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RELATOENSAIO Os Wapixána e suas relações intertribais e com a sociedade inclusiva em Roraima

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RELATO/ENSAIO

Os Wapixána e suas relações intertribais e com a

sociedade inclusiva em Roraima

The Wapixana and their intertribal relationship with the society in

Roraima

Orlando Sampaio SilvaBacharel em Direito. Mestre em Ciência (Antropologia), pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Doutor em Ciências Sociais (Antropologia) pela PUC-SP. Professor Titular de Antropologia, aposentado, da UFPA. Site: http://www.orlandosampaiosilva.wordpress. com. E-mail: osavlis@gmail.com

Pesquisei sociedades indígenas do nordeste de Roraima, por iniciativa própria, no decorrer dos trabalhos que desenvolvi, em Roraima, para a SUDAM/ SERETE, nas primeiras abordagens de campo, tendo feito uma primeira excursão em 1973. Três anos depois, em 1976, retornei àquele Estado, ainda a serviço da SUDAM/SERETE, quando dei prosseguimento à minha pesquisa.

Alguns anos depois, realizei novos estudos de campo em Roraima como bolsista do CNPq. Nessa segunda situação, desenvolvi um projeto de pesquisa da sociedade Wapixána, nos anos de 1982, 1983, 1984 e 1985.

Na estada em Roraima, em 1973, estive na aldeia Vista Alegre, no interior da Fazenda São Marcos, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), onde vive uma comunidade de índios Makuxí, na qual eram acolhidas algumas famílias Wapixána. Também estive na sede da fazenda do órgão indigenista, onde trabalhavam e viviam alguns índios de diferentes etnias. Em 1976, pesquisei em aldeias de índios Makuxí (de língua karib) e Wapixána (aruak).

Nas expedições de 82, 83, 84 e 85, estive em contato com os Makuxí, com os Wapixána, com os Taurepán (karib) e os Yanomámi (yanomami). No que tange aos Yanomámi, estive na aldeia Yanomámi, do rio Catrimani, na fl oresta do oeste

de Roraima. Em 1982, dei início ao desenvolvimento de meu estudo específi co

entre os Wapixána, tendo estado nas aldeias Taba Lascada, Malacacheta e Canoani. Próximo à fronteira do Brasil com a Venezuela, estive na aldeia Boca da Mata, onde verifi quei um modelo exemplar de convívio intertribal pací co, do

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também de língua karib). Um pouco mais ao sul, encontrei-me entre os índios Taurepán, na aldeia Bananal. Nessa aldeia, não se encontravam índios oriundos de outros grupos tribais convivendo com os Taurepán.

Em 1984, demandando diversas aldeias Wapixána, também visitei aldeias Makuxí, entre as quais a Raposa, a Tachí e a Morro; nessas duas últimas, verifi quei

que não viviam índios Wapixána. Estive em aldeias localizadas nos contrafortes da serra do Sol e, mais ao sul, na vila Surumu. Para observar a presença indígena nas fronteiras, transpus, ao norte, o limite internacional entre o Brasil e a Venezuela, e, a leste, a fronteira entre nosso país e a República da Guiana.

Nesta exposição, minha fonte de informações vem das minhas observações de campo, das informações obtidas em entrevistas realizadas com indígenas, de dados, depoimentos e narrativas registrados no caderno de campo, nas gravações e na documentação fotográfi ca que realizei.

Os índios Makuxí e os Wapixána têm suas aldeias disseminadas no território da República da Guiana e, no Brasil, na região do bioma denominado lavrado, no nordeste de Roraima. Os grupos locais Yanomámi encontram-se no território da Venezuela e, no Brasil, na área de fl oresta tropical do norte do Estado do Amazonas

e do oeste do Estado de Roraima. Os Taurepán localizam-se na Venezuela e em Roraima, no Brasil.

Para o desenvolvimento do meu projeto de estudo etnográfi co-etnológico

dos Wapixána, dada a grande incidência, em Roraima, de aldeias mistas de índios Makuxí e Wapixána, adotei como critério, para considerar grupos locais como Wapixána, a predominância quantitativa desses índios na constituição da população residente em cada aldeia.

As aldeias Makuxí estão, predominantemente, no norte do lavrado, e as Wapixána concentram-se mais no sul dessa área fl orística.

As aldeias Wapixána são suscetíveis de serem agrupadas em áreas e subáreas, conforme suas localizações e proximidades espaciais entre si e consequentes inter-relações sociais. Adotando esse critério, constatei que os grupos locais desses índios encontravam-se distribuídos em quatro áreas e respectivas subáreas, conforme o Quadro 1.

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Quadro 1. Grupos locais, segundo a distribuição por área e subárea.

Área Subárea Grupo local População

Área da Serra da Lua

Subárea I Taba Lascada 210

Malacacheta 283

Canoani 230

Subárea II Pium 161

Manoá 400

Alto Arraia 174

Moscou ou Recanto da Saudade 160

Subárea III Jacamim 206

Uapôm 63

Marupá 143

Subárea IV Jaboti 64

Área do Taiano e Serra da Moça

Subárea I Barata 286

Livramento 78

Pium 144

Truaru 122

Subárea II Serra da Moça 119

Serra do Truaru 105

Morcego 26

Área dos rios Amajari e Parimé

Subárea I Ponta da Serra 98

Urucuri ?

Juraci ?

Subárea II Boqueirão dos Três Corações ?

Mangueira ?

Guariba ?

Arurái ?

Ouro ?

Área da Fazenda São Marcos (administrada pela FUNAI)

Sub-Área I Lago Grande 173

Sub-Área II Bala ?

Fonte: Pesquisas de campo realizadas pelo autor em Roraima entre 1973 e 1985.

Foram doze as aldeias nas quais realizei observação direta: Taba Lascada, Malacacheta, Canoani, Pium, Jaboti, Barata, Livramento, Serra da Moça, Serra do Truaru, Morcego, Ponta da Serra e Lago Grande.

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relações com a sociedade inclusiva, o dito “mundo dos brancos”. Os problemas que mais avultaram tinham a ver com as questões das terras indígenas, muitas invadidas por fazendeiros e por posseiros. Evidenciou-se a necessidade da regularização das terras indígenas, a fi m de que os povos tribais da área pudessem usufruir, legítima

e integralmente, dos benefícios de seus direitos à terra. Só com o reconhecimento e o respeito a esses direitos seria possível que essas sociedades tribais tivessem o gozo da plenitude de suas vidas na integração harmônica entre suas sociedades e a natureza, segundo suas tradições e de suas culturas. Diga-se, no entanto, que, nas aldeias pesquisadas, os contatos entre esses grupos locais e a sociedade envolvente caracterizavam-se como uma situação social do tipo colonial. Esses relacionamentos intersocietários não eram simétricos; porém, nessa época, não se registravam a ocorrência e a emergência de confl itos sicamente agressivos de

grande gravidade. Porém, constatei invasões das terras indígenas. As comunidades necessitavam ter suas terras livres dos intrusos – muitos deles eram fazendeiros, que alegavam possuir direitos de propriedade sobre as terras, enquanto outros, reconhecendo-se intrusos, negociavam suas desocupações mediante compensações propiciadas pelo governo.

Ao tempo, ainda não estava instaurada a grave situação de oposição intersocietária, marcada pela violência extrema, que veio a se instalar anos mais tarde na Terra Indígena Raposa-Serra do Sol.

À época de meus estudos em Roraima, a mobilidade horizontal entre aldeia e cidade – principalmente, Boa Vista – tinha uma dinâmica, que se evidenciava na população indígena crescente na capital do (então) Território Federal. Jovens estudantes indígenas frequentavam as escolas públicas da cidade. Muitas pessoas de ambos os sexos eram incorporadas à mão de obra mais simples empregada no meio urbano. Algumas trabalhavam na Delegacia Regional da FUNAI. Índios prestavam serviço militar nos batalhões do Exército presentes em Roraima.

Porém, a grande maioria da população indígena permanecia aldeada e, em suas terras, praticava uma agricultura que, com frequência, apresentava excedente para a comercialização, ou diretamente no mercado de Boa Vista, ou por intermédio de proprietários de transportes próprios (caminhões). A produção indígena caracterizava-se pela organização de caráter familiar. Da mesma forma, eram praticadas, em escala decrescente, a caça, a pesca e a coleta.

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São José e São Marcos. O governo de Portugal, com esse projeto colonial, marcava a sua presença na ocupação territorial portuguesa na região. Concomitantemente, os índios foram atingidos pela frente missionária (da Igreja católica), em uma ação catequética, que se estende até os nossos dias, mesmo tendo ocorrido, na colônia, ainda no século XVIII, a expulsão dos jesuítas decretada por Pombal, ocasião em que esses missionários foram substituídos por religiosos de outras ordens e congregações religiosas.

A inserção dos indígenas na heterogênea economia de cultivo do gado e a atuação missionária, desde então, têm provocado alterações estruturais nas economias tribais e nas dimensões culturais. Criar gado era um trabalho desconhecido pelos indígenas, cujas organizações e relações de produção de caráter tribal, ao tempo, estavam estribadas em uma produção voltada para a autossatisfação das estritas necessidades bióticas. A caça, a pesca, as coletas vegetal e animal e uma pequena agricultura de subsistência eram organizadas segundo uma dinâmica de caráter coletivista marcada pela reciprocidade e pela divisão do trabalho por sexos e por idades.

Se a economia pecuária colonial estava intrinsecamente voltada para o mercado, a economia indígena tradicional restringia-se ao âmbito interno comunitário. A chegada às aldeias de práticas econômicas e de formas de trabalho estranhas fez desencadear alterações estruturais, um lento processo de mudança sociocultural nessas sociedades. A catequese atingia o cerne das culturas míticas indígenas, que constituem um fator psicossocial fulcral de sustentação das identidades tribais.

Esse processo de transformações socioculturais remonta a fases mais recuadas na história desses povos. Mais recentemente, outros fatores institucionais, sociais, econômicos e culturais passaram a interferir nas ordens tribais das sociedades indígenas em Roraima.

Com a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, instaurou-se a possibilidade de interferência direta e permanente do Estado brasileiro nas aldeias indígenas. Em 1967 (5 de dezembro), a função tutelar sobre os povos indígenas no Brasil foi assumida pela FUNAI. Se a política indigenista ofi cial adotada pelos

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insistentemente, tornava interdito o uso das línguas indígenas e proibia as práticas rituais intrínsecas às culturas desses povos. Em acréscimo, nessa linha de atuação do órgão indigenista, foram instaladas escolas nas aldeias, nas quais os professores (índios ou, quase sempre, não índios) ministravam as aulas apenas em português e, no caso de Roraima, obscureciam a realidade de o alunato, em muitas aldeias, ser constituído de crianças indígenas frequentemente pertencentes a mais de uma etnia. Ainda durante o desenvolvimento do meu projeto de pesquisa em Roraima, testemunhei resquícios exemplares de algumas dessas práticas negativistas e agressivas contra as identidades coletivas indígenas.

Esse quadro histórico até aqui explicitado exprime um complexo de ações coloniais que tem atingido os indígenas de Roraima, entre os quais os Wapixána, ao longo dos anos, no decorrer dos quais tem havido um lento, mas contínuo processo de mudança sociocultural e de agravos às suas identidades grupais.

Em meu estudo, tive como informantes índios Wapixána residentes nas diferentes aldeias pesquisadas, entre os quais alguns oriundos da República da Guiana. Todos os informantes guianenses dominavam sua língua originária. Entre os Wapixána que são habitantes tradicionais de Roraima, alguns, identicamente, falavam fl uentemente a língua de seus antepassados, outros se exprimiam com

certa difi culdade nessa língua indígena, mas todos eles eram falantes da língua

portuguesa – alguns monolíngues na língua ofi cial do país. Constatei, também, que

alguns índios Wapixána que eram falantes de sua língua e da língua portuguesa, também haviam passado a dominar o idioma Makuxí, dado ao convívio com esses índios, tornando-se falantes trilíngues. Todos os informantes Wapixána provenientes da Guiana falavam sua língua indígena e a língua inglesa, e alguns estavam em avançado processo de aprendizado da língua portuguesa.

Efetivava-se nas aldeias um amplo convívio entre indígenas portadores de diferentes experiências sociais e culturais. Esse processo em andamento dava lugar a infl uências culturais, por um lado, entre índios da mesma etnia,

mas originários de situações coloniais distintas, ou seja, os tradicionais do Brasil e os oriundos da Guiana, e, por outro lado, entre índios Wapixána e Makuxí (além de outros grupos raramente encontrados nas aldeias Wapixána), situação complexa que confi gurava a dinâmica de um amplo processo aculturativo

intertribal. Paralelamente, tinham lugar mudanças societárias e infl uências

culturais decorrentes do contato permanente desses povos indígenas com a sociedade dominante. O conceito de aculturação, aqui referido, foi amplamente utilizado pelo antropólogo Eduardo Galvão, do Museu Paraense Emílio Goeldi, em toda sua volumosa obra (cf. SAMPAIO SILVA, 2007).

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exprime classifi cações nas relações de parentesco na sociedade Wapixána. A pesquisa

de Diniz foi realizada, em maior escala, nos anos 60. Hermann (1946a, 1946b, 1948), cerca de vinte anos antes de Diniz, também procedeu a um levantamento de termos de parentesco wapixána. Em minha pesquisa desenvolvida na década de 70 e na primeira metade dos anos 80, procedi a minudente levantamento de termos de parentesco da língua wapixána. Com a análise comparativa dos dados, verifi quei que, nas três pesquisas referidas, houve variações nos termos designativos

das posições estruturais dos parentes em relação a ego, conforme os exemplos a seguir referentes a diversas situações na parentela:

Filho: (minha pesquisa (m.p.)) dáne; (Diniz) dane; (Hermann) u-dane-dauernaoru.

Filha: (m.p.) dane / ou / Dan / ou / dan rinab / ou / rena; (Diniz) dane; (Hermann) u dane rõna.

Irmão: (m.p.) inhaôr (h.f.) e árri (m.f.); (Diniz) urre (h.f.) e árre (m.f.); (Hermann) um-inhau-úre (h.f.) e um are (m.f.).

Irmã: (m.p.) dád:kú (h.f.) e unhauro (m.f.); (Diniz) darucu (h.f.) e árru (m.f.); (Hermann) dadukú (h.f.) e inháuru (m.f.).

Nota-se, também, que, na terminologia por mim levantada, em geral, “fi lho

do irmão do pai” é classifi cado como tiamín, e “ lha da irmã da mãe” é referida

como tiarrô.

Essa categorização terminológica presente no vocabulário parental wapixána signifi ca que, em relação a ego, o “ lho do irmão do pai” não é considerado irmão

e a “fi lha da irmã da mãe” não é tida como irmã.

É relevante, identicamente, registrar que verifi quei, em meu estudo de

campo, que na sociedade Wapixána “pai” é designado pelo termo dáre, enquanto “irmão do pai” é referido como tia:mi-rô (nos grupos locais Lago Grande, Taba Lascada, Malacacheta e Canoani); em Diniz, “pai” é, também, dáre, e “irmão do pai” é ráre. Em minha pesquisa, “mãe” é referida pelo termo dáro (Lago Grande e Canoani), dáuro (Taba Lascada), dáru (Malacacheta); para Diniz, “mãe” é ráru. Em minha pesquisa, a “irmã da mãe” é designada como wa:nê (Lago Grande e Canoani),

dáru (Malacacheta) e dáuro (Taba Lascada); para Diniz, “irmã da mãe” é ráru. Há inegável semelhança entre as designações de “pai” – dáre, em m.p. – e a de “irmão do pai” – ráre, em Diniz; da mesma forma, são similares as designações para “mãe” (dáro, dáuro, dáru, em m.p., ráru,em Diniz) e “irmã da mãe” (dáru, dáuro, em m.p., e ráru, em Diniz).

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como pai, e “irmã de mãe”, identicamente, de ser tida como mãe; no entanto, como vimos acima, em relação a ego, o termo classifi catório para “ lho do irmão do pai”

é diferente dos termos relativos a irmão, e o termo referente a “fi lha da irmã da

mãe” também é diferente das designações de irmã. Em um sistema de parentesco como tal, considero que essas identidades e dessemelhanças terminológicas não permitem, a rigor, que se possa identifi car a ocorrência, entre os Wapixána, de

tipos classifi catórios de sistema de parentesco conforme a tradição etnográ ca,

muito embora Diniz (1968) afi rme que “Na geração de ‘Ego’ os termos de ‘primos’

correspondem ao tipo Iroquês (MURDOCK, 1949)”. Ainda Diniz, no artigo acima citado, explica:

A terminologia de parentesco dos índios Wapixâna classifi ca todos os parentes

em cinco gerações. A primeira geração ascendente é do tipo fusão bifurcada. Assim, o irmão do pai é classifi cado como pai (ráre) e a irmã da mãe como mãe (ráru),

enquanto o irmão da mãe (ta:tai) e a irmã do pai (nan) são distintos deles.

Minha pesquisa confi rmou essas constatações de Diniz. Continuando,

Diniz, no mesmo artigo, diz: “Os primos paralelos (urre, darucú, h.f.) são incluídos na categoria de siblings. Os primos cruzados (naône; na:nêrru, h.f.) são referidos diversamente daqueles e correspondem a cunhado e cunhada” (DINIZ, 1968). Diniz (1968) diz: “Esta sucinta informação restringe-se à terminologia de parentesco como sugere o próprio título. Seu escopo visa ser menos uma pretensa contribuição, mais uma trilha de trabalho”. Em meu artigo de 2007, afi rmo:

“Estamos tentando trabalhar nesta trilha aberta por Diniz. O estudo prossegue”. Em meus registros realizados mais de dez anos depois, como vimos acima, algumas dessas denominações não confi rmam todas as anotações do antropólogo

do Museu Goeldi. Aliás, constata-se que diferenças de denominações classifi catórias

foram registradas entre as verifi cadas por Hermann, Diniz e por mim, em épocas

diferentes das observações de campo, em verdade, com intervalos de cerca de vinte anos entre as duas primeiras pesquisas e de outros vinte anos entre a de Diniz e a minha. Esses exemplos são signifi cativos da variação de termos levantados

pelos três pesquisadores. Essas diferenças terminológicas podem indicar a ocorrência de mudanças na linguagem, que se efetivam com o passar do tempo, mudanças relacionadas com as diferentes situações de contatos intersocietários experimentadas pelos informantes e por seus grupos de convivência.

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os tabus de incesto. Entre as possibilidades de matrimônios permitidos, encontram-se os casamentos preferenciais.

Com base nas observações e nos registros de minhas pesquisas, chego à seguinte conclusão em meu artigo intitulado “Os Wapixána: uma situação de contato interétnico” (SAMPAIO SILVA, 2007):

Assim, até o ponto a que chegaram nossos estudos de campo entre os Wapixána e considerados os grupos locais em que registramos termos de parentesco, podemos dizer que as alternativas de interações socialmente permitidas ou não a ego masculino em relação a seus parentes cognatos são muito mais reguladas pelo fato de estes serem seus pai, mãe, irmã, irmão, primo, prima, tio, tia, fi lho, lha

(cf. nosso vernáculo e as posições ocupadas na família, segundo nossa cultura) do que por serem dáre, dáro, dád:kú, inhaôr, tiauanái etc. (sendo todos estes termos de parentesco Wapixána).

O contato permanente em que vivem esses índios com a sociedade nacional brasileira local, em Roraima, criou condições para que a dinâmica nas inter-relações pessoa a pessoa – por exemplo, no casamento – passasse a efetivar-se, em escala acentuada, segundo as regras presentes na sociedade dominante. Nesse panorama de convívio sociocultural, o incesto, as proibições de casamento têm mais a ver com as peculiaridades da moral e da legislação civil do Estado brasileiro do que com as restrições e os tabus que, certamente, ocorriam no passado na sociedade desses índios de língua aruák.

Os diversos grupos locais Wapixána estudados não ocupam um mesmo momento sociológico no interior do sistema interétnico de que participam. Os elementos que integram a ordem sócio-cultural dessa tribo indígena foram atingidos em graus desuniformes de intensidade. Os Wapixána – como os Makuxí – têm tido sua sociedade pressionada por ações oriundas da sociedade dominante, na situação colonial em que estão inseridos, não apenas no nível econômico, mas também nos níveis ideológico e psicossocial. Em conseqüência e em função das infl uências exercidas

sobre esses índios pelos agentes de diferentes espécies, que representam o ‘mundo dos brancos’, a identidade étnica nos agrupamentos societários Wapixána sofre maior ou menor impacto e é direcionada em sentidos divergentes ou convergentes. Estes encontros produzem refl exos na etnicidade (SAMPAIO SILVA, 2007).

Os Wapixána encontram sustentação para a afi rmação de sua identidade étnica

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gerações, para a preservação da memória e para a sobrevivência crucial da dimensão cosmológica mítica na sociedade. Também, a territorialidade fundada nas Terras Indígenas em que vivem secularmente é fator de afi rmação étnica.

Nas aldeias, por um lado, estão presentes os pajés comprometidos com o

bem, realizando tratamentos e promovendo curas ritualísticas, e, por outro lado, registra-se o sobressalto ante os pajés do mal, os míticos canaimés com suas atuações agressivas.

Em meu artigo “Sociedade Wapixána: ritos e mitos” (SAMPAIO SILVA, 1985), digo:

O estudo dos ritos dos Wapixána exibe o quanto esses índios, embora sendo despojados de signifi cativos padrões de sua ordem ritualística, ao longo de mais

de dois séculos de contato ostensivo com o mundo dos brancos, resistem ao desfi guramento total de sua sociedade. Eles ainda preservam alguns ritos cruciais

na dramatização social dos mitos, bem como mantêm personagens – tais como os Canaimés –, que fazem parte de seu universo real-mítico, de grande importância na dinâmica da sociedade Wapixána.

Afi rmo ainda (SAMPAIO SILVA, 1985):

Aquelas ‘festas’ ou danças rituais referidas pelos informantes de todos os grupos locais visitados, são: o parixara (folha de inajá), o tucúi (beija-fl or) e o arerúi

(aleluia). Neste último ritual há o amalgamamento sincrético de danças indígenas com cânticos religiosos católicos (conforme o testemunho de Wirth narrado por Hermann – 1946). Koch-Grünberg (1923), no início da segunda década deste século [refi ro-me ao século XX], encontrou, no rio Surumú, índios Makuxí, Wapixána e

Taurepán, juntos, dançando o tucúi e o parixára, em grande festa de confraternização, assim como um grupo Taurepán dançando isolado o parixára.

No trabalho de campo, constatei, nos diversos grupos locais, que essas danças-rituais não mais eram praticadas nessas aldeias. Mesmo assim, os três rituais permaneciam vivos na memória dos mais velhos. Porém, tive a informação de que, na vila Surumu (onde, em uma de minhas expedições, estive por breve tempo), o

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povos tribais da grande área indígena do nordeste de Roraima, área que contém evidente unidade cultural específi ca, mesmo se considerando a pluralidade tribal

e linguística prevalecente.

Estas considerações aqui desenvolvidas referentes aos achados etnográfi cos

mais recentes reportam-se a um tempo já recuado, que se desdobra desde os anos 30 do século passado (quando Wirth realizou suas observações de campo), até meados dos anos 80 (quando concluí minhas pesquisas entre os índios de Roraima, particularmente os Wapixána).

Logo se acirraram os confl itos entre grupos indígenas e facções da sociedade

nacional inclusiva, estando a ocupação e o uso da terra no centro das tensões. As invasões das Terras Indígenas por detentores do capital agropecuário acentuaram-se. Os povos indígenas do lavrado passaram a lutar pela defesa de seus direitos históricos e constitucionais sobre suas terras. Travou-se o embate pela institucionalização da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol em um espaço contínuo. Capitalistas benefi ciários

da economia pecuária e da produção de arroz implantada em Terras Indígenas empenharam-se para manter seus privilégios. Eles proclamavam a prevalência das Terras Indígenas apenas em “ilhas descontínuas”, assegurando para si a posse de espaços que consideravam ser intervalares. Em um cenário de ruptura societária, um setor minoritário da população indígena opunha-se à saída de pecuaristas e arrozeiros – diversos trabalhadores indígenas labutavam nas propriedades de alguns deles. Assumindo essa posição, esses oponentes insurgiam-se contra a criação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol como uma área unívoca e continuamente abrangente. Houve confrontos violentos entre índios desejosos de ver sua Terra Indígena unifi cada e respeitada, e os que a ela se opunham, brancos e índios. Houve

vítimas humanas. Ocorreram destruições de bens materiais.

Afi nal, como desfecho das lutas das sociedades indígenas do lavrado e

de suas entidades organizativas, tendo como aliados professores, antropólogos, indigenistas, organizações não governamentais (ONG), a FUNAI e a Pastoral do Índio da Igreja Católica, com o beneplácito do governo federal e do Supremo Tribunal Federal (STF), foi consumada a criação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol em perímetro contínuo. Na história do Brasil, essa foi uma das mais exemplares e simbólicas lutas dos índios brasileiros por seus direitos à terra. Luta vitoriosa. Fez-se justiça.

A seguir, em uma revisão bibliográfi ca (não exaustiva) do período histórico abordado, registro algumas obras que simbolizam e marcam certamente três fases em que foram realizados os estudos etnológico-etnográfi cos tendo como foco as

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a) da segunda metade do século XIX até a década de 20 do século passado, período dos pioneiros;

b) da década de 30 (quando Wirth realizou seus estudos de campo) à década de 50, no século XX;

c) década de 60 – período em que Ernesto Migliazza realizou seus estudos e Edson Diniz deu início aos seus –, passando pela década de 70, até a primeira metade dos anos 80, tempo em que Orlando Sampaio Silva realizou e concluiu suas pesquisas em Roraima.

Pode ser assinalada uma etapa mais recente dos estudos indigenistas em Roraima, que tem seu marco inicial na criação, em 1989, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), com seus professores-pesquisadores-antropólogos. Dentre eles, destacam-se Erwin H. Frank e Carlos Alberto Marinho Cirino e seus colegas e discípulos. Os antropólogos da UFRR dispõem de um reconhecido periódico acadêmico por meio do qual têm publicado os resultados de suas pesquisas. Trata-se da Revista do Núcleo Histórico Socioambiental. Destaco, em meio às produções acadêmicas mais importantes, nessa fase mais recente da antropologia de Roraima, a importante tese de doutorado do professor Carlos Alberto Cirino, que versa sobre o tema A ‘boa nova’ na língua indígena: contornos da evangelização dos wapischana no século XX (2000).

REFERÊNCIAS

CIRINO, C. A. A ‘boa nova’ na língua indígena: contornos da evangelização dos wapischana no século XX. 2000. 194 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2000.

DINIZ, E. S. A terminologia de parentesco dos índios Wapitxâna. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, Belém, n. 34, p. 1-11, abr. 1968.

HERMANN, L. A organização social dos Vapidiana do Território do Rio Branco.

Dissertação (Mestrado em Ciência) – Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, 1946a.

HERMANN, L. A organização social dos Vapidiana do Território de Rio Branco.

Sociologia, São Paulo, v. 8, n. 3, p. 282-304, 1946b.

HERMANN, L. A organização social dos Vapidiana do Território do Rio Branco.

Sociologia, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 54-84, 1948.

SAMPAIO SILVA, O. Sociedade Wapixána:mitos e ritos (registros preliminares). Revista do Museu Paulista, São Paulo, v. 30, p. 149-164, 1985.

SAMPAIO SILVA, O. Os Wapixána:uma situação de contato interétnico. Revista do Núcleo Histórico Socioambiental-NUHSA, Boa Vista, v. 1, n. 1, p. 51-74, out. 2007.

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