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Masculinidades em Seis vezes Lucas, de Lygia Bojunga

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Academic year: 2020

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RE VE LL – IS SN: 2 1 79 -4 4 56 2 0 1 8 – v.3 , nº. 20 – de ze m b ro de 2 0 1 8 . 335

MASCULINIDADES EM SEIS VEZES

LUCAS, DE LYGIA BOJUNGA

MASCULINITIES IN SIX TIMES LUCAS, BY LYGIA BOJUNGA

Rosânia Alves Magalha es71

RESUMO: Este trabalho reflete sobre Seis vezes Lucas, de Lygia Bojunga tomando por base os estudos sobre gênero. A narrativa apresenta questo es relacionadas a traiça o, o medo e as relaço es familiares das personagens. Para tanto, recorremos a teorias que definem gênero. Segundo Pierre Bourdieu (2011), a sociedade funciona como uma ma quina simbo lica que confirma a dominaça o masculina torna-a dispensa vel de justificativas diante de posturas machistas. O autor expo e que, a divisa o social do trabalho e a responsa vel pela delimitaça o entre atividades e espaços que cabe a cada um dos dois sexos. Neste contexto, Lygia Bojunga apresenta formas de representaça o das masculinidades, como o pai do garoto Lucas que o proí be de chorar ou sentir medo; ou a ma e do garoto, mulher omissa e submissa a s atitudes arbitrarias do pai. Neste trabalho procurou-se compreender a ideia da construça o das masculinidades, investigando a relaça o dos personagens em suas aço es, que relevam o papel assumido por ambos os sexos no contexto sociocultural.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero; masculinidades; contexto sociocultural.

ABSTRACT: This work reflects on six times Lucas, by Lygia Bojunga based on studies on gender. The narrative presents issues related to the betrayal, fear, and family relationships of the characters. To do so, we resort to theories that define gender. According to Pierre Bourdieu (2011), society functions as a symbolic machine that confirms male domination makes it dispensable from justifications in the face of macho positions. The author explains that the social division of labor is responsible for the delimitation between activities and spaces that fit each of the two sexes. In this context, Lygia Bojunga presents forms of representation of the masculinities, like the father of the Lucas boy who forbids him to cry or to feel fear; or the boy's mother, a woman oblivious and submissive to the father's arbitrary attitudes. In this work, we tried to understand the idea of the construction of masculinities, investigating the relationship of the characters in their actions, which highlight the role assumed by both sexes in the sociocultural context.

KEYWORDS: Gender; masculinities; sociocultural context.

1. INTRODUÇÃO

71 Doutoranda em Letras na Universidade Federal de Uberlândia – Brasil. Mestre em Letras

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A ana lise da narrativa Seis vezes Lucas, de Lygia Bojunga, publicada em 2005, possibilita uma discussa o sobre os estudos de gênero, mais especificamente, as representaço es das masculinidades, no que tange a dominaça o masculina proposta por Pierre Bourdieu. Portanto, o objetivo deste trabalho e analisar como se da as relaço es de gênero, elaboradas por uma sociedade cuja herança cultural prove m do patriarcalismo.

O trabalho foi dividido em três partes, a saber: a primeira observa a divisa o social do trabalho em que se delimita o papel e lugares que cabe a cada um dos gêneros, segundo a perspectiva de Pierre Bourdieu (2011). A segunda parte discute sobre o ritual de separaça o do menino de tudo que representa o universo feminino, de modo que, os valores que simbolizam a dominaça o masculina sa o reforçados. Ale m de voltar a atença o para o papel da mulher na sociedade, que muitas vezes intensifica e coopera para a ideia de superioridade do masculino. A terceira e u ltima parte faz uma ana lise da narrativa Seis vezes

Lucas. Pierre Bourdieu (2011) defende a ideia de que uma construça o social

naturalizada no que se refere a divisa o entre os gêneros, ratifica uma representaça o conservadora que favorece ao masculino.

O poder masculino de fazer com que uma interaça o entre os gêneros se dê segundo a vontade dos homens, aparece de va rias formas, tais como o orgasmo feminino como prova de sua virilidade ou atrave s do asse dio sexual que nem sempre vem acompanhado da posse sexual exclusivamente, mas antes de tudo da simples afirmaça o da dominaça o do masculino. Assim:

Se a relaça o sexual se mostra como uma relaça o social de dominaça o, e porque ela esta construí da atrave s do princí pio de divisa o fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princí pio cria, organiza, expressa e dirige o desejo — o desejo masculino como desejo de posse, como dominaça o erotizada, e o desejo feminino como desejo da dominaça o masculina, como subordinaça o erotizada, ou mesmo, em u ltima instância, como reconhecimento erotizado da dominaça o. (BOURDIEU, 2011, p.31).

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Entretanto, conforme Connell e Messerschmidt (2013) salientam as masculinidades surgem em múltiplas relações de poder. Em que a masculinidades hegemônicas se diferenciam das subordinadas, de modo que a sobreposição de um determinado tipo de masculinidade pode ser identificada em termos dos agentes sociais, econômicos e culturais em que os diferentes tipos de masculinidades são construídos.

Joan Scott (1995) propôs um estudo sobre a associaça o entre masculinidade e poder, em que a autora enfatiza a valorizaça o da virilidade em detrimento da feminilidade e a forma como as crianças aprendem essas associaço es e avaliaço es. Segundo a autora:

A linguagem e o centro da teoria lacaniana; e a chave de acesso da criança a ordem simbo lica. Atrave s da linguagem e construí da a identidade generificada (gendered). Segundo Lacan, o falo e o significante central da diferença sexual. Mas o significado do falo deve ser lido de maneira metafo rica. O drama edipiano, para a criança, coloca em aça o os termos da interaça o cultural, ja que a ameaça de castraça o representa o poder, as regras da lei (do Pai). A relaça o da criança com a lei depende da diferença sexual, de sua identificaça o imaginativa (ou fantasma tica) com a masculinidade ou a feminilidade. Em outras palavras, a imposiça o de regras de interaça o social e inerente e especificamente generificada, pois a relaça o feminina com o falo e forçosamente diferente da relaça o masculina. Mas a identificaça o de gênero, mesmo que pareça sempre coerente e fixa, e , de fato, extremamente insta vel. Como sistemas de significado, as identidades subjetivas sa o processos de diferenciaça o e de distinça o, que exigem a supressa o de ambigu idades e de elementos de oposiça o, a fim de assegurar (criar a ilusa o de) uma coerência e (de) uma compreensa o comum. (SCOTT, 1995, p. 82)

Portanto, a ideia de masculinidade se constro i baseada no conflito entre o masculino e o feminino. “Os desejos reprimidos esta o presentes no inconsciente e constituem uma ameaça permanente para a estabilidade da identificaça o de gênero, negando sua unidade, subvertendo sua necessidade de segurança”. (SCOTT, 1995, p. 82). Este tipo de ana lise sugere que o masculino e o feminino sa o construtos subjetivos, em que o sujeito esta em constante construça o. A

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sociedade separa comportamentos e atitudes para homens e mulheres. Discursos como, “homem que e homem na o chora”, “lugar de mulher e na cozinha”, mulher so serve para pilotar foga o”, dentre outros, reforçam a ideia de virilidade do homem ou a ideia de feminilidade da mulher.

Para Jose Remon Silva (2014), as relaço es de poder baseadas em gênero sa o constitutivas da organizaça o social provenientes da estrutura do patriarcalismo, mantida intencional e deliberadamente pelos homens. De forma que, esta estrutura e construí da e mantida dinamicamente pelas intervenço es e relaço es de poder assime tricas dos homens em relaça o a s mulheres e dos homens entre si. Tal sistema exige um tipo especí fico de ser, explica o autor, dotado de capacidade de exercer a violência, de modo que, o homem e imbuí do de disposiço es para se tornar agressivo.

Durante este processo de formaça o o homem e atravessado pela incorporaça o da violência, impulsionada pela solidariedade entre eles, que os capacita a manter o poder sobre as mulheres. Entretanto, Silva adverte que, a solidariedade entre os homens so acontece na medida em que compartilham crenças relacionadas a sua supremacia. Quando se referem aos sentimentos, angu stias e medo na o ha uma associaça o entre eles, pelo receio de exporem suas fraquezas. Ale m disso, ha tambe m hierarquias entre os homens que incorporam o processo da ordem patriarcal, por meio dos sociais que os separam.

Conforme salienta Bourdieu (2011), o trabalho de construça o simbo lica ultrapassa uma operaça o performativa e se realiza na mente das pessoas, de modo que impele uma “definição diferencial dos usos legí timos do corpo, sobretudo os sexuais, e tende a excluir do universo do pensa vel e do factí vel tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero [...]”. (BOURDIEU, 2011, p. 33) (Grifo do autor). Assim, toda criança aprende desde cedo a produzir este artefato social que classifica um homem viril ou uma mulher feminina.

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Portanto, conforme explica Bourdieu (2011), a divisa o entre os sexos esta na ordem natural das coisas, como se fosse inevita vel sua presença no mundo social. Devido a incompreensa o dos mecanismos profundos que legitimam os efeitos simbo licos da dominaça o masculina como naturais, dispensando qualquer justificaça o a visa o androcêntrica. De forma que, a divisa o social do trabalho serve alicerce para a distribuiça o das atividades atribuí das a cada um dos dois sexos. Assim, o espaço da casa, educaça o dos filhos, por exemplo, sa o reservados a s mulheres. Enquanto, aos homens sa o reservados lugares de assembleia, mercado, agricultora, futebol, etc.

Seguindo esta linha de pensamento Sandra Maria Garcia (1998) argumenta que os estudos sobre homens têm dado ênfase a diversidade de modelos masculinos, de modo que, desconstro i argumentos que culpam o masculino, ao inve s disso, reconhece a necessidade de identificar o processo das relaço es de poder que emergem entre o homem e a mulher, para que haja transformaço es no âmbito das relaço es sociais orientadas pelas desigualdades de gênero.

A respeito disso, Connell e Messerschimidt (2013, p. 271) salientam que a divisa o social do trabalho que separa o mundo masculino do mundo feminino, interfere nas relaço es dos filhos com os pais se caracterizam como focos de tensa o, pois o papel do cuidado da casa e dos filhos e atribuiça o da mulher, enquanto os homens ficam responsa veis por profisso es de gerenciamentos e o manejo da sua riqueza. Outro foco de tensa o e a ambivalência dos projetos de mudança das mulheres que pretendem igualar-se aos homens. Segundo os autores, ocorrem oscilaço es da aceitaça o e rejeiça o no que diz respeito a igualdade de gênero por parte dos homens. A manutença o do poder envolve a desumanizaça o de outros grupos, de forma que ha um decesso da empatia e do envolvimento emocional entre as partes.

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Miriam Pillar Grossi (2004), recorre a Elizabeth Badinter, para lembrar que “o gênero masculino se constitui universalmente por uma necessidade de separaça o dos meninos da relaça o com a ma e, que, por sua vez, representa o mundo feminino”. (GROSSI, 2004, p. 7). Os rituais de separaça o do menino da ma e representam o fortalecimento dos valores falocêntricos, e, consequente separaça o do universo feminino, pela negaça o de tudo que representa ser subordinado ao masculino. Portanto, a constituiça o do modelo de masculinidade hegemônica em nossa cultura e entendida como agressividade. Desde a tenra idade o masculino e constituí do pela hiperatividade dos meninos, que muitas vezes, se confunde com agressividade.

A respeito disso, Bourdieu (1998) expo e que o processo de dominaça o de gênero demonstra que a “violência simbo lica se da por meio de um ato de cogniça o e de mau reconhecimento que fica ale m – ou aque m – do controle da consciência e da vontade, nas trevas dos esquemas de habitus que sa o ao mesmo tempo generados e generantes. ” (BOURDIEU, 1998, p. 22-23). Portanto, a visa o androcêntrica de mundo esta no senso comum, inclusive das mulheres, porque e imanente ao sistema de categoria de todos os agentes.

Neste contexto, a ideia de “mulher-objeto” e sustentada pelo fato de que ainda e vista como potencial objeto sexual para os homens. Pedro Paulo de Oliveira (1998) recorre ao esquema lacaniano lido por Judith Butler, para explicar que “o simbo lico [...] marca o corpo pelo sexo mediante uma intimidaça o, dispondo, produzindo uma ameaça imagina ria, isto e , uma castraça o, virtualizando no agente masculino um corpo castrado, caso ele na o se submeta a seus desí gnios”. (OLIVEIRA, 1998, p. 243). Assim, consentir ao simbo lico corresponderia efetuar um alinhamento imagina rio, em que o falo sendo virtual e imagina rio deve ser continuamente reafirmado. Cabe a mulher confirmar a existência desse falo no agente masculino. A recusa das mulheres a essa doaça o ao homem do seu falo virtual constitui as mulheres fa licas, na o castradas.

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Todas essas discusso es ajudara o na compreensa o da construça o das masculinidades, em Seis Vezes Lucas, atrave s da investigaça o dos personagens em sua interaça o uns com os outros. Nota-se que em meio aos recursos expressionistas e mime ticos, Lucas, personagem infantil, apresenta seu universo de medo, insegurança e conflito pessoal. Filho u nico em uma famí lia que segue um modelo tradicional de patriarcalismo, a criança se vê imersa em um ambiente, no qual e treinada para ser viril.

Lucas e uma criança da qual o narrador na o releva a idade, mas declara o medo do menino de ficar sozinho em casa.

No primeiro capí tulo da narrativa, intitulado “Lucas e a Cara”, o garoto ficou com vontade de chorar, quando seus pais saí ram a noite e o deixaram sozinho em casa, pore m, Lucas se lembrou dos conselhos do pai dizendo que: “hero i e quem vence os medos que tem”. Na tentativa de na o deixar a la grima sair e, assim tornar “um cara pro Pai na o botar defeito” (BOJUNGA, 2014, p. 13), Lucas segura o soluço e tenta controlar o seu medo. Entretanto,

[...] a Coisa tinha começado a doer. Agora era assim: volta e meia a Coisa doí a. Doí a na garganta, no pescoço, no dente, e se o Pai dizia, mas, afinal! que dor e essa? O Lucas so respondia, na o sei, e uma coisa; e se a Ma e falava, explica melhor essa coisa, meu filho, ele na o explicava, so sabia que ela doí a. (BOJUNGA, 2014, p. 14-15).

Nota-se que Lucas tinha um desafio, tornar-se “o cara” que o pai queria que ele fosse, para tanto, o menino vestia “a cara”. Os anseios do pai em fazer de Lucas um “homem”, na o era algo que acontecia de forma tranquila, pois gerava no garoto um desconforto emocional que se materializava em forma de dores fí sicas, na regia o do pescoço, como se Lucas fosse obrigado a digerir algo que na o lhe descia bem, que lhe fosse enfiado “goela abaixo”. Entretanto, Lucas ainda na o tinha maturidade em discernir os seus sentimentos e descobrir o que lhe causava aquela dor que tanto o incomodava.

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Para na o sentir medo, Lucas pensa em chamar a tia Elisa, mas logo vem sua mente a voz opressiva do pai, que ressoa na mente do menino, mesmo quando este na o esta presente, como se pode ver no trecho a seguir: “Pegou o telefone e começou a discar. Mas o Pai ia acabar sabendo que ele tinha tido medo outra vez de ficar sozinho. [...] Mas o Pai ia chegar, ia olhar pro solza o de luz acesa, ia ver que ele tinha morrido de medo e... bom, enta o o jeito era ter um

cachorro”. (BOJUNGA, 2005, p. 15). Nota-se que os substantivos “Pai” e “Ma e”

quando pronunciados pelo narrador aparecem grafadas com a primeira letra maiu scula, mas quando pronunciadas em discurso direto pelo personagem aparecem grafadas com a primeira letra minu scula, apresentando a funça o de arque tipos, modelos a serem seguidos, na o tendo nome pro prio na narrativa justamente, por isso. Fica demonstrada por meio das locuço es verbais: “ia acabar” “ia chegar” “ia olhar”, “ia ver” a presença constante do pai, na mente de Lucas, como algo que o monitora e o acusa o tempo todo. Ale m disso, as hipe rboles: “solza o de luz acessa”, “morrido de medo”, figuras de pensamento que denotam os sentimentos de horror do menino caso o pai descobrisse que ele sentia medo.

Lucas pensa em desenhar um cachorro. “Deitou no cha o pra desenhar gostoso o cachorro que ele ia ter”. (Bojunga, 2014, p. 15), pois acreditava que o bicho o ajudaria a se livrar do medo que sentia. Nota-se que na o e qualquer animal. O menino escolhe um cachorro, sí mbolo de companheirismo, fidelidade, amizade, oposto ao que o pai representava para o garoto. Entretanto, lembrou-se que o pai nunca concordaria em lhe dar um animal de estimaça o. “Acabou largando o desenho do cachorro que ele na o ia ter”. (BOJUNGA, 2014, p.16). Como forma de aliviar a dor que sentia e ao mesmo tempo, torna-se o cara que seu pai queria que ele fosse, Lucas criou uma cara, com massa de modelar. “Botou a Cara na cara” e correu para frente do espelho, pois “estava contente de ter um cara ali no espelho”. Ele ja na o estava mais sozinho que quis logo saber: “—Você e um hero i? A Cara fez que sim”. (BOJUNGA, 2014, p. 17).

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Neste contexto, Laura Sandroni (1997) afirma que a famí lia e a escola sa o agentes privilegiados da opressa o que o adulto exerce sobre a criança, tendo como argumento a proteça o. Fica evidenciado na narrativa a opressa o do pai do garoto quando este o proí be de sentir medo. O narrador compartilha com o leitor os acontecimentos da vida de Lucas. O pai sai para dançar com a ma e, deixando o filho sozinho em casa e o menino e proibido de sentir medo. Ale m de ser noite, chove la fora. Ao regressarem, o pai e a ma e de Lucas entram brigando em casa. O pai ja irritado pela discussa o questiona ao garoto o porquê de tanta luz acesa, conforme trecho a seguir: “— Lucas, que histo ria e essa de som ligado e tudo que e luz da casa acesa! Você estava outra vez com medo de ficar aqui sozinho? ” (BOJUNGA, 2005, p. 25). Segundo o pai de Lucas, medo e coisa de mulher, homem que e homem na o tem medo. Assim o pai explode:

— O , mas que saco! chora ma e, chora o filho! — Tirou o Lucas do braço da Ma e: — Deixa ela chorar que ela e mulher, mas você e homem e eu na o quero um filho chora o, com medo de ficar sozinho, com medo disso, com medo daquilo. (BOJUNGA, 2005, p. 26).

Neste trecho, observa-se a concepça o do pai apoiada no falocentrismo. Para demonstrar a superioridade masculina e necessa rio afastar-se daquilo que e considerado feminino. Percebe-se que o aposto representado pela oraça o “Tirou o Lucas do braço da Ma e” marca na narrativa, um movimento brusco, agressivo, ou seja, atribuiça o dada ao masculino. O ato de tirar Lucas do braço da Ma e obedece a um ritual de separaça o do menino da ma e, ou seja, do universo feminino, sinônimo de fraqueza e tudo aquilo que se opo e ao masculino. Segundo a concepça o do pai, mulher pode chorar, conforme fica demonstrado na frase: “Deixa ela chorar que ela e mulher”. Pore m, as oraço es esta o conectadas pela conjunça o adversativa, “mas”, que marca a separaça o do masculino e feminino: “você e homem e eu na o quero um filho chora o”. Ale m disso, a repetiça o do termo “medo” e constante em toda a narrativa: “medo de ficar

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sozinho”, “medo disso”, “medo daquilo”, enfatizando a concepça o do pai, de que homem na o deve sentir medo, e isto garantira a construça o da virilidade em Lucas. Dessa forma, a consagraça o do ideal de hegemonia da masculinidade se da inicialmente pela separaça o e violência simbo lica, conforme Bourdieu (1998).

Nota-se que a lo gica da construça o do referencial masculino muitas vezes, ultrapassa aquilo que e consagrado como os valores e ticos e morais na sociedade e que deveriam ser repassados a criança, pois no lugar de ensinar Lucas a importância de valores como ser honesto e í ntegro, o pai esta focado unicamente no fato de o menino virar um “homem de verdade”. No trecho a seguir e possí vel verificar o comportamento leviano do pai que mente para Lucas sem nenhum escru pulo. Comportamento este, muitas vezes naturalizado em nossa sociedade. O pai e o provedor da famí lia e isso autoriza ao ma sculo homem agir como bem entende com sua famí lia, mesmo que, muitas vezes, de forma irresponsa vel. Assim, o pai como meio de se ver livre da insistência de Lucas, que queria muito ganhar um cachorro, mente para o menino que o presentearia com um em seu aniversa rio, sob a condiça o de que o menino na o o perturbasse mais com aquele assunto: “No teu aniversa rio você ganha um. Mas com uma condiça o: você agora vai parar de falar em cachorro, ta?” (BOJUNGA, 2005, p. 29). A contraça o do verbo de ligaça o “esta ” denota concordância, acordo entre as duas partes, mesmo que de forma informal. Pore m, enquanto o menino respeita o combinado, controlando sua ansiedade por dias para na o falar do cachorro, o pai na o cumpre o acordo, conforme lê-se no trecho a seguir:

E o cachorro, pai, cadê? cadê! _Que cachorro, meu filho? _ O Cachorro que você ia me dar no dia do meu aniversa rio: CADE ? O Pai ficou procurando um cachorro na lembrança e, quando encontrou, meio que riu: _ Ora, filho, eu disse aquilo pra você parar de falar em cachorro. (BOJUNGA, 2005, p. 33).

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A repetiça o do adve rbio “cadê”, forma reduzida do termo “onde esta ”, “o que e de”, denota a expectativa de Lucas em ter seu cachorro. Afinal o menino esperou dias para ganhar o cachorro, mas o pai nem sequer lembrava-se do acordo que tinha feito com Lucas. O objetivo do pai e fazer com que Lucas tornasse homem, sem se preocupar com a formaça o do seu cara ter. Portanto, ao confessar ao filho que mentiu, o pai revela comportamentos construí dos sob a e gide da dominaça o masculina que ocorrem com frequência dispensam justificativas, ou seja, tornam-se naturalizados.

A respeito disso, Pedro Paulo de Oliveira (1998), salienta que, desde a infância, o menino a partir da identificaça o com o pai ou outros agentes masculinos, percebe que o masculino e a representaça o do “sexo forte”. A vida escolar somado a experiência junto a outras instituiço es dara continuidade a essa identificaça o com o masculino que sera continuamente reforçada. De modo que os co digos de comportamento masculino servira o de “modelo para vivências interacionais futuras”. (OLIVEIRA, 1998, 259). Seguindo esta linha de pensamento, Sandroni (1997) afirma que “o Pai e a palavra do Poder. O repetidor das estruturas ideolo gicas montadas”. (SANDRONI, 1997, p. 109). Assim, a autoridade do pai na o permite qualquer tipo de contestaça o.

O poder exercido pelo masculino alcança tanto homens como mulheres, pois a submissa o da ma e surge como uma relaça o social de dominaça o em que o feminino e apresentado de forma passiva diante das atitudes do masculino, fazendo com que o desejo masculino de posse e propriedade sobre os demais, surja como algo naturalizado.

_ Ma e... _ Hmm. _ Ta chovendo. _ E . _ E ta fazendo vento tambe m. _ Daqui a pouco passa, meu bem. _ Eu to com medo de ficar aqui sozinho. _ Na o vamos começar outra vez com isso, na o e , meu amor? Você na o viu a cara de teu pai no jantar? Ele na o gostou nadinha de ver você falando de novo que tem medo. (BOJUNGA, 2005, p. 12)

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Mesmo depois da queixa de Lucas, a ma e na o se posiciona diante dos excessos do pai.

Percebe-se que o relacionamento da ma e com Lucas ocorre de forma mais carinhosa, as expresso es “meu bem”, “meu amor”, “nadinha”, denotam que os sentimentos maternos diferem do paterno. Enquanto a ma e e a representatividade do passivo, do afeto e do carinho, o pai surge como representatividade da agressividade, do brusco. Assim, a passividade da ma e faz com que ela tambe m se submeta aos excessos do pai, pois, no lugar de ficar com o filho que tem medo, ela coopera para a construça o do ideal de masculinidade quando aceita que o menino na o deve ter medo. Ao contra rio, as ideias de submissa o da ma e e do filho a opressa o do pai, ja esta naturalizada naquele ambiente. O que faz com que os pais ignorem os sentimentos do filho.

Em outro trecho verifica-se que Lucas ganha um vira-lata do pai, depois da decepça o que teve em seu aniversa rio. O menino resolve chama -lo de Timorato cujo termo designa aquele “que tem temor”, ja que ele na o poderia carregar consigo tal sentimento. O fiel companheiro de Lucas passou a suprir a falta dos pais, fazendo com que o medo que Lucas sentia fosse amenizado. Entretanto, no trecho a seguir verifica-se que em uma viagem com a famí lia, o pai abandona Timorato na estrada com chuva e decepciona novamente o garoto:

E foi so o Lucas se virar e a porta de tra s fechar que, pronto: o Pai ja tinha largado o Timorato na estrada, ja tinha entrado no carro e batido a porta e ligado o motor. O carro andou. _ O Timorato, pai! _ o Lucas gritou. A Ma e se virou assustada. O olho arregalado. Mas a ma o tapando a boca. [...] olhou pra Ma e: por que que ela na o dizia nada? Por quê! Enta o ele ia dizer. Mas continuou escorregado. (BOJUNGA, 2005, p. 50-51).

As expresso es “o Pai ja tinha largado” “ja tinha entrado”, “batido a porta”, “ligado o motor” denotam a brutalidade, a imposiça o do poderio do masculino. Enquanto, para Lucas e a ma e restam reaço es que denotam impotência,

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conforme se observa nas expresso es: “o Lucas gritou”, “A Ma e se virou assustada”, “O olho arregalado”, “a ma o tapando a boca”. Expresso es que denotam medo, susto, ambos foram pegos de surpresa pelo pai. Lucas olha para a Ma e, como quem procura uma intervença o ao seu favor, mas na o obte m êxito. Entretanto, o temor que Lucas sentia do pai faz com que ele continue escorregado no banco do carro, denotando sua submissa o ao masculino. Percebe-se que na narrativa, o termo “escorregar” refere-se a quele que diverge dos princí pios da masculinidade, foge das ideias de dominaça o do masculino, contrapondo-se a rigidez do pai, ao ereto, aquilo que esta firmado, estabelecido pela visa o do androcentrismo. Pore m, o seu resvalamento surge como uma incapacidade de resistir aquilo que esta posto.

A visa o androcêntrica de mundo e imanente ao sistema de categoria tanto do homem como da mulher. Portanto, esta o no senso comum, inclusive das mulheres, comportamentos que favorecem a continuidade do domí nio do masculino, conforme Bourdieu (1998). Na narrativa, nota-se que o pai e a ma e chegam em casa discutindo e “Lucas acordou ouvindo a discussa o [...]”, conforme se observa no trecho a seguir:

— ...você antes escondia os seus casos. Agora você perdeu toda a vergonha: paquera na minha frente tudo que e mulher que te agrada e, pelo jeito, tudo que e mulher te agrada. [...] — Mas agora eu cansei, esta ouvindo? Cansei, vou m’embora. E na o vou deixar o Lucas com você de jeito nenhum! Ele vai comigo. (BOJUNGA, 2005, p. 95)

A ma e diz que esta cansada dos casos do pai, porque ele ja na o faz questa o de esconder mais. Assim: “paquera na minha frente tudo que e mulher que te agrada”, “tudo que e mulher te agrada”. Essas expresso es evidenciam a divisa o entre o masculino ativo que tem a necessidade de trair, para que se manifeste seu reconhecimento erotizado de dominaça o e posse das mulheres, enquanto, o feminino passivo se encontra na posiça o daquele que aceita a

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traiça o, se subordinando aos desejos masculinos, nota-se que a ma goa da ma e na o estava na traiça o, mas no fato de ele na o fazer questa o de esconder, ou seja, tratava-se mais de uma preocupaça o com sua imagem do que com a traiça o em si, demonstrando que a traiça o praticada pelo marido e algo naturalizado, desde que ela na o saiba.

Ainda, no exemplo a seguir:

O Lucas puxou o lençol e tapou a cabeça; por que sera que a Ma e nunca falava o nome das mulheres? Sera que ela na o sabia nome nenhum? Era sempre a mulher de vermelho, a mulher de cor-de-rosa, a mulher de blusa verde, a mulher de saia marrom, ou sera que o nome doí a de dizer? ... (BOJUNGA, 2005, p. 97)

Verifica-se que a ma e se referia a s outras mulheres pela cor da roupa que vestiam, “mulher de vermelho”, “de cor-de-rosa”, “de blusa verde”, “ de saia marrom”, de modo que ela, enquanto esposa, se colocava numa situaça o superior, as demais mulheres que eram amantes. Entretanto, sem que percebesse, a ma e favorecia a construça o e manutença o da ideia de “mulher objeto”.

Dessa forma, o pro prio sujeito feminino contribui no processo de confirmaça o da identidade feminina como naturalizado pelo patriarcado. Ao associar as outras mulheres ao tipo de roupa que vestiam a ma e, mesmo que de forma inconsciente, representa as suas rivais, pessoas do mesmo sexo, como desprovidas de identidade. Essa postura denota a falta de confiança e o dilaceramento dessa mulher, ocasionado pela violência simbo lica, em que o marido e infiel a sua esposa, demonstrando que os comportamentos se apresentam internalizadas, o que favorece a dominaça o do masculino.

Apo s a descoberta da traiça o, a ma e resolve ir para um sí tio de uma parente, levando Lucas consigo, mas, logo, muda de ideia e se reconcilia com o marido, bastou o pai dar um telefonema que a ma e ja o perdoou. Neste contexto,

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a rivalidade entre Lucas e o pai cresce a cada episo dio da narrativa, pois na visa o do garoto, o pai nunca mudaria. Portanto, diante da passividade da ma e, Lucas tenta afasta -la do domí nio do pai. Quando a buzina do carro do pai tocou, a ma e levantou num pulo e disse:

—Acho que o pai ta chegando!

— O Lucas levantou tambe m; agarrou o braço da Ma e: — E sempre ele, ele, na o e ? vai ser sempre assim? [...]

— Você so vê o pai na tua frente! você so faz o que ele quer! e eu?! você nunca vai fazer o que eu quero? — Largou a Ma e e saiu. (BOJUNGA, 2005, p. 105)

O ato de agarrar o braço da ma e denota sentimento de posse, demonstrando que mesmo inconsciente, Lucas começa a gozar da ideia de hegemonia masculina, criando-se uma disputa entre os dois homens da casa, pela posse das mulheres, conforme sera demonstrado adiante, Lucas nutre uma paixa o pela professora Lenor, a qual o pai mante m uma relaça o amorosa extraconjugal. Os verbos aparecem flexionados no tempo presente e futuro, conforme exemplos a seguir: “E sempre ele”, “vai ser sempre assim”, você so vê o pai”, “você so faz o que ele quer”, “você nunca vai fazer o que eu quero”, demonstrando a indignaça o de Lucas, diante de uma situaça o que acontece naquele momento da fala e continuara no futuro. Trata-se de uma aça o permanente, pois naquela disputa em que Lucas aparece como representante da masculinidade subordinada e o pai representante da masculinidade hegemônica, o primeiro “sempre” sera o preterido, demonstrando os variados tipos de masculinidades existentes.

Retomando a questa o do medo, percebe-se que e um sentimento que acompanha Lucas em toda a narrativa. Ficou demonstrado que a repressa o do pai esta baseada em um modelo de masculinidade, apoiado na agressividade, na brutalidade e na mentira. Portanto, o controle do pai sobre Lucas se fazia presente, mesmo quando ele na o estava por perto. Depois da discussa o com a

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ma e, Lucas foge com raiva, para uma mata, pro xima ao sí tio em que estavam, e se perde, conforme trecho a seguir: “[...] começou a berrar; Socorro! ” Ao abrir a boca novamente para pedir socorro, “A Coisa que ele tinha sempre sentido na hora do medo agora agarrava ele todo, paralisava ele de dor, deixava ele fincado no cha o, feito a rvore”. (BOJUNGA, 2014, p. 109). Lucas sente-se paralisado pelo medo que, novamente se materializava em forma de “dor” fí sica. Era necessa rio se livrar do choro contido, daquele sentimento que o paralisava, conforme lê-se abaixo:

[...] Lucas foi botando pra fora um choro antigo a beça, todo feito de medo e mais medo. Um choro supermorto-de-vergonha-de-imagina-se-o-meu-pai-vê. Um choro que tinha se habituado tanto a dar pra tra s na hora de sair, que agora saia todo esquisito, ora gritado, ora cochichado. Mas saí a. Cascateando de soluço; escorrendo num gemido. Vinha choro de canto mais escondido do Lucas. E um choro se juntava no outro, e o soluço engrossava, crescia, desaguava cada vez mais forte pela boca, pelo nariz, pelo olho. Saiu choro muito tempo. Ate esvaziar o Lucas todinho. (BOJUNGA, 2014, p. 111)

O choro aparece como um rio que se rompe e desce lavando os sentimentos reprimidos que Lucas guardava dentro de si. Verifica-se que “vinha choro de canto mais escondido do Lucas”, choro que nem o menino sabia que estava ali. O garoto precisava colocar a opressa o exercido pelo pai para fora. Interessante notar a associaça o entre os elementos naturais “cascatear”, “desaguar”, que trazem a ideia de correnteza, rio, a gua, que o narrador faz com o choro, pois tratava-se de muitos choros acumulados, para dar vaza o a todas as ma goas e sentimentos negativos ocasionados pelo pai, em prol do ideal de masculinidade, assim, foi necessa rio sair choro pela boca, nariz e olho. Lucas chorou ate esvaziar todinho da repressa o, dos ensinamentos advindos do modelo de masculino do pai. Entretanto, fica demonstrado a impossibilidade do esvaziamento. Apesar da resistência de Lucas, a s ideias provenientes da

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hegemonia masculina, tais como, o sentimento de posse, a ideia de mulher-objeto, ja estavam inerentes a ele.

Na narrativa, durante o tempo em que Lucas esteve perdido na mata, entra um personagem em cena: “silencioso, esbranquiçado e disforme. O Lucas reconheceu ele logo, era o Nevoeiro. Ele vinha chegando devagar por tra s do Timorato, [...] e onde ele tocava o Timorato sumia”. (BOJUNGA, 2014, p. 115). Vê-se que as relaço es de poder baVê-seadas em gênero muitas vezes surgem como um nevoeiro que silencia e deforma o indiví duo em suas relaço es e sentimentos, especialmente aqueles que na o delibera a favor da manutença o desta estrutura proveniente do patriarcalismo. Fica demonstrado que estruturas construí das e mantidas pelas intervenço es e relaço es de poder do masculino exigem um tipo especí fico de ser dotado da capacidade de exercer a violência, impulsionada pela solidariedade entre os homens. Entretanto, essa solidariedade em relaça o a supremacia do masculino entre os homens na o e compartilhada no âmbito dos sentimentos, angustias e medo, somente no âmbito dos valores e crenças, conforme Silva (2014).

Neste sentido, Bojunga apresenta atrave s do olhar de uma criança, as vicissitudes da construça o do masculino herdado pelo patriarcalismo. Dessa forma, Lucas sob um olhar crí tico, carrega consigo sentimentos de pena e a s vezes raiva dos seus pais, que parecem trabalhar juntos na manutença o do domí nio do masculino. No trecho a seguir observa-se que a ma e em sua posiça o de passividade na o e firme em suas deciso es. Assim, “[...] dizia uma coisa num dia, desdizia no outro? enta o ela na o tinha dito pro pai dessa vez eu na o perdôo mais você? Tinha! e agora na o estava ali abraçando e beijando ele? E ela? Sera que um dia ela ia gostar de gostar de novo do pai?”. (BOJUNGA, 2005, p. 123). Nas expresso es “dizia uma coisa num dia”, “desdizia no outro”, “tinha dito”, “Tinha! ”, os verbos esta o no prete rito imperfeito do indicativo e servem para indicar a continuidade de acontecimentos que ocorriam com frequência no passado, mas, “agora”, no presente, estavam “ali abraçando e beijando” e a aça o

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do pai, baseada no androcentrismo, teria continuidade na traiça o. Ale m disso, as aço es da ma e cooperam para sua submissa o ao masculino, apresentados nas expresso es em geru ndio que denotam a progressa o de uma veneraça o e adoraça o ao pai. Dito isto, fica demonstrado que a violência simbo lica e apreendida por um processo de associaça o que esta ale m da vontade do subordinado. A sociedade como um todo e treinada histo rica e socialmente para uma visa o androcêntrica de mundo. Contudo, para Lucas ainda em formaça o, e difí cil apreender esta associaça o, por isso o menino faz o seguinte questionamento: “Sera que um dia ela ia gostar de gostar de novo do pai”, demonstrando que os excessos do pai ja haviam passado do limite, e, ainda assim a ma e se reconciliava com ele.

Ao final da narrativa, o narrador traz uma reflexa o crí tica, a respeito da operaça o performativa da construça o simbo lica do masculino, em que tende a excluir tudo que na o contribui para a produça o do artefato social de um homem viril. Assim, a ma e ao buscar Lucas na Escola de Arte revela o quanto estava ansiosa com encontro romântico que teria com o pai logo mais, conforme trecho a seguir:

— Eu vou te deixar em casa e vou pro cabelereiro — A Ma e avisou. Piscou um olho contente pro Lucas: — Hoje o pai vai me levar pra dançar num lugar chamado Terraço. Ele disse que eu vou adorar: a gente janta e dança vendo o mar la a a a a a embaixo. O Lucas escorregou um pouco no assento. Fechou o olho. Abriu a porta vermelha. Como sempre. O Terraço estava todo iluminado, esperando ele chegar.

A mu sica.

O arma rio com a Cara dentro. O Timorato.

A Lenor (de vestido furta-cor) A Ma e (vestida que nem a Lenor).

Ate o Pai, que nunca aparecia no Terraço, estava tambe m la num canto.

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RE VE LL – IS SN: 2 1 79 -4 4 56 2 0 1 8 – v.3 , nº. 20 – de ze m b ro de 2 0 1 8 . 353 Esperando pra ver o que que o Lucas ia fazer.

E o Lucas parado na porta, sem saber se entrava ou saí a, sem saber o que que fazia. Ate que, la pela tantas, entrou. Passou pela mu sica, mas na o tocou. Passou pelo arma rio, mas na o abriu. Olhou comprido pro Timorato e pro Pai. Pra um, com saudade; pro outro, na o.

A Ma e e a Lenor estavam lado a lado; o Lucas chegou perto delas, Olhou terno pra uma, pra outra, mas so disse assim pra duas: pensei que gente grande sacava melhor. (BOJUNGA, 2014, p. 132-133).

Nota-se que Lucas se coloca no centro daquele cena rio imaginado por ele, o local em que o pai mantinha suas relaço es amorosas. O termo “Terraço” designa “cobertura plana de um edifí cio, feita de pedra, argamassa, concreto etc.”, local superior ao terreno de uma casa, associaça o a superioridade, dureza, resistência que representa a dominaça o do masculino sobre os demais. Lucas ao escorregar e fechar os olhos e capaz de enxergar, de modo crí tico, ainda que de forma fantasiosa, o contexto que vivenciava naquele momento. A “Cara” dentro do arma rio refere-se as ma scaras sociais que o indiví duo se vê obrigado a vestir, para ser parte da representatividade falocêntrica, na sociedade. O menino vê “A Lenor” e “A Ma e” lado a lado, ambas “de vestido furta-cor”, ideia de mulher-objeto, sa o iguais, na o se diferenciam. O Pai estava la parado tambe m. Lançou um olhar saudoso para o Cachorro Timorato, mas para o Pai na o, esta atitude de Lucas denota a ma goa que sentia do Pai. Fica latente a dificuldade do menino em aceitar o pai, pois na o sentia saudades dele, apenas do cachorro Timorato, daquele que tinha temor, livre da opressa o de na o poder sentir medo, enquanto, o pai representava para Lucas uma interiorizaça o da masculinidade que o proibia de sentir medo, ainda o separava da ma e, do feminino.

Enquanto a ma e e a professora Lenor sa o a representatividade de uma categoria de pessoas que sa o subordinadas a dominaça o masculina, associados a fraqueza e a submissa o. Todos esperavam para ver o que “Lucas ia fazer”. Em princí pio, Lucas ficou em du vida “se entrava ou saí a, sem saber o que que fazia”. O menino entrou, mas na o tocou a mu sica, na o abriu o arma rio, e apesar da

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ternura que sentia pelas duas mulheres, demonstrou seu desapontamento em relaça o a elas, pois pensava que gente grande sacava melhor. Sacava melhor o que? A opressa o do Pai, os excessos que representava a dominaça o do masculino. Ale m da submissa o e permissa o da mulher que se sujeita e coopera para a permanência da sua subordinaça o ao masculino.

Dessa forma, atrave s do olhar de uma criança, Bojunga expo e que as relaço es de gênero, entendida como uma categoria analí tica que permite compreender e interpretar uma dinâmica social que hierarquiza as relaço es entre o feminino e o masculino.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho refletiu sobre a ideia da construção das masculinidades, nas relações entre os personagens de Seis Vezes Lucas, analisando o papel assumido por cada um deles na manutenção da dominação do masculino. Além disso possibilitou uma discussão a respeito do silenciamento e deformidade que pode ser causada numa criança, especialmente do sexo masculino, em prol do fortalecimento dos valores falocêntricos que são repassados de pai para o filho.

Sobre a divisa o social do trabalho compreende-se que e a responsa vel pela delimitaça o entre atividades e os espaços que cabe a cada um dos dois sexos. Assim, o ao pai cabe ser o cabeça da sua famí lia e a mulher o cuidado da casa e dos filhos. Ale m disso, ha uma preocupaça o do masculino em separar as crianças do sexo masculino de tudo aquilo que os aproxima do feminino, seguindo um movimento que tende para a agressividade e a superioridade em relaça o ao sexo oposto.

Na narrativa verificou uma tensa o na relaça o Lucas e o pai, ocasionado pelos ciu mes que o menino tinha da ma e e da professora Lenor, somado a raiva que sentia do pai devido suas atitudes machistas. Neste intento, as personagens

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femininas surgem na narrativa, confirmando o papel de passividade da mulher na sociedade e que suas aço es cooperam para a construça o da ideia de dominaça o do masculino. Vimos que, a violência simbo lica esta associada ao subordinado de tal forma que esta ale m das suas vontades muda -la, tornando-se naturalizada a visa o androcêntrica de mundo.

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Recebido em 02/10/2018. Aceito em 04/01/2019.

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