que remetem à capacidade de designar a si na interlocução, surge a necessidade de considerar a ação como o principal aspecto que diferencia pessoas de coisas, como Strawson aponta em sua teoria.” (MARQUES, 2009)

5 Essa obra de Wittgenstein foi concluída em 1949, mas só foi publicada em 1953. Trata, principalmente, da questão semântica. Para Wittgenstein, as confusões relacionadas à linguagem dão origem à maior parte dos problemas filosóficos.

6 De acordo com Paulo Ghiraldelli (2006, p. 156), “com Davidson, chegamos ao ponto de tomar a linguagem como o que é produzido e reproduzido no âmbito da comunicação. Assim, a ideia de troca, comunicação,

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interação lingüística e entendimento se torna um processo que depende menos de regras preestabelecidas e mais da capacidade de imaginação dos falantes”.

7 De acordo com José Eli da Veiga (2009, p. 35), “O princípio da responsabilidade recebeu um tratamento fundamental na reflexão do filósofo alemão Hans Jonas que distingue duas categorias de responsabilidade: a responsabilidade “do que está para ser feito” e a responsabilidade “ex-post-facto”.

Referências

ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica Perelman, Viehweg, Alexy, Maccormick e outros. São Paulo: Landy, 2006.

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MOREIRA, Luiz. A Fundamentação do Direito em Habermas. 3. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. 203p.

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito – dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 676p.

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RICOEUR, Paul. O Justo 1: A justiça como regra moral e como instituição. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 210p.

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