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Matronas portuguesas: o elogio da mulher ausente

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Academic year: 2021

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Dans la même collection

Sous la direction d’Ana Clara Santos, Palco da ilusão. Ilusão teatral no teatro europeu, 2013.

Sous la direction d’Ana Clara Santos et Maria Luísa Malato, Diderot. Paradoxes sur le comédien, 2015.

© photo de Bruno Henriques, Parc archéologique à Pompéi, août 2016.

EAN 9782304046229 © novembre 2016 Éditions Le Manucrit

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Sous

la direction de

Jacopo Masi, José Pedro Serra

et Sofia Frade

Théâtre :

esthétique et pouvoir

D

e l’antiquité classique au

XIX

e

siècle

Tome I

Collection « Entr’acte »

Éditions Le Manuscrit

Paris

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o elogio da mulher ausente

Marta ROSA

Centro de Estudos de Teatro Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

As mulheres e o teatro

O século XVIII é um período histórico em que houve

muitas mudanças em Portugal, tanto a nível político como de mentalidades. As mudanças decorrem em grande parte do confronto entre um Portugal retrógrado, agarrado a preconceitos sociais e morais profundamente arreigados na religião católica e um Portugal que queria avançar na senda do Iluminismo que há muito proliferava pela Europa e que vinha alterando configurações sociais, intelectuais e culturais. No que concerne ao lugar e estatuto do homem e da mulher na sociedade e na família, até cerca da primeira metade de setecentos, a discrepância de tratamentos, normas e obrigações para os dois sexos era grande e marcada pelo isolamento e subjugação da mulher – as mulheres portuguesas viviam encerradas em casa, sem qualquer comunicação com o mundo exterior que não fossem as janelas, ainda assim tapadas por gelosias.

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Não havia muitos locais de convívio misto e quando este ocorria era muitas vezes interditado. A este respeito sabe-se que em 1741 D. Miguel da Anunciação proíbe representações de comédias em capelas e igrejas e em 1756 interdita bailes e touradas por serem nestes momentos que se encontravam ambos os sexos (Lopes, 1989). Nas igrejas as mulheres e os homens estavam separados por gelosias e, nas próprias casas, elas deveriam retirar-se na presença visitas masculinas, ficando limitadas a uma divisão, onde passavam quase toda a sua vida.

Este enclausuramento da mulher deve-se ao facto de ela ser considerada um ser perigoso – como descendente de Eva, era o veículo para o pecado – e, simultaneamente, um ser inferior, pois devia ao homem a sua existência.

Além disso, a mulher era um ser falhado à partida, pois o ideal de mulher perfeita era a Virgem Maria: criatura assexuada, passiva, recolhida, silenciosa, obediente, conformada, trabalhadora, modesta e, simultaneamente, mãe e virgem. Sendo que fora dos escritos bíblicos é impossível possuir concomitantemente essas duas qualidades – a virgindade e a maternidade – a mulher, desde o nascimento, estava destinada ao insucesso e à desilusão social.

Felizmente, novas vozes, iluminadas não só pelo Iluminismo, mas também pelo senso comum, começaram a surgir e lentamente a configuração social e moral em que a mulher se enquadra modifica-se. Por influência e acção do governo encabeçado pelo Marquês de Pombal surgem alterações – tendo ele vivido no estrangeiro e apreciado outros hábitos, a segregação sexual que havia em Portugal, aos seus olhos, tornava o país retrógrado e pouco apto para os costumes iluministas. Apenas como exemplo, no que se refere ao luto feminino, anteriormente, as viúvas estavam obrigadas a permanecer um ano encerradas em casa – sob a política pombalina o período de nojo foi reduzido para oito dias. Um outro projecto que contribuiu para que as mulheres saíssem do enclausuramento em que viviam foi a criação do

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Passeio Público, em Lisboa, local de convívio entre ambos os sexos e medida de incentivo à presença feminina em espaços públicos.

Na segunda metade do século surgem as assembleias, nas quais as mulheres recebiam nos seus lares e eram as anfitriãs do acontecimento. Permaneciam em casa, é um facto, mas já lhes era possibilitada a interacção com o sexo masculino, além de demonstrarem publicamente as suas capacidades intelectuais e artísticas, revelando que não eram o ser inferior e falhado como se tinha feito crer ao longo dos séculos.

Contudo a emancipação que as mulheres alcançaram na esfera doméstica teve progressos mais lentos no campo da actividade teatral, seja no lugar do público ou no palco.

Por volta de 1770, na dependência dos ciúmes da rainha consorte Mariana Vitória e, posteriormente, do espírito instável da rainha D. Maria I, surgem as primeiras restrições a participação feminina em espectáculos no teatro régio. William Wraxall, um estrangeiro que visitou Lisboa na época, relata-nos a experiência de assistência a um espectáculo na Corte no ano de 1772:

A circunstância que distinguiu este divertimento de qualquer outro do mesmo tipo a que eu tenha assistido e que pode parecer extraordinária ao ponto de dificilmente ser credível consiste na total exclusão das mulheres, não só da plateia mas também do palco, quer como espectadoras quer como actrizes. […] Por mais incrível que pareça, a causa de tão singular proibição estava na paixão do ciúme [da rainha]. […] E, de maneira a melhor garantir a fidelidade pessoal do Soberano, teve o cuidado sábio de remover da vista deste, tanto quanto possível, qualquer tentação que pudesse levar à inconstância. (Wraxall, 1772)

Contudo, esta característica «dificilmente credível» das representações régias não se estendia aos teatros públicos, onde, até ao terceiro quartel de setecentos, os espectáculos decorriam com normalidade: mulheres representando os papéis femininos e mulheres na assistência (embora proibidas de frequentar a plateia).

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Acrescente-se que, em 1771, foi criada a Sociedade para o Estabelecimento dos Teatros Públicos da Corte, que, entre as suas várias intenções e vontades, pretendia impulsionar a actividade teatral, justificando-a como «escola pública onde os povos aprendem as máximas sãs da política, da moral, do amor da pátria, do valor, zelo e fidelidade com que devem servir os seus soberanos» (AAVV, 1771: 3). Não só se eleva o teatro ao estatuto de escola de bons costumes, como a actividade de actor é profissionalizada e a sua prática considerada uma arte, que « per si é indiferente e que nenhuma infâmia irroga àquelas pessoas que a praticam nos teatros públicos» (AAVV, 1771: 7).

Criaram-se assim as condições para que viesse a público o talento de Luísa Todi (1753-1833) – primeira artista portuguesa de renome internacional, que se estreia no Teatro do Bairro Alto na década de 60 –, e para que a Corte se regozijasse com o folhetim cor-de-rosa protagonizado pela voluptuosa e extravagante Ana Zamperini – arrebatadora de corações e tostões dos espectadores masculinos da década de 70.

Em 1777 a actividade teatral é interrompida por dois anos de luto nacional por D. José I. Só em 1780 há notícia de espectáculos na Corte, mas sob diferentes normas: apenas os homens regressam aos palcos, estando as actrizes proibidas de representar. Estas regras podem ser confirmadas, por exemplo, na resposta ao pedido feito por Paulino José da Silva e Henrique da Silva Quintanilha, respectivamente empresário e dono do Teatro da Rua dos Condes, onde se pede autorização para a reabertura do teatro com espectáculos representados apenas por actores do sexo masculino, datada de 15 de Dezembro de 1780.

[…] Todos este motivos me parecem os suplicantes dignos da graça que pretendem, muito principalmente sendo as representações todas feitas por homens, com o que não pode haver

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receio aconteçam aqueles distúrbios que são infalíveis quando se dá um grande ajuntamento de pessoas de ambos os sexos1.

Em 1782 ocorre a inauguração do Teatro do Salitre, em Lisboa. Antes da inauguração, a 11 de Dezembro, é enviada uma ordem da Intendência Geral da Polícia para o Inspector do Teatro do Salitre para:

averiguar qual é o lugar […] destinado para nele se acomodarem mulheres por bilhetes e examinará se o referido lugar tem serventia particular e diferente da que vai para o teatro ou para a plateia e se acha tão próximo imediato à mesma plateia que desta proximidade se possa seguir confusão e desordens. E achando, vossa mercê, pela inspecção ocular, que o admitir-se o dito lugar para nele se acomodarem mulheres por bilhetes se seguirão motins e desordens e outras acções contrárias ao sossego, tranquilidade, urbanidade e modéstia que deve haver nos anfiteatros públicos e que até agora se tem observado no que tem havido em Portugal, vossa mercê fará intimar logo […] que no dito lugar não admita mulher alguma2.

Dois dias depois a decisão está tomada: uma ordem ao Inspector do Teatro do Salitre avisa-o de que deverá zelar pelo bom funcionamento do dito teatro

[…] não consentindo neste das portas da representação para dentro mulher alguma, nem nos lugares que estavam destinados para elas se alojarem por bilhetes e evitando toda a confusão, desordem ou distúrbio que possa acontecer3.

A inspecção ocular conclui, mais uma vez, que era prudente, por um lado, impossibilitar às mulheres desfrutarem dessa «grande escola da civilização» que o teatro pretendia ser e, por

1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

lv. I, f. 86v-87.

2 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

lv. 190, fl. 266-266v.

3 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

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outro, impedir que a sua simples presença de perturbasse o sossego do público masculino.

É dentro deste espírito de restrições absurdas que prosseguem os anos oitenta tornando o teatro português alvo de chacota e desagrado dos visitantes estrangeiros, para quem as virtudes dos cenários e figurinos não substituíam a beleza da presença feminina nem escamoteavam o grotesco dos travestis masculinos, como tão coloridamente nos relata William Beckford:

Avaliai o efeito agradável que semelhante metamorfose não pode deixar de produzir, especialmente no que se refere aos bailarinos, entre os quais se vêem uma pastora robusta vestida de branco virginal, com uma suave barba azulada e uma maçã de Adão proeminente, apertando um ramalhete de flores num punho que poderia quase ter derrubado Golias. (Beckford, 1787)

Até ao início dos anos 90 não há alterações ao regime que vinha de 80: o palco é unicamente ocupado por homens; por vezes proíbem-se mulheres no público; noutras alturas, ordena-se o encerramento dos teatros (ordens de pouca dura, uma vez que 20 dias depois estão em discussão os preços dos camarotes).

No ano de 1784 surgem algumas notícias exemplificativas da oscilação legislativa respeitante à categoria profissional dos actores.

Numa delas, de Janeiro, determina-se, por ordem da Rainha, que se encerrem os teatros da Rua dos Condes e do Salitre e que se prendam alguns cómicos de ambos os teatros por motivo de «escandalosas transgressões das leis divinas e humanas»4 .

4 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

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A 18 de Fevereiro, há notícia de que os actores abandonaram a Corte e de que apenas se permite a representação espectáculos com figuras inanimadas5.

Em Julho a ordem de prisão de Janeiro do mesmo ano é revogada e ordena-se que «se passe à cadeia donde se acham presos à ordem de Sua Majestade todas aquelas pessoas que representavam nos teatros desta cidade e os mandará soltar»6.

A partir destas notícias podemos conjecturar que 1784 foi mais um ano incerto para os cómicos, pois as ordens de prisão aleatórias, baseadas unicamente na profissão que exerciam, obrigaram-nos a sair da Corte e mesmo do país em busca de um local onde pudessem praticar a sua actividade sem receio de represálias ou de serem tidos por criminosos.

Em 1786 é implementado um luto por um período de cerca de dois anos pela morte do rei D. Pedro III, pelo qual se dá novo encerramento dos teatros.

Os factos anteriormente relatados mostram que a actividade de actor era precária e instável e, se o era para os homens, para as mulheres tornava-se uma escolha profissional bastante mais arriscada.

Após o luto real, é apenas em Outubro de 1791 que temos a primeira notícia de que há novamente mulheres em palco e ela chega-nos através de uma ordem da Intendência ao Juiz do Crime do Limoeiro:

Vossa mercê do dia de amanhã sexta feira sete do corrente por diante não consentirá que entre em cena nesse teatro uma rapariga que actualmente estava representando, na inteligência de que tinha menos idade7.

5 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia

lv. II, ff. 34-34v.

6 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

lv. 191, fl.180.

7 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

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Esta notícia mostra que a presença feminina no tablado ocorria pontualmente, uma vez que a única restrição se coloca à idade da actriz e não à sua presença em palco.

Ainda nos anos 90, em 1793 ocorre o benefício da actriz Maria Joaquina8 e Luísa Todi tem uma autorização especial

para representar em Portugal; e em 1797 «permite-se a Josefa Teresa Soares, a fazer os três benefícios de cantoria no Salitre, como se praticou identicamente com Maria Joaquina, quando cantou no referido teatro» 9. São apenas três notícias

de récitas de canto, e não de teatro, mas de qualquer forma são prova de que o palco se começava a abrir às mulheres, apesar de testemunhos estrangeiros da época reforçarem que a sua presença permanecia interdita, ainda que desejada pelo público. Narra Robert Southey, no final dos anos 90:

A actual Rainha não permite que nenhuma mulher se apresente em cena, e esta medida, na realidade produto dos seus ciúmes, foi apresentada como derivando da sua preocupação em manter a moral pública. Desde que aqui cheguei foi dada autorização a uma bailarina para se exibir, e o teatro, consequentemente, estava cheio. (Southey, 1797)

Quando terminou então, definitivamente, a interdição de mulheres em palco?

As «matronas portuguesas» de António José de Paula

António José de Paula, empresário teatral do último quartel do séc. XVIII e primeiros anos do século seguinte, é o

autor do requerimento que, para muitos investigadores, marca o fim da interdição das mulheres no palco, ou seja, a data – 31 de Maio de 180010 – partir da qual os palcos portugueses

puderam ser pisados novamente por pés femininos.

8 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

lv. 196, fl.105v.

9 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

lv. 199, fl. 199.

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A actividade de Paula como empresário, actor, autor e tradutor inicia-se em 1763 e é documentada até 1775, altura em que um hiato de 12 anos o coloca no Brasil. Em 1792 regressa a Portugal, indo dirigir a companhia do Salitre, de onde sai em 1799 para o Teatro da Rua dos Condes.

É como empresário do Condes que faz o requerimento acima referido que coloca no elenco do seu teatro duas actrizes: Ana Isabel, de quem pouco se sabe, e Leocádia Maria da Serra, actriz com algum sucesso, a quem Bocage dedicou um poema e que é mencionada noutras notícias presentes na Intendência Geral da Polícia.

Terá sido Paula o promotor da mudança que começou a trazer as mulheres aos palcos portugueses?

Faz todo o sentido que tenha incentivado o fim dessa proibição, pois nas peças de sua autoria os papéis femininos representam não só a feminilidade, marcados pela sensibilidade, mas também são preenchidos por actos de bravura e coragem, consequentes da racionalidade, típicos da caracterização do herói masculino. Esta dualidade de características nas suas peças é identificativa das mulheres lusas, por ele apelidadas de « matronas portuguesas» e presentes como figuras principais em algumas das suas peças históricas.

A coragem e o amor pela pátria encontram-se presentes como caracterizadores de outras heroínas de António José de Paula, como Virgínia, na peça homónima, e em outros autores portugueses do séc. XVIII, como Teresa de Mello

Breyner e a sua Osmía (Breyner, 1788). Nas peças que analisaremos em seguida, as personagens femininas, prefigurando o estereótipo da mulher forte, levam a sua bravura ao acto em palco, que se materializa em algo mais que o suicídio altruísta, recurso narrativo usado geralmente para demonstrar a coragem e integridade de personagens heróicas, elevando-as ao estatuto de mártir.

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As peças em questão encontram-se na Colecção das Obras

Dramáticas de António José de Paula (Paula, s.d.), produzida entre 1781 e 1803. Não se conhecem notícias de representação ou edição de nenhum dos textos, de forma que não há como atestar a repercussão, sucesso e recepção que os mesmos tenham tido.

Ambas as tragédias se debruçam sobre episódios históricos portugueses: uma delas, sobre o naufrágio de Manuel de Sousa Sepúlveda, sua mulher, Leonor de Sá, e respectiva comitiva e tripulação ao largo da costa de África em 1552, intitula-se Sepúlveda; a segunda, sobre o tema das invasões holandesas no Brasil e a luta dos portugueses contra os invasores, mais especificamente a batalha do monte das Tabocas (1645), tem como título Vieira,

restaurador de Pernambuco, em honra a João Fernandes Vieira, líder da batalha.

Apesar de nos títulos das duas peças figurarem os nomes dos heróis masculinos, na realidade são as personagens femininas que se destacam.

Em Sepúlveda as personagens são Leonor, esposa de Sepúlveda, e Violante, irmã deste.

A intriga da peça situa os portugueses em África, depauperados por um naufrágio e cercados por indígenas que, aproveitando-se da sua fraqueza física, os ludibriam e lhes retiram as armas, para depois os despojarem de todos os seus haveres.

Leonor é apresentada como esposa e mãe dedicada que, apesar da sua delicadeza física, supera privações e obstáculos num ambiente adverso. É uma representante da cultura europeia defendendo até ao final os valores da fé cristã, da honra, do pudor e da pátria.

Violante, também caracterizada pela delicadeza e pelo cuidado que dedica a Leonor, é alvo do interesse do rei indígena, que a deseja por esposa, prometendo-lhe riquezas e outros benefícios. É rejeitado por ser bárbaro, cruel e ateu

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– o anti-arquétipo de todos os valores defendidos pela moral cristã.

O primeiro momento em que Leonor, a personagem feminina, demonstra determinação e bravura viril ocorre quando Sepúlveda a informa de que irá partir para uma batalha e de que ela deve ficar a salvo no acampamento. O desejo de acompanhar o marido na batalha é simultaneamente uma mostra de lealdade matrimonial e de valentia:

O meu desejo é só de acompanhar-te E d’expirar junto a teu lado:

[…]

Deixa pois que te siga resoluta; Violante também vá com seu esposo: Ambas já temos morto muitas feras, Nunca errado tiro; é quanto baste; Vamos pois a matar as que nos restam (Paula, s.d., V: fl. 24v.).

Nos últimos versos Leonor mostra que, juntamente com a sua companheira de infortúnio se sente capaz de lutar e de matar e de o fazer tão habilmente como qualquer soldado. Violante, que vê as suas acções, elogia-a:

Estas são as matronas portuguesas

Que a nós serve de exemplo de honra à pátria. Os vindouros respeitarão seu nome

Se não roubar fortuna a ilustre fama Que sepultada fica nestes ermos. (idem: fl.29v.)

Quando o acampamento de Leonor é atacado, estando nele apenas as mulheres e homens inválidos para o combate, revela-se em si a especificidade da matrona portuguesa, que nos momentos de crise mostra a sua garra. Leonor comporta-se como um general comandando as suas fracas tropas contra o ataque do rei inimigo.

Não se aparte um soldado deste sítio; Todos façamos frente ao seu orgulho:

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Dispersos não convém que nos encontre: E tu Violante imita o nosso esforço O melindre do sexo desprezando.

(Dá-lhe uma espingarda a Violante e fica com outra que trouxe do seu pavilhão)

Ide pôr-vos soldados vigilantes A defender-me o filho que me resta. (idem: fl.31-31v.)

Quando a tropa inimiga chega, as duas mulheres apresentam-se perante o número superior de soldados inimigos, sem medos, confiantes na sua perícia para combatê-los.

No diálogo que de seguida se mantém entre as mulheres e o chefe inimigo, Leonor mostra-se fera, seca, corajosa, uma verdadeira mulher de armas, para quem as delicadezas da sociedade são postas de lado, centrando-se nos aspectos relevantes da batalha. Nega sempre a capacidade da traição, defende o seu rei, a pátria, a cultura europeia e os valores morais.

Existem, da mesma época, duas outras tragédias que recorrem ao mesmo tema do naufrágio de Sepúlveda e morte de Leonor (Anon, 1794). Ambas retratam a heroína como uma figura imbuída de delicadeza, resiliência, amor pela pátria e pela família – traço comum com as personagens de Paula –, mas nestas, a defesa da pátria fica-se pela defesa dos valores da honra e da religião, e não pela combatividade face ao inimigo.

Na segunda peça, Vieira, as personagens femininas também se destacam, apesar de os soldados e generais portugueses mostrarem sempre a sua bravura e inteligente estratégia militar. A peça desenrola-se em dois cenários distintos: o mato, onde se encontra João Fernandes Vieira, com soldados e a sua esposa, Maria César; e a casa, onde estão sequestradas pelos holandeses Antónia e Isabel.

Tal como na peça anterior, o contraste entre as mulheres portuguesas e o inimigo é baseado na educação e na religião:

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se com os bárbaros de África Leonor se queixava da sua falta de civilidade, ateísmo e decoro, o mesmo se passa com Antónia em relação aos holandeses. Antónia questiona o seu inimigo da seguinte forma: «A polícia esta é da tua Europa?» (Paula, s.d., II: fl. 61), visto que apesar da educação ocidental se comportavam como bárbaros. Relativamente à religião católica, quando Henrique Hus, general inimigo a tenta seduzir para sua esposa, Antónia responde:

Henrique, seduzir-me não pretendas a uma seita horrível que detesto. Longe, longe de mim tão feio agravo. Esse lutero vil, esse calvino,

abortos do Inferno envenenar-me poderiam os dias que me restam? (idem: fl. 76v.)

Portanto, os dois grandes pilares civilizacionais em que assentam os valores portugueses – religião e moral – são desde logo opostos aos dos adversários.

Antónia, sequestrada em sua casa com Isabel, é a matrona portuguesa exemplar desta peça, aquela que quer lutar contra os inimigos:

S’uma espada tivera mostraria o valor que me assiste derribando os chefes desta acção. E mui depressa se acabava a peleja. Não é novo a estes pérfidos e cruéis piratas do meu heróico braço a valentia. (idem: fl. 79v.-80)

E Antónia não é uma mulher só de palavras, o que afirma reflecte-se nas suas acções, pois incita Henrique Hus a aproximar-se dela para poder feri-lo com um punhal.

Mais tarde, a casa está em chamas, encontrando-se dentro Antónia, Isabel e os inimigos holandeses. Henrique Hus roga-lhe que vá à janela da casa pedir a Vieira que cesse os tiros, para que eles possam todos sair a salvo. Antónia acede,

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mas mais uma vez o faz apenas para tentar dar morte aos inimigos, mesmo a custo da sua vida. Quando Henrique Hus pensa ouvir uma súplica para cessar o fogo, o que ouve é um pedido para uma nova revoada de tiros.

Expostas ao rigor destes malvados estamos, grão Vieira. Todas pedem que a vitória concluas resoluto. Não te cause compaixão nossa ruína, nem a honra nos tires desta empresa. Pela pátria morremos mui contentes, imitando as matronas lusitanas e essas que na Ásia esclarecida perderam pela pátria suas vidas. Não mais se retarde o fero assalto. Esta a proposta é, grande Vieira, e sabe que eu constante a morrer parto. (idem: fl. 85v-86)

Antónia dispõe-se a dar a própria vida pela pátria, como o jura fazer qualquer soldado, não ficando por isso abaixo deles em coragem, altruísmo e patriotismo, razão pela qual Vieira lhes concede os prémios de reconhecimento que se atribuem aos soldados valerosos:

Sempre ilustres matronas, destemidas, vós que honrais a pátria, vós que foste as que expondo as vidas ajudaste o meu grande valor nesta batalha. Eu me ofereço a cortar o sacro louro e as capelas fazer as vossas frontes. Publique a vossa fama, soe o parche, do vosso proceder acções ilustres eternizando no templo da memória um eterno padrão desta vitória. (idem: fl. 92v-93)

Também, Maria César, esposa de Vieira, se apronta a batalhar ao lado dos homens:

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A teu lado, senhor, nada me assusta. Um cavalo me dá e uma espada e deixa que o resgate das patrícias também se deva à força de meu braço. (idem: fl. 72)

Resumindo, as personagens femininas de António José de Paula demonstram coragem e amor pela pátria e é isso que as caracteriza, mais que a maternidade ou a o casamento. Quando dão a vida por algo, esse algo é a pátria, não a família; e da doação da própria vida não é gratuita (apesar do paradoxo): em troca exigem a morte daqueles que as atacam.

O corpo e a lei das «matronas portuguesas»

A forma com António José de Paula representa a mulher, com traços das qualidades distintivas masculinas, é de alguma forma paradoxal numa época em que as mulheres não podiam pisar o palco. Porquê em tal contexto criar personagens femininas numa estética que não poderia ser ultimada em consequência do poder instituído? Sendo Paula, além de empresário teatral, o autor e ensaiador da sua própria companhia, porque não escrever outro género de peças, que fugissem ao travestismo, tão ridicularizado pelos estrangeiros?

Seriam as personagens fruto das proibições? Ou seja, para evitar as caricaturas físicas de mulheres representadas por homens, criava personagens femininas com comportamentos masculinos?

Ou por outro lado, para fugir à caricatura conceptual da mulher delicada, frágil e submissa, idealizava personagens que demonstrassem que a feminilidade pode conciliar a delicadeza, a maternidade e a fidelidade com a acção bélica?

Paula, como os restantes autores do seu tempo, escrevia para um novo público, um público mais esclarecido, capaz de ver a mulher não como um ser submisso e sem vontade, mas como uma companheira, hábil e corajosa, capaz de contribuir positivamente para o sucesso do país, ao mesmo

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tempo que honrava as suas atribuições de mãe e de esposa. Escrevia também para um público desejoso de rever em palco actrizes que pudessem encarnar mais realisticamente as personagens propostas.

Acumulando simultaneamente as funções de empresário, autor e actor, Paula teve a oportunidade e necessidade de batalhar para ter as suas primeiras e segundas damas como demonstram as notícias presentes na Intendência Geral da Polícia: em 1799 ocorreu um benefício a Leocádia Maria da Serra, no Salitre, enquanto era o empresário desse teatro11; no

mesmo ano há ainda um pedido para a «actriz casada com um actor Serra» representar no Condes, de que já era empresário, e no ano seguinte o famoso requerimento para Leocádia Maria da Serra e Ana Isabel. É de notar que dos seis pedidos encontrados na Intendência para autorização de actrizes, apenas dois deles não são definitivamente de António José de Paula, reportando-se ao Teatro de S. Carlos; um outro deixa dúvidas quanto ao requerente; no entanto, os restantes são do autor de Vieira, tanto como empresário do Teatro do Salitre como do Teatro da Rua dos Condes.

Desta forma, percebe-se que Paula pretendia encarnar as suas personagens femininas de corpos e emoções femininos, não desistindo por isso de tentar quebrar o poder legislativo, que no final do século, ainda que se reportasse a ordens de D. Maria I, vivia já sob a regência de D. João VI, para quem eventualmente as restrições impostas às mulheres dentro dos teatros não teriam sentido.

Não significa isto que as personagens ou a insistência de Paula foram em exclusivo a causa para essa alteração, que ocorreria por força do alinhamento com os costumes europeus, mas presença de personagens femininas fortes exigia mais veracidade figurativa através de um representante adequado. Daí que Paula tenha pugnado pelo fim da restrição

11 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

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do palco às mulheres, defendendo a sua dramaturgia contra os despropósitos do poder.

Facto é que 1800 foi um ano de viragem, pois em Janeiro há uma autorização para Joaquina Lapinha, actriz de sucesso da colónia brasileira, representar no S. Carlos12; em Abril

ordena-se que não devem representar nem entrar em cena mulheres, nem dançarinas13; em Maio dá-se licença para os

empresários do S. Carlos poderem abrir o teatro com as mesmas mulheres com que o fecharam no Carnaval passado14; ainda em Maio, temos licença para representarem

para Leocádia Maria da Serra e Ana Isabel no Condes15; em

Julho há interdição de mulheres em cena no Salitre16, no

mesmo mês em que se dá licença a Ângela Teresa para representar num benefício no Condes17.

Podemos portanto assinalar a partir do início do séc. xix a presença regular de mulheres em palco. Prova disso são três contratos que António José de Paula, como empresário do Teatro da Rua dos Condes, celebra com actrizes nos anos de 1801-1802, a partir dos quais se denota que era conferido às actrizes um estatuto superior ao dos actores masculinos, pois as suas condições contratuais, quando em oposição às dos contratos masculinos, são bastante melhores. As actrizes passam assim de classe profissional precária a classe sobrevalorizada, com regalias e vencimentos extraordinários.

12 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

lv. 200, fl. 110v.

13 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

lv.200, fl.136.

14 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

lv. 200, fl. 144-144v.

15 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

lv.200, fl.148.

16 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

lv.200, fl.174.

17 Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Intendência Geral da Polícia,

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A proibição de mulheres em palco não cessou abruptamente, como vemos. Teve os seus solavancos, mas ao final de dois anos as actrizes já faziam parte da actividade teatral sem qualquer favor legislativo ou espanto social.

Paula terá sido um dos promotores do fim da interdição das mulheres em palco, terá lutado pelas suas matronas contra as leis vigentes, através do insistente envio de requerimentos que por um lado justificavam pontualmente a necessidade de haver uma actriz em palco, mas que por outro lado terão contribuído a longo prazo para que essa necessidade se tornasse transversal ao acto teatral. A sua luta contra o poder instituído teve consequências sociais, mas nasceu da necessidade de materializar a estética teatral da sua dramaturgia.

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Referências bibliográficas

AAVV. 1771. Instituição da Sociedade estabelecida para a subsistência dos Teatros Públicos da Corte, Lisboa, Régia Oficina Tipográfica.

ANON. 1794. Os sucessos de Sepúlveda, Lisboa, Oficina de

Simão Tadeu Ferreira.

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