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ALTERIDADE, ESPIRITUALIDADE E EXOTISMO: DA MÚSICA CELTA AO PSYTRANCE

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Academic year: 2020

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DANIELA CORDOVIL**

* Recebido em: 03.06.2019. Aprovado em: 03.12.2019.

** Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Professora Adjunta da Universidade do Estado do Pará. Investigadora da Universidade Nova de Lisboa. Doutora E-mail: daniela.cordovil@gmail. com.

ALTERIDADE, ESPIRITUALIDADE

E EXOTISMO: DA MÚSICA CELTA

AO

PSYTRANCE

*

DOI 10.18224/frag.v29i4.7398

ARTIGOS

ARTIGO

Resumo: esta pesquisa tem como objetivo propor uma análise das interseções entre música,

alteridade e espiritualidade, a partir de uma comparação entre dois estilos musicais, a música Celta e o Psytrance. Ambos surgem da valorização e do aumento de interesse em culturas e práticas ligadas à natureza e a um imaginário do primitivo enquanto puro. O consumo de música ligada a este imaginário está associado a um estilo de vida naturalista, esotérico e místico, construído a partir de referências na contracultura. Para os consumidores destes estilos, as práticas e vivências comunais associadas à música adquirem um significado ritual.

Palavras-chave: Música Celta. Psytrance. Alteridade. New Age. Espiritualidade.

A

representação da alteridade na música é parte constitutiva de diversos estilos musicais ocidentais, que vão desde o erudito ao popular. Estas representações fundamentam-se em uma idealização do primitivo enquanto puro, autêntico e espiritualizado. No século XVIII, a ideia de associar as culturas não-europeias com a noção de autenticidade já está presente na filosofia de Rousseau e em suas aplicações ao campo da música. Na ópera A Flauta Mágica de Mozart os personagens que representam a alteridade carregam consigo estes estereótipos. Papage-no, simboliza o não-iniciado, um homem simples, comum e ingênuo, e suas melodias utilizam-se extensamente do recurso ao pentatonismo para representar musicalmente esta simplicidade. A referência aos mitos nórdicos presente nas obras de Wagner, também tem como intensão o reencon-tro desta pureza idílica ou paraíso perdido musical, inspirado na noção de dionisíaco em Nietsche (MIDDLETON, 2000).

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No campo da religiosidade, a idealização de uma suposta pureza e autenticidade encontrada em sociedades não-ocidentais tem servido como fonte de inspiração para o surgimento de diversas correntes esotéricas e filosóficas que se disseminaram no Ocidente desde finais do século XIX e durante todo o século XX. Estes movimentos foram caracterizados pelos estudiosos de religião como New Age ou Nova Era (HANEGRAAFF, 1999). Trata-se de um conjunto de espiritualidades não-institucionais, inspiradas em saberes e sociedades não-ocidentais como o budismo e o xama-nismo e também em um resgate ou reinvenção de valores de civilizações antigas, como os Celtas. Estas filosofias pregam a unicidade entre homem-natureza e a busca de equilíbrio interior através de práticas como a meditação, o yoga e o tantra.

É possível identificar diversas relações entre a New Age e as artes, especialmente a música. Segundo Barchan e Jonsthon (2018) existe um conjunto claramente reconhecível e autodeclarado de músicas New Age, como as músicas de relaxamento e meditação, e sons da natureza. Porém, para além de escopo facilmente identificável de músicas relacionadas às práticas espirituais New

Age, há outros estilos musicais que são apropriados pelo movimento e passam ser parte construtiva

de suas identidades e sociabilidades:

But this picture is complicated by the significance of numerous styles of music with more ambiguous relations to the New Age e.g. drumming, chanting, techno music, Celtic music or popular adaptations of classical works (e.g. Pachelbel’s Canon, Gregorian chants, Mozart on synthesiser). Such genre blurring points to the impossibility of defining music purely technically or stylistically and to the need to incorporate understandings of the intentions and contexts for the music (BARCHAN; JONSTON, 2018, p. 26).

Pretende-se neste artigo analisar de que maneira a New Age influencia certos tipos de práticas musicais e como os estilos musicais a ela associados relacionam-se com a alteridade. Busca-se assim explorar a presença do imaginário do primitivo enquanto puro e autêntico na música e quais as intercessões deste imaginário com o campo da espiritualidade.

Esta análise será feita a partir da comparação entre dois estilos musicais cujas práticas e sociabilidades a eles associadas remetem a questões de autenticidade e espiritualidade: a música Celta e o Psytrance. Trata-se de dois estilos onde o consumo de música entrelaça-se com um estilo de vida voltado para valores ligados a espiritualidade, à comunhão com a natureza e a rejeição ou distanciamento da cultura ocidental. As origens deste imaginário podem ser encontradas no roman-tismo europeu, porém seu culto contemporâneo adquire novas roupagens associadas à tecnologia, à indústria musical e de grandes eventos e ao turismo.

Veremos nos próximos tópicos a história de cada um destes estilos musicais e as formas como idealizam e representam a alteridade, para em seguida analisarmos quais as relações destes estilos com as novas espiritualidades contemporâneas. Concluiremos com uma reflexão a respeito do papel da música na construção de sociabilidades e práticas rituais antes relegadas aos espaços religiosos.

PSYTRANCE: MÚSICA ELETRÔNICA, RITUAL E ALUCINÓGENOS

O trance psicadélico, ou psytrance, é um gênero musical surgido em Goa, na Índia, a partir da migração de artistas ligados ao movimento hippie para este continente na década de 1960. A cultura hippie tem origens na contracultura e na geração Beat e se caracterizou por uma crítica ao capitalismo e aos seus valores, promovida majoritariamente por jovens que

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repudiavam o modo de vida centrado na busca pelo sucesso profissional, pelo consumismo e pela reprodução da família patriarcal. Alguns destes jovens viajavam para o Oriente e para países de terceiro mundo em busca de liberdade e exotismo. Buscavam também o resgate de modos de vida comunais, por meio da fundação de “comunidades alternativas”, espaços de recolhimento onde buscam viver coletivamente e de forma que procura ser economicamente autossuficiente (SANTOS, 2011).

O movimento da contracultura teve profundos impactos na produção artística pós-1960. No caso específico da música, a disseminação massiva de certos estilos, como o Rock, esteve direta-mente associada à ascensão da juventude como classe consumidora. No Rock, bandas como os Beatles e The Doors colecionam referências ao oriente e a diversas inspirações místicas.

A associação entre o pensamento oriental e a inovação artística também se fez presente em outros estilos musicais, como na música experimental, cujas composições de John Cage inspiravam-se na filosofia budista do I Ching e do Zen (COBERT, 2000). O movimento fluxus, ao qual Cage esteve associado, teve profundas repercussões nas artes visuais. Este coletivo de artistas preconizou a procura por expressões artísticas libertárias e críticas às grandes instituições e aos movimentos artísticos con-vencionais tendo dado origem a linguagens tão diversas quanto a performance e a videoarte.

O movimento hippie também desencadeou uma valorização das culturas nativas ameri-canas e de outros continentes, especialmente no que diz respeito ao xamanismo. O neoxamanismo, popularizado pelas nas obras de Carlos Castañeda é um conjunto de práticas ecléticas que busca a elevação espiritual por meio da ingestão de substâncias que produzem estados alterados de consciência como a Ayahauasca e o peyote (MAGNANI, 2005).

Nos anos 1960, muitos hippies instalaram-se em Goa, ex-colônia portuguesa na Índia, cuja fraca regulamentação do consumo de drogas tornou-se fator atrativo para a proliferação de comuni-dades nessa região. As festas promovidas por estes grupos inicialmente eram animadas com música acústica, onde o repertório principal era o de bandas de rock associadas à contracultura, como Beatles e

The Doors. Com o passar das décadas, estas festas incorporaram estilos de música eletrônica, produzida por

DJs, o que a partir dos anos 1990 passou a caracterizar o Goa Trance. De Goa este estilo espalhou-se para o resto do mundo, dando origem a um circuito de eventos e festivais em lugares tão distintos como a Austrália, o Israel ou Brasil. Segundo St John:

Psytrance is a movement rooted in the live music scene of the 1970s flourishing in the former Portuguese colony of Goa, India, which had been overtaken by a seasonal DJ-led electronic music scene in the 1980s. Goa had attracted international travellers, artists and spiritual seekers since the 1960s, becoming an exotic outland of experimentation for musicians and expatriates in subsequent decades. It was the birthplace and proving grounds of a mutant dance music culture, which, by the mid-1990s, became marketed as Goa Trance (…). Following aesthetic shifts associated with analog, digital and virtual music technologies along with transitions in taste and demand, Goatrance later devel-oped as psychedelic trance or psytrance, which splintered into numerous subgenres by the early 2000s (ST JOHN, 2012, p. 3).

O estudo de St John faz uma análise detalhada de como a música e os festivais realizados em Goa deram origem ao que ele chamou de “global psyculture”, uma cultura transnacional promovida pelos festivais de psytrance ao redor do mundo. Estes festivais possuem uma estética visual e musical própria. Em relação às artes visuais, os festivais possuem espaços destinados a exibições de visionary

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arts, produzidas a partir da repetição de padrões geométricos em cores vibrantes, também conhecida

como estética psicodélica.

O psytrance é um subgênero da eletronic dance music onde batidas aceleradas e ritmadas (135-200 B.p.m) em 4/4 são utilizadas para atingir estados alterados de consciência. Os festivais de psytrance podem durar até uma semana, onde reúnem milhares de amantes da psicodelia para dançar, experimentar uma vasta gama de drogas como o ecstasy, a cannabis e o LSD e conviver em contato com a natureza. O maior festival deste gênero, o Boom, realiza-se bianualmente em Portugal, no conselho de Idanha-a-Nova, e reúne cerca de 25 mil pessoas. Além do consumo de música eletrônica nas pistas de dança, ou Dance Flor, também existem no festival ambientes ligados a cultura ecológica, alimentação vegana e a outras artes, como concertos de World Music e espaços destinados a exibição de artes visuais inspiradas na chamada estética visionária (ST JOHN, 2009).

O psytrance é um herdeiro e um desdobramento da contracultura. Nos festivais de psytrance a música e os alucinógenos são utilizadas com o objetivo de atingir um êxtase, ou transe, daí o trocadilho com o termo “trance”. A noção de liminar, proposta por Vitor Turner nos anos 1960 e 70, se aplica a forma como se estruturam os rituais musicais do psytrance e sua relação com as espiritualidades New Age.

Segundo Turner, os rituais são capazes de produzir um estado de supressão momentânea das normas e estruturas sociais, onde as pessoas envolvidas estabelecem relações intersubjetivas baseadas na confiança mútua. Nos ritos de passagem este momento é denominado communitas, e acontece de maneira pontual, para que depois haja um retorno a estrutura social (TURNER, 2013, p. 123). Por outro lado, existem movimentos e instituições sociais que buscam produzir um permanente estado de communitas. Este estado ocorre durante as peregrinações ou entre aqueles que vivem em comunidades que possuem regras próprias, como no movimento hippie, analisado por Turner.

A acentuação dada pelos hippies à espontaneidade, ao imediatismo e à “existência” põe em relevo um dos sentidos em que communitas contrasta com a estrutura. A communitas pertence ao momento atual, a estrutura está enraizada no passado e se estende para o futuro pela linguagem, a lei e os costumes (TURNER, 2013, p. 112).

Ao migrar para Goa nos anos 60, a comunidade hippie continuou a construir formas de sociabilidade estruturadas na busca pela communitas. Na impossibilidade de concretizar as almejadas “comunidades alternativas”, este sentimento de comunidade passou a ser buscado cada vez mais a partir de rituais como os festivais de música eletrônica ou raves.

Este sentimento de comunidade e solidariedade entre iguais é percebido pelos adeptos do

Psytrance e da New Age como intrinsecamente pertencente às populações não-ocidentais, que se

tornam uma fonte idealizada de inspiração para suas práticas. Como destaca St John: “The rhyth-mic soundscapes of electronic dance music genres are thought to inherit the sensuous ritualism, percussive techniques and chanting employed by non-Western cultures and throughout history for spiritual advancement” (ST JHON, 2004, p. 20).

Este fenômeno não se restringe ao Psytrance, a partir destas relações entre autenticidade, espiritualidade e música, passaremos a analisar outro estilo musical, a música Celta, cujo consumo contemporâneo fundamenta-se também na busca deste uma autenticidade primitiva, esotérica e idealizada.

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O CELTISMO: DO ÉTNICO AO TRANSNACIONAL NA CENA DA NEW AGE

O celtismo é uma tendência de valorização da cultura dos povos Celtas, que habitaram a Europa a partir do segundo milênio antes de Cristo. O celtismo se faz presente em diversas lin-guagens artísticas, especialmente na música. Porém sua disseminação enquanto categoria cultural e ideológica tem relação também com a literatura:

The idea of a “Celtic” music-whether it signifies bards, bodhrans, The Chieftains, Enya, fest noz, triple harps, Riverdance, Alan Stivell, the Tar- tan Amoebas, or U2-is deeply and indelibly involved with the Celtic Revival in literature and the arts (PORTER, 1998, p. 206).

O romantismo foi um movimento que tanto na literatura quanto na música promoveu a valorização de símbolos e mitos ligados aos Celtas. Atualmente, a indústria cultural, por meio do cinema e de outros médias, tem realizado versões populares de temas Celtas, especialmente da Matéria da Bretanha, que já mereceu diversas adaptações cinematográficas e obras literárias (BACEGGA, 2010). Obras como “As Brumas de Avalon” (2001), “Excalibur” (1981), “A Lenda da Rainha Pagã” (2009) e “Rei Arthur: A Lenda da Espada” (2017) levam às telas do cinema e às páginas da literatura popular um imaginário sobre os Celtas, com destaque para o tema da magia e do misticismo presente nas lendas arthurianas.

Independente da dificuldade em se classificar uma música Celta, pode-se falar em uma identidade Celta, mobilizada por músicos e consumidores desta música como fonte para identidade étnica (PORTER, 1998). Para além deste sentido identitário, a música celta tornou-se um produto de massa nas últimas décadas, o que extrapola o caráter étnico do “interceltismo”. Ao contrário, está ligado ao próprio surgimento da World Music como um gênero musical que produz e mistifica a alteridade. A World Music se constrói a partir de referências acadêmicas obtidas na etnomusico-logia e do processo de valorização e de construção da autenticidade musical como algo exótico e da celebração do nativo como natural. Neste sentido, se compara a certas formas de turismo cultural que tem como objetivo a busca do autêntico (FIRTH, 2000).

Além do resgate de um imaginário celta na música e nas artes, os mitos celtas servem de inspiração para praticas espirituais denominadas de neopagãs, pois procuram reconstruir e praticar as religiões destas populações pré-cristãs (CHASE, 2006). Como argumenta Mac Coy (2004), os movimentos espirituais da New Age e do neopaganismo possuem larga influência no consumo da música celta. Inspirados no imaginário dos antigos Celtas como um povo que habitou um român-tico jardim do éden, jovens interessados no paganismo contemporâneo consomem a música Celta de inspiração New Age, por meio inclusive da internet (MAC COY, 2014, p. 184).

A disseminação de informações sobre cultos neopagãos foi fundamental parra a ampliação do consumo da música celta, mesmo que os artistas que as produzem não se identifiquem com o neopaganismo enquanto um movimento espiritual. O exemplo mais emblemático é o sucesso da cantora irlandesa Enya, impulsionado em grande parte pelo consumo de música New Age:

Enya’s music is meticulous produced, packaged and marketed, wich has garnered an enourmous fan base and given the artist her title as “the reigning Irish queen of Celtic music. Through Enya is not pagan, her music is promoted and dispersed on a wide range of Pagan websites (MAC COY, 2004, p. 186).

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A apropriação e ressignificação contemporânea do imaginário Celta tendo sido utilizada como meio para promoção do turismo cultural. Em Lorient, na Bretanha, a celebração de um Festival Interceltico que atrai anualmente cerca de 80 mil turistas transformou a região no centro cultural mundial deste movimento (BRANCO, 2015).

Em outras partes da Europa é o imaginário místico-esotérico e artístico ligado à cultura Celta que tem contribuído para a promoção do turismo, mesmo que não diretamente associado a culturas musicais. Em Stonehenge, Inglaterra, os megalitos deixados por antigas povoações Celtas foram apropriados por grupos contemporâneos de neopagãos e neoesotéricos que promovem neste local festivais em datas estratégicas do ano (CUSAK, 2012), referentes principalmente ao ciclo natural das estações. Em Santiago de Compostela, na Espanha, o imaginário sobre bruxas e outros aspectos místicos da região foi ressignificado e passou de um estigma a uma estratégia para a promoção do turismo (JIMENEZ-ESQUINAS, 2013). O caminho de Santiago, antiga rota de peregrinação medieval, atualmente é frequentado por peregrinos modernos interessados não só na devoção a este santo católico, mas também em esoterismo e outras experiências culturais (MENDES, 2009). Este percurso peregrinatório tem sido alvo de vasta produção discursiva, especialmente a literária, que tem ganhado ampla divulgação, promovendo impactos diretos nas práticas culturais e turísticas desenvolvidas nesta região (BELO, 2014; SAMARTIM, 2016).

Os principais festivais de música Celta em Portugal são os do Porto, Senturião, Ponte da Barca e Sedim. Nestes festivais, apresentam-se em um ou dois dias de espetáculos grupos que vão desde a música popular portuguesa até conjuntos internacionais que tem como tema a recriação da música celta medieval (SIMÕES, 2013).

Além dos festivais musicais, dois eventos turísticos remetem ao imaginário pagão desta região em Portugal, porém de uma perspectiva mística e esotérica. A cidade de Vilar de Perdizes realiza há mais de trinta anos, sob o comando do Padre Fontes, um Congresso de Medicina Popular onde são discutidas sabedorias e práticas de saúde ancestrais. Neste congresso, reúnem-se esotéricos de diversas correntes, ocorrendo também a promoção da cena cultural local, com destaque para a música regional. Na cidade de Montalegre, no mesmo conselho, criou-se desde 2001 o costume de realizar um grande evento de rua todas as vezes que acontece uma sexta-feira 13. Neste dia a cidade prepara-se para receber milhares de turistas, que se engajam em representações de teatro de rua e performances. Os desfiles de bruxas e de outros mascarados percorrem as ruas e culminam com a encenação do ritual da queimada, dramatização de uma espécie de exorcismo medieval. Durante o evento são alocados palcos com shows musicais e pirotécnicos

Estas práticas artísticas se articulam com um contexto internacional que favorece a divul-gação e ampliação do interesse em temas étnicos ou pagãos. Estas expectativas remetem a uma idealização do passado, que possui em si uma crítica aos valores modernos, e um projeto de resgate do contato entre ser humano, natureza e espiritualidade. Este ideal de resgate está presente nas referências pagãs do romantismo e também influencia o surgimento de religiões e espiritualidades neopagãs (SAGE, 2009).

A insegurança com relação aos valores contemporâneos contribui para a idealização das práticas e cosmovisões do passado, tanto nas espiritualidades neopagãs quanto nos estilos musicais associados ao paganismo. A popularidade destes símbolos remete a uma crise da sociedade e de valores modernos, o que promove uma busca idealizada de uma época de ouro perdida. Esta hipó-tese pode ser reforçada a partir de um entendimento de que o celtismo atual possui características semelhantes ao movimento romântico do século XIX, que remetia ao passado idealizado da Europa antes do cristianismo. Por outro lado, este resgaste acontece na música e nas artes contemporâneas

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com uma perspectiva diretamente voltada ao consumo, por meio da ludicidade dos festivais, e de sua intercessão com o turismo.

MÚSICA E RITUAL: O PSICODÉLICO E O MÍSTICO NA CENA MUSICAL CONTEMPORÂNEA

Observamos que o consumo de música associada à espiritualidade e aos ideais da New Age acontece em contextos específicos. Tanto o psytrance quanto a música Celta são percebidos como estilos musicais apropriados para se experimentar vivências cujas características que se aproximam dos rituais religiosos. Especialmente no caso do psytrance, onde o contexto dos festivais é pensado para levar os participantes a experimentarem estados alterados de consciência. No caso da música Celta, a referência a espiritualidade ocorre por meio da recriação de um contexto medieval associado ao mágico e ao místico, próprio das espiritualidades neopagãs.

Em ambos os casos, as vivências espirituais estão diretamente ligadas à uma referência de alteridade, entendida enquanto pura e autêntica. No caso do psytrance, a busca por Goa visava realizar o ideal hippie de realizar um mergulho na cultura e na filosofia oriental. Na música Celta, o imaginário de alteridade surge relacionado com mitos românticos que projetam os Celtas como um povo espiritualizado e fortemente conectado à natureza.

Este movimento de regaste e aproximação ao misticismo nas sociedades contemporâneas está diretamente associado aos processos de secularização e racionalização. A secularização é um processo de longa duração que vem ocorrendo no Ocidente, onde a religião é gradativamente retirada do espaço público, e passa a destinar-se à vida privada de indivíduos e grupos, deixando de interferir diretamente na política, na arte e na economia (TAYLOR, 2010).

Segundo Weber, as sociedades modernas passam pelo que ele chamou de racionalização, que desencadeia um fenômeno que ele chamou de desencantamento. O desencantamento significa a descrença nas interpretações mágicas sobre o mundo, posto que tudo poderia, em última instância, ser explicado pela ciência (WEBER, 2017). Paradoxalmente, esta racionalização leva também a uma perda de sentido, visto que as explicações técnicas produzidas pela ciência não atingem o sentido último da existência e muitas vezes não são acessíveis para o homem comum. Como diz o autor:

A intelectualização e a racionalização geral não significam, pois, um maior conhecimento geral das condições da vida, mas algo de muito diverso: o saber ou a crença em que, se alguém simplesmente quisesse, poderia, em qualquer momento, experimentar que, em princípio, não há poderes ocultos e imprevisíveis, que nela interfiram; que, pelo con-trário, todas as coisas podem – em princípio - ser dominadas mediante o cálculo. Quer isto dizer: o desencantamento do mundo. Diferentemente do selvagem, para o qual tais poderes existem, já não temos de recorrer a meios mágicos para controlar ou invocar os espíritos (WEBER, 2017, p. 13-14).

Nesta busca contemporânea por recuperar o lugar do sagrado, abalado pelos processos de racionalização e secularização, a espiritualidade tende a ser percebida como uma vivência associada às sociedades ditas primitivas, arcaicas ou pré-modernas, onde a magia não teria se dissociado da vida cotidiana. Assim, o primitivo passou a ser visto como fonte do novo e de transformação social. Neste contexto, toma força o conceito de espiritualidade, compreendida como o encontro do indivíduo autônomo com o sagrado, sem a mediação de instituições religiosas. Desta forma, a

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espiritualidade e o sagrado tornam-se novamente presentes no espaço público, não mais a partir de vivências atreladas a governos, igrejas ou a grupos dominantes, mas por meio de propostas li-gadas a indivíduos ou grupos que buscam restaurar um sentimento comunitário. Maffesoli (1990) chamou a modernidade de “tempo das tribos”, pois nela as sociabilidades fluidas substituiriam o pertencimento a grupos rígidos como a Igreja ou o partido. É a partir deste tipo de pertencimento tribal, que o autor chamou de socialidade, que o sagrado vivenciado de forma comunitária, porém não-institucional, tem vindo a influenciar no consumo de estilos musicais ligados a propostas rituais como psytrance e a música Celta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos neste texto estabelecer algumas relações preliminares entre música, espiritu-alidade e alteridade a partir do estudo Psytrance e da música Celta, dois estilos musicais onde seus consumidores procuram estabelecer relações com a espiritualidade através da música. A análise destes estilos musicais revelou alguns pontos em comum entre eles. Dentre estas relações, podemos destacar: a valorização do primitivo enquanto puro, ingênuo e espiritualizado; a frequência a grandes festivais realizados ao ar livre e em ambientes próximos a natureza; a ideia de que a música permite uma elevação espiritual do ouvinte; a relação com a New Age enquanto um vasto movimento de resgate da espiritualidade através de práticas inspiradas em culturas não-ocidentais.

Este estudo não pretendeu esgotar as possibilidades de estudo de nenhum destes dois estilos musicais, apenas buscou reunir algumas pistas para a análise da relação entre música, espiritualidade e alteridade. A partir do estudo do Psytrance e da música Celta é possível concluir que existe um largo campo de intercessão entre as novas formas de espiritualidade contemporâneas e as práticas musicais. Estas intercessões acontecem, pois tanto as espiritualidades New Age quanto os estilos de música aqui analisados possuem uma ideologia de resgaste dos modos de vida comunais caracte-rísticos de sociedades não-ocidentais e a da busca pela construção de uma relação harmônica com o meio ambiente.

Em ambos os estilos a construção idealizada da alteridade possui um lugar fundamental nas práticas de consumo musical. Esta construção da alteridade, inspirada no imaginário da contracul-tura, tem como objetivo a busca por uma pureza original, ou paraíso perdido, através da música. A abordagem comparativa entre o Psytrance e a música Celta demonstrou que a análise de práticas de consumo musical a partir dos imaginários ligados a espiritualidade pode ser um caminho fértil para a compreensão das motivações de seus consumidores.

ALTERITY, SPIRITUALITY AND EXOTISM: FROM CELTIC MUSIC TO PSYTRANCE.

Abstract: this research analyses the intersections between music, alterity and spirituality, from a

com-parison between two musical styles: Celtic music and Psytrance. Both stiles are related to an increased interest in cultures and practices related to an imaginary of the primitive as pure. The consumption of music linked to this imaginary is associated with a naturalistic, esoteric and mystical lifestyle, built from references in the counterculture. For consumers of these styles, communal practices and experiences associated with music acquire a ritual meaning.

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Referências

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Referências

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